CONTRIBUIÇÕES DO PRAGMATISMO DE PEIRCE PARA O AVANÇO DO CONHECIMENTO



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Transcrição:

Contribuições do Pragmatismo de Peirce para o avanço do conhecimento CONTRIBUIÇÕES DO PRAGMATISMO DE PEIRCE PARA O AVANÇO DO CONHECIMENTO The Contributions of Pierce s pragmatism to knowledge advance Lucia Santaella 1 Resumo Este texto reflete aspectos da contribuição epistemológica do pragmatismo de Peirce a partir de dois de seus mais conhecidos textos, a saber, A fixação das crenças e Como tornar claras nossas idéias. Depois de esclarecer o conceito peirceano de pragmatismo, avança-se para a compreensão do que o filósofo denomina ciências normativas, o que revela a conexão intrínseca que existe entre Lógica, Semiótica, Ética e Estética. O ideal dos ideais e pode ser concebido mesmo numa visão evolucionista. Palavras-chave: Peirce, pragmatismo, semiótica, ética, conhecimento, crença. Abstract This text reflects the aspects of the epistemological contribution of Pierce s pragmatism from two of his most know texts,such as the fixation of beliefs and how to make clear our ideas.after clarifying the peircean concept of pragmatism,reaching the understandingabout what the philosopher entitles normative sciences,wich reveals the intrinsic connections among Logical,Semiotic,Ethics and Esthetic. The pragmatic aim becomes, thus,the aimof the aims and can be conceived even in an evolutionary vision. Keywords: Peirce, pragmatism, semiotic, ethics, knowledge, belief. 1 Professora Pesquisadora do Programa de Semiótica da PUCSP E-mail: Lbraga@pucsp.br 75

Lucia Santaella A fixação das crenças e Como tornar claras nossas idéias (W3: 242-277) publicados originalmente em 1877 e 1878 respectivamente, devem ser os textos mais conhecidos de Peirce. Para alguns, eles chegam a representar o todo de sua filosofia. Como um par, eles apresentam a primeira discussão de Peirce sobre uma teoria da investigação. Embora sem que o nome pragmatismo neles tivesse aparecido, eles apresentam também a primeira versão do seu pragmatismo (Hausman 1993: 5, 20). Caracterizando-se no contexto de um método para se detectar o significado dos conceitos intelectuais, em Como tornar claras as nossas idéias, a máxima pragmática assim se expressou: Considere quais efeitos, que possivelmente podem ter aspectos práticos, imaginamos existir no objeto de nossa concepção. Então, nossa concepção desses efeitos é o conjunto da nossa concepção do objeto (W3 266). A ilustração que Peirce deu para isso estava no conceito de dureza e ele foi tão longe na ênfase sobre as relações práticas em que algo se envolve com outras coisas que chegou a afirmar que um diamante seria macio enquanto não fosse arranhado. Nessa época, de fato, Peirce identificava o significado com ação e reação. A primeira correção a que ele submeteu essa concepção veio em 1893 (CP 5.402, n. 2), no momento em que começou a perceber a relação da ética com a lógica. Ciente, então, dos perigos de uma máxima cética e materialista, Peirce passou a apelar para uma finalidade coletiva governando a realização das idéias na consciência e nos trabalhos humanos. Exercendo a autocrítica, ele veio a considerar sua primeira formulação da máxima como crua (CP 8.255) e apenas aproximativa (CP 5.16). Devemos estar atentos, ele alertava, contra a compreensão da máxima em um sentido muito individualista (Potter 1997: 53). 1. Do primeiro ao segundo pragmatismo Sua identificação do significado do conceito com a mera ação e reação se deu em 1878, porque ele não havia ainda percebido que ação e reação devem ser entendidas apenas em termos de propósitos e que o propósito é essencialmente pensamento. É certo que o pensamento pode envolver ação, mas ele não pode ser idêntico à ação, pois isso seria confundir terceiridade com secundidade. Ora, esse reconhecimento do 76

