EXPRESSÕES DA ARTE GUARANI NO RIO DE JANEIRO



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Transcrição:

EXPRESSÕES DA ARTE GUARANI NO RIO DE JANEIRO Beatriz Viana Furtado Bolsista de extensão/programa de Estudos dos Povos Indígenas/UERJ. Graduanda de Pedagogia da UERJ. vianafurtado@gmail.com Resumo Esta comunicação pretende descrever as estratégias e implicações da comercialização da produção artesanal dos Guarani situados em Angra dos Reis e Paraty, no estado do Rio de Janeiro refletindo sobre o movimento intercultural existente na aquisição e venda do artesanato indígena, a partir da experiência obtida em campo através do Projeto Arte Guarani. Existe um comércio interno de matéria-prima entre aldeias, o que encarece e diminui o ritmo da produção, fatores desfavoráveis para manutenção da renda através da venda do artesanato, posto que, hoje esta é uma das principais fontes de renda nas aldeias. Verificamos, passadas quatro fases do projeto que incluíram: planejamento, divulgação, exposições, oficinas, vendas e tratamento da matéria -prima utilizada para confecção dos objetos artesanais, que a produção destes objetos faz parte do processo de manutenção do patrimônio cultural do grupo. Palavras -chave : educação intercultural, artesanato, cultura indígena, guarani O presente trabalho constitui-se na apresentação de alguns dos resultados obtidos pelo projeto Arte Guarani Mbyá que vem sendo desenvolvido, desde 2002, nas aldeias indígenas Guarani do Estado do Rio de Janeiro, pelo Programa de Estudos dos Povos Indígenas (Pró-índio/UERJ). Recebeu, em 2005, pela qualidade de suas ações, o Prêmio Cultura Nota 10, uma iniciativa da Secretaria Estadual de Cultura do Rio de Janeiro e a UNESCO. O Pró-Índio, instituído em 1992 na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, conta com uma equipe multidisciplinar coordenada pelo Prof. Dr. José Ribamar Bessa Freire. Ao longo dos anos, o Programa, tem realizado pesquisas e projetos de extensão dentro do campo indígena em diversas áreas, tais como, educação, saúde e políticas públicas. Tem sido uma importante ferramenta na luta contra a desigualdade, o preconceito e a desinformação quanto à questão indígena. Para tanto, tem contato com parcerias que viabilizam a execução de projetos e pesquisas. A partir de oficinas realizadas, entre o período de 1997 e 2002, que tinham como temas a Memória, o Patrimônio Cultural e a Educação foi possível perceber a necessidade

da realização de um trabalho que envolvesse a valorização do artesanato confeccionado nas aldeias. Muitos foram os problemas relatados, principalmente os que envolviam as mulheres das aldeias. Por realizarem uma produção familiar, após a confecção do artesanato, as mulheres saíam com seus filhos para as rodovias ou os centros comerciais de Angra e Paraty para efetuarem a comercialização dos objetos. Na maioria das vezes, a venda do dia garantia a alimentação de toda família. Geralmente, acompanhada por seus filhos, a mulher Guarani se expoem a toda sorte de situações, tais como: chuva, fome, longos trajetos realizados a pé, desvalorização da sua arte, entre outros fatores que dificultavam a venda, como a barreira lingüística, pois muitas mulheres e crianças são monolíngües da língua guarani. A segurança inexistente no processo de comercialização do artesanato fragiliza ainda mais a vida nestas comunidades. Sendo o artesanato uma das principais fontes de subsistência Guarani no estado do Rio de Janeiro e, o mesmo, possuindo forte legado cultural, tornou-se imprescindível o desenvolvimento de um trabalho que tivesse como finalidade a preservação cultural do artesanato e a garantia de melhores condições para sua venda. Para tanto seria necessário realizar ações efetivas no processo de confecção, gerenciamento e comercialização, que partissem diretamente da aldeia. Reuniões foram realizadas com os principais líderes das aldeias de Sapukai (Angra), Itatim (Parati-mirim), Rio Pequeno (Parati) e Araponga (Parati). Após acordo firmado em todas as aldeias que atualmente são compostas por uma população estimada de 600 (seiscentos) indivíduos, uma equipe multidisciplinar do Programa de Estudos dos Povos Indígenas/EDU/UERJ, em parceria com o Museu do Folclore Edison Carneiro/CNPCP/IPHAN, com recurso Petrobrás, desenvolveu o Projeto Arte Guarani Mbyá do Rio de Janeiro tendo como parceiros as Associações Indígenas Guarani, a FUNAI Posto Indígena Bracuí, Museu do Índio, Secretaria Municipal de Educação de Angra dos Reis, Secretaria Municipal de Educação de Parati, Secretaria Municipal de Educação de Rio Claro, SEBRAE RJ, BNDES e Casas de Cultura de Parati e Rio Claro.

