FISIOLOGIA DOS LÍQUIDOS CORPORAIS EM CÃES E GATOS PHYSIOLOGY OF BODY FLUIDS IN DOGS AND CATS -REVISÃO BIBLIOGRÁFICA-



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FISIOLOGIA DOS LÍQUIDOS CORPORAIS EM CÃES E GATOS PHYSIOLOGY OF BODY FLUIDS IN DOGS AND CATS Sérgio Santalucia 1, Hildo da Silva Neto 2, Ana Lucia Crissiuma 3, Luis Felipe Dutra Corrêa 4, Jorge Luiz Costa Castro 5, Verônica Souza Paiva Castro 6, Antonio Soares Coutinho Júnior 7, Maurício Veloso Brun 8, Alceu Gaspar Raiser 9 -REVISÃO BIBLIOGRÁFICA- RESUMO A água corporal está distribuída em dois grandes compartimentos principais: fluido intracelular (FIC) e fluido extracelular (FEC). O seu movimento através desses espaços é determinado pelo conjunto das pressões hidrostática, osmótica e coloidosmótica, que atuam nos fluidos corporais. Processos metabólicos ou de transporte através das membranas celulares são fundamentais para a função normal das células e sua sobrevivência. A dinâmica normal desses fluidos, nos diversos compartimentos corporais, muda com a doença. Estados de desidratação orgânica devem ser corrigidos por fluidoterapia, cujo objetivo principal é a reposição do volume e a manutenção do equilíbrio hídrico e ácido-básico do paciente resultando em melhor perfusão e transporte de oxigênio às células. Este estudo teve o objetivo de revisar a fisiologia dos líquidos corporais em cães e gatos e assim facilitar a compreensão das alterações hídricas e eletrolíticas decorrentes dos processos patológicos nos compartimentos corporais. Palavras-chave: canino, felino, fluidos corporais, desidratação. (1) Médico Veterinário, mestrando em Cirurgia Experimental na UFSM. E-mail: santalucia.sergio@gmail.com (2) Médico Veterinário autônomo graduado pela Universidade do Grande Rio, RJ. E-mail: hsneto@gmail.com (3) Médica Veterinária, Professora Doutora do Curso de Medicina Veterinária da Universidade do Grande Rio. (4) Médico Veterinário, Professor de Clínica e Cirurgia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Câmpus Uruguaiana, RS. E-mail: lfdcjeep@yahoo.com.br (5) Médico Veterinário, Doutorando em Cirurgia Experimental na UFSM. E-mail: castrojlc@gmail.com (6) Médica Veterinária, Mestranda em Patologia Clínica na UFSM. E-mail: castrove@gmail.com (7) Médico Veterinário, mestrando em Cirurgia Experimental na UFSM. E-mail: antonioscj@gmail.com (8) Médico Veterinário, Professor Doutor do Programa de Pós-graduação em Medicina Veterinária da UFSM. E- mail: mauriciovelosobrun@hotmail.com (9) Médico Veterinário, Professor Doutor do Programa de Pós-graduação em Medicina Veterinária da UFSM. E- mail: alceu.raiser@gmail.com

62 Santalucia, S. et. al. ABSTRACT The body water is distributed into two large main compartments: intracellular fluid (ICF) and extracellular fluid (ECF). The movement of water through these spaces is determined by the set of hydrostatic pressure, osmotic and colloid osmotic who work in body fluids. Metabolic processes or transport across cell membranes are essential for normal cell function and survival. The normal dynamics of fluids in the various body compartments, changes with the disease. States of dehydration should be corrected by organic fluid, whose main objective is the volume replacement and maintenance of water balance and acid-base status of the patient resulting in better perfusion and oxygen delivery to cells. This study aimed to perform a bibliographic review on the physiology of body fluids in dogs and cats and thus facilitate the understanding of water and electrolyte changes resulting from pathological processes in the body compartments. Key words: canine, feline, body fluids, dehydration. INTRODUÇÃO O peso corporal de mamíferos é composto de grande percentual de água e apresenta variações individuais. Os sistemas nervoso, endócrino, renal, cardíaco, respiratório e gastrintestinal regulam a ingestão e excreção de água. A água corporal está distribuída em dois grandes compartimentos: fluido extracelular (FEC) e fluido intracelular (FIC), sendo o movimento de água através desses espaços determinado pelo conjunto das pressões hidrostática, osmótica e coloidosmótica. Os eletrólitos presentes no FEC e no FIC desempenham importante papel na manutenção da homeostasia hídrica do paciente. Processos patológicos podem resultar em desequilíbrio de eletrólitos nos espaços corporais, resultando, por exemplo, em diminuição ou elevação de sódio e potássio no sangue. A dinâmica normal dos fluidos, nos diversos compartimentos corporais, muda com a doença. Várias doenças ou condições como diabetes mellitus, desidratação e insuficiência renal podem estar associadas à elevação da osmolalidade plasmática (HENDRIX & RAFFE, 1996). Desidratação clínica, por exemplo, dependendo de sua intensidade, caracteriza-se por sinais clínicos perceptíveis ao exame físico do paciente e ocorre como consequência do aumento da pressão oncótica capilar e diminuição da pressão hidrostática. A desidratação é classificada de acordo com a tonicidade do fluido que permanece no organismo, secundária à perda de água e eletrólitos. Estados de desidratação orgânica devem

