Uma visão geral da usucapião



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Transcrição:

Uma visão geral da usucapião Sebastião Marques Neto 1* Conquanto seja, usualmente, esse instituto empregado no gênero masculino, a forma erudita e de acordo com sua origem etimológica exige seu emprego no gênero feminino, uma vez que usucapião, em latim, é vocábulo derivado da junção de usu e capio, sendo este último substantivo do verbo capere, e que representa a parte principal do composto usucapio, indicando seu gênero feminino. Segundo Farias (2011), a Lei das Doze Tábuas já se referia à usacapião, em 455 a.c., [...] como forma de aquisição de coisas móveis e imóveis pela posse continuada por um ou dois anos. Só poderia ser utilizada pelo cidadão romano [...]. Por sua origem latina, o emprego erudito da palavra usucapião deve ser no gênero feminino. Entretanto, o uso popular trocou-lhe o gênero para o masculino dado a confusão com palavras terminadas em ão pertencentes ao gênero masculino. Rui Barbosa alterou-a no projeto do Código Civil de 1916, que a trazia no feminino, convertendo-a para o masculino. Em latim a palavra capio, capionis significa ação de tomar posse. Usucapião é a aquisição do bem rural ou urbano pela posse prolongada portanto, feminino. Os doutrinadores se dividem: Washington de Barros, Serpa Lopes, Maria Helena Diniz, Rui Barbosa e Silvio Rodrigues a empregam no masculino; Carnelutti, Lenine Nequete, Orlando Gomes, Pontes de Miranda, no feminino. Os dicionários e enciclopédias também se dividem quanto à classificação O instituto da usucapião tem suas origens arraigadas no direito privado, mais precisamente do direito civil, sendo conceituado por Caio Mário da Silva Pereira como sendo: a aquisição da propriedade ou outro direito real pelo decurso de tempo estabelecido e com a observância dos instituídos seara jurídica ISSN 1984-9311 V.1 N. 9 jan - jun 2013 1 * Mestre em Família na Contemporaneidade (UCSAL). Professor do Centro Universitário Jorge Amado. 19

seara jurídica ISSN 1984-9311 V.1 N. 9 jan - jun 2013 em lei. Pode-se dizer que, atualmente, a usucapião é um instituto que faz parte da teoria geral do direito, que tem espécies ou tipos próprios do direito privado, e outros específicos do direito público, no caso o direito urbanístico. Entre os doutrinadores do Brasil, majoritariamente, a usucapião é definida como um modo de aquisição da propriedade, por via da qual o possuidor se torna proprietário (GOMES, 1999), não derivando o direito de o usucapiente se tornar proprietário de nenhuma relação com o antigo dono, como sustenta Monteiro (1997). Beviláqua, Espinóla, Lafayette, definem o instituto como usucapião é a aquisição da propriedade ou de outro direito real pelo decurso do tempo estabelecido e com a observância dos requisitos instituídos em lei. O art. 5 da Lei n 601, de 18 de setembro de 1850, é o mais antigo documento no Brasil de legitimação de posse. Dispunha que os posseiros poderiam adquirir o domínio das glebas devolutas que ocupassem desde que comprovassem cultura efetiva, ou princípios de cultura, e morada habitual. A Constituição de 1934, já com o influxo de preocupação social, apresenta-nos a figura do usucapião pro labore, destinada a propiciar a melhoria do pequeno produtor rural em seu artigo 125: Todo brasileiro que, não sendo proprietário rural ou urbano, ocupar, por dez anos contínuos, sem oposição nem reconhecimento de domínio alheio, um trecho de terra de até dez hectares, tornando-o produtivo por seu trabalho e tendo nele a sua morada, adquirirá o domínio do solo, mediante sentença declaratória, devidamente transcrita. O artigo 148 da Constituição de 1937 repete o preceito, sem alterações. Já o Decreto-lei 710/38 ressalta que as terras do domínio estatal não são usucapíveis nesta modalidade, em seu art. 12, 1 : Ressalvado o disposto no art. 148. da Constituição (de 1937), não corre usucapião contra os bens públicos de qualquer natureza. A Constituição de 1946, embora mantivesse a usucapião laboral em seu art. 156, 3, acrescentou duas alterações. Primeiro, eliminou o vocábulo brasileiro, contido no início dos dispositivos anteriores, substituindo-o pela expressão todo aquele. Segundo, aumentou para até vinte e cinco hectares a extensão do bem a ser adquirido. 20

