VII Congresso Latino-Americano de Estudos do Trabalho. O Trabalho no Século XXI. Mudanças, impactos e perspectivas.



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Transcrição:

VII Congresso Latino-Americano de Estudos do Trabalho. O Trabalho no Século XXI. Mudanças, impactos e perspectivas. GT 09 Desegualdad Socioeconomica y Desarrollo DESIGUALDADES NOS ANOS 2000: DESAFIOS PARA O DESENVOLVIMENTO NACIONAL BRASILEIRO Cassiano José Bezerra Marques Trovão Mestre e Doutorando em Desenvolvimento Econômico. Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas - Bolsista Capes. 1

Desigualdades nos anos 2000: desafios para o desenvolvimento nacional brasileiro Resumo O objetivo deste ensaio é abordar o tema da desigualdade a partir da constatação da necessidade de uma análise multidimensional, apresentando as principais transformações ocorridas no período recente do Brasil e apontando os avanços e limites do processo recente de queda da desigualdade. Entre 2000 e 2010 houve uma redução importante da desigualdade de renda corrente na sociedade brasileira. Observou-se, também, uma melhora da condição socioeconômica, para além da renda, de grande parcela da população. No entanto, sob a ótica multidimensional, evidenciou-se a recorrência de uma gama de insuficiências que atinge a população mais pobre no Brasil. A conclusão do ensaio evidencia a necessidade da elaboração de um projeto nacional de desenvolvimento de longo prazo que se proponha a alterar estruturalmente a condição de elevada desigualdade socioeconômica além de reduzir a pobreza, elementos historicamente observados na sociedade brasileira. Introdução: raízes históricas da desigualdade no Brasil A complexidade do tema da desigualdade exige uma análise abrangente que supere os limites das abordagens restritas à distribuição de renda. Para tanto, não se podem desconsiderar as heranças históricas que conformaram a sociedade brasileira. Segundo Dedecca (2010), restrições estruturais e conjunturais, sejam elas de origem econômica, social ou política, tendem a condicionar a evolução do quadro de desigualdades existente no Brasil. Para o autor, abordagens sobre esse tema devem considerar tanto os desafios do presente e do futuro quanto os constrangimentos herdados do passado. O debate sobre as origens do elevado nível de desigualdade no Brasil parte da formação e constituição do mercado de trabalho livre, na segunda metade do Século XIX, após a proibição do tráfico negreiro, da libertação dos filhos dos escravos com a Lei do Ventre Livre e, finalmente, com o término da escravidão em 1888. Para Dedecca (2010), 2

a particularidade do caso brasileiro está na não realização da reforma agrária após a abolição do trabalho escravo no país. A regulação pelo Estado ao acesso à terra (Lei de Terras) possibilitou a manutenção da estrutura fundiária altamente concentrada em grandes propriedades e impôs, para a maioria dos trabalhadores negros livres, o assalariamento em unidades produtivas oriundas do período colonial, submetendo esse trabalhador a uma relação que em muito pouco diferia daquela própria da escravidão. Ademais, cabe destacar que a formação do mercado de trabalho assalariado se deu em um momento de emergência de um novo complexo produtivo no país associado ao café. Em substituição ao processo de mobilização interna da população negra livre, a decisão em favor de uma política migratória internacional (Itália, Espanha, Alemanha e Japão), orientada e financiada pelo Estado, encontra-se na raiz da constituição de um mercado de trabalho com recorrente excedente de força de trabalho, característica fundamental que marcou o desenvolvimento brasileiro ao longo do Século XX. Com o colapso do complexo exportador cafeeiro e a grande Crise de 1929 no Brasil, começou-se a integrar tanto as atividades econômicas como o mercado de trabalho. Segundo Dedecca (2010), esse quadro econômico desfavorável acabou por estimular o desenvolvimento da produção interna devido às restrições para importação. O início da integração nacional propiciou a quebra da situação de isolamento dos mercados regionais, permitindo o início da mobilização dos trabalhadores nordestinos para o processo de industrialização concentrado na Região Sudeste, em especial no Estado de São Paulo. Apesar da elevada capacidade de geração de empregos nas atividades urbanas, industriais ou não, no início do processo de integração e constituição da Indústria Nacional, o problema da absorção de mão-de-obra amplamente disponível não pôde ser solucionado. Por essas razões, o processo de industrialização se deu com um recorrente e elevado excedente de força de trabalho. Segundo Dedecca (2010), a evolução da população ocupada, entre 1940 e 1990, indica que, apesar do crescimento elevado da ocupação em atividades industriais e nos serviços governamentais e de utilidade pública, houve uma reprodução do estoque de ocupados em atividades agrícolas e, principalmente, um crescimento expressivo de trabalhadores informais ou em atividades de subsistência. 3

O processo de industrialização evoluiu sob um modelo político de regulação que reproduziu um mercado de trabalho caracterizado por uma baixa efetividade da proteção social. A recorrência de governos autoritários, que combateram violentamente a ação sindical, e a existência constante de uma excessiva disponibilidade de mão-de-obra culminaram na conformação de um mercado de trabalho marcado por baixos salários, baixo nível de proteção e elevada rotatividade. (Baltar e Proni, 1996; Dedecca, 2010) O resultado desse processo foi expresso por um descasamento entre o forte desenvolvimento econômico e o baixo desenvolvimento social. Para Dedecca (2010), a origem desse descompasso está no modelo de regulação que se mostrava virtuoso ao regime econômico, mas que não permitiu o estabelecimento de instituições tradicionais de redistribuição de renda relacionadas ao mercado de trabalho e a política social. Esse descasamento entre desenvolvimento econômico e desenvolvimento social foi alvo de grande debate nos anos 1970. Os diferentes estudos discutiam sobre os fatores determinantes da desigualdade de um padrão de crescimento que se processava por uma expansão acentuada da produção, com elevação dos níveis de concentração de renda 1. O longo ciclo de crescimento brasileiro foi interrompido no início dos anos 1980. No entanto, ao mesmo tempo em que a sociedade conheceu um período de dificuldades econômicas oriundas do baixo dinamismo, da elevada inflação e de um contexto internacional desfavorável em termos de financiamento, fluxo de capitais e difusão tecnológica para os países em desenvolvimento, trilhou-se um caminho em direção à construção e à consolidação da democracia brasileira. A Constituição de 1988 garantiu as condições políticas democráticas para a promoção de eleições diretas de governantes e representantes políticos em todos os níveis de governo, para a representação e negociação coletiva e para a adoção de políticas sociais universais, em especial de saúde e educação. No entanto, a primeira eleição direta para a presidência da república, em 1989, foi dominada por um debate sobre o marco regulatório político, econômico e social aprovado no ano anterior. O resultado foi a eleição de um novo governo, cujas propostas eram: abrir a economia em termos comerciais, produtivos, financeiros e tecnológicos; realizar 1 Sobre o debate sobre a concentração de renda, desse período, ver: LANGONI, C.G. (1973); MALAN, P. S. (1978); HOFFMANN, R. (1978); MEDEIROS, C.A. (1993); e SERRA, J. (1978) 4