63 Santalucia, S. et. al. ser corrigidos por fluidoterapia, e o grau de desidratação do paciente deve ser considerado no volume a ser administrado. O objetivo principal da fluidoterapia é a reposição do volume e a manutenção do equilíbrio hídrico e ácido-base do paciente, no intuito de promover melhor perfusão e transporte de oxigênio às células (FERREIRA & PACHALY, 2000). Este artigo objetiva revisar a fisiologia dos líquidos corporais em cães e gatos, assim como as alterações que ocorrem nesses compartimentos frente à doença. 1. Fisiologia dos líquidos dos compartimentos corporais Os mamíferos, apresentam cerca de 55 a 80% de água corporal; sendo assim, um cão que pesa 20 kg possui aproximadamente 12 litros de água. Entretanto, variações individuais podem ocorrer, de forma que obesos e idosos apresentam um percentual de água corporal menor que cães adultos, com os filhotes apresentando percentual maior que adultos (FERREIRA & PACHALY, 2000). Animais obesos apresentam maior proporção da massa gorda (SENIOR, 1997) e idosos apresentam um menor volume de água intersticial e plasmática (MONTIANI-FERREIRA & PACHALY, 2000). A água corporal é regulada pelo balanço entre ingestão, produto final do metabolismo celular e excreção, sendo a excreção consequência da perda de água pela urina, fezes, pele e respiração, de forma que o volume total de água corporal permanece relativamente constante ao longo do dia (VERBALIS, 2003). O jejuno absorve 50% do total da água proveniente da ingestão. Os outros 50% seguem pelo tubo digestório e são absorvidos no íleo (37%) e no cólon (13%) (FERREIRA & PACHALY, 2000). FEC e FIC são separados por membranas celulares semipermeáveis que permitem a passagem de água e de alguns solutos de um compartimento para outro. O movimento da água através das membranas ocorre como consequência das pressões hidrostática, osmótica e coloidosmótica (GOMES et al., 2005). O FIC compõe, aproximadamente, 40% do peso corporal e mantém sua homeostasia por meio do deslocamento da água, solutos e outras substâncias pela membrana celular. O FEC representa, aproximadamente, 20% do peso corpóreo e consiste no espaço intravascular e intersticial, separados pelas células endoteliais e membranas basais.

64 Santalucia, S. et. al. No corpo, existe ainda um pequeno compartimento de líquido denominado Fluido Transcelular (FTC) ou Terceiro Espaço, que inclui líquidos existentes nos espaços cerebroespinhal, sinovial, peritoneal, pericárdico, gastrintestinal, geniturinário, intraocular, vesícula biliar e secreções respiratórias, que representam 2% do volume de água (RUDLOFF & KIRBY, 1998; WELLMAN et al., 2012). A pressão coloidosmótica (Pco) é definida como a força gerada sempre que duas soluções contendo diferentes concentrações de partículas coloidais são separadas por uma membrana semipermeável. A Pco está relacionada à manutenção do volume vascular, e à prevenção na formação de edemas, sendo portanto importante para a integridade vascular (GOMES et al., 2005). A pressão hidrostática (Ph) é a principal força que determina a saída dos líquidos dos vasos. É controlada pelas vias miogênica, neurogênica e humoral por meio das resistências arteriais e venosas (HUGHES, 2000). Outra pressão importante no movimento da água corporal é a pressão osmótica (Pos), obtida a partir dos solutos dissolvidos nos fluidos corporais (GOMES et al., 2005). Os solutos capazes de atravessar a membrana celular, geralmente deslocam-se de uma solução mais concentrada para outra menos concentrada, por um processo denominado difusão. Os solutos que não são capazes de atravessar a membrana celular tendem a atrair água para o compartimento em que estão localizados (FERREIRA & PACHALY, 2000). Denomina-se osmose o movimento da água através de uma membrana celular associado à capacidade das partículas em atrair água, o que resulta na pressão osmótica. Estes elementos são chamados osmoles efetivos, e tem-se como exemplo, a glicose e o sódio. A osmolaridade efetiva de uma solução é denominada tonicidade. Soluções cuja tonicidade é menor que a do plasma são denominadas hipotônicas, e aquelas cuja tonicidade é semelhante são denominadas isotônicas; as que apresentam tonicidade maior são hipertônicas (FERREIRA & PACHALY, 2000). Fatores que afetam as pressões hidrostática ou oncótica desequilibram a distribuição normal de água entre os compartimentos teciduais. Dessa forma, quando ocorre perda de água no FEC, e a concentração de sódio neste meio aumenta. Consequentemente, a pressão osmótica eleva-se, favorecendo o movimento de água do FIC para o FEC, até que se 65 estabeleça um novo equilíbrio osmótico (DE MORAIS, 2002). 1.1. Distribuição dos solutos nos líquidos corpóreos Os eletrólitos dissociam-se em partículas (íons) com cargas positivas

