A atividade lúdica no autismo infantil *



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Transcrição:

A atividade lúdica no autismo infantil * Ana Carina Tamanaha ** Brasilia Maria Chiari *** Jacy Perissinoto **** Marcia Regina Pedromônico ***** Resumo Introdução: a análise do brincar é um instrumento diagnóstico fundamental na infância. Diversos estudos têm hipotetizado que o comprometimento do desenvolvimento de linguagem da criança autista poderia ser explicado por falhas na imaginação e na capacidade simbólica. Sendo assim, o objetivo deste estudo foi avaliar a atividade lúdica de portadores de autismo infantil. Material e método: a amostra constituiu-se de 11 crianças autistas, de 3 a 6 anos, de ambos os sexos. Utilizamos os critérios propostos por Wetherby e Prutting (1984) e comparamos o desempenho lúdico em duas situações de observação distintas: livre e dirigida. Resultados: verificamos 91,67% de uso do critério sensório-motor, nas duas situações investigadas. Houve diferença estatisticamente significante, com melhor desempenho em situação dirigida, nos critérios agrupamento, formação de conjunto, funcionalidade e jogo compartilhado. Obtivemos 0% de uso do critério jogo simbólico, em ambas as situações. Conclusões: o procedimento adotado permitiu descrever a atividade lúdica do grupo de crianças com autismo, como caracteristicamente sensório-motora. No entanto, também se observou que a mediação do adultoavaliador, por meio de modelo e incentivo, levou a criança a explorar novas formas de brincar. Essas descrições sugerem que a análise do jogo da criança portadora de autismo, com participação ativa do profissional, pode levar à descrição de seu modo e prognóstico da comunicação. Palavras-chave: autismo infantil; jogos e brinquedos; linguagem infantil. Abstract Background: the children s play is very important to diagnosis. Several studies have indicated that receptive language and, to a lesser extent, expressive language are significantly correlated with symbolic play in samples of autistic children. The aim of this study was to analyse the children s play in individuals with aqutism. Method: the sample included 11 autistic children, boys and girls from three to six years old. We used Wetherby and Prutting s criteria. These criteria were analysed in free situation and direction situations. Results: we observed a statistically significant higher score in sensorimotor category in both situations. And 0% showed the symbolic play in both situations. Conclusion: we concluded that it is an important aspect of communication and it should be considered as a significant signal of communication disorder in autism. Key-words: autism; play and playthings; child language. * Este estudo é parte integrante da dissertação de mestrado apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Distúrbios da Comunicação Humana da Unifesp. ** Fonoaudióloga. Doutoranda em Distúrbios da Comunicação Humana pela Unifesp. Professora mestre assistente do departamento de Fonoaudiologia da Unifesp. *** Fonoaudióloga. Professora livre-docente do departamento de Fonoaudiologia da Unifesp. **** Fonoaudióloga. Doutora em Distúrbios da Comunicação Humana pela Unifesp. Professora doutora adjunto do departamento de Fonoaudiologia da Unifesp. ***** Psicóloga. Doutora em Distúrbios da Comunicação Humana pela Unifesp. Professora doutora adjunto do departamento de Fonoaudiologia da Unifesp (in memoriam). Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 18(3): 307-312, dezembro, 2006 307