uma ampla privatização das empresas estatais e viabilizar a flexibilidade do sistema de proteção do trabalho e social. Essas propostas chocavam-se radicalmente com as conquistas da sociedade brasileira contidas no texto da nova Constituição. Nos primeiros anos da década de 1990, a execução de grande parte dessas medidas, como a abertura econômica em um ambiente de estagnação com elevada e crescente inflação, traduziram-se em elevado desemprego, desvalorização dos salários e corrosão das políticas sociais, alavancadas pelos efeitos perversos no âmbito da desorganização do Estado. A estabilização inflacionária, pós Plano Real de 1994, decorrente da abertura comercial e financeira fortalecida pela atração de capitais a partir do programa de privatização e da adoção de uma política monetária centrada em juros reais elevadíssimos, proporcionou uma reorganização produtiva industrial cujas consequências foram: queda expressiva da produção e do emprego industriais; adoção de mecanismos de controle do orçamento público em razão do fim do imposto inflacionário; destruição de empregos formais; aumento do desemprego aberto e queda dos salários. Para Dedecca (2010), os efeitos negativos da estabilização não se mostraram piores em decorrência da elevação substantiva do salário mínimo em 1995, que continuou aumentando, mesmo que em menor ritmo nos anos seguintes. Após esse longo período de estagnação, a primeira década do século XXI permitiu ao Brasil reconquistar uma trajetória de crescimento com geração de empregos, mesmo com a interrupção desse movimento favorável a partir do último trimestre de 2008, quando eclodiu uma expressiva crise internacional. As especificidades econômicas e políticas dessa década mostraram-se extremamente favoráveis à redução da desigualdade no Brasil. Portanto, é importante que se compreenda, de forma um pouco mais profunda, esse processo levando em conta seus avanços e limites. Para tanto, este ensaio divide-se em cinco seções, além desta introdução. A primeira tem por objetivo situar metodologicamente o tema da desigualdade. A segunda apresenta algumas evidências da retomada da atividade econômica dos anos 2000 para a criação de um ambiente favorável a redução da desigualdade. A terceira tem por objetivo apresentar algumas evidências, a partir de algumas interpretações sobre o tema, além de indicar os principais resultados e avanços do processo recente de queda da desigualdade 5

no Brasil. A quarta parte evidencia os principais limites do processo e exalta a necessidade de se abordar o tema da desigualdade sob uma ótica multidimensional de forma a contemplar toda a complexidade que este tema possui. Por fim, na quinta e última seção, algumas considerações finais intentam elucidar os principais desafios para a construção de um projeto nacional de desenvolvimento que contemple a manutenção do crescimento econômico, sem relegar a importância de se alterar estruturalmente a condição histórica de elevada desigualdade no Brasil. 1 O tema da desigualdade sob uma perspectiva metodológica Antes de iniciar a abordagem sob o processo mais recente de queda da desigualdade, faz-se necessário situar metodologicamente esse objeto tão complexo. Nesse sentido, o primeiro passo é conceituar: distribuição pessoal e funcional da renda. A primeira refere-se à apropriação da renda disponível por parte das pessoas. Normalmente, a informação disponível permite captar as rendas auferidas através do trabalho (salário, ordenado, remuneração do trabalho autônomo e pró-labore), do sistema de proteção social (aposentadoria, pensão, auxílios e transferências sociais de renda) e da propriedade de ativos (juros e aluguéis). A abrangência desta forma de mensuração da renda é mais limitada, em razão dela captar, fundamentalmente, a renda corrente das pessoas. Em geral, a declaração de renda pessoal não informa rendimentos obtidos na forma de valorização de ações e títulos, rendimentos de aplicações financeiras e lucros retidos derivados de participação societária. Também não são captados os rendimentos não monetários, como subsídio, alimentação, planos de saúde e previdência pagos pelas empresas, utilização de automóveis cedidos pelas mesmas, bem como os gastos com gasolina e manutenção que dos mesmos decorrem. A segunda foca a estrutura de apropriação da renda em uma abordagem institucional, também denominada de apropriação primária de renda. A distribuição é analisada a partir das três principais formas de apropriação da renda disponível em um determinado país: (i) excedente bruto das empresas, (ii) remuneração do trabalho e (iii) impostos e contribuições sociais. Para a contabilidade da renda disponível é deduzida a renda enviada ao exterior, inclusive aquela realizada via importação, e adicionada à 6

recebida do exterior, inclusa aquela de exportação. A distribuição funcional é construída, portanto, a partir de uma das óticas de mensuração do produto interno bruto, devendo captar todas as formas de apropriação de renda, seja pelas pessoas, empresas ou famílias. Deve ficar claro que, tanto o conceito de distribuição pessoal quanto o funcional da renda contemplam apenas uma dimensão da desigualdade, mais precisamente, aquela de natureza econômica. Grande parte do debate sobre a evolução da desigualdade no Brasil, que será explorado mais detalhadamente na terceira seção deste ensaio, está circunscrita a essa dimensão econômica. No entanto, como aponta Dedecca (2012), existem outras dimensões que não aparecem, ou ficam relegadas a segundo plano na grande maioria desses estudos. Estas podem ser entendidas como um conjunto de necessidades sociais que não podem, ou dificilmente, serão atendidas pela via monetária ou, mais precisamente, pelo mercado. Isto significa que, para grande parcela da população, o acesso à renda não necessariamente garantirá a superação de sua condição desigual, nem da gama de insuficiências a qual ela está submetida. Em outras palavras, a dimensão social, que contempla o acesso a diversos bens públicos como saúde, educação, transporte e saneamento básico, parece ficar de fora do debate. É nesse sentido que este ensaio propõe uma abordagem multidimensional da desigualdade, sem a pretensão de esgotar o tema, mas de forma a contemplar minimamente sua complexidade. Para isso, o próximo passo é analisar a evolução econômica recente, apontando seus efeitos sobre a tendência recente de redução das desigualdades. 2 O Brasil dos anos 2000: um ambiente favorável à redução da desigualdade No âmbito macroeconômico, a análise da evolução do Produto Interno Bruto (PIB) na primeira década do século XXI, a partir dos determinantes da demanda agregada 2, permite constatar uma mudança importante no padrão de crescimento da economia brasileira. Esse novo padrão trouxe resultados importantes para a sociedade, 2 Segundo a análise do Produto pela ótica da demanda: PIB = Consumo + Investimento + Saldo Comercial (Exportações Importações). 7