O ARTESANATO GUARANI Os Guarani do estado do Rio de Janeiro mantém vivo os seus valores tradicionais e lutam pela preservação do seu Tekó (cultura) que se manifesta através da sua arte, sua religiosidade, alimentação e de sua língua. O artesanato Guarani traz em suas tramas as narrativas das histórias e dos fazeres de um grupo étnico que sobreviveu ao contato opressor de sociedades que tentaram, por mais de cinco séculos, afirmar sua hegemonia sobre a cultura indígena. Para Litaiff (1996), a possibilidade desses Guarani de resistirem enquanto grupo étnico distinto, parece estar ligada à capacidade de manterem valores fundamentais dentro do seu sistema cultural. A educação infantil que, em sua grande maioria, ocorre aos pés dos pais artesãos é mediada através da transmissão de um saber milenar entre gerações. Arte e conhecimento que não constam em livros mas estão ali, vivos com seu povo. Ricos em significados tradicionais - embora a produção artesanal não seja apenas para o uso cotidiano, grande parte é confeccionada para fins comerciais - os objetos ainda preservam a sua ancestralidade mítica. O processo intercultural que se deu através do contato entre o consumidor e o artesão indígena gerou mudanças na confecção artesanal ocasionando, ao longo dos últimos anos, a implantação de nova coloração, diversificação de formatos e novas utilidades para os utensílios antes de uso religioso. Essas mudanças ocorridas são fatores positivos que facilitam a comercialização conforme palavras de Canclini, Os povos indígenas têm a vantagem de conhecer pelo menos duas línguas, articular recursos tradicionais e modernos, combinar o trabalho pago com o comunitário, a reciprocidade com a concorrência mercantil (CANCLINI, 2005:69). Reconhecendo que a interculturalidade se dá entre todas as sociedades, percebemos que esse processo não pode ocorrer de forma tal, que a significação cultural desapareça sob o apelo comercial. Para Soria: A Interculturalidade é um fenômeno que vem perdendo gradualmente o seu caráter de excepcionalidade. Hoje em dia, todos os povos, todas as culturas, enfim, todos os seres humanos tiveram que se adaptar ao novo curso dos tempos, combinando eventos tradicionais com novas manifestações da modernidade. (SORIA, 2006.)