Ana Carina Tamanaha, Brasilia Maria Chiari, Jacy Perissinoto, Marcia Regina Pedromônico Resumen Introducción: el análisis de la actividad de jugar es un instrumento diagnóstico fundamental en la infancia. La hipótesis de los diversos estudios acerca del tema es que el transtorno del desarrollo del lenguaje del niño con autismo podría explicarse por una imperfección en la imaginación y en la capacidad simbólica. Por lo tanto, el objetivo de este estudio fue evaluar la actividad lúdica de los niños con autismo. Material y Método: la muestra fue formada por 11 niños con autismo, con edades entre los 3 y 6 años, varones y niñas. Fueron utilizados los criterios de la propuesta de Wetherby & Prutting (1984) y los desempeños de los niños en las actividades lúdicas fueron comparados en dos condiciones diferentes de observación: situación libre y guiada. Resultados: fue observada la utilización del criterio sensoriomotor en 91,67% de las situaciones observadas, en las dos condiciones investigadas. La diferencia fue estatisticamente significativa y los niños presentaron mejor desempeño en situación guiada, en los criterios de agrupamiento, formación de conjunto, funcionalidad e juego compartido. El uso del criterio juego simbólico no fue observado en las situaciones. Conclusiones: el procedimiento del estudio posibilitó la descripción de los juegos de los niños con autismo como una actividad esencialmente sensoriomotora. También se observó que la intervención del adulto/evaluador a través del incentivo y modelo permitió la exploración de nuevos modos de jugar de los niños. Estas descripciones sugieren que el análisis del juego del niño con autismo, con la participación activa del profesional, puede llevar a la descripción de su modo de comunicarse y a prognosticarla. Palabras claves: autismo infantil; juegos; lenguaje infantil. Introdução As características de comunicação das crianças com autismo vêm sendo estudadas desde Kanner (1943), em seus meios de expressão e de recepção tanto verbal, quanto não-verbal. Autores como Wetherby e Prutting (1984); Tamanaha e Scheuer (1995); Tamanaha (2000); Fernandes (2000); Charman et al. (2003), Jarrold (2003), Holguín (2003); Lewis (2003), Morgan, Maybery e Durkin (2003), Perissinoto (2003); Schuler (2003); Barrett, Prior e Manjiviona (2004) detiveram-se na descrição das peculiaridades da linguagem dessas crianças e hipotetizaram que o comprometimento em seu desenvolvimento da linguagem poderia ser explicado por falhas na imaginação e na capacidade simbólica. Tanto na classificação de doenças proposta pela Organização Mundial de Saúde, o CID 10 (1998), quanto no manual diagnóstico da American Psychiatric Association, DSM IV tr (2001), observa-se a atenção dada à análise das alterações ou ausência do jogo e da atividade imaginativa, como critérios diagnósticos fundamentais para o autismo infantil. Baron Cohen, Leslie e Frith (1985) enfatizaram a relação entre os prejuízos sociais e de comunicação e as falhas cognitivas presentes em portadores de autismo infantil. Esses indivíduos demonstram dificuldade acentuada na capacidade simbólica, o que os impede de estabelecer habilidades de reciprocidade social. Acreditando que na construção da linguagem a capacidade de representação mental é fundamental, sendo essencial até mesmo para a aquisição da palavra, este estudo teve como objetivo avaliar a atividade lúdica de crianças portadoras de autismo infantil. Partindo da hipótese de que a criança com autismo, sob o olhar da abordagem cognitivista, tem características peculiares na atividade lúdica e que estas podem ser identificadas, buscamos comparar o desempenho lúdico em duas situações de observação distintas: livre e dirigida, a fim de delinearmos as diferenças existentes quando da ausência ou presença do adulto como tutor das explorações lúdicas compartilhadas. Material e método Amostra Constituiu-se de 11 crianças, na faixa etária de 3 a 6 anos, com média de idade de 4 anos e 5 meses; sendo nove meninos e duas meninas, pertencentes a níveis socioeconômicos variando entre 308 Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 18(3): 307-312, dezembro, 2006