impactando positivamente a situação de grande parcela da população que se encontrava nos estratos inferiores da distribuição da renda. O período de crescimento econômico dos anos 2000 pode ser dividido em quatro: o primeiro, de 2000 a 2004, pode ser caracterizado pelo aumento das exportações, alavancadas pelas desvalorizações cambiais de 1999 e 2002, pelo aumento da demanda internacional, com destaque para o efeito China, e pela melhoria nos preços internacionais das commodities. O segundo, de 2005 ao final de 2008, representa uma inflexão no padrão de crescimento, em que o mercado interno assume um papel importante como fonte dinamismo, especialmente devido à ampliação do consumo das famílias e, principalmente pela recuperação dos investimentos (FBCF), este último especificamente após 2006. O terceiro período, que se estende do último trimestre de 2008 ao final 2009, foi marcado pelos desdobramentos da crise internacional com forte redução dos investimentos, das exportações e da atividade industrial, decorrentes do contexto internacional de elevada incerteza. Por fim, em 2010 houve um movimento em direção à recuperação da atividade econômica, 7,5%, em que se destacam a retomada dos investimentos, das exportações e do consumo das famílias, que apesar de não ter caído desacelerou-se no auge da crise. Já 2011 deu sinais de que a retomada do ritmo de crescimento do período 2005-2008 se daria de forma mais lenta. (Ver Tabela 1) 8

TABELA 1 TAXA DE CRESCIMENTO E COMPOSIÇÃO DO PIB, SEGUNDO A ÓTICA DA DEMANDA BRASIL, 2000-2011 Ano Consumo Formação Bruta de Capital Total Familias a Governo Total Fixo Variação de estoques Exportação Importação (-) PIB a preços de mercado Taxa de crescimento (% a.a.) 2000 3,0 4,0-0,2 1,4 5,0-77,0 12,9 10,8 4,3 2001 1,2 0,7 2,7-10,1 0,4-132,3 10,0 1,5 1,3 2002 2,6 1,9 4,7-18,2-5,2-239,7 7,4-11,8 2,7 2003-0,3-0,8 1,2-10,3-4,6 478,3 10,4-1,6 1,1 2004 3,9 3,8 4,1 3,4 9,1-173,1 15,3 13,3 5,7 2005 3,9 4,5 2,3-10,5 3,6-233,0 9,3 8,5 3,2 2006 4,5 5,2 2,6 1,5 9,8-490,8 5,0 18,4 4,0 2007 5,8 6,1 5,1 7,9 13,9-294,1 6,2 19,9 6,1 2008 5,0 5,7 3,2 8,8 13,6-84,3 0,5 15,4 5,2 2009 4,1 4,4 3,1-22,0-6,7-206,7-9,1-7,6-0,3 2010 6,3 6,9 4,2 21,4 21,3 13,6 11,5 35,8 7,5 2011 3,5 4,1 1,9 2,8 4,7-46,4 4,5 9,7 2,7 Composição 2000 83,5 64,3 19,2 18,3 16,8 1,5 10,0 11,7 100,0 2001 83,3 63,5 19,8 18,0 17,0 1,0 12,2 13,5 100,0 2002 82,3 61,7 20,6 16,2 16,4-0,2 14,1 12,6 100,0 2003 81,3 61,9 19,4 15,8 15,3 0,5 15,0 12,1 100,0 2004 79,0 59,8 19,2 17,1 16,1 1,0 16,4 12,5 100,0 2005 80,2 60,3 19,9 16,2 15,9 0,3 15,1 11,5 100,0 2006 80,3 60,3 20,0 16,8 16,4 0,3 14,4 11,5 100,0 2007 80,2 59,9 20,3 18,3 17,4 0,9 13,4 11,8 100,0 2008 79,1 58,9 20,2 20,7 19,1 1,6 13,7 13,5 100,0 2009 82,3 61,1 21,2 17,8 18,1-0,2 11,0 11,1 100,0 2010 80,8 59,6 21,1 20,2 19,5 0,8 10,9 11,9 100,0 2011 81,0 60,3 20,7 19,7 19,3 0,4 11,9 12,6 100,0 Fonte: IBGE - Sistema de Contas Nacionais Referência 2000. Elaboração: Ipea/Dimac. a Inclui consumo das instituições sem fins lucrativos ao serviço das famílias (ISFLSF). Segundo Baltar et al (2010), a economia brasileira, após 2004, percebeu uma ampliação da atividade econômica que favoreceu e foi favorecida pelo expressivo aumento da ocupação, do emprego formal, dos rendimentos do trabalho, das transferências de renda e do aumento real do salário mínimo. A situação econômica brasileira, após 2004, sinalizava a possibilidade desse padrão de crescimento se dar de maneira sustentável. Ademais, as expansões do consumo e do investimento ganharam um grande impulso, em decorrência da articulação da elevação da renda familiar com a ampliação do crédito ao consumo. Fica evidente que não somente o contexto internacional do início da década foi importante para esse processo. Para Baltar et al (2010), a partir de 2007, houve uma alteração na postura do governo em relação à necessidade de se dar continuidade ou mesmo de acelerar o crescimento econômico. Os sinais dessa alteração estão no lançamento do PAC (tentativa de ampliar o investimento público em infraestrutura ativação do investimento autônomo), na restauração do quadro de pessoal e do nível dos salários dos funcionários públicos; na manutenção do ritmo de aumento do salário mínimo; na ampliação das despesas da seguridade; na capitalização do BNDES pelo Tesouro Nacional, que atuou na articulação da formação de grupos nacionais e no apoio 9