Contribuições do Pragmatismo de Peirce para o avanço do conhecimento papel que os fins e os ideais desempenham sobre a ação só veio a Peirce por meio do insight que lhe foi dado pelas ciências normativas (Potter 1997: 5). Peirce passou a considerar que o erro de todos os pragmatismos, que se diziam inspirados no seu, estava em se fazer da ação a finalidade última do pensamento. Ao contrário disso, não é a ação em si, mas o desenvolvimento de uma idéia que é o propósito do pensamento (CP 8.211-212, Carta a Mario Calderoni, de 1905). A partir de então, ele foi elaborando sucessivas formulações mais adequadas e sofisticadas da máxima. Em uma carta a William James, de 25 de novembro de 1902 (CP 8.255), Peirce mostrava que seu pragmatismo dependia de uma compreensão do seu sistema inteiro, não cabendo em uma apresentação fragmentária. Sua sugestão estava na fundação do pragmatismo nas categorias, na dependência da lógica na ética e, numa sugestão bem mais ousada, na dependência da ética na estética. Nessa mesma carta, Peirce ainda explicou a James como o entendimento correto e sistemático do pragmatismo envolvia o sinequismo, isto é, a doutrina da lei, da continuidade no pensamento e no cosmos. Entretanto, dizia Peirce, não devemos adotar uma visão nominalista de Pensamento, como se fosse algo que o ser humano tivesse dentro de sua consciência. A consciência pode significar qualquer uma das três categorias. Mas se for significar Pensamento, ele está muito mais fora de nós, do que dentro. Nós estamos no Pensamento e não ele em nós. Isso conduz, então, ao sinequismo que é a pedra angular do arco (CP 8.256, 257). A linha do pensamento peirciano começa aqui a se tornar mais clara. Toda ação pressupõe fins e os fins são o modo de ser do pensamento porque estes são gerais. O pensamento, entretanto, não está meramente na consciência, mas perpassa tudo, de modo que a consciência está no pensamento. Os gerais são, portanto, reais do que decorre que o pragmatismo autêntico é realista. Nas suas Conferências sobre Pragmatismo, de 1903, Peirce explicitamente sugeriu que as ciências normativas nos colocam na pista do segredo do pragmatismo (CP 5.129). Conseqüentemente, nos diz Potter (1997: 6), para Peirce, as categorias, as ciências normativas, pragmatismo, sinequismo e realismo formam uma única peça. Embora, de fato, todas essas partes não possam ser separadas, a finalidade deste meu artigo é focalizar mais detalhadamente a relação 77

Lucia Santaella das ciências normativas com o pragmatismo, pois é esta relação que tem sido menos trabalhada pelos comentadores de Peirce. 2. As ciências normativas e os ideais Não é por acaso que Peirce deu o título de Pragmatismo: As ciências normativas, à sua primeira conferência em Harvard. Nela, sua intenção era mostrar quão inextricavelmente o pragmatismo está ligado à Lógica ou Semiótica, à Ética e à Estética. Como uma doutrina lógica ou um método para determinar o significado dos conceitos intelectuais, o pragmatismo aponta diretamente para a importância da ética. Um ano depois de ter postulado que a lógica está alicerçada na ética, Peirce postulou, em 1902, que a ética está alicerçada na estética e que a esta cabe a descoberta do ideal supremo, o summum bonum da vida humana. Contudo, muitas dúvidas e incertezas o assaltavam quanto à natureza desse ideal que caberia à estética trazer à luz. A Estética e a Lógica parecem pertencer a universo diferentes, ele dizia. Foi só recentemente, Peirce completou, que fui persuadido de que, ao contrário, a Lógica precisa da ajuda da Estética. Mas o assunto não está muito claro para mim (CP 2.197). O desenvolvimento da sua teoria do método indutivo como um método que, se levado suficientemente longe, tende a se autocorrigir, conduziu Peirce ao reconhecimento da importância que o longo curso do tempo tem para as nossas considerações sobre a verdade e os ideais. Acreditando que o fim ideal do pensamento nasceria com a experiência futura, ele compreendeu que as ciências normativas teriam por tarefa examinar as leis de conformidade das coisas aos fins, estando aí a razão pela qual foram chamadas de normativas. Com esse termo, Peirce quis se referir ao estudo daquilo que deve ser, num futuro condicional, o que exclui do seu campo tanto a compulsão incontrolada quanto o determinismo rígido. Com as ciências normativas ele estava, assim, repensando os fins, propósitos, valores, metas e ideais que atraem e guiam a conduta deliberada. A tarefa dessas ciências estava em descobrir como pensamento, conduta e sentimento podem ser controlados, supondo-se que eles estejam sujeitos, numa certa medida, e apenas em uma certa medida, ao autocontrole exercido por meio do autocrítica e da formação propositada de hábitos, tal como o senso comum nos diz que eles, até 78

