O Senhor dos Anéis na literatura e no cinema: diálogos de artes e imagens



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Transcrição:

O Senhor dos Anéis na literatura e no cinema: diálogos de artes e imagens Leandro Vieira (PG-UEM) 1 RESUMO Para iniciar uma discussão sobre diálogos de artes e imagens, este ensaio se debruça sobre as diferenças entre a obra literária O Senhor dos Anéis e sua versão adaptada para o cinema por Peter Jackson. Através dessa aproximação comparativa, o presente trabalho visa discutir os impactos que a concreta representação imagética, inerente à poética do cinema, gera na obra por meio do filme, pois que no livro o fator imaginário é, originalmente, o atributo constituinte da poética literária do autor, e aliás o que lhe permite criar inefabilidades que são, se não impossíveis, muito difíceis com a representação fixa e áudio-visualmente imposta pelo cinema. Entretanto, como aqui o propósito não é a- branger nem esgotar exaustivamente o assunto em questão, é utilizado um recorte específico e, acredita-se, satisfatório aos intuitos do trabalho: a figura do personagem Sauron. Tal escolha se faz pelo fato desse personagem representar, tanto no livro como no filme, o antagonista-mor de O Senhor dos Anéis, o que lhe confere um caráter eminentemente emblemático, o suficiente aos propósitos desta discussão. Palavras-chave: Literatura; Cinema; Imagem. Eixo Temático: 9 Literatura e Imagem ABSTRACT This is an essay about the discussion of images and arts, literature and cinema. So to analyze some aspects of this issue, we choose the work The Lord of The Rings (BY J.R.R. Tolkien), and therefore with this literary work we decided analyzing the differences between the literary version and the cinematography version, adapted by Peter Jackson, of this work. As our intention is not to exhaust the subject in question we decided focusing on the figure and representation of Sauron and analyzing what kinds of differences are possible to find into the literary version and at the cinematographic adaptation, because in the literary version this character is not outlined: why it s ineffable. In the other hand, in the cinematography adaptation, Sauron is visibly pictured. Therefore it causes changes in the poetric of the work like a whole.. Key-Words: Literature; Cinema; Image. 1 Mestrando em Letras pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). E-Mail: metaltrindade@hotmail.com 1724

1. Introdução Diálogos entre a literatura e o cinema, longe de constituírem exceção, foram diversas vezes estabelecidos através dos anos. Por um lado, temos um profícuo e mutuamente benéfico intercâmbio entre as artes em questão; por outro, o que vemos é a lógica feroz de mercado que, de modo intensificado nos tempos atuais, vê no best-seller de hoje o blockbuster de amanhã, tal como podemos verificar por meio das lucrativas franquias (na literatura e no cinema) de Harry Potter, Saga Crepúsculo, Percy Jackson, dentre outras. Em uma posição intermediária, em relação às duas frentes mencionadas, encontramos a famosa obra de Tolkien O Senhor dos Anéis, levada à tela do cinema sob a direção de Peter Jackson e que nos oferece um rico terreno para discussão no tocante aos diálogos da literatura com o cinema. Frente a isso, o presente ensaio pretende discutir as relações que norteiam tais diálogos, lançando mão do método comparativo e utilizando um recorte específico: a figura de Sauron, o grande antagonista tanto na obra literária quanto na cinematográfica. Por meio das particularidades de representação em cada um dos casos, a imagem de Sauron, articulando presença e ausência, abrirá espaço para a compreensão da importância do estabelecimento imagético em cada poética e, além disso, permitirá a problematização das escolhas e soluções em cada caso, em uma dinâmica na qual as questões poéticas e estéticas não são o único desafio a ser enfrentado. 2. Aspectos gerais de O Senhor dos Anéis Como muitos já sabem, O Senhor dos Anéis é uma obra de ficção fantástica em que J.R.R. Tolkien narra uma aventura épica desenvolvida na Terra Média, isto é, num mundo mítico criado por ele onde diversas categorias de personagens interagem numa missão peculiar. A espinha dorsal da obra, diga-se numa visão panorâmica, compõe-se de uma jornada empreendida por um grupo seleto de personagens multirraciais (elfos, homens e anões) em pró da destruição do Um Anel, um objeto muito poderoso com o qual ninguém (exceto seu feitor, o antagonista-mor Sauron) é capaz de lidar devido ao seu poder maléfico de corrupção moral, nem destruí-lo, visto sua constituição magicamente inquebrantável, adquirida no fogo da Montanha da Perdição local de onde Sauron havia retirado ardilosamente a matériaprima para confeccioná-lo. 1725