ao investimento das empresas; e na ampliação dos programas de transferência de renda, extremamente importantes para a ampliação do consumo e da diminuição da pobreza. A retomada do crescimento econômico após 25 anos de estagnação proporcionou um ambiente extremamente favorável à elevação do nível de emprego, à diminuição do desemprego e a recuperação da renda das famílias, num contexto de relativa estabilidade inflacionária. Essa estabilidade proporcionou uma ampliação real da renda, que somada ao aumento do crédito permitiram a criação de um ciclo virtuoso entre renda crédito consumo. Para Carneiro (2010), o papel do consumo foi decisivo para a economia brasileira e distintos fatores explicam sua trajetória favorável: o primeiro decorre da ampliação do crédito, sendo responsável pelo aumento do consumo autônomo independente do aumento da renda corrente; e o segundo, responsável pelo consumo induzido, deriva da ampliação do emprego, da renda e da melhora de sua distribuição. Além da indução de investimentos proporcionada pelas expansões do emprego, do consumo e do crédito ao consumo, os investimentos de caráter autônomo, isto é, aqueles ativados pela ampliação dos gastos públicos em infraestrutura no bojo do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC I e II) e pela capitalização do BNDES, mostraram-se como uma das principais fontes de dinamismo da atividade econômica, especialmente após 2006. Nesse sentido, é razoável se afirmar que as duas principais variáveis que propiciaram esse novo padrão de crescimento foram o consumo e, em especial, o investimento. Ambas permitiram a reativação da atividade econômica e possibilitaram uma alteração relevante na condição socioeconômica de grande parcela da população brasileira. É evidente que o processo recente de redução da desigualdade de renda com elevação da renda per capita das famílias esteve intimamente relacionado ao processo de expansão econômica. No entanto, não se pode desconsiderar a importância das políticas sociais de transferência de renda bem como a de valorização real do salário mínimo que garantiram a ampliação da renda de parcela expressiva da população. No entanto, segundo Dedecca (2012), os efeitos positivos desse ciclo virtuoso só não foram mais amplos devido à valorização cambial, que permitiu que parte dessa virtuosidade fosse deslocada para o mercado externo pela via das importações. O que se 10

observou na sociedade brasileira foi um movimento inédito na história do desenvolvimento brasileiro, que pode ser caracterizado pela associação positiva entre crescimento, renda, redução da desigualdade, baixa inflação e democracia. (Dedecca, 2012: 2) Como apresentado, essa conjuntura mostrou-se extremamente favorável ao processo de redução da desigualdade nos anos 2000, abrindo espaço para que esse tema fosse discutido e ganhasse a importância devida, num país em que as diferenças econômicas e sociais possuem um caráter historicamente estrutural. Nesse sentido faz-se necessária a apresentação de algumas constatações e interpretações sobre tal processo. 3 Evidências, avanços e interpretações sobre a queda recente da desigualdade O Relatório produzido pelo IPEA em 2006 aponta que o Brasil conquistou, entre 2001 a 2004, uma redução significativa e acentuada da desigualdade de renda familiar per capita. Por si só esse resultado já se mostra importante e, ainda mais, quando acompanhado de a uma expressiva redução da pobreza e da extrema pobreza. O relatório faz uma avaliação da magnitude e relevância desse processo, identificando seus principais determinantes. Ademais, propõe políticas públicas para prolongar e/ou aprofundar esses resultados para a sociedade brasileira. IPEA (2006) afirma que a queda da desigualdade se deu de maneira acentuada, apresentando impactos expressivos sobre a redução da pobreza. Segundo o relatório, isso decorre do aumento relativamente maior da renda média dos mais pobres relativamente à média nacional. Aponta que, nesse período, o crescimento da renda média dos 20% mais pobres foi cerca de 20 pontos percentuais acima do observado entre os 20% mais ricos. Ademais, afirma que a queda de 4% do índice de GINI representou uma redução de 3,2% na proporção de pessoas extremamente pobres, significando a retirada de mais de cinco milhões de brasileiros dessa condição. No que se refere aos determinantes imediatos da queda da desigualdade da renda familiar per capita, IPEA (2006) avalia cinco dimensões: 1) características demográficas das famílias houve uma homogeneização demográfica no interior dos grupos de renda; 2) transferências de renda expansão do valor e da cobertura de transferências como pensões e aposentadorias públicas, Benefício de Prestação Continuada (BPC), e Bolsa 11

Família; 3) remuneração de ativos pouco ou nenhum peso para a queda da desigualdade; 4) acesso ao trabalho, desemprego e participação no mercado de trabalho apresentaram baixo peso para a melhora da desigualdade; e 5) distribuição dos rendimentos do trabalho indicando que a diminuição da disparidade dos rendimentos do trabalho explica metade da queda na desigualdade de renda familiar do período, sendo influenciada positivamente pela diminuição das diferenças de gênero, de nível educacional e de localização espacial. Por fim, o relatório do IPEA (2006) afirma que, apesar da queda recente da desigualdade de renda, esta permanece extremamente elevada. Ademais, a renda apropriada pelo 1% mais rico da população é igual à renda apropriada pelos 50% mais pobres, fazendo com que o Brasil continuasse ocupando uma posição de negativo destaque no plano internacional. Salm (2006) critica de maneira incisiva esse estudo, partindo da constatação de que as visões apresentadas relegam a importância de fatores estruturais, como o papel do Estado Nacional, para a conformação do quadro de desigualdade no país. Segundo Salm (2006), este estudo não leva em conta a capacidade de o crescimento econômico e de as alterações na estrutura produtiva resgatarem a mão-de-obra de atividades de baixa produtividade. Ademais, afirma que tal interpretação não aborda a importância de mudanças nos preços relativos que afetam, de forma diferente, ricos e pobres, nem os impactos distributivos da dinâmica da acumulação, principalmente aqueles oriundos da ampliação dos investimentos. Outra importante crítica que Salm (2006) faz a este relatório pode ser aplicada aos trabalhos de Barros et al (2007; 2010). Para o autor, esses estudos invertem o sentido da determinação entre diminuição da desigualdade e diminuição da pobreza. O autor elucida que, ao se considerar a queda da pobreza uma consequência de melhorias da distribuição de renda, desqualifica-se a importância do crescimento econômico para tal processo. Na realidade, para o autor, é a diminuição da pobreza que contribui para a redução dos níveis de desigualdade de renda. Ademais, afirma que inverter o sentido da determinação é trazer, implicitamente, a mensagem de que bastaria distribuir renda para diminuir a pobreza, não importando, portanto, se o País cresce ou não, se cria ou não empregos de melhor qualidade, se aumenta a produtividade ou se ocorrem transformações estruturais que favoreçam os mais os pobres. 12