65 Santalucia, S. et. al. (cátions) e negativas (ânions) (FERREIRA & PACHALY, 2000) e desempenham papel vital na regulação hídrica entre o FEC e FIC. O principal cátion do FEC é o sódio e no FIC os principais são o potássio e o magnésio (HENDRIX & RAFFE, 1996). De acordo com o equilíbrio Gibbs- Donnan, a concentração de cátions é cerca de 2% maior no plasma que no líquido intersticial. Isso ocorre como consequência da carga global negativa das proteínas plasmáticas que tendem a ligar-se a cátions como os íons sódio e potássio. Por outro lado, no líquido intersticial a concentração de ânions tende a ser discretamente maior do que no plasma, pois as cargas negativas das proteínas plasmáticas repelem os ânions deste compartimento (MANNING, 2001). O equilíbrio do sódio total no organismo é controlado pelos sistemas gastrintestinal, renal e endócrino. Alterações no equilíbrio do sódio afetam principalmente o FEC, de forma que quando ocorre diminuição do sódio sérico, o volume do FEC também diminui e quando a concentração de sódio aumenta, o volume do FEC se expande. Hipertensão e edema podem ocorrer como consequência desse processo. Em geral, distúrbios hídricos e de sódio ocorrem simultaneamente, já que os mecanismos homeostáticos da água estão relacionados à concentração sérica deste íon (MANNING, 2001; DIBARTOLA, 2006). Um paciente apresenta hiponatremia quando há diminuição na concentração sérica do sódio. Já a hipernatremia é caracterizada pelo aumento na concentração sérica deste elemento (MANNING, 2001). Como a concentração serica de eletrólitos está intimamente relacionada ao equilíbrio hídrico, distúrbios deste eletrólito resultam em desequilíbrios da água extracelular (HENDRIX & RAFFE, 1996; DIBARTOLA, 2006). Hipernatremia é frequente na medicina de pequenos animais e implica em hiperosmolaridade (MANNING, 2001), podendo ser causada por privação hídrica, administração de bicarbonato de sódio ou soluções hipertônicas (LANGSTON, 2012). Noventa e oito por cento do potássio do corpo estão localizados no interior das células, sendo este íon o mais abundante neste compartimento. Dentre suas funções, a mais importante é a manutenção do potencial de repouso da membrana celular, em conjunto com o sódio, nas junções neuromusculares do coração, músculos esqueléticos e trato gastrintestinal (HENDRIX & RAFFE, 1996; MANNING, 2001).

66 Santalucia, S. et. al. O potássio é regulado pela excreção renal e equilíbrio ácido-base, sendo a absorção intracelular realizada por ação da insulina e das catecolaminas (efeito ß- adrenérgico). O potássio é absorvido no intestino delgado e cólon, sendo que 90% do total ingerido são excretados pelos rins (MANNING, 2001). A hipocalemia é definida como a diminuição de níveis séricos de potássio com consequente elevação do potencial de repouso e hiperpolarização celular. Apesar de ser um dos distúrbios eletrolíticos mais frequentemente encontrados na clínica de pequenos animais, muitos cães e gatos com hipocalemia não apresentam manifestações clínicas. Este distúrbio pode ser causado por perdas gastrintestinais (p. ex. vômitos e/ou diarreias), renais (p. ex. administração de diuréticos) e anorexia (DIBARTOLA, 2006). No entanto, considera-se como sendo a principal causa de hipocalemia a transferência do potássio sérico para o FIC (MANNING, 2001). Pode ocorrer ainda hipocalemia iatrogênica, quando fluidos com concentrações reduzidas ou ausentes de potássio são administrados ao paciente (DIBARTOLA, 2006). Os efeitos clínicos da hipocalemia podem ser intensos, já que a excitabilidade celular reduzida pode manifestar-se como debilidade da musculatura esquelética (miopatia hipocalêmica), paralisia intestinal, redução da contratilidade cardíaca ou hipotensão (HENDRIX & RAFFE, 1996). Hipercalemia é o aumento das concentrações séricas de potássio, no entanto, quando a função renal está eficiente, sua ocorrência é rara (MANNING, 2001; DIBARTOLA, 2006). Pseudo-hipercalemia pode ser causada por hemólise ou trombocitose graves (HENDRIX & RAFFE, 1996). Nos casos de trombocitose, a liberação do potássio pelas plaquetas, durante a formação do coágulo, após a coleta de sangue, poderá elevar falsamente o potássio sérico. Níveis séricos de potássio que ultrapassam 7,5 meq/l, podem ser tóxicos ao miocárdio. O aumento da concentração sérica do potássio reduz o potencial de repouso da membrana celular, tornando a célula mais susceptível à despolarização o que acarreta distúrbios cardíacos (MANNING, 2001). O cloreto é o principal ânion extracelular (HENDRIX & RAFFE, 1996) e contribui para o equilíbrio ácido-base. Em concentrações reduzidas facilita o desenvolvimento de alcalose metabólica e em concentrações elevadas resulta em acidose metabólica (MANNING, 2001). Seu equilíbrio sérico é regulado pela 67 absorção intestinal e reabsorção renal (HENDRIX & RAFFE, 1996). A concentração corrigida de cloretos pode ser obtida a partir da seguinte equação:

