Análise do filme O ano em que meus pais saíram de férias (2006)



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Transcrição:

Análise do filme O ano em que meus pais saíram de férias (2006) Marco Alexandre de Aguiar (Doutor em história pela Unesp de Assis) Dentre as inúmeras fontes históricas utilizadas pelos historiadores está o cinema. Nos simpósios realizados pela Anpuh há um espaço razoável àqueles que se dedicam ao assunto. Desde os primórdios da sétima arte, o filme veicula visões de mundo e posicionamentos ideológicos que influenciam as transformações sociais. Em relação aos filmes relacionados com o tema da ditadura militar, podemos dividir entre aqueles produzidos durante a ditadura e os filmes realizados posteriormente ao período autoritário. Sobre os primeiros podemos mencionar o filme O Desafio (Paulo César Saraceni, 1965), que abordou as frustrações geradas pelo golpe militar de 1964. O filme O Ano em que meus pais saíram de férias, lançado em 2006, apresenta uma perspectiva diferente da maioria dos filmes sobre o tema, já que o protagonista é um menino de 11 anos, que é afetado pelos rumos dos acontecimentos daquela época, mas que naturalmente não consegue entender as mudanças ocorridas no país. O menino Mauro, filho de guerrilheiros, repentinamente é deixado com o avô, que falece no dia em que Mauro chega. Este passa a ser cuidado pelo vizinho de prédio, o judeu Shlomo. O filme possui um tom autobiográfico, uma vez que o diretor Cao Hamburger, filho de professores de Física da USP (Ernst Wolfgang Hamburger e Amélia Hamburger), foram presos durante a ditadura militar. Além disso, o filme se passa no Bairro Bom Retiro, com forte influência judaica. O pai de Hamburger veio da Alemanha para o Brasil com apenas três anos e possui ascendência judaica. Grande parte dos filmes que abordam a ditadura militar faz opção pela exibição de torturas, como forma de denúncia às atrocidades cometidas no período ou como forma de utilização de um clichê que pode trazer audiência.

Na visão de Eduardo Valente, o filme O ano em que meus pais saíram de férias, consegue um equilíbrio de não entrar numa seara sensacionalista, mas ao mesmo tempo possui imagens que mostram o autoritarismo do período. Eis a maneira com Eduardo Valente da Revista Cinética encarou essa questão: A forma como Cao Hamburger articula os dois ambientes (pessoal e sóciopolítico) é ao mesmo tempo simples e profundamente significativa, provando que não há problema em não se fazer filme político sobre o período, apenas há problema em se chanchadear a vida (pelo menos sem intenção expressa de fazê-lo), seja em que época o filme se passe. Naturalmente outras questões contribuíram para essa perspectiva, mas uma delas, é que o diretor optou por contar uma história dentro da visão de um menino de 11 anos. Dessa maneira o filme realiza um recorte, enfoca um grupo social específico, ou seja, de filhos de ex-guerrilheiros perseguidos e mortos durante a ditadura. Analisa como pessoas que mesmo não se opondo ao regime autoritário, enfrentaram muitas conseqüências. Vários filmes tocaram nesse assunto, ao mesmo tempo, que o livro Brasil Nunca Mais, apresenta histórias de inocentes sofrendo horrores. No filme Nunca Fomos tão felizes (Murilo Salles, 1984) temos uma temática próxima de O ano quem meus pais saíram de férias, em que o protagonista, um jovem de 17 anos depois de passar um período internado em uma escola, volta a ter contato com o pai, mas este tem um comportamento inusitado, o que leva o rapaz a ficar questionando as atividades deste. Em 1996, Marta Nehring e Maria de Oliveira produziram o documentário e curta-metragem (20 m) chamado 15 filhos. O filme reúne o depoimento de jovens, que no momento do filme possuíam em torno de 30 anos, e que, quando seus pais foram atingidos pela prisão, pelo exílio, pelo assassinato ou tortura, tinham entre cinco e dezesseis anos de idade. A psicóloga e militante política perseguida na ditadura militar, Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes escreveu o artigo Dor e desamparo filhos e pais, 40 anos depois, em que analisa o documentário. A autora informa que a diretora do filme ao solicitar o depoimento dos jovens pediu para estes não dar a opinião deles a respeito do tema, mas sim que abordassem alguma lembrança. Inclusive, a