A Emenda Constitucional 10, de 09-11-1964, elevou esse limite para área não excedente a cem hectares, que deveria ser reputado como suficiente para assegurar, ao lavrador como à sua família, condições de subsistência e progresso social e econômico, nas dimensões fixadas pela lei, de acordo como os sistemas agrícolas regionais. O Estatuto da Terra (Lei n 4.504, de 30-11-1964) passa a disciplinar a usucapião em lei ordinária, em seu artigo 98, o qual vigeu até a Constituição de 1967. Surge, em 10-12-1981, a Lei n 6.969 que, a despeito de permitir a aquisição em glebas não excedentes de 25 hectares, salvo se fosse maior que o módulo rural da região, encurtou para um lustro o prazo da posse aquisitiva. Com a Constituição, promulgada em 05-10-88, em seu Título VII - Da Ordem Econômica e Financeira, dispõe, em separado, respectivamente, os Capítulos II e III à política urbana e à política agrícola e fundiária. Mantém a usucapião especial no campo (art. 191) e estende a sua aplicação à urbe (art. 183), como tentativa de amenizar o grave problema da habitação, gerado pelo rápido, adensado e desordenado crescimento populacional nas cidades. Em ambos os casos, eliminou a possibilidade dos imóveis públicos serem adquiridos pela posse prolongada. Mas o que são bens públicos? O CC/02, em seu artigo 98, os define como: São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem. Portanto, é a titularidade do domínio do bem que definirá se é ele público ou privado, de modo que todos os bens que pertencerem às pessoas jurídicas de direito público interno serão tidos por bens públicos. Já o artigo 99 do CC-02 divide os bens públicos, segundo sua destinação, em três espécies, como previsto no art. 99 do CC/02 2 : (i) bens de uso comum do povo; (ii) bens de uso especial; e (iii) bens dominicais. seara jurídica ISSN 1984-9311 V.1 N. 9 jan - jun 2013 2 Art. 99. São bens públicos: I - os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças; II - os de uso especial, tais como edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias; III - os dominicais, que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades. Parágrafo único. Não dispondo a lei em contrário, consideram-se dominicais os bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito público a que se tenha dado estrutura de direito privado. 21

seara jurídica ISSN 1984-9311 V.1 N. 9 jan - jun 2013 Somente são bens públicos os bens dominicais, uma vez que os bens de uso comum e os bens de uso especial necessariamente implicam a sua utilização, quer pela população em geral, quer pelas administrações públicas dos diversos entes federativos. Sob a égide da Lei nº 3.071/1916, que instituiu o Código Civil de 1916 ( CC/1916 ), a compreensão da posse como um fenômeno atrelado ao direito da propriedade, que se denominará concepção antiga da posse, tomou conta da maior parte da doutrina. Em grande medida esta reação doutrinária se deu em função da redação de alguns preceitos básicos do antigo Código que aparentavam lidar com o fenômeno possessório como uma espécie de tutela indireta dos direitos do proprietário, muito embora a definição de posse remetesse a um poder de fato exercido sobre alguma coisa, em nome próprio. Segundo Maria Helena Diniz, professora titular de direito civil da PUC-SP: A posse é o fato objetivo, e o tempo, a força que opera a transformação do fato em direito... O fundamento desse instituto é garantir a estabilidade e segurança da propriedade, fixando um prazo, além do qual não se podem mais levantar dúvidas ou contestações a respeito e sanar a ausência de título do possuidor, bem como os vícios intrínsecos do título que esse mesmo possuidor, porventura, tiver (DINIZ, 2002, p. 155). Sobre o instituto da usucapião, leciona Caio Mário da Silva Pereira: [...] usucapião é a aquisição da propriedade ou outro direito real pelo decurso do tempo estabelecido e com a observância dos requisitos instituídos em lei. Mais simplificadamente, tendo em vista ser a posse que, no decurso do tempo e associada às outras exigências, se converte em domínio, podemos repetir, embora com a cautela de atentar para a circunstância de que não é qualquer posse senão a qualificada: Usucapião é a aquisição do domínio pela posse prolongada. (PEREIRA, 2004, p. 138) O elemento básico da usucapião é a posse, entretanto não é qualquer posse que engendra a aptidão à obtenção da usucapião. Deve ser a posse ad usucapionen : contínua, pacífica, incontestada com intenção de dono, no prazo estipulado. Portanto, a posse não pode ter intervalos, vícios, defeitos, tampouco contestação. 22