Como o único meio de destruição do Anel só é possível lançando-o no mesmo fogo com o qual fora forjado, Frodo Bolseiro, o protagonista da obra (da raça dos Hobbits), seu amigo e jardineiro Sam Wise Gamgi (também um Hobbit e parceiro imprescindível de Frodo), bem como toda a equipe escalada para acompanhá-lo e auxiliá-lo Gandalf, o mago cinzento; A- ragorn e Boromir, da raça humana; Legolas da raça dos elfos e Gimli dos anões, bem como Merry e Pippim também da raça dos Hobbits partem então em uma laboriosa missão rumo às terras de Mordor, onde se localiza o destino de sua incumbência. Tudo isso implica, portanto, numa batalha triunfal do Bem contra o Mal, em que o ápice da história se dá com a destruição do objeto maléfico e, consequentemente, a derrota de Sauron, seu maléfico artífice, e também de toda sua caterva de aliados corrompidos. 3. Da literatura para o cinema: implicações adaptativas Uma vez expostos os aspectos supracitados do objeto aqui enfocado, podemos agora lançar mão das observações e apontamentos a respeito do que vai de encontro aos propósitos deste ensaio. E para começar, podemos observar o fenômeno adaptativo que ocorre da literatura para o cinema; ou seja, de uma composição artística que possui elementos intrinsecamente peculiares, como é o caso, por exemplo, do caráter ativamente imaginário requisitado pela obra literária ao seu leitor, em contraste à imposição áudio-visual exercida pela obra cinematográfica sobre a mente do cinéfilo ; o que compromete, assim, sua imaginação caso tente ler a obra depois de assisti-la em sua adaptação cinematográfica. Literatura e cinema constituem, portanto, artes de poética compositiva inerentemente distintas entre si, o que requisita, de seus respectivos estudiosos e apreciadores, a devida atenção às implicações e impactos subsequentes às adaptações. Assim, para lançar mais luz sobre esse assunto, pensemos na adaptação de O Senhor dos Anéis, do livro para as telas do cinema. A princípio, como poderíamos pensar, não parece haver nenhum problema relevante em se tentar representar, numa tela de cinema, aquilo que, enquanto na obra literária, é requisitado apenas à imaginação do leitor. Aliás, o lançamento e o consumo cada vez maior dos produtos da indústria cinematográfica só vêm comprovar que as possíveis implicações adaptativas das obras não parecem preocupar esses consumidores. Mas tal questão seria assim tão simples? Bastar-se-ia tomar então, estatisticamente, o elevado número de produções cinema- 1726

tográficas, adaptadas de obras literárias, como pressuposto de negação à relevância das implicações adaptativas supracitadas? Pensemos nalguns exemplos concernentes à adaptação do livro O Senhor dos Anéis para o filme do diretor Peter Jackson. No primeiro filme da trilogia, A Sociedade do Anel, por e- xemplo, logo nos primeiros minutos da introdução, ouve-se a voz da personagem Galadriel narrando como toda a história começou. Conforme alguns fãs devotos da obra notaram, o problema tem início a partir do momento em que as afirmações da personagem citada ilustram fatos totalmente diferentes do que realmente ocorre no livro. Quando ela apresenta a história do Anel, fica a ideia de que Sauron, o Senhor do Escuro, forjou todos os anéis de Poder e, assim, distribui-os entre os elfos, anões e homens. Mas não é exatamente assim que ocorre no livro. Na realidade, Sauron havia orientado os ferreiros élficos para confeccionarem os demais anéis, enquanto que, na Montanha da Perdição, ocultamente, forjava o Um Anel maléfico que vai no título da obra. Nota-se, portanto, uma modificação que diverge das informações originalmente compostas pelo autor. Uma outra implicação importante ocorrida na versão cinematográfica, certamente devido à extensão cronológica da obra, é o fato de um capítulo inteiro do livro ser amputado completamente no filme. O capítulo sobre o personagem Tom Bombadil. É sabido que, neste episódio, Tolkien apresenta ao leitor do livro um personagem singular, o qual em nenhuma outra parte da obra aparece; assim caberia a pergunta: como ficaria tal implicação para o espectador apenas da adaptação? Teria esta a mesma poética ou seria prescindível ao conhecimento da obra como um todo? Para refletir melhor sobre esta questão adaptativa, leiamos o que nos escreve Linda Hutcheon ao discutir tais apontamentos em sua obra Uma Teoria da Adaptação: no modo contar na literatura narrativa, por exemplo nosso engajamento começa no campo da imaginação, que é simultaneamente controlado pelas palavras selecionadas, que conduzem o texto, e liberado dos limites impostos pelo auditivo ou visual (HUTCHEON, 2011, p. 48, grifo nosso). Como podemos ver, a obra literária possui um caráter particular e, destaque-se, nãoimposto, pelo menos não como ocorre num filme. Contudo, se fosse possível perguntarmos a opinião de Tolkien a respeito do fenômeno das adaptações, poderíamos recorrer àquilo que ele mesmo disse sobre as adaptações teatrais, em sua obra Sobre História de Fadas (2006): o Teatro, por sua própria natureza, já empreende uma espécie de magia falsa, digamos pelo menos substituta - a apresentação visível e audível de pessoas imaginárias 1727