própria diretora Marta Nehring também participa do filme prestando depoimento. Ela conta sobre uma situação em que ao encontrar o pai não podia conversar com ele devido à clandestinidade, mas que este deu uma piscada para ela que marcou sua memória. Ao assistir o filme, constatamos histórias de crianças assistindo, junto com a mãe, o assassinato do pai, ou de crianças que nasceram na cadeia e não conheceram o pai, ou a história de Ivan Seixas, com dezesseis anos, preso junto com o pai e barbaramente torturado. O filme O Ano em que meus pais saíram de férias, apresenta imagens relacionadas diretamente à ditadura, como aquela em que o menino Mauro presencia a cavalaria em ação numa repressão aos estudantes, ou na cena em que o personagem comunista Ítalo picha abaixo a ditadura, mas o filme possui cenas típicas de um cotidiano comum. Assim temos Mauro se enturmando e brincando com as crianças da rua, ele tendo que fazer xixi na planta da casa de Shlomo porque este estava tomando banho e quando sai do banheiro percebe assustado que Mauro não é judeu, ou quando numa festa resolve dançar de um jeito esquisito e a turma o segue. Ao analisar um filme, o historiador trabalha com temporalidades distintas. No caso do filme em foco, podemos mencionar o ano de 1970, momento em que a história se passa, o ano de 2006, momento da produção do filme e 2015, momento de análise deste. Além dessa questão mencionaremos a historiadora Maria Lúcia Bastos Kern, no artigo Imagem, historiografia, memória e tempo, em que estuda questões relacionadas à memória, a modernidade e argumenta que uma determinada obra de arte pode ter temporalidades distintas. A autora considera que um determinado quadro, música ou filme pode conter elementos de diferentes momentos. Como o filme selecionado para análise trata-se de uma reconstituição histórica de 1970, há um esforço para mostrar coisas da época, como máquina de escrever, navalha, fusquinha, álbum da copa de 1970, imagens documentais dos jogos da copa, etc. Na cena em que a menina Hanna joga bola junto com os meninos, podemos nos perguntar se essa atitude tem mais

relação com a época retratada ou o momento da produção do filme? Se compararmos com o já mencionado filme Nunca fomos tão felizes, percebemos uma atitude mais comportada do filme O ano em que meus pais saíram de férias, que podemos apontar como característica de um tipo de cinema que passou a dominar a partir dos anos noventa do século passado. No inicio do filme, na cena em que Mauro está viajando com os pais, a estratégia de colocar personagens ouvindo o rádio e assim contextualizar o período, é um procedimento muito comum. No filme Pra Frente Brasil (Reginaldo Faria, 1982), para mencionar apenas um exemplo, esse procedimento é utilizado largamente. Crianças e adolescentes. O filme O ano em que meus pais saíram de férias, tem como protagonista uma criança de 11 anos, o que nos leva a pensar sobre a atitude da sociedade em relação às crianças e adolescentes. Pensando na sociedade ocidental e sua constituição, podemos enfocar o artigo de Jacques Gélis, chamado A individualização da criança. Neste o autor menciona como na Europa do século XVI a visão predominante era uma consciência naturalista, em que o importante não era os indivíduos, mas sim a grande família, a manutenção da sociedade. Cada ser dependia dos outros, assim cada pessoa vivia em função do seu grupo familiar, não havia uma aspiração a ter uma vida própria, o que hoje consideramos legítimo. De uma sociedade rural para uma sociedade urbana, surgiu a sociedade moderna, em que aparece o desejo de ter filhos não para assegurar a continuidade do ciclo, mas simplesmente para amá-los e ser amado por eles (GÉLIS, Jacques, 1991, p. 328). Na análise fílmica em questão, temos os pais deixando o filho com sofrimento em nome de uma causa, de uma tentativa de transformação da sociedade. Eles enquanto indivíduos pensantes se colocam como portadores da possibilidade da implantação de uma sociedade comunista, ou seja,