67 Santalucia, S. et. al. Cl (corrigido) = Cl (mensurado) X Na + (normal) Na + (mensurado) Assumindo os valores de sódio e cloretos normais para cães, 146 meq/l e 110 meq/l, respectivamente, e para gatos, 156 meq/l e 120 meq/l, a equação seria: Cl (corrigido) = Cl (mensurado) x 146 (para cães) Na + Cl (corrigido) = Cl (mensurado) x 156 (para gatos) Na + Fonte: Adaptado de DE MORAIS & BIONDO (2012) A concentração normal de cloreto corrigido mantém-se, aproximadamente, entre 107 e 113 meq/l em cães, e 117 e 123 meq/l em gatos (MANNING, 2001; DE MORAIS & BIONDO, 2012). Quando a concentração sérica de cloretos for menor que 100 meq/l em cães e 110 meq/l em gatos, considera-se que os pacientes apresentam hipocloremia (MANNING, 2001). Insuficiência cardíaca congestiva, hipoadrenocorticismo e perda de sódio e cloreto para o FTC podem, ainda, resultar em pseudohipocloremia (DE MORAIS & BIONDO, 2012). Hipocloremia real pode ser resultado de lesões gastrintestinais, níveis elevados de bicarbonato, fármacos que contenham elevadas concentrações de sódio, diuréticos de alça, fármacos da família dos tiazínicos, e também por episódios de emese (MANNING, 2001). Os sinais clínicos de hipocloremia, geralmente, não são reconhecidos, porém, podem estar associados aos da alcalose metabólica hipoclorêmica ou à doença subjacente (MANNING, 2001; de MORAIS & BIONDO, 2012). A hipercloremia real, ou corrigida, está associada à acidose hiperclorêmica, ao ganho excessivo de cloretos relativos ao sódio, à perda excessiva de sódio em relação aos cloretos ou à retenção de cloretos. A administração de solução salina a 0,9% e ringer com lactato na fluidoterapia tem sido associada à hipercloremia corrigida em cães. Assim como na hipocloremia, o aumento da concentração sérica de cloretos geralmente não está relacionado a sinais clínicos específicos, contudo os sinais de acidose metabólica podem acompanhar esses 68 quadros (DE MORAIS & BIONDO, 2012). O magnésio é um cátion intracelular, sendo encontrado

68 Santalucia, S. et. al. principalmente nos ossos (60%) e músculos (20%). O restante faz parte dos tecidos cardíaco e hepático. Aproximadamente 1% da concentração total de magnésio do corpo está presente no FEC. Há três formas de magnésio sérico: a forma fisiológica ativa (55%), a forma conjugada à proteína (30%), e a ligada a outro ânion (15%) (HOLOWAYCHUK & MARTIN, 2006; BATEMAN, 2006). As concentrações séricas do magnésio representam apenas 1% da concentração corpórea total, de forma que o nível sérico de magnésio pode parecer normal, apesar da diminuição ou elevação em sua concentração corporal (MANNING, 2001; BATEMAN, 2006). Além disso, por apresentar-se também conjugado a proteínas como a albumina, a diminuição ou elevação desta proteína afeta a concentração deste elemento no plasma sanguíneo (BATEMAN, 2006). O magnésio participa na regulação do tônus da musculatura lisa vascular, ativação de linfócitos e produção de citocinas. Funciona como coenzima na bomba de Na + /K -, cálcio e prótons, desse modo, regula o gradiente de sódio e potássio através da membrana, assim como a concentração intracelular de cálcio. Por esse mecanismo, o magnésio é responsável pela manutenção da excitabilidade elétrica nas células nervosas, cardíacas e musculares (HOLOWAYCHUK & MARTIN, 2006). A hipomagnesemia é mais comum que a hipermagnesemia, sendo relatada em aproximadamente 54% dos pacientes caninos em condições críticas. A avaliação da concentração sérica do magnésio é importante no cuidado intensivo dos pacientes em medicina veterinária (GILROY et al., 2006). A hipomagnesemia ocorre como resultado de absorção intestinal inadequada, excreção renal aumentada, assim como por alterações na distribuição do íon. Como o magnésio está ligado à manutenção do gradiente eletroquímico e à geração de ATP, a grande maioria dos sinais clínicos da hipomagnesemia está relacionada a distúrbios cardiovasculares e neuromusculares (HOLOWAYCHUK & MARTIN, 2006). O fósforo é um dos mais abundantes ânions intracelulares, desempenhando papel essencial na estrutura funcional da célula. De 80 a 85% do fósforo estão presentes no esqueleto na forma de hidroxiapatita, 9 a 15% na musculatura esquelética e 1% no FEC (MANNING, 2001; DIBARTOLA, 2006). O fósforo é essencial na produção dos ácidos nucleicos e fosfolipídios, na função das mitocôndrias e metabolismo dos carboidratos, tecido adiposo e proteínas (HENDRIX & RAFFE, 1996).