O tempo é outro elemento fundamental para a usucapião, pois para que se converta em propriedade, a posse deve durar pelo prazo estipulado nas leis que a disciplinam. Logo, para qualquer modalidade de usucapião, é necessário o continuatio possessionis ininterruptamente pelo tempo exigido. Em relação à natureza jurídica da usucapião, existem duas correntes: objetiva, que se fundamenta na presunção de renúncia do direito de propriedade de um indivíduo diante de sua inércia e passividade, e a subjetiva, baseada na utilidade social que é dar estabilidade e segurança à propriedade, facilitando a prova do domínio, consequentemente, consolidando as aquisições. Sílvio de Salvo Venosa define que: [...] a possibilidade de a posse continuada gerar a propriedade justifica-se pelo sentido social e axiológico das coisas. Premia-se aquele que se utiliza utilmente do bem, em detrimento daquele que deixa escoar pelo tempo, sem dele utilizar-se ou não se insurgindo que outro o faça, como se dono fosse. (VENOSA, 2003, p. 198) Já para Benedito Silvério Ribeiro: Diz-se que a usucapião é a prescrição aquisitiva. Nesses dois elementos, portanto a posse da coisa por quem não é proprietário e a sua duração, reside o fundamento da usucapião, pois, aliados esses dois elementos, surge legalmente a aquisição, transformando-se de mero estado de fato num estado de direito: a propriedade. (RIBEIRO, 2006, p.158) seara jurídica ISSN 1984-9311 V.1 N. 9 jan - jun 2013 Por seu turno, afirma Maria Helena Diniz que pela usucapião, [...] o legislador permite que uma determinada situação de fato, que, sem ser molestada, se alongou por certo intervalo de tempo previsto em lei, se transforme em uma situação jurídica, atribuindo-se assim juridicidade a situações fáticas que amadurecem com o tempo. A posse é o fato objetivo, e o tempo, a força que opera a transformação do fato em direito... O fundamento desse instituto é garantir a estabilidade e segurança da propriedade, fixando um prazo, além do qual não se podem mais levantar dúvidas ou contestações a respeito e sanar a ausência de título do possuidor, bem como os vícios intrínsecos do título que esse mesmo possuidor, porventura, tiver. (DINIZ, 2002, p.144). A posse comporta dois efeitos básicos: o primeiro, a proteção possessória (interdicta), a tutela possessória, que consiste em a pessoa poder se valer 23

seara jurídica ISSN 1984-9311 V.1 N. 9 jan - jun 2013 do instrumento processual para proteger a relação jurídica. São as ações de manutenção, de reintegração e o interdito proibitório. E o segundo é a possibilidade de gerar usucapião, que é a possibilidade de transformar a posse em propriedade. Para Sílvio Rodrigues, esses efeitos estão ligados ao conceito de posse, pois a legislação atende não só a uma preocupação social, mas também à proteção do possuidor: Não se pode compreender o conceito de posse sem analisar dois dos seus principais efeitos, ou seja, a proteção possessóriae a possibilidade de gerar a usucapião. Porque, tanto no exame de um como no do outro efeito, evidencia-se o fato de que toda a legislação respei tante à posse atende a uma preocupação de interesse social, e não apenas a o intuito de proteger a pessoa do possuidor. Aliás, tendo em vista o caráter dinâmico da posse, seu conceito está intimamente ligado a essas duas consequências que dela derivam. (Rodrigues, 2007, p. 17) Podemos concluir que a usucapião de bens imóveis é uma maneira de adquirir a propriedade pelo exercício da posse, preenchendo os requisitos e o lapso temporal exigidos em lei. A usucapião de bens imóveis conduz a regularização de muita s propriedades, que hoje se encontram sem o devido registro imobiliário, portanto se faz necessário um conhecimento amplo com relação a esse instituto, para que se aplique as devidas regras exigidas em nosso ordenamento jurídico em cada uma das espécies previstas. É de fundamental importância refletir sobre a usucapião de bens imóveis, como uma maneira de se regularizar a propriedade, uma vez que se trata de um modo de aquisição pela posse, podendo-se utilizá-la como um mecanismo para que se obtenha a regularização do imóvel. Portanto, a usucapião de bens imóveis, em suas diversas modalidades, se configura como um importante instrumento na regularização da questão fundiária, no plano urbano e no plano rural, favorecendo a concretização do princípio constitucional da função social da propriedade. Roberto Ruggiero, em Instituições de Direito Civil, vol. II/402, complementado por Lenine Nequete, afirma que a usucapião não é apenas um modo de aquisição do direito de propriedade, mas também de outros direitos reais, passíveis de ser objeto de posse continuada. 24

