Trabalhadores do Brasil: Circularidade e apropriação. Pedro Henrique da Silva Carvalho 1



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Transcrição:

116 Trabalhadores do Brasil: Circularidade e apropriação Pedro Henrique da Silva Carvalho 1 FERREIRA, Jorge Luiz. Trabalhadores do Brasil: o imaginário popular: 1930-45. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, c1997. 132p. Jorge Luiz Ferreira é mestre em História pela Universidade Federal Fluminense (1989). Doutorou-se em História Social pela Universidade de São Paulo (1996) e atualmente é Professor Titular da Universidade Federal Fluminense. Atua como pesquisador da FAPERJ, no Programa Cientistas do Nosso Estado e possui experiência na área de História do Brasil República, com ênfase nos estudos de História Política e História Cultural. Dentre outras obras de grande peso conceitual e que dialogam diretamente com a obra analisada estão: O imaginário trabalhista. Getulismo, PTB e cultura política popular (1945-1964), que busca reconstituir episódios importantes da história do trabalhismo brasileiro e da própria história política do país, entre os anos 1945 e 1964. Na obra, O populismo e sua história. Debate e crítica, o autor revê e questiona conceitos e interpretações acerca do populismo. Em, João Goulart: Uma biografia, ele relata a trajetória desse político brasileiro, que foi presidente de 1961 a 1964. Com contornos de revisão histórica, o que Jorge Ferreira discute em sua obra são questões que permeiam supostos argumentos hegemônicos e certezas políticas e acadêmicas acerca do imaginário popular, principalmente em relação aos trabalhadores, no período do primeiro governo de Getúlio Vargas. Munido de farto material documental, como cartas enviadas ao Presidente, processos administrativos, laudos médicos, requerimentos, ofícios, telegramas e livros de memória; intercala transcrição de fontes na íntegra com análise qualitativa e quantitativa (Gráfico na página 73). O objetivo da obra Trabalhadores do Brasil: o imaginário popular, sob a perspectiva político-cultural, consiste em reconstituir ideias, experiências e estratégias de alguns dos atores sociais que vivenciaram a política brasileira, entre 1 Graduando em História (PUC Minas).

117 1930 e 1945, evidenciando aspectos da cultura política popular dos trabalhadores, sindicalistas, desempregados, militantes e indivíduos que são apresentados como pobres ou pessoas comuns. (FERREIRA, 1997, p. 17). Dentre outros objetivos, estão: compreender a dinâmica das relações entre Vargas e o Povo, e como foi possível construir um pacto, nos termos de Ângela de Castro Gomes, entre o povo e o presidente, pelo qual ambos se reconheceram e como, a partir daí, Vargas, o ditador do Estado Novo, foi alcançando a categoria de maior personalidade da política no Brasil. (FERREIRA, 1997, p. 16). O autor dialoga com as perspectivas que cunham um controle sem precedentes sobre o povo. Desde a forte ótica ideológica paternalista ou populista, até o total domínio repressivo, propagandístico e doutrinário do Estado, em relação à população trabalhadora, que é constantemente tratada, nessa bibliografia, como massa de manobra, amorfa e subordinada a esse domínio político-ideológico. Esses trabalhos que apregoam as ideias do totalitarismo e do populismo varguista são relativizados pelo autor, que, por sua vez, faz um exame da total eficácia e do alcance dessa ideologia política no período do Estado Novo, e para além dele. Sua intenção não é diminuir a importância de aspectos como esses, verificados no período, mas atestar que os posicionamentos centrados na ideia de que somente repressão e a propaganda, porque insuficientes e equivocadas, não dão conta de abarcar um fenômeno com implicações e desdobramentos no tempo. Ferreira escreve em um contexto em que se debruçam novos debatedores sobre o possível fim da Era Vargas, na mesma medida em que se torna fundamental compreender o projeto que orientou os rumos da macropolítica do país. Portanto, faz uma interlocução entre passado-presente-futuro, na medida em que escreve em um período simbolicamente significativo, próximo ao V Centenário do Descobrimento do Brasil (1997). Vargas, nesse sentido, seria um verdadeiro redescobridor do Brasil, dada à sua importância. Busca respaldo em autores consagrados, tomando conceitos de história social e cultural, transitando entre eles para fomentar sua tese. Dialoga com as fontes e as explicita, de modo a dar credibilidade a sua fala, bem como revê um estatuto explicativo que delega a impossibilidade de atores políticos de se posicionarem. Trabalhadores do Brasil compõe, juntamente a outros, desde os anos 1980, ao menos, pesquisas que viabilizam uma discussão sobre as conexões entre o discurso varguista do pós 1930 e as demandas da classe trabalhadora no