Contribuições do Pragmatismo de Peirce para o avanço do conhecimento certo ponto, são controláveis (MS 655: 24, apud Santaella 1994: 119-120). Ele dizia: Se o pragmatismo nos ensina que aquilo que pensamos tem de ser interpretado em termos daquilo que estamos preparados para fazer, então, certamente a lógica ou doutrina de como devemos pensar, deve ser uma aplicação da doutrina daquilo que deliberadamente escolhemos fazer. Esta doutrina é a Ética (CP 5.35). A Lógica, então, é um caso especial da ação ética, porque a Lógica lida com as inferências e argumentos que estamos preparados para aprovar e, tal aprovação, Peirce viria a dizer mais tarde, supõe o autocontrole (CP 5.130). A aprovação deliberada de qualquer ato voluntário é uma aprovação moral. A Ética, como uma ciência normativa, estuda aqueles fins que estamos deliberadamente preparados para adotar. Isto levou Peirce, algumas vezes, a considerar a Ética como a ciência normativa por excelência, porque um fim é relevante a um ato voluntário de modo fundamental. Entretanto, ele concluiu que a Ética precisa da ajuda de uma ciência mais básica cuja tarefa está em discernir o que é finalmente admirável em si mesmo. Essa ciência, ele chamou de Estética (Harrison 1997: xii), numa acepção muito diferente daquela que considera a estética como ciência do belo. 3. O ideal dos ideais Segundo Harrison (1997: xiv), a relação íntima entre ética e estética é um dos insights mais valiosos de Peirce. Para ele, não podemos ter nenhuma chave para o segredo da Ética enquanto não tivermos formulado o que é que estamos preparados para admirar (CP 5.36). A Ética depende da Estética, porque esta determina aquilo que constitui a admirabilidade de um ideal (CP 5.36). Esse ideal é um alvo absoluto... aquilo que seria buscado sob quaisquer circunstâncias... e... capaz de ser buscado em um curso indefinidamente prolongado de ação (CP 5.134-135). Parece evidente que um tal ideal deverá ser compreensivo, mas suficientemente vago, um ideal que dá significado e justifica todos os ideais mais particulares, que exigem descobertas sem fim. Depois de muitos dilemas, Peirce veio se referir a esse ideal como sendo o crescimento da razoabilidade concreta 79

Lucia Santaella Os frutos que brotam do desejo de um indivíduo não devem se limitar aos seus próprios alvos, mas seus esforços devem contribuir para um resultado coletivo o crescimento da razoabilidade no mundo. O significado de um conceito é assim julgado em termos da contribuição que as reações que ele evoca produzem para a realização da finalidade última do pensamento. A máxima pragmática passa a ser vista como o modo de se reconhecer a realidade dos objetos das idéias gerais na sua generalidade. Ora, idéias gerais governam a ação; elas são verdadeiramente leis de crescimento, elas são causas finais reais, elas são efetivamente normativas (Potter 1997: 53-56). O verdadeiro pragmatismo, portanto, não faz da ação o summum bonum. O crescimento da razoabilidade concreta no mundo dos existentes é seu alvo último. Na medida que a evolução segue seu curso, a inteligência humana desempenha um papel cada vez maior no desenvolvimento por meio de seu poder característico de autocrítica e autocontrole. Uma vez que a razão é a única qualidade livremente desenvolvida pela atividade humana do autocontrole, em outras palavras, estando na autocrítica a essência da racionalidade, Peirce identificou o ideal estético, fim último do pragmatismo, com o crescimento da razoabilidade concreta. Não a razoabilidade abstrata, perdida na neblina do ideal, nem a razoabilidade estática que, como tudo que é estático, termina em opressão, mas a razoabilidade concreta em crescimento, em processo, em devir. A única coisa que é desejável sem necessidade de qualquer explicação é apresentar idéias e coisas razoáveis. Isso quer dizer que somos responsáveis pelo alargamento e realização da razoabilidade concreta; é por meio de nossos atos, feitos e pensamentos encarnados que ela vai se concretizando rumo a um final em aberto cujo destino não podemos saber de antemão. Por essa época, Peirce desenvolveu sua teoria dos interpretantes lógicos, em especial os interpretantes sob a forma de hábito e mudança de hábito, justamente para apoiar sua versão madura do pragmatismo, no papel que eles vieram a desempenhar para sua concepção pragmática evolucionista da verdade. O interpretante na forma de hábito é parte do interpretante lógico, este antecedido pelo interpretante emocional e energético. Esses três tipos de interpretantes dizem respeito aos efeitos significados do signo, isto é, àquilo que o signo efetivamente produz ao encontrar uma 80

