Posse e Usucapião Extraordinária



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Transcrição:

Posse e Usucapião Extraordinária 11 Maria Daniella Binato de Castro 1 INTRODUÇÃO Este trabalho objetiva um breve estudo sobre o instituto da posse e sua relação com a figura da prescrição aquisitiva em sua modalidade extraordinária, prevista nos artigos 1.238 e 1.261 do Código Civil. DESENVOLVIMENTO A prescrição aquisitiva, ou usucapião, é meio de aquisição da propriedade por meio da posse, portanto, torna-se imperativo um breve delinear sobre tal instituto. POSSE O Código Civil, no artigo 1.204, preceitua ser a posse o exercício de fato de um dos poderes inerentes à propriedade 2. Os poderes inerentes à propriedade são: uso, gozo e disposição do bem. Adquire-se a posse, ainda pela leitura do mesmo artigo, a partir do momento em que se torna possível o exercício em nome próprio de um desses poderes. É originária a posse quando se dá mediante ato unilateral do agente, desprovida de qualquer vínculo com antigos possuidores. Modernamente, no entanto, é muito reduzida tal possibilidade de aquisição, constituindose em maior número relativamente às coisas móveis. São exemplos a posse 1 Juíza de Direito Substituta do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. 2 Lei 10.406/2002 (Código Civil Brasileiro).

12 Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume 2 sobre coisas sem dono ou sobre coisas abandonadas. Por sua vez, ocorre a posse derivada quando há vínculo com o possuidor anterior. Em geral, tal vínculo advém de ato ou negócio jurídico bilateral. Há um inteiro relacionamento entre o domínio atual e o anterior, isto é, entre o sucessor e o antecessor. São exemplos a compra e venda, o contrato de mútuo, a comistão, especificação etc. No contexto da usucapião, embora de uso comum e frequente, o termo abandono possui conceito de extrema relevância. De fato, não basta para se configurar o abandono que o sujeito deixe de exercer continuamente a posse, já que esta, assim como a propriedade, é, em tese, perpétua, não se extinguindo pelo simples desuso com relação às coisas. Faz-se mister que haja um contexto volitivo de renúncia; a ausência prolongada e o desinteresse revelado pelo possuidor são circunstâncias indicativas do abandono por falta de diligências de um interessado cuidadoso. Da mesma forma, quem perde algo não abandona a coisa enquanto não abrir mão de sua procura. Coisa perdida não é coisa abandonada, são conceitos separados e distintos. Tais apontamentos são de suma relevância quando nos propomos a interpretar as figuras da usucapião ordinária e extraordinária presentes em nosso Código. A usucapião ordinária, no entanto, prescinde de maior atenção, já que resta clara na lei. A divergência hermenêutica maior se estabelece quanto à figura da prescrição aquisitiva extraordinária. USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA A usucapião extraordinária é aquela que se adquire em 15 (quinze) anos, salvo se o possuidor houver estabelecido no imóvel sua moradia habitual ou nele tiver realizado obras ou serviços de caráter produtivo sendo, nesse caso, o lapso de tempo de 10 (dez) anos, mediante prova de posse mansa e pacífica e ininterrupta, independentemente de justo título e boafé, nos termos do artigo 1.238 do Código Civil Brasileiro. São requisitos da usucapião extraordinária: a posse mansa, pacífica