O valor histórico e cultural do artesanato está no reconhecimento e respeito à sua ancestralidade. Nas palavras de Analice Pillar (2002:71), ao ver precisamos decodificar os signos de uma cultura e compreender o sentido que criam a partir do modo como estão organizados. A manutenção dos traços característicos da arte produzida contribui para preservação da cultura e construção permanente da memória e, assim, as sociedades conseguem manter viva sua tradição. Isso não deve ser suplantado, segundo palavras de DaMatta, A tradição, assim, torna as regras passíveis de serem vivenciadas, abrigadas e possuídas pelo grupo que as inventou (...) seus membros acabam por perceber sua tradição como algo inventado especialmente para eles, como coisa que lhes pertence. Assim dizem: fazemos desse modo porque assim diz nossa tradição e a nossa tradição é uma realidade (e uma realização) dinâmica. (DAMATTA, 1987:50) As mudanças ocorrem de forma dinâmica influenciadas, hoje, não apenas pela demanda de mercado - que faz com que etapas do processo de tratamento, de colheita e manejo das espécies, não sejam respeitadas como, também, são ocasionadas pela falta de recursos naturais para realização do artesanato. Sujeita às transformações do meio ambiente, a matéria-prima utilizada sofre infestação de biodeterioradores que dificultam a comercialização das peças. Um problema que abordaremos mais detalhadamente no próximo item quando discutiremos as fases do projeto. O PROJETO ARTE GUARANI MBYÁ DO RIO DE JANEIRO Para melhor compreensão descreveremos o projeto em fases que perpassaram as etapas de planejamento, divulgação, exposições, oficinas, vendas e tratamento da matériaprima utilizada para confecção dos objetos artesanais. A primeira fase do projeto teve como objetivo a revitalização da tradição histórica contida na concepção do artesanato Guarani, inserida no Programa do Artesanato Solidário, contou com o financiamento da Petrobrás. Sendo toda criação resultado da experiência cultural do grupo e, portanto, repleta de simbologia mítica, a importância cultural não era apenas o único fator que estava em discussão. Nessa primeira fase foi possível perceber que o artesanato era vida para os

Guarani. Seu João, cacique Verá Mirim da Aldeia Sapukai, Angra dos Reis, num encontro regional na casa da Ribeira, em Angra, relatou: Nos tempos antigos o cesto era utilizado pelas mulheres para carregarem as sementes de milho para serem plantadas na roça. As sementes e também as crianças. Nhanderu nos ensinou a trançar para que pudéssemos carregar as semente do milho sagrado e também nossas crianças. E aos homens deu o arco e a flecha para caçar, para poder viver na floresta. As histórias dos antigos contam como tudo isso aconteceu, tudo era diferente, fazemos nosso artesanato para vender, para podermos ganhar dinheiro e sobreviver, mas nem sempre foi assim, o artesanato era sagrado. Por isso precisamos de um museu, para lembrarmos de como as coisas eram. 1 Baseados na fragilidade econômica, seguindo as diretrizes do programa do artesanato solidário e tendo um curto tempo para desenvolvimento do projeto, precisávamos levantar quais eram os produtos artesanais e sua história: como era produzido, como chegou a essa produção, se sempre seguiu a atual dinâmica de confecção e etc. Traçados os primeiros passos, notamos a importância de saber mais sobre a matéria prima: como eram obtidas e quais eram as técnicas existentes em cada núcleo familiar. Os materiais mais utilizados para confecção do artesanato são: a taquara, a taquarinha, tiras de imbira, o cipó vembepé, a caxeta, sementes encontradas nas proximidades das aldeias, o angico (kurupa y) e a embaúba (amba y), Nessa fase de planejamento e divulgação foi preciso compreender o processo intercultural, como ocorria o contato e quais eram os resultados disso. A relação entre o valor da peça e o valor de comércio e como se dava às relações da renda obtida dentro da aldeia e dos grupos familiares. Em levantamentos anteriores sabíamos que, diretamente, estaríamos trabalhando com a média de 122 artesões e que, indiretamente, seria beneficiada praticamente quase a totalidade da população guarani, estimada entre 500 a 600 indivíduos. A primeira atividade, já na fase da divulgação, foi a montagem de uma exposição sobre o artesanato Guarani na Sala do Artista Popular do Museu do Folclore Edison Carneiro. Nesta exposição os objetos estariam à venda para o público visitante. Foram necessárias muitas reuniões pois a proposta de venda sob consignação era algo novo para todos da aldeia. Foi preciso construir uma estrutura baseada na confiança e no respeito. 1 Depoimento recolhido durante seminário de formação de professores indígenas Guarani em Angra dos Reis, 2000.