69 Santalucia, S. et. al. Ele é um constituinte estrutural da membrana celular e participa da contração muscular por estar armazenado nas ligações de ATP (DIBARTOLA, 2006). Apenas a hipofosfatemia grave tem significado clínico (MANNING, 2001), podendo ser consequência do aumento da perda exagerada ou diminuição da absorção renal de fósforo, ou ainda consequente à enteropatia (DIBARTOLA, 2006). Níveis reduzidos de fósforo podem acarretar hemólise, fraqueza muscular, disfunção leucocitária e diminuição da oxigenação tecidual (FERREIRA & PACHALY, 2000). A principal causa de hiperfosfatemia é a insuficiência renal crônica (IRC), pela diminuição da filtração glomerular e retenção de fósforo. Outras causas incluem a Síndrome da Lise Tumoral (SLT), lesão tissular e hemólise (MANNING, 2001). A SLT pode ocorrer espontaneamente ou após o inicio do tratamento quimioterápico e é caracterizada pela destruição maciça de células malignas com liberação de seu conteúdo, como fosfatos e nucleotídeos, no espaço extracelular. As células malignas podem apresentar até quatro vezes mais fósforo intracelular do que um linfócito maduro (DARMON et al., 2008). As consequências clínicas da hiperfosfatemia incluem calcificação de tecidos moles, hiperosmolaridade do plasma, hipernatremia, hipocalemia, tetania e diarréia. O aumento do fósforo sérico contribui para o desenvolvimento do hiperparatireoidismo renal secundário (DIBARTOLA, 2006). O cálcio é um eletrólito importante, requerido para diversas funções vitais, regulando as atividades neuromusculares, função das membranas celulares, coagulação sanguínea, lactação e formação dos ossos. Assim como o magnésio e o fósforo, grande parte do cálcio está contida no sistema esquelético, sendo 99% armazenado na forma de hidroxiapatita no osso, e o restante distribuído nos tecidos e FEC. O cálcio circula no sangue de três formas: como fração ligada à proteína, na forma quelada a íons, como bicarbonato, lactato, fosfato e ainda na forma ionizada. Apenas o cálcio ionizado está disponível para a função e atividades extracelulares (MANNING, 2001). Hipocalcemia ocorre quando a concentração sérica de cálcio está abaixo de 8,0 mg/dl em cães e 7,0 mg/dl em gatos. A hipoalbuminemia é causa importante de redução do nível de cálcio total. A hipocalcemia pode estar associada à insuficiência renal, lesão de tecidos moles, acidose, hipoparatiroidismo, pancreatite, hipomagnesemia, deficiência de vitamina D, alcalose e transfusão de

70 Santalucia, S. et. al. sangue, este último devido a quelação do cálcio pelo citrato (HENDRIX & RAFFE, 1996). Os sinais clínicos de hipocalcemia estão associados aos efeitos da deficiência de cálcio sobre as membranas excitáveis, estando associados a desordens neuromusculares e cardíacas. São manifestações clínicas de hipocalcemia espasmos musculares, paresias, convulsões, fraqueza, hipotensão, insuficiência cardíaca, hipertermia, ansiedade, irritabilidade, confusão, broncoespasmos e apnéia (DE MORAIS & BIONDO, 2012). A hipercalcemia é definida como a concentração sérica de cálcio superior a 12 mg/dl em cães e 11 mg/dl em gatos. Essa condição é secundária aos distúrbios neoplásicos, moléstias de origem renal, hiperparatireoidismo e hipoadrenocorticismo. Com exceção do hipoadrenocorticismo, a hipercalcemia resulta em absorção óssea. (MANNING, 2001). A hipercalcemia afeta os sistemas renal, cardiovascular, gastrintestinal, musculoesquelético e nervoso, dessa forma, os sinais clínicos variam de acordo com o sistema acometido. Pacientes com hipercalcemia podem apresentar poliúria, polidipsia, azotemia, urolitíase, hipertensão, vasoconstrição e arritmias cardíacas, anorexia, vômito, diarréia, constipação e perda de peso, fraqueza muscular, tremores, depressão, convulsão e coma (de MORAIS & BIONDO, 2012). 1.2. Fatores neuroendócrinos do equilíbrio líquido e eletrolítico O balanço hídrico é controlado por um sistema integrado que envolve a regulação da água ingerida e o controle da água excretada (FERREIRA & PACHALY, 2000). Um animal adulto sadio, em repouso, inserido em ambiente com temperatura estável para a espécie, realizará a ingestão de água, nutrientes e minerais em equilíbrio com a excreção dessas substâncias. Estados orgânicos que não envolvem ganho ou perda de água, nutrientes e/ou minerais, são designados como balanço zero (DIBARTOLA, 2006). A água ingerida e a urina produzida são controladas por uma complexa interação entre a osmolaridade do plasma, o volume do fluido no compartimento vascular, o centro da sede, os rins, a hipófise e o hipotálamo. As principais fontes de perda de fluido incluem a respiração, a micção e a evacuação. O metabolismo orgânico funciona de forma a manter a osmolaridade e a concentração do sódio plasmático em níveis de manutenção. Quando a osmolaridade dos líquidos corporais aumenta, a vasopressina adicional, sintetizada pelo hipotálamo, é secretada na circulação sistêmica pela hipófise que, por