numa história. Isso, por si só, é uma tentativa de falsificar a varinha do mágico. Introduzir fantasia ou magia adicional nesse mundo secundário quase mágico, mesmo com sucesso mecânico, é exigir algo como um mundo interno ou terciário. É um e- xagero. Pode até não ser impossível conseguir algo assim. Nunca o vi conseguido com êxito. Mas no mínimo não pode ser considerado a forma apropriada de Teatro, em que pessoas que caminham e falam são os instrumentos naturais da Arte e da ilusão. Baseando-se nisso que o autor de O Senhor dos Anéis opinou, sobre as peças teatrais em relação às pessoas imaginárias numa história, poderíamos inferir que, em se tratando de cinema, Tolkien certamente desprezaria quaisquer tentativas de manifestar áudio-visualmente aquilo que ele criou para ser meramente imaginado pelos leitores individualmente. Afinal, se a poética literária de uma determinada obra está contida no fato de o leitor ter de imaginar, e não assistir a cenas auto-impostas, o cinema constitui, portanto, suporte para outra poética ao apreciador, como o cinéfilo, por exemplo. 4. A representação imagética de Sauron: no livro e no cinema Como dito, o objetivo deste ensaio não é esgotar o assunto em questão; por isso, tomemos uma figura emblemática da obra como recorte analítico, e elucidemos as problematizações que permeiam a composição de cada poética, seja literária, seja cinematográfica. A figura do personagem Sauron, antagonista-mor de O Senhor dos Anéis, serve aqui como exemplo para o intuito deste trabalho, uma vez que sua constituição e representação imagética, embora não sejam definidas na versão originalmente literária da obra, aparecem nitidamente na adaptação cinematográfica de Peter Jackson. Como julgamos, tal fator se faz assaz relevante quanto às implicações adaptativas já mencionadas anteriormente. Pois basta notarmos e refletirmos que, ao escolher um formato, um figurino e uma constituição idiossincrásica específicos para a representação de Sauron no filme, intrínseca e inevitavelmente tais aspectos acabam sendo áudio-visualmente impostos ao apreciador da obra, o que automaticamente repercute na sua relação para com a mesma repercussões estas, inclusive, sujeitas a posteriores pesquisas mais aprofundadas que os apontamentos deste trabalho. E mesmo que esse espectador não se importasse de ter sua imaginação violada por uma imposição in-voluntária por parte do diretor do filme, isso não mudaria o fato de que, com tais modificações compositivas, já não se trata, exatamente, da mesma obra. Nesse sentido aqui exposto, é importante frisar que a figura de Sauron, no livro, por não ser retratada de forma clara, ou seja, por não ser representada através de uma descrição deta- 1728