Contribuições do Pragmatismo de Peirce para o avanço do conhecimento mente interpretadora. O primeiro efeito significado do signo é puramente emocional, a saber, o sentimento produzido pelo signo. Na maior parte das vezes, trata-se apenas de um sentimento imperceptível de reconhecimento ou familiaridade. Este cede passagem a uma sensação de esforço, o interpretante energético, que, em geral, também é tão leve a ponto de não ser notado, rumo à atualização de um interpretante lógico. Este, por sua vez, é uma regra interpretativa que, na maior parte das vezes, já está tão automatizada que toda a operação interpretativa se dá sem que tenhamos qualquer especial notícia dela. Por vezes, no entanto, na audição de uma peça musical, por exemplo, se estivermos suficientemente desarmados, disponíveis, porosos, o efeito proeminente será o do sentimento, pura impressão qualitativa positiva e inconseqüente. Assim também, diante de algo que nos assusta ou desafia, o interpretante energético será dominante, exigindo resposta ativa e direta. O caso do interpretante lógico, contudo, merece um pouco mais de atenção. 4. O interpretante lógico como hábito Peirce identificou o interpretante lógico ou fato mental com o significado ou efeito significativo próprio de um conceito intelectual. Em 1868, ele havia dito que o interpretante de um pensamento é um outro pensamento e que esse processo é teoricamente infinito. Mas em 1907, à luz do seu segundo pragmatismo, Peirce estava buscando um interpretante lógico que não tivesse a natureza de um conceito. Se o interpretante lógico é definido apenas como a apreensão intelectual do significado do signo, esse interpretante lógico resultante exigirá um interpretante lógico ulterior, e assim ad infinitum. Sem descartar a existência desses interpretantes lógicos que têm a natureza de signos, Peirce buscava interpretantes lógicos que conduzissem o pensamento para a porta de saída da ação deliberada. De que se tratava de algum tipo de fato mental, Peirce não tinha dúvida. Entretanto, que tipo de fato mental poderia ser? As concepções, como já vimos, foram descartadas também porque, embora elas sejam, de fato, interpretantes lógicos, não podem funcionar como uma explicação da natureza deles, pois que eles são conceitos nós já sabemos. Em continuidade, para desempenhar o papel do interpretante lógico foram também analisados os desejos e as expectati- 81