71 Santalucia, S. et. al. sua vez, aumenta a permeabilidade dos túbulos distais e túbulos coletores renais à água. Portanto, grandes quantidades de água são absorvidas, diminuindo o volume da urina formada, sem, contudo haver alteração da taxa de excreção renal de solutos (FELDMAN & NELSON, 1996). O consumo de água é controlado pelo centro da sede no hipotálamo. A sede tem o objetivo de aumentar o consumo de água em resposta à diminuição do volume de fluido nos compartimentos corporais. Em animais e no homem pode ser estimulada por desidratação celular. Estudos controlados em animais demonstraram que 1 a 4 % de aumento na osmolaridade plasmática são suficientes para o início da indução osmótica da sede (VERBALIS, 2003). O sistema renina-angiotensinaaldosterona desempenha papel importante na manutenção do volume circulatório e na regulação do potássio, por seu efeito na reabsorção renal do sódio. A renina é liberada em resposta à redução da perfusão renal, causada por hipotensão ou aumento da atividade simpática. Em seguida à sua liberação, o angiotensinogênio é convertido em angiotensina I na circulação sanguínea, que, por sua vez, é convertido em angiotensina II pela enzima conversora de angiotensina (ECA) nos pulmões, células endoteliais vasculares e outros órgãos. Angiotensina II aumenta a pressão sanguínea por vasoconstrição arteriolar, na tentativa de corrigir a hipovolemia e a hipotensão. Também atua nos rins, aumentando a absorção de sódio, e subsequentemente, a retenção de água. A reabsorção de sódio é estimulada diretamente pela angiotensina II no túbulo proximal e, indiretamente, pelo aumento da secreção de aldosterona pelo córtex adrenal (GUYTON & HALL, 1996). O peptídeo natriurético atrial (PNA) faz parte de um grupo de hormônios peptídicos produzidos pelo coração e lançados na circulação em resposta aos processos que aumentam a pressão venosa, resultando no estiramento da parede atrial. O PNA tende a reduzir o débito cardíaco e a pressão sanguínea sistêmica, causando vasodilatação por ação direta na musculatura lisa vascular, assim como inibição da secreção de aldosterona e norepinefrina (CARLSON, 1997). 2. EQUILÍBRIO ÁCIDO-BASE Considera-se normal o ph entre 7,35 e 7,45 no sangue arterial e 7,30 e 7,40 no sangue venoso tanto em cães como em gatos (DIBARTOLA, 2006). Ao nascimento, durante o período de transição fetal-neonatal, os valores de ph no sangue venoso giram em torno de 7,17, valore esse considerado fisiológico para o período da vida, quando os recém-nascidos estão

72 Santalucia, S. et. al. adaptando seu sistema respiratório à vida extra-uterina (CRISSIUMA et al., 2006). Essa variação normal do ph depende de muitos fatores, como idade do paciente, concentração de dióxido de carbono (CO 2 ) e quantidade de hemoglobina reduzida no sangue. O controle e a regulação do H + no FEC são mantidos por sistemas-tampões do organismo, pela regulação respiratória do dióxido de carbono arterial, e pela regulação renal do HCO 3 plasmático (DIBARTOLA, 2006). O organismo utiliza três mecanismos para controlar o equilíbrio ácido-básico do sangue. O controle do ph do sangue é um desses mecanismos e envolve a excreção do dióxido de carbono produzido constantemente pelas células. O sangue transporta o dióxido de carbono até os pulmões para ser expirado. Os centros de controle respiratório, localizados no cérebro, regulam a quantidade de dióxido de carbono expirado através do controle da frequência e profundidade respiratórias. O organismo também utiliza soluções tampão do sangue para se defender contra alterações súbitas da acidez, sendo o bicarbonato o tampão mais importante do sangue. Um terceiro mecanismo de ajuste é a excreção do excesso de ácido pelos rins, principalmente sob a forma de amônia (DE MORAIS & BIONDO, 2012). Os desvios ácido-base podem ser classificados como respiratórios, metabólicos ou mistos (DIBARTOLA, 2006), podendo ocorrer como consequência de lesões pulmonares, infecções, insuficiência renal, diabetes mellitus, afecções gastrintestinais, choque, entre outras (ÉVORA et al., 1999, BOYSEN, 2008). Acidose é o aumento de ácidos ou a diminuição de bases que promove diminuição do ph sanguíneo, enquanto que a alcalose é o aumento de bases ou diminuição de ácidos, que resultam na elevação do ph sanguíneo (DIBARTOLA, 2006). 3. DINÂMICA DOS FLUIDOS NOS PATOLÓGICOS PROCESSOS No animal saudável, o balanço da água corporal é regulado pelo equilíbrio das forças representadas pelas pressões oncóticas e pela pressão hidrostática (GRECO, 1998). Em algumas situações clínicas que resultam em inflamação, a ação dos mediadores inflamatórios ocasiona a contração das células endoteliais e seu distanciamento, produzindo grandes espaços entre as células no endotélio. Pode haver separação das junções endoteliais da membrana capilar durante a fase de reperfusão tissular, aumentando o número e o tamanho dos poros da membrana capilar. Assim, pode haver perda de albumina e fluidos pelas paredes dos capilares para o