A atividade lúdica no autismo infantil médio e baixo. Todas as crianças, matriculadas em creches da rede pública de ensino, foram avaliadas no Núcleo de Investigação Fonoaudiológica de Fala e Linguagem Transtornos Globais do Desenvolvimento (NIF-TGD) do Departamento de Fonoaudiologia da Unifesp e diagnosticadas, por equipe multidisciplinar composta por fonoaudiólogos, psicólogo e neurologista, como portadoras de autismo infantil, de acordo com a classificação proposta pelo Código Internacional de Doenças (OMS, 1998) e pelo Manual Estatístico de Doenças Mentais DSM IV-tr (APA, 2001), no período entre 1999 e 2001. Todas as crianças apresentavam limiares auditivos compatíveis com os padrões de normalidade e quociente de inteligência variando entre 60 a 90. Das 11 crianças avaliadas, sete mostravam meio comunicativo, predominantemente não-verbal (uso de gestos e emissão apenas de vocalizações e balbucio), e quatro verbal (emissão de palavras isoladas ou frases). Procedimentos A observação do desempenho das crianças em atividade lúdica foi realizada durante o período em que a criança se submetia ao processo de avaliação e diagnóstico fonoaudiológico. Cada sessão teve duração de 60 minutos. Foi necessário que os pais ou responsáveis estivessem cientes das condições da pesquisa, fornecendo autorização por escrito, de acordo com as sugestões do Comitê de Ética em Pesquisa da Unifesp (protocolo nº 1024/98). A observação da atividade lúdica foi realizada em duas situações distintas: a) Livre: o avaliador não interferia na conduta da criança diante dos brinquedos, apenas respondia quando solicitado. b) Dirigida: o avaliador interferia comentando, sugerindo ou iniciando verbal e/ou motoramente a exploração dos brinquedos. Para comparação da atividade lúdica nessas duas situações, a sessão foi dividida em dois momentos. Nos primeiros 30 minutos, observamos a expressão livre da criança e, nos 30 minutos seguintes, a exploração dirigida. As sessões foram gravadas em videoteipe e assistidas por dois observadores-cegos que classificaram a atividade lúdica da criança, segundo os critérios propostos por Wetherby e Prutting (1984), traduzidos para a Língua Portuguesa por Tamanaha e Scheuer (1995) e adaptados por Tamanaha (2000), os quais seguem descritos abaixo. 1. Sensório-motor (SM): criança manipula livremente as peças por meio de ações sensório-motoras (ex: leva objetos à boca, lambe). 2. Agrupamento (AG): criança agrupa peças sem critérios estabelecidos (ex: constrói fileiras de objetos ou empilhamentos). 3. Formação de conjuntos (FC): criança forma conjuntos, categorizando os objetos pela utilização de um critério pelo menos (ex: separa peças por cor, forma). 4. Seqüencialização (SQ): criança organiza uma seqüência de objetos, utilizando alguns critérios estabelecidos (ex: dispõe círculo vermelho-grande seguido do círculo azul-grande). 5. Funcionalidade (FU): criança usa os objetos com funcionalidade (ex: utiliza colher para alimentar a boneca). 6. Jogo compartilhado (JC): criança explora o objeto como meio comunicativo entre ela e o adulto (ex: empurra o carrinho para o adulto e aguarda a sua devolução). 7. Jogo simbólico (JS): criança utiliza o objeto num jogo de faz-de-conta, fazendo representações mentais de situações vivenciadas (ex: constrói casas, telefone, com peças de blocos lógicos). Os materiais lúdicos foram compostos por: Blocos Lógicos: peças em madeira, diferentes em tamanho (2), cor (3), espessura (2) e forma (4). Utensílios Domésticos / bonecas/ carrinhos: miniaturas em plástico. Esses materiais se encontravam dispostos no chão e foram escolhidos por permitirem desde exploração sensório-motora, como levar objetos à boca, até o jogo simbólico, no qual as crianças reproduzem vivências num jogo de faz-de-conta. Com cada criança, foram usados todos os critérios. Método estatístico Para análise dos resultados, foi utilizado teste não paramétrico, levando-se em consideração a natureza da variável estudada. Foi aplicado o Teste de Mc Nemar (Remington, 1970), com o objetivo de comparar os valores Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 18(3): 307-312, dezembro, 2006 309

