O EFEITO DE CRÍTICA NO ESPAÇO DIGITAL: FORMULAÇÕES SOBRE O NERD EM UM VIDEOLOG



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Transcrição:

O EFEITO DE CRÍTICA NO ESPAÇO DIGITAL: FORMULAÇÕES SOBRE O NERD EM UM VIDEOLOG GUILHERME ADORNO DE OLIVEIRA Universidade Estadual de Campinas/ Instituto de Estudos da Linguagem Rua Sérgio Buarque de Holanda, n 571/ Barão Geraldo 13083-859 - Campinas, SP guiadorno1@gmail.com Resumo. A proposta do artigo é compreender os efeitos de crítica em videologs brasileiros pelo viés discursivo-materialista, especificamente na série Maspoxavida. A indagação pelos efeitos de sentido que circulam nos vídeos pretendidos como críticos delimita os caminhos percorridos. Questiona-se sobre as formulações tidas como evidentes, operacionalizando conceitos próprios da Análise de Discurso como as condições de produção e a subjetivação no espaço digital. Palavras-Chave. Análise de Discurso materialista. Materialidade digital.videolog. Abstract. The purpose of the paper is to understand the effects of the critical in brazilians vlogs by the discursive materialist views, specifically in the Maspoxavida series. The inquiry by the effects of meaning that circulate in the videos taken as critical delimit the paths crossed. Raises questions about the formulation taken as self-evident, operationalizing concepts of the Discourse Analysis such as the production conditions and the subjectivation in the digital space. Keywords. Discourse Analysis materialistic. Digital materiality. Vlog. O interesse na série de videologs veio pela repercussão desta nas mídias tradicionais, obtida, provavelmente, pelo grande número de visualizações dos vídeos referidos. PC Siqueira foi convidado para ter um quadro em um dos programas humorísticos da MTV, em que trechos do vídeo postado semanalmente no Youtube 1 também são transmitidos pelo canal televisivo. Busco, neste artigo, analisar os efeitos de crítica na série de videologs postada no canal Maspoxavida, mobilizando as condições de produção específicas e a produção subjetiva inscrita materialmente no espaço digital. Pêcheux (2010, p. 76) afirma que o discurso é situado no interior da relação de forças existentes entre os elementos antagonistas de um campo político dado: o que diz, o que anuncia, promete ou denuncia não tem o mesmo estatuto conforme o lugar que ele 1 O portal Youtube, criado em 2005, possui o maior arquivo de vídeos da Internet concentrados em um só lugar (número que cresce diariamente). É também uma das páginas virtuais mais visitadas. O fácil acesso à tecnologia de produção e circulação de vídeos parece ter modificado a forma que usuários se relacionam com a mídia. Formatos de gravação e apresentação de vídeos estão sendo experimentados pelos internautas, entre eles a produção de clipes ou os chamados videologs (PASE, 2008). 1

ocupa. O autor fala em formação social e não em sociedade: existem regiões distintas, formas de organização de trabalho funcionando pela contradição. Não é possível dizer, a priori, qual é o dominante: vivem no mesmo espaço, mesmo tempo. Para Pêcheux (2010, p. 105), toda situação de produção do discurso pode ser caracterizada pelo processo de produção dominante. Em sua tese de doutorado, Dias (2004, p. 24) formula questionamentos sobre o espaço e o tempo e como estas dimensões interferem na produção de sentidos: o espaço define a temporalidade, e a temporalidade configura o espaço de significação. Como a materialidade a que se refere modifica a forma de se relacionar com o espaço, e consequentemente o tempo, há uma re-significação dos sentidos produzidos nesta nova configuração. A Internet sugere uma liberdade nunca presenciada pelo usuário, como se ali ele estivesse livre das coerções do mundo, de acordo com Dias (2004, p. 25). Compreender a subjetividade aponta marcas para entender a discursividade inscrita na materialidade digital-virtual, ou seja, a compreensão da constituição do sujeito em sua propriedade, realidade e individualidade, na movência provocada pela memória, pelo interdiscurso, como explica Dias (2004). A autora lembra as técnicas necessárias para o uso do computador, dos programas e da comunicação envolvida no processo de utilizar a Rede. Dias (2004, p. 49) recupera os estudos de Pêcheux para falar de uma norma identificadora; a técnica interpela o indivíduo em sujeito na relação ciberespacial. Para explicar o real e o imaginário funcionando na materialidade digital-virtual, um exemplo é mencionado por Dias (2004): o sujeito que consegue e tem facilidade de exteriorizar os sentimentos, questionamentos ou incômodos nas relações virtuais, mas não apresenta esta mesma dinâmica fora do ciberespaço. O sujeito esquece que as determinações do real ainda estão em funcionamento, visto que a ação no ciberespaço já é limitada pelas ações fora dele. A forma-sujeito digital, pela separação da imagem do sujeito físico com sua posição de sujeito discursivo, modifica seu engajamento subjetivo, seu modo de identificação ideológica (DIAS, 2004, p. 96). Do sítio virtual em que o material de análise pode ser visualizado destaco a afirmação: o YouTube permite que bilhões de pessoas descubram, assistam e compartilhem vídeos criados originalmente, além de oferecer um fórum para que as pessoas se conectem, informem e inspirem outras, em todo o globo, e age como uma plataforma de distribuição para criadores e anunciantes de conteúdo original, pequenos e grandes. O jogo destes dizeres com o modo como se constitui a materialidade virtual, (re)produz efeitos descritos por Dias (2004) também no imaginário de quem grava os vídeos. 2