Primeiro deveriam produzir para apenas posteriormente receberem e, após tudo catalogado, as peças seguiriam para exposição e venda no museu. Enquanto os artesãos Guarani produziam as peças para exposição, uma documentação fotográfica era realizada. Esta atividade tinha como finalidade compor parte da exposição itinerante que ainda hoje percorre cidades e escolas do estado do Rio de Janeiro, resultado da segunda fase do projeto. As peças mais comercializadas pelos Guarani são: colares de sementes e miçangas, arcos e flechas (exclusivos para venda), esculturas de animais existentes na região (coruja, paca, tamanduá, gato do mato), chocalhos (mbaracá), abanadores e cestarias (adjaká) de variadas formas e cores, sendo as cestarias as peças mais vendidas. Os frutos da primeira fase chegaram junto com o reconhecimento e a valorização da sua cultura pois os Guarani puderam visualizar a grandiosidade da sua arte que foi muito bem aceita pelo público. As mulheres, que ficaram quatro meses trabalhando na confecção, demonstraram grande satisfação ao dizer que quase não saíram da aldeia. Tiveram mais tempo para ficarem em suas casas, com suas famílias e que se sentiam mais seguras. A venda, que ocorria nos espaços de divulgação, era a garantia da renda no fim do mês pois os valores da comercialização eram revertidos integralmente aos núcleos familiares. Após a primeira fase do projeto, todos desejavam que a experiência tivesse continuidade e que não terminasse ao fim daquele primeiro ano. Os seguintes produtos foram confeccionados nesta fase inicial:? Catálogo etnográfico: 3.000 exemplares;? Catálogos de venda: 2.000 exemplares;? Cartões postais: 4.000 exemplares;? Etiquetas de identificação do objeto: 5.000 unidades. A segunda fase do projeto foi de implantação e execução das exposições itinerantes. Essas tinham como objetivo divulgar o resultado da pesquisa e, também, fazer conhecer, em diferentes cidades, a cultura Guarani existente no estado do Rio de Janeiro. O principal objetivo nessa fase era combater o preconceito, valorizar o artesanato indígena e, também, a sua história. As exposições foram realizadas graças à parceria com a

Eletronuclear que nos procurou e financiou parte do projeto para que fosse difundido o trabalho na cidade de Paraty, Angra e na própria sede da empresa. As exposições contaram com a documentação fotográfica obtida na primeira fase do projeto e, também, eram expostas peças do artesanato. Essa fase, que ocorreu entre o ano de 2003 e 2004, possibilitou uma mudança no olhar do outro diante da diversidade da cultura Guarani. Segundo Bessa (2002), conhecer os índios não é apenas conhecer o outro, o diferente, mas implica conduzir as reflexões sobre a sociedade que com eles interage. Hoje, o trabalho realizado com a exposição continua ativo, atendendo escolas, centros culturais, bastando para isso apenas à organização de um cronograma pois é grande a demanda de cidades e instituições que nos solicitam a exposição. Foi possível perceber problemas ao término da primeira fase ocasionados pela biodeteriorização dos objetos por insetos e fungos que danificam o artesanato. Após dois anos em busca de parcerias e financiamentos que pudessem auxiliar no tratamento do artesanato e dar continuidade ao projeto, apenas em 2005 conseguimos recursos do Ministério da Educação dentro de um programa de apoio à extensão universitária. O recurso possibilitou o prosseguimento do projeto que, já na terceira fase, trabalha, junto às aldeias, as oficinas de tratamento. O início dessa fase se deu em março de 2005. A previsão era que o trabalho fosse executado até o final do mesmo ano porém, devido às consecutivas greves da UERJ, as nossas idas às ficaram impossibilitadas por quase 9 meses. Atualmente trabalhamos em oficinas de beneficiamento que têm como objetivo combater a infestação de insetos e fungos. Após pesquisa foi possível verificar que as regiões onde ficam localizadas as aldeias são úmidas e favorecem à infestação de agentes biodeterioradores. Testes estão sendo realizados objetivando a detecção da me lhor forma para o combate das pragas. Após ter ocorrido, no ano 2005, fenômeno natural popularmente conhecido como ciclo da taquara seca que ocorre a cada trinta anos com a taquaruçu, tornou-se praticamente escassa a principal matéria prima utilizada na confecção dos cestos e balaios. Sendo assim, o grupo encontrou uma saída para o problema através da criação de um comércio interno entre as aldeias do Rio de Janeiro e São Paulo. A mudança da espécie de taquara tem alterado a forma e a produção do artesanato.