118 pós 1930. Na introdução de seu trabalho, o autor já lança mão de sua estrutura conceitual que tomará como base, fundamentando sua ideia. Utiliza o conceito de Circularidade Cultural, tendo como referência o historiador Carlo Ginzburg. Aplicado ao contexto descrito, eles refuta a ideia de que os costumes, as ideias e outros pontos relativos à cultura, são produzidos apenas pela classe dominante. (FERREIRA, 1997, p. 13). De Thompson, logra o conceito de tradições culturais e suas implicações no processo de formação das classes sociais. (FERREIRA, 1997, p. 13). Os autores em história cultural já negavam a plenitude e o monopólio das classes dominantes no campo das ideias, creditando a todos os atores sociais, inclusive os citados, como dotados de ideias, crenças, valores, códigos e comportamentos. O que, no conjunto, convencionou-se chamar de Cultura popular, segundo Peter Burke, é também incorporado. (FERREIRA, 1997, p. 13) No que se refere ao trabalhador, Ferreira opera com a noção de relação social, pautada nas atribuições de sujeitos políticos, com limites e escolhas. Logo, indivíduos que agem e possuem uma leitura específica da realidade em que vivem. Um conceito fundamental para se pensar esse panorama é o termo consentimento, identificado em Pzrzeworski. (FERREIRA, 1997, p. 55) O objeto de estudo do autor é a Cultura política popular, no período do primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945), observando como é recebida a cultura dominante do Estado e percebendo que a apropriação feita por parte da população trabalhadora não é a mesma que o governo pretendia, nem tampouco homogeneizadora. O termo apropriação é retirado de Roger Chartier que, na proposta do texto, se converte em uma ressignificação do discurso dominante, por parte das camadas populares, em favor delas mesmas. (FERREIRA, 1997, p. 14). O livro é dividido em duas partes, cada qual com dois capítulos subsequentes. Em Estado e Cultura política popular, procura desnudar análises que corroboram com uma visão de total imobilismo dos trabalhadores no primeiro governo Vargas, evidenciando, através de farta documentação, em cartas enviadas ao Presidente, como foi feita essa apropriação. A partir do teor dessas cartas, é possível perceber o forte sentido de justiça e injustiça ditando a tônica da cultura popular, fruto, em grande medida, da promulgação da legislação social e de valorização do trabalho. A ideologia da outorga e da valorização do trabalhador como socialmente necessário, foi possível através de um pacto entre Vargas e o povo, fruto de uma troca entre