FRAMES DE PC SIQUEIRA DURANTE AS GRAVAÇÕES Nos frames anteriores, vemos PC Siqueira em três 2 dos quatro vídeos que compõem o recorte específico de análise. As imagens do sujeito sofrem poucas modificações em um ano e meio de existência do videolog: camisa xadrez ou listrada; cabelos curtos e um pouco arrepiados; óculos grandes; ele fica posicionado de frente para a câmera e sentado; e o cenário de fundo é algum cômodo da própria casa (geralmente quarto ou sala). A figura de PC Siqueira é considerada como representante do (imaginário do que seja o) nerd. Em muitos comentários postados por usuários do Youtube são reiterados dizeres sobre PC Siqueira como um nerd. Inicialmente com o objetivo geral de compreender os efeitos de crítica no videolog, o recorte produzido durante o gesto analítico levou a particularidade das críticas formuladas por PC Siqueira envolvendo o tema Nerd (quatro vídeos). 2 Os títulos dos vídeos e as respectivas datas de postagem: Celular, Robson e traição do movimento (02/03/2010); Bagunça, Nerds e Sexo (27/09/2010); Passaporte, Ipad2 e Nerds de verdade (28/05/2011). 3

SEQUÊNCIAS DISCURSIVAS SD1: Eu considero nerd as pessoas que aprenderam a falar inglês jogando final fantasy SD2: Considero nerd aquelas pessoas que leram Universo numa casca de noz com doze anos SD3: Se bem que... As pessoas ainda têm preconceitos com nerds. As pessoas acham que os nerds não conseguem ter namoradas. SD4: Nerds podem ter namoradas na vida. E outra coisa: nerds podem ter namoradas bonitas. Eu delimitei as sequências discursivas pelas formulações que traziam um contraponto explícito (uma observação ou uma crítica) em relação à suposta figura do nerd. Nos vídeos, Pc Siqueira entra em uma disputa de sentidos sobre o que seja esse sujeito-nerd. Ele procura deslocar as características que podem dizer se uma pessoa é ou não tal sujeito. Dizer que algo, um X, é (mais que um estado, uma existência de) outra coisa, um Y, constrói uma implicação entre os termos, o que pode, no gesto analítico, permitir a compreensão de como certos objetos de saber estão distribuídos, produzindo certos efeitos e não outros, e, a um só tempo, são formulações propícias dos elementos do interdiscurso, pré-construído e articulação, sintagmatizarem-se pelo/no intradiscurso. Em marcas como Eu considero nerd as pessoas que (SD1), Considero nerd aquelas pessoas que (SD2) e nerds podem ter namoradas bonitas (SD4), aquilo a que se refere passa a ser o objeto inquestionável. A disputa está sobre as características do nerd e não sobre a existência de um sujeito universal passível de uma classificação. Está formulado como o que não precisa de explicação, o já-dito, os pré-construídos do discurso. Como efeito, é óbvio que exista. As identidades resultam desses processos de identificação, em que o imaginário tem sua eficácia (ORLANDI, 2009, p. 41). A composição de outros objetos articula-se por múltiplas relações que produzem o efeito de evidência do que seja cada um deles. Com entrada mais forte do que outros, a disputa de sentidos para nerd se reduz ao modo correto de defini-lo. Ele não chega a ser questionado. É a evidência primeira de existência. A articulação entre os pré-construídos apaga a possibilidade de considerar nerd como uma invenção, um consenso sobre o comportamento dos sujeitos: eles existem e discute-se apenas quais as características mais apropriadas. Apesar de se apresentar como crítico, PC Siqueira, ao reproduzir os pré-construídos de nerd, filia-se a mesma formação discursiva de seus criticados. 4