Ana Carina Tamanaha, Brasilia Maria Chiari, Jacy Perissinoto, Marcia Regina Pedromônico estabelecidos na atividade lúdica, nas situações livre e dirigida. Fixou-se em 0,05 ou 5% o nível para a rejeição da hipótese de nulidade, assinalando-se com um asterisco os valores significantes. Resultados Na figura 1, podemos observar a freqüência de uso dos critérios (7) para análise da atividade lúdica, em cada uma das situações investigadas: livre e dirigida. 100 90 80 70 60 50 40 30 20 10 0 SM AG* FC* SQ FU* JC* JS livre dirigida Figura 1 Critérios para análise da atividade lúdica das crianças autistas, em ambas as situações de observação. Os critérios assinalados com um asterisco apresentaram diferenças estatísticas, consideradas significantes. Discussão A comparação do uso de cada critério, nas duas condições de observação, permitiu observarmos que, independentemente da conduta do avaliador, a maioria das crianças (91,67%) usou o critério sensório-motor (SM). Esse comportamento sugere que, mais do que um possível atraso no desenvolvimento da exploração lúdica, essa característica sensóriomotora deve ser uma conseqüência das estereotipias presentes na manipulação de objetos da criança autista (Wetherby e Prutting, 1984) e evidentes mesmo em situações tuteladas pelo adulto (Fernandes, 2000; Tamanaha, 2000; Lewis, 2003; Morgan, Maybery e Durkin, 2003; Schuler, 2003). Outro fator relevante a ser considerado é a própria relação entre a exploração sensório-motora e o desenvolvimento cognitivo, além do quanto esse tipo de atividade exploratória manifestada em idades avançadas, como as observadas, pode indicar uma alteração da própria capacidade cognitiva, da qual decorreriam as falhas de desenvolvimento de linguagem. Com relação ao critério seqüencialização (SQ), observamos, em ambas as situações investigadas, índices de 0,0 % de freqüência de uso. Esse fato evidencia as falhas cognitivas que impedem o alcance de etapas mais complexas e necessárias para o desenvolvimento da linguagem nos portadores de autismo, mesmo em situação dirigida, quando o adulto fornece o modelo e compartilha sua atenção com a criança. Em relação aos demais critérios, verificamos diferenças estatisticamente significantes com maior freqüência de uso das categorias agrupamento (AG), formação de conjunto (FC); funcionalidade (FU) e jogo compartilhado (JC), em situação dirigida. Esses resultados mostram a importância do estabelecimento de momentos de compartilhamento de atenção em atividades lúdicas. O direcionamento, o incentivo e o modelo parecem ser fundamentais como alicerces para adequação da aquisição e do desenvolvimento dos aspectos relacionados ao processo de construção da linguagem nessa patologia. Autores como Tamanaha e Scheuer (1995), Tamanaha (2000), Schuler (2003) relataram que, embora os indivíduos autistas apresentem dificuldades em demonstrar a capacidade imaginativa, o jogo funcional pode ser observado, ainda que de modo restrito, como o encontrado neste estudo. No entanto, essa possibilidade de representação funcional de objetos, a nosso ver, é essencial para o desenvolvimento da capacidade simbólica, pois deve ser considerada a precursora e a antecessora do jogo simbólico, uma vez que, antes de usar os brinquedos num jogo de faz-de-conta, a criança deverá vivenciar o uso funcional de objetos concretos para posteriormente utilizá-lo como recurso para a representação do mundo que a cerca. Da mesma forma, o critério jogo compartilhado (JC) demonstra a importância de entendermos a atividade de jogo como um exercício fundamental para o desenvolvimento das relações sociais. Essa faceta social do jogo, entretanto, mostrou-se bastante restrita, especialmente em situação livre. E, embora os índices obtidos mostrem alguma possibilidade de interação, com a facilitação do adulto, ainda assim confirmam a existência de falhas na habilidade de interação social descrita pela Organização Mundial de Saúde (1998) e pela American Psychiatric Association (2001) no autismo infantil. 310 Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 18(3): 307-312, dezembro, 2006