lhada que possibilite ao leitor uma composição imagética concreta de sua constituição corpórea, faz com que este personagem ganhe para o leitor um caráter altamente inefável na obra. No processo de adaptação cinematográfica da obra, porém, o que ocorre é exatamente o comprometimento dessa inefabilidade atribuída ao personagem; pois no filme, Sauron aparece representado, antes de perder a batalha contra o rei Isildur num passado remoto à história, como um imponente cavaleiro negro, trajando uma capa e uma armadura negras, portando um tipo de elmo metálico dotado de arestas agudas; e num segundo momento, é caracterizado como um grande olho flamejante sustentado no topo pontiagudo de uma torre escuramente pétrea, agindo como um farol que focaliza tudo seu ao redor. Nenhuma dessas características visuais é sugerida pela leitura da obra. O que se pode pensar a respeito desta representação? E se, por acaso, esse caráter inefável de Sauron for o elemento mais impactante de sua personalidade, terá o mesmo impacto na sua versão cinematográfica; isto é, áudio-visualmente imposta? Seria possível, a partir da adaptação cinematográfica, olhar para tal personagem com os mesmos olhos com os quais o enxergamos pela leitura da obra originalmente literária? Talvez fosse o caso de meditarmos sobre as possíveis implicações que a inefabilidade de uma obra pode proporcionar na recepção literária do leitor. Mas este seria um assunto que se distanciaria do objetivo principal deste trabalho. Voltemos então à questão da representação de Sauron. Como já foi dito, para o cinema se faz necessário uma representação áudio-visual devido à constituição intrínseca do suporte cinema. Assim como, para a literatura, não é possível constituí-la sem o uso das palavras, o mesmo se pode pensar do cinema quanto à questão da apresentação de imagens e sons. Em suma, a questão se traduz da seguinte maneira: ao lermos o livro O Senhor dos Anéis, nos deparamos, como aqui é o caso, com o grande antagonista Sauron, o artífice maléfico do Um Anel; entretanto, ao migrarmos para o suporte cinematográfico, somos confrontados com a necessidade inerente que o espectador tem de ver e ouvir do que esse tipo de suporte tem para mostrar do Senhor dos Anéis. Como então resolver este aparente dilema? Como já deve estar claro, cada suporte possui a sua própria poiética, isto é, seu próprio modus operandi de tratar a obra de arte de cada autor e, desse modo, seu próprio valor artístico. Sendo assim, em se tratando de O Senhor dos Anéis de J.R.R. Tolkien, enquanto no livro o personagem Sauron é sugerido como algo puramente abstrato, indescritível, ou seja: inefável, talvez por seu caráter espiritual de descendência ancestral dos antigos povos celestiais; no filme, sua representação se faz necessariamente mais concreta e humanizada, visto que, para 1729

os efeitos de ação que o filme possui, pode ser que não fosse adequado procurar por uma representação nublada do personagem. Por isso, enquanto em sua versão literária, Sauron pode simplesmente continuar nãodescrito, isto é, com um caráter inefável, a fim de que o leitor(a) usufrua de toda liberdade para imaginá-lo como bem lhe aprouver à imaginação, enquanto que, no filme, para que o espectador desfrute de uma boa dose de ação e efeitos especiais (peculiares ao cinema), tal personagem seja caracterizado tal como o foi, o que não o isenta de críticas, é claro. Deixemos para as pesquisas posteriores maior aprofundamento a respeito. 5. Considerações Finais Como vimos, para discutir sobre artes e imagens, ao que nos parece, foi útil aproximarmos duas versões diferentes de uma mesma obra. Em nosso caso, O Senhor dos Anéis de J.R.R. Tolkien foi tomada, tanto em sua versão originalmente literária como sua adaptação cinematográfica, fazendo-se, assim, uma comparação entre as diferenças ocorrentes no modo de representar os aspectos da obra em cada tipo de suporte. A figura do personagem Sauron serviu, como foi visto, de recorte para que fosse possível averiguar com maior palpabilidade as implicações poéticas, tanto na versão literária como na adaptação para o cinema. Pois o trabalho do diretor de um filme, de acordo com o que foi discutido, deve constituir-se de imprescindíveis escolhas (muitas). Tais escolhas, portanto, é o que torna o trabalho do adaptador cinematográfico uma segunda obra-de-arte em relação ao material original, pois é dependendo destas escolhas que o público pode julgar sua qualidade poética em relação à obra como um todo. A responsabilidade do diretor de um filme, como é o caso de Peter Jackson em O Senhor dos Anéis, deve estar atrelada à arte de fazer (boas) escolhas, no que diz respeito ao fator áudio-visual inexistente em qualquer obra literária, que por si mesma é silenciosa, contemplativa. Pois se um filme é constituído de atores, figurino, cenário, trilha sonora, angulação de câmeras etc., deve ser extremamente necessário uma boa capacidade artísticoadministrativa para gerenciar todos estes mecanismos externos ao conteúdo da obra adaptada. 1730

Ou seja, o diretor do filme precisa fazer o papel solitário do autor do livro, mas tendo de lidar com muitas outras pessoas, enquanto o escritor lida apenas com sua mente na elaboração de sua escrita, como se dispusesse de tudo o que um bom diretor precisa ao seu redor, porém sem ter de pagar ninguém mais que a papelaria onde compra seus materiais para escrever. 7. Referências Bibliográficas HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Tradução de André Cechinel. Florianópolis: Editora UFSC, 2011. TOLKIEN, J.R.R. O Senhor dos Anéis. [Volume único]. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 1731