Lucia Santaella vas, mas estes foram descartados porque não têm uma aplicabilidade geral, exceto na medida em que estão atados a um conceito. Os desejos também foram rejeitados porque são efeitos do interpretante energético. Por exclusão, Peirce chegou, então, ao hábito como interpretante lógico. De fato, não há nada que possa melhor preencher a definição de interpretante lógico do que o hábito. A regra ou hábito, nos diz Savan (1976: 43-4), é um padrão de ações que, sob certas condições apropriadas, será repetido indefinidamente no futuro [...]. As ocorrências da regra ou hábito se dão em um conjunto particular de ações dentro de um período de tempo limitado. Estes conjuntos de ações particulares são interpretantes energéticos; mas, uma vez que eles exemplificam um hábito indefinidamente repetível, eles também são réplicas de interpretantes lógicos. Note-se que, enquanto os interpretantes emocional e energético têm uma terminação finita, o interpretante lógico é sempre potencialmente repetível sem terminação. Assim sendo, faz parte do interpretante lógico, concebido como hábito, regular e governar ocorrências particulares, pois ele carrega alguma implicação concernente ao comportamento geral de algum ser consciente, transmitindo mais do que um sentimento e mais do que um fato existencial, quer dizer, transmitindo o seria e o faria do comportamento habitual. Ora, só o hábito é capaz dessa real continuidade não apenas porque ele pode ser exercido em várias ocasiões, mas porque ele regula os eventos que ocorrem sob seu governo. Enquanto os eventos existentes são descontínuos, transitórios, o hábito é continuidade, garantia de que os particulares irão se repetir de acordo com uma certa regularidade. É por isso que os hábitos precedem a ação e não vice-versa. Note-se, contudo, que, longe de funcionar como uma força inflexível à qual as ações devem se conformar, o hábito é um princípio guia, uma força viva, uma orientação geral que conduz nossas ações, sem aprisioná-las em uma moldura fixa. É por isso que há sempre uma certa margem de flexibilidade na maneira como as ações são reguladas pelos hábitos. É por isso também que os hábitos podem ser rompidos, com muito mais freqüência e intensidade no universo humano. Isso ocorre porque, em todo o universo, não há nada mais plástico do que a mente humana, hábil para abandonar e adquirir novos hábitos. Para dar conta da plasticidade da mente humana para adquirir novos hábitos da qual resulta a natureza evolutiva da mente é que Peirce 82

Contribuições do Pragmatismo de Peirce para o avanço do conhecimento se voltou para a tentativa de caracterização de um interpretante lógico último. Este tem também o caráter de um hábito, mas de um tipo muito especial: Pode ser provado que o único efeito mental que pode ser produzido e que não é um signo, mas é de uma aplicação geral, é a mudança de hábito, entendendo por mudança de hábito a modificação das tendências de uma pessoa em relação à ação (CP 5.476). Foi justamente esse interpretante lógico último, concebido como mudança de hábito, que possibilitou integrar a teoria dos signos com a natureza evolutiva do pragmatismo. Senão vejamos. 5. Mudança de hábito e o pragmatismo evolucionista Como já foi mencionado acima, o pragmatismo havia descoberto que, no processo de evolução, aquilo que existe vai, mais e mais, dando corpo a certas classes de ideais que, no curso do desenvolvimento, se mostram razoáveis. Esse ideal foi caracterizado como o crescimento contínuo da corporificação da potencialidade da idéia (MS 283 apud Kent 1987: 158). Ora, as idéias são transmitidas na mente, de um ponto a outro no tempo, por meio do pensamento, quer dizer, por meio de signos imateriais ou imaginários, conforme Beverly Kent (ibid.) prefere chamá-los. Mas as idéias não são pensamentos materializados; elas são uma certa potencialidade, uma certa forma que pode ou não ser encarnada num signo externo ou interno. Pois bem, continuou Peirce (MS 283: 4), para que a função do signo seja preenchida e para haver o crescimento da potencialidade da idéia, sua corporificação deve se dar não apenas pelos símbolos, mas também pelas ações, hábitos e mudanças de hábitos. Pois bem, na potencialidade, há primeiridade, na corporificação, há secundidade, e na idéia, há terceiridade. Os três juntos compõem aquilo que Peirce passou a considerar como o summum bonum estético, coincidente com o ideal pragmatista último, a saber, o crescimento da razoabilidade concreta, o crescimento da razão criativa no mundo (ver Santaella 2000c: 136-40). O mais alto grau de liberdade do humano encontra-se, portanto, na adoção deliberada desse ideal e no nosso empenho ético também deliberado, na colaboração que podemos prestar, cada um de nós, para a corporificação crescente da razão criativa no mundo. 83