Atualmente buscamos parcerias para que sejam realizadas pesquisas de manejo no local, tendo como finalidade a auto-sustentabilidade das aldeias quanto à matéria prima. CONSIDERAÇÕES FINAIS Mesmo depois de quatro anos de trabalho efetivo no campo do artesanato Guarani, realizado dentro das aldeias do Rio de Janeiro, sabemos que, de fato, muito ainda precisa ser feito. Toda experiência adquirida, tanto em exposições, como no trabalho realizado com os artesãos, nos dizem que todo contato é favorável quanto este não gera prejuízo para nenhuma das partes. Nesse sentido ocorre a interculturalidade. A venda, principal fonte de renda, também possibilita a afirmação da cultura indígena que demonstra sua resistência à aculturação e força através de trançados e esculturas que contam sua história. Perceber essa força e propagá-la é mais que um ideal, é uma recompensa por tudo que também aprendemos com os Guarani. Problemas além dos que foram relatados existem, porém, vislumbramos um grande campo de possibilidades que podem gerar a melhor administração desse processo de comercialização. Observamos que o gerenciamento deve atender às peculiaridades de cada núcleo familiar e que o mesmo deve atender às aldeias em um todo. Enfatizamos que o grande objetivo desse projeto não é apenas instrumentalizar o processo comercial do artesanato Guarani mas, também, auxilia-los na sua preservação e autovalorização cultural. Ao longo desse trabalho esperamos inclusive elaborar uma proposta para a construção de um espaço físico permanente dentro da aldeia que será como um museu da cultura indígena Guarani no município de Angra dos Reis. Ali poderão ser confeccionados, conservados e vendidos todos os utensílios produzidos para o comércio. Trabalhamos, também, no que chamamos de O livro do artesanato Guarani. O mesmo não trará apenas as experiências obtidas ao logo do projeto, mas também abordará particularidades de uma arte milenar. Seus mitos, sua importância religiosa e o papel educacional que é desempenhado no processo de produção. Esta publicação já está em fase de pesquisa,. Esperamos que as experiências do projeto Arte Guarani Mbyá tornem-se um referencial para outros projetos no campo do artesanato que são desenvolvidos em outras aldeias. Acreditamos que seja possível, através da pesquisa, transformar os aspectos

desfavoráveis que existem na relação de produção/venda existentes, hoje, no processo de comercialização do artesanato Guarani. Em busca da preservação patrimonial e cultural, o conhecimento e arte Guarani ganham maior evidência não se limitando apenas ao ato comercial. REFERÊNCIAS CANCLINI, Nestor Garcia. Diferentes, desiguais e desconectados. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005. DAMATTA, Roberto. Relativizando: Uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro, Rocco, 1987. FREIRE, José R. Bessa. Trajetória de muitas perdas e poucos ganhos. In.: IBASE. Educação escolar indígena, em Terra Brasilis, tempo de novo descobrimento. Rio de Janeiro: IBASE, p.11-31, Julho de 2004.. Preconceito e Desconhecimento. Jornal dos Economistas, Rio de Janeiro: abril de 2002, p.3. LITAIF, Aldo. As divinas palavras: Identidade Étnica dos Guarani Mbyá. Florianópolis: ED. da UFSC, 1996. PILLAR, Analice D. A educação do olhar no ensino da arte. In.: Inquietações e mudanças no ensino da arte. São Paulo: Editora Cortez, 2002. SORIA, José I. Lopes. Filosofia e Interculturalidade. Trad. Beatriz Furtado. Rio de Janeiro. Disponível na Internet via http://paginas.terra.com.br/educacao/ludimila/filosofia.htm. Arquivo consultado em 03 de setembro de 2006.