Soares (2006), com foco especial no movimento da desigualdade do período 2001-2004, parte da análise de alguns indicadores de concentração de renda para identificar uma tendência ao longo do tempo. O autor utiliza diferentes medidas de desigualdade e afirma que, de modo geral, há um mesmo comportamento para diferentes indicadores entre 1976 e 2004. Constata que, para qualquer um, o que ocorre no Brasil é uma redução dos níveis de desigualdade entre 1974 e 1979 (Governo Geisel), mas que esta permaneceu em um patamar elevado. Ademais, identifica que os indicadores seguem em um padrão relativamente estável até 1986 e oscilam fortemente no período da hiperinflação. O retorno a menor volatilidade dos dados ocorre, mas em níveis mais elevados de desigualdade que os resultados no início da década de 1980. Para o autor, é a partir de 2001 que a queda da desigualdade de renda se dá de forma mais expressiva e sustentada. Seu estudo aponta que essa queda da desigualdade de renda no país, entre 2001 e 2004, ocorreu a partir de transformações no mercado de trabalho e de impactos positivos da ampliação das políticas sociais de transferências (previdência, BPC, política de valorização do salário mínimo, Bolsa Família, entre outras). A conclusão de Soares (2006) é de que ¼ da queda da desigualdade de renda foi resultado dos programas de transferência de renda e os outros ¾ se deveram à queda da heterogeneidade dos rendimentos do trabalho. Ou seja, o grande responsável pela redução da desigualdade de renda foi oriundo do dinamismo do mercado de trabalho, o que, para o autor, pode representar a possibilidade de sustentação desse processo de redução da desigualdade de renda. Ademais, aponta para o fato de que, independentemente da medida que se utilize, o ano 2004 é o menos desigual da história contemplada pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). No entanto, como o próprio autor afirma, entre 1995 a 2004, a redistribuição de renda que ocorreu na sociedade brasileira deu-se a partir do ganho dos mais pobres (70% mais pobres) em contrapartida a uma perda dos mais ricos (30% mais ricos). Isso representa uma melhora da distribuição de renda sem aumento de bem-estar, pois a diminuição das diferenças de renda ocorreu com queda da renda média. De forma a aprofundar o entendimento desses diferentes contextos de redução dos indicadores de concentração da renda, Dedecca (2010) avança no sentido de apontar que, entre 1993 e 1998, ocorreu uma deterioração da estrutura de rendimentos com redução da 13

desigualdade, tendo o Gini recuado para 0,56. Isso representa que esta redução se deu a partir de um movimento de empobrecimento de parte predominante da população ocupada no mercado de trabalho, com elevação do desemprego. Contrapondo-se ao entusiasmo do relatório do IPEA (2006), Dedecca (2010) afirma que tal processo teve continuidade entre 1998 e 2003, quando se observou uma redução do Gini para 0,54, em decorrência de uma queda na renda dos estratos superiores da distribuição e de uma proteção aos estratos inferiores pela valorização do salário mínimo. Para Dedecca (2010), o quadro do período 1998-2003 deve ser considerado problemático, pois a redução do Gini expressou uma tendência de desvalorização de boa parte dos níveis de remuneração e reiterou a condição estrutural de baixos salários que caracterizou historicamente o mercado de trabalho brasileiro. (Soares, 2006; Baltar e Proni, 1996) Uma novidade ocorreu no período de 2003 a 2008, que apresentou, em termos de desigualdade de renda, um quadro relativamente mais favorável, pois a redução do Gini se deu, segundo Dedecca (2010), com recuperação de todos os níveis de rendimentos do trabalho. O autor afirma que, pela primeira vez, houve uma redução da desigualdade de renda sem desvalorização do mercado de trabalho e com elevação da renda média. Conclui, portanto, que a queda da desigualdade de renda se deveu ao aumento das remunerações dos estratos inferiores, relativamente ao topo da estrutura de renda. Ademais, cabe destacar que essa recomposição do rendimento médio da população com redução da desigualdade de renda corrente está intimamente relacionada a uma tendência consistente de redução da pobreza, determinada por três fatores: a geração de empregos formais, a elevação sistemática dos baixos salários pela política de valorização do salário mínimo e as políticas de previdência e de transferência de renda. (Dedecca, 2012) Nesse sentido, após o reconhecimento dos avanços desse processo de redução da desigualdade de renda, é importante avaliar quais são seus limites e os principais obstáculos a ser enfrentados. 14

4 Limites do processo recente de redução da desigualdade no Brasil A grande maioria das abordagens sobre esse tema utiliza basicamente duas fontes de dados para se auferir concentração de renda: a PNAD e as Contas Nacionais. Deve ficar claro que os resultados propiciados pela PNAD indicam que a queda da desigualdade está circunscrita a alterações na distribuição individual da renda do trabalho e da previdência social. No que se refere à distribuição funcional, captada pelas Contas Nacionais, é importante evidenciar que, somente após 2004, é que se verificou uma melhora na distribuição devido à ampliação da participação da renda do trabalho. (Dedecca, 2010) Como mostram Salm (2006) e Dedecca (2008, 2010), até 2004 a queda da desigualdade na distribuição individual da renda se processou concomitantemente a uma deterioração da distribuição funcional, com uma clara penalização da renda do trabalho. Portanto, cabe destacar a importância de se entender de que tipo de melhora se está tratando e qual a sua dimensão. No entanto, após 2004, ficou evidente uma melhora da distribuição, tanto pessoal quanto funcional, possibilitada pelo contexto de crescimento econômico, com elevação dos postos de trabalho, especialmente de seu segmento formal e com relativa estabilidade inflacionária (Salm, 2006; Dedecca, 2010). Cabe destacar ainda que, a melhora dos níveis de desigualdade está associada ao crescimento do emprego e da renda, mas também, às políticas de valorização real do salário mínimo e de transferências de renda diretas (BPC e Bolsa Família). A valorização do salário mínimo é referência para o piso da previdência social, o que significa que a valorização desse piso também contribui para a diminuição da desigualdade entre as pessoas que recebem esse benefício 3. Porém, não se pode deixar de apontar que reduções futuras da desigualdade estarão condicionadas a um bom funcionamento do mercado de trabalho, à sua capacidade de absorver o crescimento da população e, também, à capacidade de o Estado brasileiro ampliar o valor real desses benefícios, seja ele o salário mínimo referência 3 Segundo Hoffmann (2010) as aposentadorias e pensões do Regime Geral de Previdência Social (pagas pelo INSS) apresentam-se como uma fonte progressiva para a redução da desigualdade de renda no Brasil do período recente. 15