estamos nos referindo à atuação idealista dos grupos guerrilheiros no final dos anos 60 e início dos 70 do século passado. No final do filme, a mãe abraça o filho desesperadamente falando da saudade enorme que sentiu desse, denunciando que a escolha pela atuação política não se deu com a ausência de conflitos. Jacob Gorender, em entrevista ao Programa Roda Viva da TV Cultura de São Paulo, questionado sobre como os seus pais viram a sua militância política, reconheceu que causou grandes transtornos aos seus pais, mas que apesar de sentir muito por isso considerou que para fazer algo que vale a pena na vida, necessitamos tomar certas atitudes. O personagem Mauro, possui um perfil de classe média. Ele tem pais que o amam, ele estuda, é bem nutrido, brinca, portanto ele tem uma situação de vida, que muitas crianças do passado ou do presente não possuem. A maior parte da produção acadêmica sobre o tema da criança e adolescência se preocupa essencialmente com as crianças carentes e com as dificuldades advindas dessa situação. Nessa perspectiva podemos mencionar o artigo Meninos e meninas na rua: impasse e dissonância na construção da identidade da criança e do adolescente na República Velha da historiadora Esmeralda Blanco Bolsonaro de Moura. Nesta pesquisa há uma análise da situação das crianças e adolescentes que viviam nas ruas no final do século XIX e início do século XX na cidade de São Paulo (neste período elas possuíam a denominação de menores). A autora discute sobre os discursos produzidos na época sobre o que fazer com essas crianças. Há uma visão que apresenta o trabalho como forma de tirar a criança do vício e encaminhá-la para uma situação digna. No entanto, Esmeralda Blanco Bolsonaro de Moura, apresenta as terríveis condições de trabalho nas indústrias nascentes. Além das extensas jornadas de trabalho, existem máquinas precárias que podem machucar e até matar uma criança. Além disso, há a menção de que o ambiente de trabalho pode favorecer, por exemplo, a prostituição das meninas. O personagem Mauro não apresenta o perfil exposto por Esmeralda Blanco Bolsonaro de Moura, mas Mauro possui a característica de ser filho de militantes políticos e isso faz que com que ele sofra as conseqüências disto, como perder o pai e ir morar fora do seu país. Em relação ao tema do exílio,

abordaremos casos de pessoas que viveram essa experiência na infância. Focaremos o depoimento de Flávia Castro, que viveu o exílio na infância e escreveu sobre o assunto no artigo O exílio invísel das crianças. Ela saiu do Brasil com 05 anos e voltou com 14 anos, passando por vários países. No seu texto, ela expõe as diferenças do exílio entre as crianças e os adultos. Dessa maneira ela coloca a seguinte questão: Para mim, o exílio sempre foi vivido em relação ao último país onde os laços se criaram, enquanto que para os pais a referência sempre era o Brasil. No seu relato ela aborda questões do cotidiano, como a mãe e uma amiga preparando cestinhas de ovos de páscoa. Além disso, aborda o período em que ficaram confinados na embaixada da Argentina em Santiago (Chile) no momento do golpe de Pinochet. Flávia Castro coloca que apesar dos vários problemas da situação (tiros, medo, riscos) ela considera que ela teve um momento feliz nessa ocasião, porque ao viver com crianças de toda a América Latina numa mesma situação ela encontrou uma identidade. Flávia Castro abordou da seguinte maneira a questão: esperando, num lugar que não é um país e que é provisório para todos. Eu acho que essa alegria tem a ver com se sentir fazer parte de um mesmo grupo. Temos aqui um tema caro aos historiadores que é a questão da memória/identidade, ou seja, ao se sentir parte de um grupo Flávia se sentiu aliviada, ao contrário de outros países, como Bélgica e França, onde era a única exilada. O cantor e ex-integrante da banda Titãs, Sérgio Britto, viveu parte da sua infância no Chile devido ao fato de ser filho de Almino Afonso, ministro do trabalho do governo de João Goulart. Em um programa da TV Brasil entrevistou várias pessoas que viveram a experiência do exílio (http://tvbrasil.ebc.com.br/exilio-e-cancoes/episodio/marta-nehring-infancia-noexilio). Em um dos depoimentos colhidos a entrevistada foi Marta Nehring, que viveu no exílio durante a sua infância. Ela abordou a viagem para Cuba realizada em várias etapas. No Canadá, Marta (na época tinha cinco anos), considera que foi horrível porque aqueles que tinham destino a Ilha de Fidel ficavam numa sala afastada e todos ficavam encarando de forma horrível. De forma paradoxal, Marta avalia que a volta para o Brasil foi muito difícil. Ela afirma que durante o período em que esteve em Cuba, ela era valorizada como