A atividade lúdica no autismo infantil De maneira complementar, estudos comentaram sobre a dificuldade de se estabelecerem jogos, com caráter social, junto às crianças autistas. As crianças não fizeram uso do critério jogo simbólico (JS) em nenhuma das condições de observação. As dificuldades de as crianças produzirem brincadeiras utilizando a capacidade simbólica é um indício consistente para a caracterização dos impedimentos de linguagem observados nessa patologia (Wetherby e Prutting, 1984; Baron Cohen, Leslie e Frith (1985), Tamanaha e Scheuer, 1995; Tamanaha, 2000; Charman et al., 2003; Jarrold, 2003; Holguin, 2003; Morgan, Maybery e Durkin, 2003; Perissinoto, 2003; Barrett, Prior e Manjiviona, 2004). Interessante notar, entretanto, que o desempenho foi melhor em atividade dirigida, mostrando a importância da presença do adulto, incentivando ou fornecendo o modelo adequado de exploração lúdica. Assim, buscamos interferir na conduta da criança, minimizando os comportamentos de isolamento e dispersão e facilitando momentos de atenção compartilhada. Os resultados sugerem que, quando existe a intervenção do adulto, as crianças autistas compartilham as atividades, mesmo que sejam realizadas, apenas, a partir da imitação. Embora alguns autores venham enfatizando as falhas no comportamento imitativo em portadores de autismo (Tamanaha e Scheuer, 1995; Charman et al., 2003 e Jarrold, 2003), as crianças deste estudo ampliaram a maneira de explorar os brinquedos quando houve a interferência do adulto, fato que pode ser compreendido não só como uma estratégia na avaliação, mas também como um índice de prognóstico de comunicação. Finalizando, as crianças observadas usaram, preferencialmente, na atividade lúdica o comportamento exploratório sensório-motor e restrito uso de outras formas de brincadeiras, como, por exemplo, agrupamento de peças ou formação de conjuntos. Além disso, foi possível observar a inabilidade de elas produzirem atividade compartilhada e imaginativa, mesmo em situações nas quais o adulto buscou incentivar e fornecer o modelo de exploração lúdica. Acreditamos que as falhas cognitivas demonstradas na atividade lúdica estejam intrinsecamente associadas às falhas comunicativas, uma vez que a capacidade simbólica é essencial para o estabelecimento de relações interpessoais, bem como para a própria aquisição da palavra. Assim, ao se considerar que o processo de linguagem se dá pela junção das habilidades cognitiva, social e lingüística, é possível ponderar sobre a relevância da intervenção terapêutica de linguagem por fonoaudiólogos para os portadores de tal patologia. No entanto, é fundamental que o fonoaudiólogo tenha consciência de que para alcançar e ultrapassar tais desafios é necessário se instrumentalizar e estabelecer seu espaço de trabalho dentro de equipes multidisciplinares, já que a compreensão do processo de linguagem depende da integração das abordagens teóricas constituídas por diversas áreas do conhecimento humano, sendo um exemplo disto a possibilidade de analisarmos os processos de linguagem por meio da atividade lúdica. Conclusão O procedimento adotado permitiu descrever a atividade lúdica do grupo de crianças com autismo como caracteristicamente sensório-motora. No entanto, também se observou que a mediação do adulto-avaliador, através de modelo e incentivo, levou a criança a explorar novas formas de brincar. Essas descrições sugerem que a análise do jogo da criança portadora de autismo, com participação ativa do profissional, pode levar à descrição de seus modos e prognóstico de comunicação. Deste modo, buscou-se aprofundar a discussão sobre a atuação fonoaudiológica no desenvolvimento de linguagem de sujeitos que apresentam padrões totalmente desvinculados dos marcos de desenvolvimento normal. Referências American Psychiatry Association. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM IV- Tr. Porto Alegre: Artes Médicas; 2001. Barrett S, Prior M, Manjiviona J. Children on the boordelands of autism: differential characteristics in social, imaginative, communicative and repetitive hehaviours domains. Autism 2004;8(1): 61-87. Baron Cohen S, Leslie A, Frith U. Does the autistic child have a theory of mind?. Cognition 1985;21:37-46. Charman T, Baron Cohen S, Swettenham J, Baird G, Drew A, Cox A. Predicting language outcome in infants with autism and pervasive developmental disorders. Int Lang Com Dis 2003;38(3):265-85. Fernandes FDM. Aspectos funcionais da comunicação de crianças autistas. Temas Desenv 2000;9(51):25-35. Holguín JA. El autismo de etiología desconocida. Rev Neurol 2003; 37(3): 259-66. Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 18(3): 307-312, dezembro, 2006 311

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