VÍDEO TRECHO DA FALA DE PC SIQUEIRA As pessoas têm falado muito sobre sexo. Sexo pra mim sempre foi uma coisa muito complicada. Aquela coisa que as pessoas fazem sexo todos os dias. Algumas pessoas dizem: Ah, eu fico sem fazer sexo durante uma semana, três dias, um dia, duas horas e começo a ficar louco. Eu sempre achei que sexo fosse uma coisa que as pessoas nunca fizessem. Uma coisa bem difícil de se fazer! Geralmente se fala muito de homossexualismo, heterossexualismo, mas as pessoas esquecem que uma boa parte da população não está contida nesse assunto; e chama nerdiossexualismo. Nerdiossexualismo não tem a ver com gostar de mulher ou gostar de homem. Isto depende de cada um. Nerdiossexualismo é tipo daquele cara que faz sexo de três em três anos geralmente. O sujeito que é nerd tem muita coisa para fazer, além de sexo. Geralmente tem muita coisa para fazer na internet, no videogame. E estes tipos de eventos sociais como fazer sexo atrapalham, um pouco, estas outras atividades, como por exemplo, como por exemplo... Enfim, atrapalha as outras atividades. Não é porque as pessoas não conseguem fazer isso. E outra coisa que também é difícil é, é, é perceber quando outra pessoa ta querendo fazer sexo com você. É meio difícil. Os nerdiossexualistas têm dificuldade em perceber quando uma outra pessoa ta querendo fazer sexo com ela. Quando eu digo dificuldade, eu quero dizer que elas não percebem nunca. Também nunca fazem sexo. 5

A figura do nerd, isto é, o imaginário existente sobre a pessoa que é nerd corresponde, especificamente sobre o aspecto comentado, à definição apresentada por PC Siqueira, sujeito do vídeo. Ainda no tocante à superfície linguística, existe no trecho uma crítica às pessoas que falam sobre sexo e acabam por discriminar os nerdiossexuais. Os frames captados do vídeo mostram PC Siqueira falando de frente para a câmera: a imagem do sujeito, por sua vez, também equivale ao imaginário do que seja um nerd. No momento da enunciação, a maior parte das expressões corporais e gesticulações parece confirmar os dizeres. No entanto, há momentos em que PC Siqueira expressa dúvida de sua própria formulação, quando, por exemplo, franze a testa e contrai os lábios. A quebra se dá, neste caso, apenas quando a oralidade é contraposta ao imagético. Há abertura, então, para outras interpretações. Detendo-me ao recorte do vídeo apresentado anteriormente, escolhi entrar no texto pela seguinte regularidade: os nerdiossexuais geralmente não fazem sexo, porque existem outras atividades que os ocupam. O sentido produzido é de que PC Siqueira se considera um nerdiossexual. Ele possui características do que imaginariamente se tem por nerd: pálido, magro, óculos grandes e estrabismo aparente. No jogo deste vídeo com os outros postados no canal Maspoxavida, as características descritas mantêm-se, fixando-se, assim, na estereotipia do nerd. Orlandi (1997) analisa a temática do estereótipo, reconhecendo nele um espaço para os sentidos serem outros na repetição do mesmo. O estereótipo produz o efeito do consenso, do fixo, da unidade, segurança e proteção de dizer sobre um sentido já existente, mas, a um só tempo, funciona para o sujeito como espaço de resistência, porque, paradoxalmente, consegue deslocar. É uma forma de proteger sua identidade no senso comum, pois estereótipo cria condições para que o sujeito não apareça, diluindo-se na universalidade indistinta, (ORLANDI, 1997, p. 129). PC Siqueira, ao reafirmar a figura do nerd, possibilita construir outros sentidos. A meu ver, quando penso o estereótipo como ponto de fuga possível dos sentidos, penso-o como lugar em que trabalham intensamente as relações da linguagem com a história, do sujeito com o repetível, da subjetividade com o convencional. Tudo isso perpassado pelo funcionamento imaginário do discurso (ORLANDI, 1997, p. 125). Uma das conclusões do trabalho de Lagazzi (1988) aponta para o entendimento da resistência como uma transição entre o que se impõe pelo poder e a tensão gerada pelas relações interpessoais do sujeito. A linguagem é a forma material da ideologia, mas é também caminho de possibilidade de dizer, de se por discursivamente. Para Lagazzi (1988, p. 27), a linguagem é lugar de poder e de tensão, mas ela também nos oferece recursos para jogar com esse poder e essa tensão. Falamos das características imaginárias do nerd que compõem a imagem de PC Siqueira, mas há uma marca que confronta: a tatuagem no peito. Esta característica já está ligada a outro estereótipo. A tatuagem remete ao rebelde, ao drogado, ao vagabundo. A estereotipia funcionando a favor e contra o sujeito a todo momento. Há um fator que possibilita o reconhecimento e ainda sim se distancia pelos efeitos produzidos no estereótipo, porque este é um dos lugares desse equívoco que atravessa a relação do homem com a linguagem (ORLANDI, 1997, p. 125). 6