73 Santalucia, S. et. al. espaço intersticial (RUDLOFF & KIRBY, 1998). Quando há perda de água do espaço intravascular, a pressão oncótica capilar aumenta e a pressão hidrostática diminui resultando em desidratação clínica. Quando o edema se forma, a pressão oncótica diminui e a pressão hidrostática aumenta, deslocando o fluido do plasma para o interstício (GRECO, 1998). 4. ESTIMATIVA DE PERDAS DE LÍQUIDOS E ELETRÓLITOS: DESIDRATAÇÃO Os líquidos são normalmente perdidos pelas fezes e urina e repostos por meio da ingestão de água (DE MORAIS, 2002). As principais perdas podem ocorrer através do aparelho urinário, digestório e respiratório (FERREIRA & PACHALY, 2000). As perdas sensíveis, representadas pela urina, correspondem a cerca de 20 a 40 ml/kg/dia, enquanto as perdas insensíveis, representadas pelas fezes, respiração e secreções do trato gastrintestinal, chegam a cerca de 20 ml/kg/dia. Portanto, em condições normais, um animal perde diariamente cerca de 50 ml/kg/dia de líquidos, ou seja, 5% do seu peso vivo (DE MORAIS, 2002). Esta perda diária é suprida pela ingestão de água em igual quantidade (GRECO, 1998). A desidratação acontece sempre que as perdas diárias excedem o aporte de água para o organismo (MAZZAFERRO, 2006). Pode ocorrer por hipodipsia secundária a diminuição do acesso à água, por alterações neurológicas ou doenças sistêmicas. Também pode ser resultado de anorexia, poliúria, sialorréia, diarréia, vômito, febre, queimaduras em grandes extensões do corpo ou perdas para o FTC, como na ascite. A desidratação é classificada de acordo com a tonicidade do fluido que permanece no organismo, após a perda de água e eletrólitos. Pode ser, portanto, hipotônica, hipertônica ou isotônica (DE MORAIS, 2002). A desidratação hipotônica, ou hiponatrêmica, ocorre quando a perda de sódio é superior à de água, ocorrendo uma transposição de água do FEC para o FIC. Isso acarretará uma diminuição grave do volume circulante, surgindo sinais clínicos mais evidentes de desidratação. Ocorre o aumento do hematócrito e de proteínas totais pela grande perda de líquido extracelular (de MORAIS, 2002). As causas mais comuns são hipoadrenocorticismo e o uso excessivo de diuréticos (FERREIRA & PACHALY, 2000). A desidratação isotônica, ou isonatrêmica, ocorre quando a perda de sódio é proporcional à de água. Com isso, a concentração de sódio não se altera, não

74 Santalucia, S. et. al. havendo transposição dos fluidos entre o FEC e FIC. O hematócrito e a concentração de proteínas totais não se alteram nesses casos. Essa condição pode Desidratação hipertônica, ou hipernatrêmica, ocorre quando a perda de água é maior que a de sódio, levando a hipernatremia. Neste caso há transposição do FIC para o FEC, e essa migração minimiza os sinais clínicos da desidratação (DE MORAIS, 2002). Este tipo de desidratação pode ser causada por calor, salivação excessiva, convulsões, enfermidades que causem febre intensa e diabete insípidos (FERREIRA & PACHALY, 2000). 4.1 Como avaliar a desidratação O primeiro passo na avaliação de um paciente desidratado é estimar a gravidade das perdas hídricas por meio do histórico e exame físico. Histórico de vômito, diarreia ou outras causas potenciais de perda de água podem indicar ser causada por vômito, diarreia, anorexia, choque hipovolêmico, glicosuria, doença renal e lesões de tecidos moles (DE MORAIS, 2002). a presença de desidratação (DE MORAIS, 2002). A desidratação pode ser estimada clinicamente avaliando-se a elasticidade da pele, tempo de preenchimento capilar (TPC), hidratação das mucosas, a ocorrência de enolftalmia e ressecamento da língua (RAISER, 2005; BATEMAN, 2006; MAZZAFERRO, 2006). Como a elasticidade da pele é determinada pela gordura subcutânea, a desidratação pode ser subestimada em pacientes obesos e superestimada em pacientes caquéticos (MAZZAFERRO, 2006). O percentual de desidratação pode ser subjetivamente estimado, como mostra o quadro 1. Quadro 01: Percentual de desidratação atribuído aos sinais clínicos apresentados pelos pacientes ao exame físico. % de desidratação Sinais Clínicos < 5% Não detectável 5 6 % Perda sutil da elasticidade cutânea 6 8 % Demora definida no retorno da pele à posição normal Ligeiro prolongamento do tempo de perfusão capilar Olhos podem estar fundos na órbita