para a previdência social sejam aqueles contemplados pelas políticas de transferência direta de renda, como o Bolsa Família. Pretendendo-se avançar no debate sobre a desigualdade, esse estudo assume que esse tema é complexo demais para se restringir a apenas uma dimensão, isto é, a renda. Portanto, a abordagem deve ampliar sua análise de forma a contemplar outras dimensões econômicas e sociais. Para Dedecca (2012), o entendimento da complexidade do tema desigualdade passa pela constatação de que o avanço do capitalismo e as transformações nas condições de produção, distribuição e vida das nações impuseram à sociedade diversos riscos econômicos e sociais. Nesse sentido, é de fundamental importância o papel das instituições públicas para distribuição dos resultados econômicos e sociais do desenvolvimento capitalista. Como apontado anteriormente, ao menos duas dimensões devem ser reconhecidas para se abordar de forma mais aprofundada esse tema: uma de natureza econômica e outra social. A primeira está associada à distribuição dos fluxos e estoques de renda e a segunda refere-se ao acesso aos bens e serviços sociais. Os diversos estudos aqui apresentados, até mesmo a crítica feita por Salm (2006), restringem-se a essa primeira dimensão. Isso significa que estas abordagens circunscrevem-se aos fluxos, isto é, à renda corrente auferida pela população nas formas de rendimento do trabalho e da proteção social, sem levar em conta o sistema de tributação que incide sobre a renda e, muito menos, os ganhos derivados dos estoques ativos financeiros ou não e patrimônios 4. (Dedecca, 2012: 5) Quanto à segunda dimensão, evidencia-se que esta se apresenta de forma coletiva e possui natureza estrutural e, portanto, sua abordagem necessita a identificação de uma parcela específica da população que pode se encontrar em situação de desvantagem quanto ao acesso aos bens e serviços sociais. 4 De acordo com Dedecca (2012: 5), apenas recentemente tem sido objeto de maior preocupação, entre economistas e sociólogos, os problemas oriundos da desigualdade patrimonial. Para ele isso se deu em grande media à crescente financeirização da riqueza produzida desde os anos 80 e que se encontra na raiz da crise atual. Ademais, afirma que o tratamento dessa dimensão da desigualdade econômica encontra enormes dificuldades, em razão da pouca disponibilidade de dados para a análise. Somente os EUA possuem e divulgam informação sistemática sobre a distribuição de patrimônio. 16

Para isso, identificam-se alguns dos principais bens/serviços que conformam a dimensão das necessidades de natureza social: água/saneamento, energia, transporte, habitação, educação, alimentação, agrária (distribuição e acesso à terra), meio ambiente, previdência e trabalho. Ademais, acrescenta-se a esses elementos a necessidade a uma saúde pública de qualidade. Em razão de o debate sobre a queda recente da desigualdade estar basicamente circunscrito à distribuição de renda corrente antes da imposição fiscal, Dedecca (2012) reconhece um avanço desses estudos em mapear a contribuição de elementos como: o salário mínimo, a transferência de renda e o aumento do emprego para a evolução de indicadores de concentração, mas isso se mostra insuficiente para caracterizar e quantificar a complexidade da evolução histórica e estrutural do quadro de desigualdades socioeconômicas observado no Brasil. Para superar as restrições das abordagens conhecidas, Dedecca (2012) propõe uma análise multidimensional da desigualdade com base em indicadores que contemplem, em parte, as distintas dimensões aqui apresentadas, sejam elas de ordem econômica ou social 5. Em consonância com essa abordagem, o presente estudo propõe a elaboração de diversos indicadores baseados nas informações dos Censos Demográficos de 2000 e 2010. Isso permite uma avaliação dos resultados desse contexto favorável da economia para a condição de desigualdade no Brasil. A Tabela 2 traz alguns elementos importantes que possibilitam elucidar comparativamente as condições socioeconômicas da população em extrema pobreza, da população pobre e dos 10% mais ricos da estrutura de renda familiar per capita, a partir de cinco dimensões: mercado de trabalho e renda, condições de vida e consumo, educação, demografia, saúde e discriminação social 6. 5 Para uma análise mais detalhada da metodologia adotada ver Dedecca (2012). Para o aprofundamento de uma análise multidimensional para a população pobre rural do Brasil ver Dedecca et al (2012). A relevância desse último estudo se dá pela preponderância da população rural entre aqueles em situação relativamente mais desfavorável. 6 O conceito de extrema pobreza utilizado no presente estudo está baseado na referência adotada pelo Programa Brasil sem Miséria do Governo Federal. O PBSM considera extremamente pobre aquele que auferir rendimento familiar inferior a R$ 70,00 per capita. Vale destacar que a referência para se produzir os indicadores do ano 2000 foi o valor de R$ 70,00 deflacionado pelo INPC. O conceito de pobreza está 17