13 e contínua (posse qualificada); o decurso do prazo de 15 (quinze) anos ou de 10 (dez) anos no caso do usucapiente ter estabelecido a sua moradia ou se tiver realizado obras ou serviços de caráter produtivo, (posse qualificada com privilégio) e a sentença judicial; Urge destacar, contudo, que o fato de a lei possibilitar a ausência de boa-fé e título para a caracterização da prescrição aquisitiva não implica desqualificá-la de figura oriunda da posse, e essencial, da posse originária, ou seja, ainda resta necessário que o bem da vida seja coisa sem dono ou abandonada. A posse é pré-requisito à pretensão usucapienda; boa-fé e título são características da posse, que confluem para as benesses da usucapião ordinária e especial. Outro aspecto relativo à posse e que pede devida atenção quando examinada à luz do instituto prescritivo se dá no que toca aos seus meios de obtenção e exercício. O diploma civil pátrio prescreve em seus artigos 1.200 e 1.208: Art. 1200: É justa a posse que não for violenta, clandestina ou precária. Art. 1208: Não induzem a posse os atos de mera permissão ou tolerância, assim como não autorizam a sua aquisição os atos violentos, ou clandestinos, senão depois de cessar a violência ou a clandestinidade. Posse violenta é a maneira de consecução do ato espoliativo, em que, mediante constrangimento físico ou moral praticado contra o possuidor ou contra quem possuir em nome dele, toma-se a posse de algo. Configura-se pela utilização de força física, ou por intermédio da vis compulsiva. Prescinde de confronto material ou tumulto entre as partes conflitantes. Clandestina é a posse cujo vício se manifesta pela ocultação do ato espoliativo, de forma que o possuidor não tenha conhecimento dele. Não é necessária a intenção de esconder ou camuflar, o conceito é objetivo. Deve haver possibilidade de a posse ser conhecida daqueles contra os quais se pretende invocar a prescrição e daqueles que a ela poderão apresentar

14 Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos Volume 2 oposição. A aparência de posse dada àqueles que em nada se interessam, não conta como exercício de posse aparente. Precária, por sua vez, é a posse que resulta de abuso de confiança por parte daquele que, tendo se comprometido a devolver certo bem, recusa-se a devolvê-lo ao legítimo proprietário. Denomina-se assim equívoca a posse que não oferece, com um caráter suficiente de certeza, todas as qualidades requeridas para constituir uma posse útil. Do momento em que ela não é clara e incontestadamente contínua, pacífica e pública, é equívoca. Portanto, por dedução lógica, define-se como injusta a posse obtida por um desses meios. É mister destacar: não se confunde posse injusta com má-fé. Posse mansa e pacífica é justamente o oposto a posse violenta. Mansa é aquela que se obteve sem oposição do antigo possuidor, e Pacífica é aquela que se manteve sem contestação. Ademais, no entender do próprio artigo 1.208, sequer poderia denominar-se posse o ato de detenção de coisa por intermédio da tolerância, força ou violência. A usucapião extraordinária eximiu o pretendente à aquisição originária de demonstrar boa-fé ou apresentar título, no entanto, manteve a exigência de advir a pretensão de posse justa. CONCLUSÃO Ao longo da história humana, a propriedade recebeu tratamentos diferentes por cada civilização. Cada período histórico com características políticas, econômicas e sociais diversas valorava e justificava a propriedade de acordo com as nuances de sua época. No período romano, prevalecia o caráter absolutista da propriedade, pelo qual o proprietário poderia dela dispor da forma que melhor lhe aprouvesse. Esta visão individualista deu lugar nos dias atuais à função social da propriedade, em sintonia com o atual Estado Democrático de Direito. Assim como a propriedade, também a posse deve obedecer a uma

15 função social, tornando a sociedade mais igualitária, submetendo o uso da propriedade ao interesse coletivo. Destarte, como institutos indissociáveis, a usucapião é o resultado de uma posse exercida com fins sociais, num Estado Democrático de Direito, no qual o direito à propriedade deve ser o reflexo de sua destinação social e da evolução da própria sociedade. REFERÊNCIAS GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria Geral do Processo. 4ª Edição, São Paulo: Malheiros, 2006. NUNES, Pedro. Do Usucapião. 4ª Edição, Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1964. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituição de Direito civil. V. IV, 19ª ed. São Paulo: Saraiva. 2005. PEREIRA, Lafayette. Direito das cousas. Rio de Janeiro: Tip. Batista de Souza, 1922. REALE, Miguel. A boa-fé no Código Civil, disponível em http://www. miguelreale.com.br (acessado em 15 de novembro de 2007). RIBEIRO, Benedito Silvério. Tratado de Usucapião. V. 1. São Paulo: Saraiva, 2003. VENOSA, Silvio de Sálvio. Direito Civil, Direitos Reais. São Paulo: Atlas, 2007. World Wide Web: http://www.planalto.gov.br