filha de um militante, enquanto que no Brasil (voltou em 1975 em plena ditadura), ela necessitava esconder sua verdadeira identidade, contava que o pai morrera em um acidente e que vivera na França, por conta do seu padrasto ser um diplomata. Sérgio Britto também teve dificuldade no seu retorno ao Brasil, afirma que estava enturmado no Chile e que voltar foi dolorido. Uma outra questão importante apresentada por Marta Nehring é a de que apesar da pouca idade, ela tinha uma consciência bem clara de tudo que estava acontecendo, que havia um discurso bem claro de que havia uma luta. No seu depoimento ela aborda a questão da seguinte maneira: Eu tinha a consciência que se fosse encontrar meu pai, eu tinha que fingir que não o conhecia. O que com cinco anos, era uma consciência espantosa. Mas para mim era uma coisa natural, eu era imbuída da visão de que eu era uma pequena guerrilheira. Essa postura de Marta Nehring é diferente dos protagonistas dos filmes O ano em que meus pais saíram de férias e Nunca Fomos tão felizes. Nestes os jovens não entendem o porquê das situações em que estão envolvidos. Para estes destaca-se o mistério em que estão inseridos. Essa questão necessita de um maior aprofundamento, que não cabe na dimensão desse artigo, entretanto queremos enfatizar o papel do cinema na divulgação da memória. O historiador Peter Burke, no artigo História como memória social, faz uma relação dos meios de comunicação que contribuem na transmissão da memória. Nesta perspectiva apresenta sua visão de forma clara: imagens, sejam pictóricas ou fotográficas, paradas ou em movimento. As imagens ajudam na retenção e transmissão de memórias (BURKE, Peter, 2000, p. 20) Como mencionamos no início desse artigo a análise de um filme nos leva a várias dimensões temporais. Dentre elas está o momento da análise do filme, ou seja, o ano de 2015. A ditadura militar terminou há trinta anos, a democracia institucional se consolidou através de eleições periódicas, temos liberdade de imprensa, etc. Apesar do inegável avanço, temos uma democracia que parece não querer se estabilizar. Não temos um projeto de país e em termos simbólicos não temos o que nos unifique. Sabemos como os militares

utilizaram a copa de 70 de forma ideológica para unir os brasileiros dentro do projeto de país grande criado naquele período. Recentemente tivemos uma copa realizada no país, em que apesar das várias manifestações ocorridas, constatamos que ainda é no futebol, ou nos megaeventos um dos poucos momentos de sentimento de pertencimento do brasileiro. Apesar do término da ditadura ainda temos relações muito autoritárias presentes no nosso cotidiano. Basta observar como um casal em separação é tratado por um juiz ou como numa repartição pública relações clientelísticas continuam a predominar. Ou ainda, o que dizer do caso do pedreiro Amarildo, morto numa Unidade de Policia Pacificadora, mostrando como a polícia trata os mais pobres, ou a atuação do congresso nacional, com apoio de grande parcela da população, tentando antecipar a maioridade penal como forma de combate a violência cotidiana. O Brasil não possui uma tradição democrática, portanto, devemos valorizar essa experiência que se iniciou a partir de 1985 e se consolidou com a constituição de 1988. Entretanto precisamos nos questionar, sobre que tipo de democracia queremos?, se basta termos eleições de quatro em quatro anos, ou se precisamos avançar em áreas, como a da educação, tão falada em vários momentos, mas de pouca consideração. Referência bibliográfica BURKE, Peter. História como memória social. Variedades de história cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. CASTRO, Flávia. O exílio invisível das crianças. (30/03/2014) http://www.brasilpost.com.br/flavia-castro/o-exilio-invisivel-dascriancas_b_5052309.html

GÉLIS, Jacques. A individualização da criança. História da vida privada, 3: da Renascença ao Século das Luzes. Org. Philippe Aries e Roger Chartier. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. MASIERO, Cláudia Gisele, SILVA, Ennes da Silva, SILVA, Tiago. A ditadura militar através do olhar infantil: representações e imaginários social no filme O ano em que meus pais saíram de férias. Oficina do Historiador, Porto Alegre, EDIPUCRS, v. 7, n.2, jul/dez. 2014, p. 173-196. Moura, Esmeralda Blanco Bolsonaro. Meninos e meninas na rua: impasse e dissonância na construção da identidade da criança e do adolescente na República Velha. Revista Brasileira de História (vol.19 n.37), São Paulo, 1999. KERN, Maria Lúcia Bastos. Imagem, historiografia, memória e tempo. ArtCultura, Uberlândia, v. 12, nº 21, p-9-21, jul.-dez.2010 PINTO, Viviane Cavalcante. Pós-ditadura e Direitos Humanos: Um debate a partir do filme O ano em que meus pais saíram de férias. Anais do XV Encontro Estadual de História 1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado 2014, UFSC, Florianópolis. VALENTE, Eduardo. O ano em que Meus Pais Saíram de Férias, de Cao Hamburger (Brasil, 2006). Revista Cinética. http://www.revistacinetica.com.br/anoemquecartaz.htm