TABELA 2 INDICADORES MULTIDIMENSIONAIS DE DESIGUALDADE BRASIL, 2000-2010 Extrema Pobreza Pobreza 10% mais ricos Extrema Pobreza Pobreza 10% mais ricos MERCADO DE TRABALHO E RENDA Taxa de desemprego 22,5 22,2 5,0 24,8 15,9 2,0 Taxa de formalização 9,8 21,2 64,7 4,6 33,0 80,3 Taxa de assalariamento 60,3 68,6 62,1 48,0 73,1 67,2 Incidência do trabalho agrícola 40,3 30,8 2,7 19,3 19,9 2,9 Incidência da previdência social 13,1 21,3 41,0 3,3 17,5 37,8 Incidência de programas sociais 3,2 2,8 1,3 81,4 51,0 0,5 Incidência da renda do trabalho 74,8 79,2 86,3 37,0 74,5 85,5 Participação da renda do trabalho na renda total 76,2 77,0 77,9 37,1 72,1 71,3 CONDICÕES DE VIDA / CONSUMO Densidade de morador por dormitório 2,7 2,5 1,4 2,3 2,1 1,2 Densidade de morador por banheiro 13,3 8,1 1,3 6,8 4,9 1,1 Proporção famílias sem parede apropriada - - - 14,8 7,3 0,3 Proporção de famílias sem banheiro exclusivo do domicílio 58,4 41,1 0,9 35,6 17,4 0,2 Proporção famílias com rede inapropriada de esgoto 42,9 44,5 7,9 55,4 48,9 8,2 Proporção famílias sem água encanada 23,3 15,5 0,6 29,7 14,7 0,4 Proporção famílias sem coleta lixo apropriada 59,8 45,3 2,8 49,7 28,2 1,5 Proporção famílias sem acesso à energia elétrica 23,5 14,4 0,2 7,1 3,1 0,0 Proporção de famílias sem televisão 38,8 26,7 1,1 16,1 8,5 0,8 Proporção de famílias sem máquina de lavar 95,1 91,5 22,3 91,7 80,6 14,3 Proporção de famílias sem geladeira 57,4 39,8 1,0 29,5 14,5 0,6 Proporção de famílias sem telefone (fixo ou celular) 94,9 90,5 11,9 44,0 24,5 0,7 Proporção de famílias sem computador 98,5 98,5 51,3 95,6 87,4 18,2 Proporção de famílias sem internet no domicílio - - - 1,8 5,0 4,9 Proporção de famílias sem veículo particular 94,1 90,8 19,1 77,3 71,1 14,5 EDUCAÇÃO Taxa analfabetismo 45,7 38,4 6,2 22,5 15,8 1,0 Taxa escolarização crianças 6 a 14 anos 87,7 89,8 98,9 95,8 96,3 98,4 Defasagem escolar (6 a 14 anos) 60,0 56,5 31,5 52,9 49,1 35,6 Incidência do ensino médio completo 2,5 4,8 38,9 8,5 15,4 31,4 Incidência do Ensino Superior 2,4 2,0 36,7 0,4 0,9 52,7 DEMOGRAFIA Razão dependência 99,5 83,1 31,3 80,1 69,0 28,5 Tamanho médio das famílias 5,7 5,0 2,9 4,6 4,4 2,5 Proporção famílias com chefia feminina 19,3 21,9 25,8 41,4 40,1 35,8 Proporção de famílias com residência inferior a 4 anos 3,4 3,8 5,4 2,4 3,1 6,5 Proporção de famílias com chefia de não brancos 69,9 63,9 15,8 74,7 68,1 22,1 SAÚDE - AGRAVANTE DA CONDIÇÃO SOCIAL Proporção de famílias com pelo menos uma pessoa com dificuldade permanente de enxergar Proporção de famílias com pelo menos uma pessoa com dificuldade permanente de ouvir Proporção de famílias com pelo menos uma pessoa com dificuldade permanente de caminhar ou subir degraus 2000 2010 34,1 33,2 14,4 44,5 44,6 27,1 12,0 12,3 7,4 13,6 14,7 9,7 15,1 16,1 8,5 15,9 18,1 11,1 Proporção de famílias com pelo menos uma pessoa com deficiência mental/intelectual permanente - - - 4,7 5,4 1,6 DISCRIMINAÇÃO Diferença dos rendimentos entre mulheres e homens 64,6 67,2 50,7 66,7 65,0 61,3 Diferença dos rendimentos entre negros e brancos 97,8 89,7 76,2 102,5 87,6 80,6 Proporção de crianças negras em defasagem escolar 70,7 66,4 38,1 56,0 52,1 38,2 Proporção de crianças brancas em defasagem escolar 63,1 56,5 30,8 52,9 48,3 35,7 Taxa de analfabetismo de negros 47,0 40,0 6,4 23,6 17,4 1,6 Taxa de analfabetismo de brancos 42,3 35,3 6,2 18,9 12,4 0,8 Fonte: IBGE - Censo Demográfico. Elaboração própria baseado em uma determinação constitucional, que reconhece que pobre é aquele que aufere rendimento familiar per capita inferior a meio salário mínimo. 18

De modo geral, os dados dos Censos demográficos indicam uma melhora da posição relativa dos mais pobres, nas diversas dimensões, comparativamente à população que se encontra no topo da distribuição de renda. Quanto à dimensão mercado de trabalho e renda, o que chama atenção é o aumento da taxa de formalização entre os mais pobres, acompanhado por uma queda no desemprego. Um elemento que ressalta a importância do papel do Estado para a melhora da condição de desigualdade no Brasil é a elevação da incidência dos programas sociais para as famílias mais pobres na década de 2000. Os indicadores que demonstram a evolução das condições de vida indicam uma melhora do acesso à energia elétrica e à coleta de lixo. No entanto, ao se observar o acesso a bens públicos, como saneamento básico e água encanada, percebe-se uma elevada desigualdade associada a essa dimensão, o que indica a necessidade de esforço expressivo para se alterar uma condição que se mostra estruturalmente complexa. No que se refere ao consumo, percebe-se que houve uma ampliação do acesso a diversos bens como televisão, geladeira, máquina de lavar, e, principalmente, telefone. O aumento da renda e a melhora do mercado de trabalho nesse período favoreceu a expansão do consumo de bens oferecido pelo mercado sem alterar o acesso aos bens públicos essenciais como saneamento e água. Na dimensão educacional houve uma melhoria expressiva das condições da população mais pobre. O crescimento da taxa de escolarização foi acompanhado por uma redução da defasagem escolar e da taxa de analfabetismo da população adulta. No entanto, fica evidente que o caminho a ser percorrido para que se alterem as diferenças entre os mais ricos e os mais pobres é grande. Isso pode ser percebido principalmente pela ínfima incidência do ensino superior e do ensino médio, este último em menor medida, entre as populações pobre e extremamente pobre. Os dados demográficos apontam uma situação generalizada de diminuição do tamanho médio das famílias, o que permite uma suavização da condição de pobreza. Ademais, cabe destacar que houve uma ampliação generalizada entre pobres e ricos da proporção de famílias com chefia de não brancos (pretos, pardos e índios) e de mulheres, não configurando assim, uma alteração expressiva nas diferenças entre pobres e ricos. A dimensão da saúde foi abordada a partir das limitações colocadas pelos dados do censo demográfico. Esse não possibilita auferir o acesso muito menos a qualidade dos 19