119 ganhos materiais com ganhos simbólicos de reciprocidade. Nos termos de Barrington Moore Jr., seria dar tratamento humano decente. (FERREIRA, 1997, p. 50). Afinal, as ideias circulam, se modificam e constituem uma identidade política. (FERREIRA, 1997, p. 42). No capítulo 2, José e os sírios: opressão social e cultura política camponesa, o autor discorre sobre uma das poucas fontes encontradas a respeito dos camponeses, para discutir traços de uma cultura política. Tratado, nessa mesma análise, como um segmento que representava um entrave ou até mesmo como alheio à expropriação capitalista. Ferreira oferece uma nova interpretação ao analisar a carta de José Dário, de Rio Preto, São Paulo. José relata a sua experiência de desavença com seu patrão e seus subordinados, clamando por justiça e jogando com a possibilidade de um tratamento humano decente. O autor traça um paralelo entre os trabalhadores do campo e os trabalhadores urbanos, e não é leviano ao levar em consideração somente um expoente de determinado segmento, pois parte da premissa de que expressamos nossa individualidade por meio de um idioma mais geral, a Cultura. (FERREIRA, 1997, p. 62). Para Carlo Ginzburg, Cultura é o conjunto de atitudes, representações sociais e códigos de comportamento que forma as crenças, ideias e valores socialmente reconhecidos por um setor, grupo ou classe social. (FERREIRA, 1997, p. 24). Conclui nesses dois capítulos, que os trabalhadores, tanto urbanos como rurais, interpretavam o discurso dominante e o reelaboravam de acordo com seus interesses. Usavam da própria ideia dominante, contradizendo-a, para ganhar justiça. É o aceitar resistindo e o resistindo ao aceitar. Na parte II, Poder, burocracia estatal e resistências políticas, revela as funções que a Secretaria da Presidência da República (SPR) tomou no período de 1930-1945. Uma dessas funções era a de intermediária entre o povo e o presidente Getúlio Vargas, numa espécie de triagem. O objetivo do capítulo é resgatar aspectos das atividades desenvolvidas pela burocracia estatal e sua relação com o povo, bem como a sua utilização como propaganda política a partir da linguagem técnica e científica, reforçando a percepção de um modelo político nulo. Para isso, o autor se serve de processos administrativos como fonte de pesquisa. No Capítulo 4, são trazidas ao lume experiências de militantes nas prisões e penitenciárias, principalmente depois da Intentona Comunista (1935), e suas apropriações em meio a um ambiente, por vezes, hostil. Demonstra que eles criaram

120 estratégias de sobrevivência, a partir das relações cotidianas em prisões e penitenciárias. E que, fosse por meio dos coletivos, pelo distanciamento, pela discrição ou simplesmente auto-organização, os presos se reinventavam tão somente para sobreviver e se manterem dignos, revelando uma verdadeira estratégia de afirmação. Por fim, disserta sobre as contradições existentes entre as próprias instituições do Estado, por meio de ofícios e requerimentos trocados entre membros do governo, debatendo a ideia de consenso no escalão dominante, afirmando, ainda, que a política repressiva do Estado não era uma novidade do governo Vargas. Era, em verdade, um legado da República de exceção dos anos de Primeira República. No último capítulo, o autor conclui o mito de Getúlio como algo que vai se distanciando da figura do trabalhismo e do PTB. E que a criação da identidade coletiva fortalecida por esse partido político, não corresponde inteiramente ao período Vargas, mas a um conjunto de experiências políticas, econômicas, administrativas e culturais construídas, e que fazem parte de sua identidade política. Por fim, ao contrário de autores que atribuem o apego dos trabalhadores ao trabalhismo e a figura de Vargas a um desvirtuamento da classe, compreende que essa construção é um fenômeno histórico. Como descrito nas palavras de Thompson: A classe é um fenômeno histórico, logo os trabalhadores fizeram as suas escolhas. De fato, essa afirmação coloca em cheque as teorias que atribuem a total passividade e imobilismo dos trabalhadores em relação à doutrina Varguista e, consequentemente, ao êxito que se supunha ter alcançado. É primordial perceber que a miríade de símbolos e representações sociais, políticas, econômicas, entre outros, fez e faz parte da cultura dos trabalhadores. Fato que é perceptível desde o período da Primeira República e que mesmo as medidas repressivas do governo de Getúlio Vargas, fazem parte de períodos anteriores a ele. Assim sendo, Ferreira rejeita todos os paradigmas explicativos fortemente centrados nas alternativas opostas e complementares da repressão pela violência física, pela manipulação e pela violência ideológica. Considerando seu aparato insuficiente e equivocado no que se refere ao objeto, o imaginário popular. De fato, a discussão do livro contribui para um entendimento mais amplo e complexo sobre o assunto, porém, talvez fosse necessário discutir algo que é central no livro e que, para um público leigo, pode passar despercebido: pelo menos uma

121 breve conceituação do que vem a ser Imaginário e sua diferença em relação à Mentalidade. Enfim, nada que comprometa a iniciativa da obra que, sem dúvida, oferece um contributo significativo para o assunto e para própria historiografia.