34 Santalucia, S. et. al. Membranas mucosas podem estar ressecadas 10 12 % A pele levantada permanece no lugar Santalucia, S. et. al. Prolongamento do tempo de perfusão capilar Olhos fundos nas órbitas Membranas mucosas ressecadas Possíveis sinais de choque (aumento da freqüência cardíaca, pulso fraco) 12 15% Sinais de choque, colapso e depressão severa Morte iminente Fonte: Adaptado de De MORAIS & BIONDO (2012) Análises laboratoriais, como avaliação do hematócrito, da concentração de proteínas plasmáticas e da densidade urinária podem ser utilizadas no auxílio da estimativa da intensidade da desidratação (MAZZAFERRO, 2006). 5. CORRIGINDO OS DESEQUILÍBRIOS DOS FLUIDOS A quantidade de fluido a ser administrada em 24 horas deve ser suficiente para corrigir a desidratação inicial, suprir as necessidades de manutenção e compensar as perdas concomitantes, como vômito, diarreia e poliúria (DE MORAIS, 2002). As necessidades dos pacientes podem ser divididas em três categorias: reposição, manutenção e perdas continuadas, como vômitos e diarreia. A reidratação pode ser calculada pela utilização da fórmula a seguir: Volume necessário em 24 horas (ml) = % de desidratação x peso corporal (kg) x 10 Fonte: MAZZAFERRO, 2006 O volume de manutenção consiste na quantidade de fluido normalmente necessário para as reações do metabolismo basal do paciente durante o período de 24 horas, considerando as perdas sensíveis e insensíveis (GRECO, 1998; BATEMAN, 2006). Resumidamente, considera-se que as necessidades de manutenção são de cerca de 40mL/kg/dia em cães de grande porte e de cerca de 60mL/kg/dia em cães de pequeno porte e gatos. Filhotes têm necessidades de manutenção maiores do que os adultos (60 a 100mL/kg/dia) (ANDRADE, 2008). As perdas continuadas equivalem à quantidade de fluido perdida como

34 Santalucia, S. et. al. consequência de vômito, diarreia e poliúria. O cálculo de reposição das perdas 76 hídricas continuadas é mais acurado quando a quantidade de fluido perdida é mensurada, porém, isso nem sempre é possível (BATEMAN, 2006). A velocidade de administração dos fluidos deve estar relacionada à rapidez e à gravidade das perdas. Quanto mais rápidas e graves forem às perdas, mais rapidamente o déficit deverá ser reposto (RUDLOFF e KIRBY, 2008). Pacientes em choque hipovolêmico que não estão com a pressão venosa central monitorada podem receber até 90mL/kg/h (cão) e 55mL/kg/h (gato) (ANDRADE, 2008). Pacientes nefropatas, cardiopatas e com alterações consideráveis na concentração de sódio têm maiores chances de desenvolverem complicações decorrentes da fluidoterapia, especialmente quando sua administração for rápida (LANGSTON, 2012; BONAGURA et al., 2012). Fluidos contendo potássio não podem ser administrados a uma taxa maior do que 0,5mEq/kg/h de potássio (ANDRADE, 2008). CONSIDERAÇÕES FINAIS O conhecimento da fisiologia dos fluidos corporais é importante para o clínico veterinário, uma vez que facilita o entendimento do que ocorre nos processos patológicos e aumenta as chances de sucesso na escolha da conduta clínica a ser adotada. Uma vez que o tratamento clínico tem o objetivo de auxiliar o organismo a recuperar a homeostase orgânica e que a fluidoterapia é uma ferramenta fundamental nesse processo, o seu cálculo, assim como a escolha adequada do fluido a ser infundido devem ser precisos, respeitando as características individuais dos pacientes, assim como a condição orgânica momentânea que apresentam. Assim sendo, entende-se que a fluidoterapia não deve ser feita de forma empírica, mas sim embasada nas informações relativas ao quadro clínico do paciente. Além do exame físico acurado, isso envolve a mensuração correta de quanto e o quê foi perdido e, obviamente, a preocupação permanente com a eliminação da causa da disfunção. Apenas dessa maneira a fluidoterapia poderá alcançar seu principal objetivo, que é a reposição de volume, restaurando e mantendo o equilíbrio de líquidos, além de promover a manutenção do equilíbrio hídrico e ácidobásico do paciente. Assim haverá consequente melhora da perfusão e transporte de oxigênio às células e, acima de tudo, melhora na qualidade de vida e restabelecimento da saúde do paciente.

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