Lucia Santaella Ao mesmo tempo em que engloba as três categorias, o ideal pragmático, que é também o admirável estético, tem de levar em conta o autocontrole na aquisição de novos hábitos como método pelo qual o ideal pragmático pode ser atingido. Portanto, para colaborarmos no crescimento da razoabilidade, não bastam sentimentos românticos, nem bastam voluntarismos apaixonados. Estes de nada valem, sem a necessária mudança de hábitos. E esta, por sua vez, não se opera sem a autocrítica e o autocontrole. Localizando-se a essência da racionalidade na autocrítica, uma autocrítica, de resto, que só pode nascer da heterocrítica, é na razão que se encontra a única qualidade livremente desenvolvida pela atividade humana do autocontrole. Na medida em que a evolução segue o seu curso, a inteligência humana desempenha um papel cada vez maior no desenvolvimento do ideal pragmático, por meio de seu poder característico de autocrítica e autocontrole. É esse poder que está na base do interpretante último como mudança de hábito, pois esta depende de autocontrole, o controle que é exercido por meio da avaliação das conseqüências referentes aos hábitos de ação. Essa avaliação, por sua vez, é dependente da ética na medida em que esta aponta para o ideal que estamos deliberadamente preparados para adotar. Esse ideal, que a estética tem por função iluminar, é o ideal pragmático último. De um lado, portanto, somos irresistivelmente atraídos pelo admirável, pelo crescimento da razão criativa no mundo, de outro lado, o poder de autocrítica e o autocontrole da razão conduz nossas mudanças de hábito de modo a permitir que a ação ética se exerça rumo a esse ideal. Fica aí explicitada, como se pode ver, a ligação indissolúvel do pragmatismo evolucionista com as ciências normativas, no cerne das quais localiza-se a mudança de hábito, pois, sem mudança de hábito, não poderia haver evolução. Caracterizando-se a mudança de hábito como o interpretante lógico último, fica aí também explicitada a relação do pragmatismo evolucionista com a teoria dos signos. Para terminar, resta apontar explicitamente para aquilo que implicitamente já ficou delineado, a saber, a relação do ideal pragmatista evolucionário com o interpretante final e o papel desempenhado pela mudança de hábito, como interpretante dinâmico lógico último, rumo ao interpretante final sempre adiado. Estando o ideal pragmatista em permanente devir, a mudança de hábito é aquilo que produz o deslocamento constante dos interpretantes dinâmicos na direção do interpretante 84

Contribuições do Pragmatismo de Peirce para o avanço do conhecimento final, uma meta que, como já vimos, é idealmente pensável, mas concretamente inatingível, visto que a razão criativa é algo em permanente metabolismo e crescimento. Um crescimento com o qual colaboramos na medida em que nossa sensibilidade é atraída por esse ideal, nossos hábitos se regeneram graças à autocrítica e ao autocontrole, acionando nosso empenho ético para fazer de nós participantes, mesmo que humildes, de um processo evolutivo que visa dar corpo, sempre mais e mais, aos ideais que se mostram razoáveis. Referências BERGMAN, Mats (2003). Peirce s derivations of the interpretant. Semiotica 144, 1-18. FISCH, Max (1978). Peirce s general theory of signs. In Sight, sound, and sense, Thomas A. Sebeok (ed.). Bloomington: Indiana University Press. HARDWICK, C. (1977). Semiotics and Significs. The correspondence between C. S. Peirce and Lady Victoria Welby. Bloomington: Indiana University Press. Citado como SS. HARRISON, Stanley M. (1997). Introduction to the 1997 Edition. Em Potter, V. (1997). Charles S. Peirce. On Norms and Ideals. New York: Fordham University Press. HAUSMAN, Carl (1993). Charles S. Peirce s Evolutionary Philosophy. Cambridge University Press. HICKMAN, Larry (1994). The products of pragmatism. Em Living Doubt. Essays Concerning the Epistemology of Charles Sanders Peirce, Guy Debrock e Menno Hulswit (eds.). Dordrecht: Kluwer Academic Press. KENT, Beverly (1997). Charles S. Peirce. Logic and the classification of the sciences. Kingston and Montreal: McGill-Queen s University Press. PEIRCE, C. S. (1931-58). Collected Papers of Charles Sanders Peirce, 8 vols., C. Hartshorne, P. Weiss e A. W. Burks (eds.). Cambridge, Mass.: Harvard University Press. Citado como CP seguido pelos números do 85

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