serviços de saúde, públicos ou privados. No entanto, os Censos permitem avaliar algumas informações que se entendem como fonte de agravamento da condição de pobreza. Nesse sentido os dados disponíveis indicam a elevação da proporção de famílias com pelos menos um membro com alguma dificuldade, seja ela locomotora, visual ou auditiva, o que indica que esse quadro agrava a condição das famílias mais pobres, que além dos problemas associados a sua condição desfavorável, ainda terão que lidar com outras dificuldades associadas aos cuidados especiais associados a esses tipos de deficiências. Por fim, quanto à dimensão da discriminação social, percebe-se uma redução da desigualdade entre negros e brancos, tanto para a renda quanto para o nível educacional. Houve também uma melhora da desigualdade dos rendimentos entre mulheres e homens. No entanto, há que se reconhecer que a desigualdade entre negros e brancos e entre mulheres e homes ainda é bastante elevada. 5 Considerações Finais: Desafios para a construção de um Projeto de Desenvolvimento para um Brasil menos desigual A primeira década do século XXI representou um marco para a economia brasileira. Nesse período recuperou-se a atividade econômica, ampliou-se o nível de emprego e renda, além de diminuir as desigualdades de renda corrente. Contribuíram para esse cenário alguns fatores distintos: os primeiros, de ordem econômica, contribuíram para ativar a economia e a produção, induzindo a ampliação do consumo e do investimento; os segundos, de natureza política, potencializaram a virtuosidade desse processo. Quanto a esses últimos cabe destacar a importância do papel do crédito ao consumo e, principalmente, do investimento, impulsionado pelos gastos públicos em infraestrutura, no escopo do PAC. Esse cenário proporcionou uma redução importante nos níveis da desigualdade de renda corrente e evidenciou a importância do crescimento da atividade econômica e a da recuperação do mercado de trabalho para esse processo. Assim como o mercado de trabalho, as políticas de valorização do Salário Mínimo e as de transferência de renda também se mostraram importantes. No entanto, 20

deve-se ter claro que esses elementos dependem fundamentalmente da capacidade de se sustentar o nível da atividade econômica. Nesse sentido, evidencia-se a importância da política pública, em especial a social para atuar como elemento de dinamismo da atividade econômica e proporcionar a continuidade da evolução favorável de queda da desigualdade. Deve ficar claro que a política pública pode proporcionar o acesso a bens e serviços que não podem ser alcançados via renda, como é o caso de saúde, educação e saneamento básico. É evidente que o instrumento distributivo de natureza monetária foi e continuará sendo importante. No entanto, como o conceito de desigualdade vai além da renda e considera necessidades de ordem multidimensional como: água/saneamento, energia, transporte, habitação, saúde, educação, alimentação, acesso à terra, previdência, trabalho e meio ambiente, este ensaio pretende enfatizar a importância daqueles instrumentos de redistribuição de bens e serviços de natureza não monetária. Ficou evidente a redução da desigualdade de renda e, de certo modo, aquela de caráter multidimensional. No entanto, não se pode deixar de mencionar a enorme desigualdade entre a população mais rica e a mais pobre. Essa se mostra estruturalmente complexa e sua transformação exige um esforço que garanta resultados para além daqueles obtidos com o crescimento do período pós 2005. O grande desafio para o Brasil é pensar um Projeto Nacional que tome como referência a redução das desigualdades econômicas e sociais. A centralidade da desigualdade na agenda da política pública de desenvolvimento nacional é crucial para que a melhora social ocorrida na década de 2000 se perpetuem. Defende-se que, ao se olhar a desigualdade sob uma ótica multidimensional e tomar isso como o objetivo central de um Projeto de Desenvolvimento Nacional, a opção em direcionar o esforço estatal para superar os grandes entraves na dimensão da infraestrutura, tanto econômica quanto social, torna-se a principal fonte de dinamismo econômico e de transformação socioeconômica. Ficou evidente o grande peso que o crescimento econômico e a recuperação do mercado de trabalho apresentaram para a redução da desigualdade de renda. Sustentar o crescimento por um vetor de dinamismo que diminua a desigualdade e incremente esse poder do mercado de trabalho é fundamental e deve ser o caminho correto para um Brasil menos desigual. 21

Portanto, esse projeto Nacional deve combinar e compatibilizar aqueles elementos que se mostraram importantes nesse processo recente. Isso significa explorar o potencial do mercado interno brasileiro pela manutenção dos níveis de consumo das famílias via ampliação da renda e do emprego e, principalmente, pela expansão do investimento em infraestrutura econômica e social, além da criação de um ambiente favorável a expansão dos investimentos privados, que contribuem sobremaneira para a ampliação do emprego e da renda 7. Ademais, cabe destacar que para se reduzir desigualdades, eliminar os complexos problemas associados à pobreza espaciais e inter-geracionais, além de dar sustentação ao crescimento, a combinação entre políticas e investimentos sociais não pode se dar sem uma integração sistêmica com o conjunto da economia e com o mercado de trabalho. Para Draibe (1998), a centralidade desses investimentos em um Projeto Nacional, isto é, a integração sistêmica entre economia e investimentos sociais produz efeitos mútuos, economias de escala e de recursos, além de complexas sinergias para o desenvolvimento econômico. Segundo Carneiro (2010), os desafios para tornar viável esse projeto encontramse na articulação entre ampliação do volume dos investimentos públicos e na redução dos riscos do investimento privado via subsídios e garantias de retorno. Quanto aos preços macroeconômicos, o autor aponta para as dificuldades colocadas pelo elevado nível das taxas de juros, que impõe um alto custo de oportunidade ao investimento e amplia o custo do financiamento privado. Não se pode desconsiderar, também, que uma tendência acentuada à apreciação cambial pode trazer muitos prejuízos para a atividade econômica nacional, drenando boa parte do dinamismo para o setor externo, por elevar a elasticidade da renda das importações. 7 Um dos pontos importantes, como afirma Carneiro (2010), é a possibilidade de a construção civil sustentar e mesmo ampliar a taxa de crescimento no Brasil, via aumento da taxa de investimento. Para o autor, há uma significativa demanda insatisfeita nos vários segmentos dessa atividade, como por exemplo, o déficit habitacional, a infraestrutura urbana, a rede de estradas, de portos, aeroportos, oferta de energia etc. Essa demanda, todavia não pode ser considerada como efetiva pois, dada a natureza desses investimentos indivisibilidades, montantes elevados, prazos de construção e maturação dilatados ele depende de arranjos particulares de financiamento. (Carneiro, 2010: 24) 22