Justamente, comenta a autora, como efeito de sentido fortemente marcado, a relação com o objeto estereotipado estabelece o lugar de apoio, o consenso, a literalidade, a solidificação. Por este pensamento, Orlandi (1997) compara o estereótipo ao préconstruído, pois exercem o funcionamento do já-dito sustentando um dizer, mas, em contramão, aquele resguarda o sujeito em sua imagem fixa. Nessa relação imaginária, em certas condições, o estereótipo é o lugar em que o sujeito resiste, em que ele encontra um espaço para, paradoxalmente, trabalhar sua diferença e seus outros sentidos, na formulação de Orlandi (1997, p. 129). O trecho analisado traz a reiteração do estereótipo nerd no jogo entre o imagético (corpo, vestimenta, acessório, gesticulação) e as formulações verbais. Se o jogo permite que haja o reconhecimento de uma figura que já produz sentidos no social, o mesmo jogo, como ritual de linguagem, está aberto à falha. A tatuagem, a ironia entre voz e gestos e o estilo despojado 3 entram como elementos que possibilitam novas significações sem que o imaginário do nerd seja quebrado. Se há reiteração do fixo, também há outros (re)arranjos trabalhando o alhures no mesmo. Não há uma passagem de estereótipos do nerd para o drogado apenas porque o elemento de estanhamento não combina. A unidade encontra-se com a impossibilidade de ser o um e desliza. Não de A para B, mas a possibilidade de ser A e B na constituição contraditória de entremeio. Acompanho Orlandi (2008, p. 54) quando afirma que a identidade (efeito dos processos de identificação) é um movimento, tanto no seu modo de funcionamento (entre o eu e o outro) como em sua historicidade (devir, mas também multiplicidade na contemporaneidade). A resistência está no momento em que o sujeito não sabe, a priori, os caminhos. Inesperado, impossível, o alhures realizado. Os estereótipos produzem efeitos de sentidos de reiteração da unidade, próprio da castração simbólica em que há a injunção de significar, mas, como o objeto de desejo nunca é alcançado, a incompletude, real da língua, nunca cessa. Se língua, sujeito e história estão imbricados e materialmente ligados, a Análise de Discurso materialista, estudo que entende a relação constitutiva entre os três conceitos citados, se transforma à medida que novos desencadeamentos se marcam neste imbricamento. As formas de subjetivação pela estereotipia construídas no processo da prática discursiva virtual(izada), ritual de linguagem, se abre à falha, promotora do equívoco, do deslocamento de sentidos. Daí podemos concluir que: na reprodução já há não-reprodução, na censura já há resistência, na interdição de sentidos já estão os sentidos outros, naquilo que não foi dito está o trabalho do sentido que virá a ser. Em suas várias formas e modos que só a história pode assentar (ORLANDI, 1997, p. 131). Perguntar pelo revolucionário no trecho do videolog de PC Siqueira, em formulações sobre o nerd, aponta para o funcionamento do equívoco, entre discursos; permite pensar a resistência em meio ao hegemônico: margens do social que ocupam uma posição discursiva de centro, aproximando e afastando, no simbólico, relações de poder. 3 Nesta perspectiva a atitude é um vestígio de como o sujeito se significa, é um modo de significar, tomado pela falha que o estrutura: no equívoco já há o outro. É pelas condições que o sujeito formula seu dizer, sua vida, seus sentidos, seus sentimentos (ORLANDI, 2001, p. 10). 7

Referências DIAS, Cristiane Pereira. A discursividade da rede (de sentidos): a sala de bate-papo HIV. 2004. Campinas: Tese (Doutorado em Linguística) - Universidade Estadual de Campinas. LAGAZZI, Suzy. O desafio de dizer não. Campinas: Pontes, 1988. ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 4 ed. Capinas: Editora da Unicamp, 1997., Eni Puccinelli. Tralhas e troços: o flagrante urbano. IN: ORLANDI, Eni Puccinelli (Org.). Cidade atravessada: os sentidos públicos no espaço urbano. Campinas: Pontes, 2001., Eni Puccinelli. Terra à vista: discurso do confronto: velho e novo mundo. 2. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2008., Eni Puccinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 8. ed. Campinas: Pontes, 2009 PASE, André Fagundes. Vídeo online, alternativa para as mudanças da TV na cultura digital. 2008. Porto Alegre: Tese (Doutorado em Comunicação Social) - Universidade Católica do Rio Grande do Sul. PÊCHEUX, Michel. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 2. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1995., Michel. Análise automática do discurso (AAD-69). IN: GADET, Françoise; HAK, Tony. Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 4 ed. Editora da Unicamp: Campinas, 2010. 8