Já para Pedro Nunes: modo de adquirir o domínio da coisa pela sua posse continuada durante certo lapso de tempo, com o concurso dos requisitos que a lei estabelece para esse fim. Ao classificar a usucapião como forma originária de aquisição, Pontes de Miranda argumenta: Adquire-se, porém não se adquire de alguém. O novo direito começou a formar-se antes que o velho se extinguisse. Chega o momento em que esse não mais pode subsistir, suplantado por aquele. Dá-se a impossibilidade de coexistência, e não a sucessão, não o nascer um do outro. Nenhum ponto entre os dois marca a continuidade. Nenhuma relação a fortiori, entre o perdente do direito de propriedade e o usucapiente.(miranda, 1977, p.349) Portanto, como institutos indissociáveis, a usucapião resulta de uma posse exercida com fins sociais, dentro de um Estado Democrático de Direito, em que o direito à propriedade deve refletir a destinação social e a evolução da própria sociedade. Referências BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das Coisas. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1976. (edição histórica). BRASIL, Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (de 24 de fevereiro de 1891). Disponível em: <http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/ constituicao/constitui cao91.htm>. Acesso em: 15 out. 2013. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da república federativa do brasil. Brasília, DF: Senado, 1988. BRASIL. Código Civil, Lei n.º 10.406, 10 janeiro 2002. São Paulo: Saraiva, 2005.. Código de Processo Civil, Lei n.º 5869, 11 janeiro 1973. São Paulo: Saraiva, 2005.. Estatuto da Cidade, Lei 10257, 10 julho 2001. São Paulo: Saraiva, 2005.. Supremo Tribunal Federal, súmula 237. O usucapião pode ser arguido em defesa. In: Código Civil, Lei n.º 10.406, 10 janeiro 2002. Súmulas do Supremo Tribunal Federal. São Paulo: Saraiva, 2005. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das coisas. 24. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva 2002. v. 4. ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de princípios constitucionais. 2 ed. São Paulo: RT. 2002. 25 seara jurídica ISSN 1984-9311 V.1 N. 9 jan - jun 2013

seara jurídica ISSN 1984-9311 V.1 N. 9 jan - jun 2013 FARIAS, Cristiano Chaves de, Direitos reais/cristiano Chaves de Farias, Nelson Rosenvald 7.ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. GOMES, Orlando. Direitos reais. Rio de Janeiro: Forense, 2002 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil, vol. VI: direito das coisas. 3 ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1964. MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil, 39ª ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2003. v.1. NEQUETE, Lenine. Da prescrição aquisitiva (usucapião). 3 ed. Porto Alegre: Ajuris, 1981 NUNES, Pedro. Do usucapião. Teoria, ação, prática processual formulários, legislação, regras e brocardos de direito romano, jurisprudência. rev., atual. e ampl. por Evandro Nunnes. Rio de Janeiro: Forense, 2002. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: direitos reais. 18 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. v. 4.. O direito de propriedade e sua evolução. Rio de Janeiro: Forense, 1994. v. 152. PEREIRA, Lafayette. Direito das cousas. Rio de Janeiro: Tip. Batista de Souza, 1922. PONTES DE MIRANDA, F. C. Tratado de Direito Privado. Parte Especial, Tomo X. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1977. RIBEIRO, Benedito Silvério. Tratado de Usucapião. 4ª. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Saraiva, 2006. v. 1 e 2. RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. Direito das coisas. vol. 5. 27 ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2002 RUGGIERO, Roberto de. Instituições de Direito Civil, vol. 2. Tradução da 6 ed. Italiana por Paolo Capitanio. Campinas-SP: Bookseller, 1999. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: direitos reais, v.5 3 ed. São Paulo: Atlas. 2003. 26