Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul

Transcrição

1 FL de março de ª Câmara Cível Apelação - Nº - Campo Grande Relator Exmo. Sr. Des. Vladimir Abreu da Silva Apelante : Claudia Rudge Ramos Villela de Souza Advogado : Alvaro de Barros Guerra Filho Apelado : Banco Bradesco S/A Advogado : Valter Ribeiro de Araújo Advogado : Silvio de Jesus Garcia E M E N T A APELAÇÃO CÍVEL AÇÃO DE USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIO POSSE INICIADA NA VIGÊNCIA DO CÓDIGO CIVIL DE 1916 DIREITO INTERTEMPORAL APLICAÇÃO DA REGRA DO ART DO NOVO CÓDIGO CIVIL POSSIBILIDADE DE CONVERSÃO DA NATUREZA JURÍDICA DA POSSE INICIAL POSSE ADVINDA DE LOCAÇÃO CONVERTIDA EM POSSE AD USUCAPIONEM POSSIBILIDADE ANÁLISE DAS CIRCUNSTÂNCIAS DO CASO CONCRETO DISCUSSÃO ACERCA DO DOMÍNIO DO IMÓVEL RECURSO IMPROVIDO. Nas hipóteses em se pretende a declaração do usucapião extraordinário por posse-trabalho (art do Código Civil), acerca de posse iniciada antes da vigência do Código Civil atual, a regra de direito intertemporal aplicável é a do art do referido Estatuto, conforme precedente do Superior Tribunal de Justiça (Resp RJ). Há possibilidade de conversão da natureza da posse, inicialmente decorrente de contrato de locação para a ad usucapionem, conforme entendimento do Colendo Tribunal Superior (Resp DF), todavia, tratando-se de situação excepcional, devem ser pontualmente aferida as circunstâncias presentes no caso concreto. Não há a conversão no caso de locatário que, tendo ciência de que o locador não era o proprietário, suspende o pagamento dos aluguéis, sobretudo quando pende discussão acerca do domínio entre aquele que consta registrado na matrícula e terceiro (instituição financeira, anteriormente credora hipotecária), estando a posse do locatário quase que configurada como ato de mera permissão e tolerância (art do Código Civil).

2 FL. 638 A C Ó R D Ã O Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os juízes da 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça, na conformidade da ata de julgamentos e das notas taquigráficas, por unanimidade, negar provimento ao recurso, nos termos do voto do Relator. Campo Grande, 7 de março de Des. Vladimir Abreu da Silva - Relator

3 FL. 639 R E L A T Ó R I O O Sr. Des. Vladimir Abreu da Silva. Claudia Rudge Ramos Villela de Souza interpõe recurso de apelação, irresignado com a sentença proferida pelo Juízo da 3ª Vara Cível da Comarca de Campo Grande que julgou improcedente a ação de usucapião ajuizada em face de Banco Bradesco S/A. Sustenta o equívoco da sentença em aplicar a regra transitória do art do Código Civil, pois trata-se de ação de usucapião extraordinária, nos termos do parágrafo único do art do Código Civil, com regramento de transição próprio no art do Código Civil. Aduz que quando da propositura da ação em 21/01/09, o prazo do usucapião extraordinário de 10 anos já havia transcorrido. Defende que à partir de maio de 1994 parou de pagar o aluguel, tendo havido então a modificação da posse locatária para a ad usucapionem. Por fim, pugna pela procedência da ação para que seja declarada a ocorrência do usucapião extraordinário e seus efeitos regulares. Contrarrazões a protestar a análise preliminar do agravo retido. No mérito, protesta a manutenção pela manutenção da sentença. A Procuradoria-Geral de Justiça deixou de emitir parecer, em razão de não existir interesse público a ser tutelado. V O T O O Sr. Des. Vladimir Abreu da Silva. (Relator) Trata-se de recurso de apelação interposto por Claudia Rudge Ramos Villela de Souza, irresignado com a sentença proferida pelo Juízo da 3ª Vara Cível da Comarca de Campo Grande que julgou improcedente a ação de usucapião ajuizada em face de Banco Bradesco S/A. Segundo consta, a autora celebrou com contrato de locação do imóvel registrado no Cartório do 1º Ofício de Registro de Imóveis desta Capital, sob a matrícula nº , com Liberato Antônio Poffo em novembro de Em junho de 1994 teria parado de pagar as mensalidades do aluguel, sob o argumento de ter descoberto que o locador não era efetivamente o proprietário do imóvel, tendo ciência do litígio envolvendo o imóvel com terceiros. O imóvel teria sido hipotecado em 1992 em favor do réu em razão de financiamento imobiliário realizado por Roberto Massi de Oliveira, tendo-o adquirido via arrematação em execução extrajudicial no ano de O magistrado, à vista da regra transitória contida no art do Código Civil, entendeu não ter transcorrido o lapso temporal necessário da prescrição aquisitiva, julgando improcedente a ação. De modo sucinto, este é fato posto sob análise.

4 FL. 640 A) Agravo retido Interposto oralmente na audiência de instrução julgamento (f. 409), protestou a análise da impossibilidade jurídica do pedido. De acordo com o agravante, não haveria possibilidade jurídica no pedido referente a incidência do prazo de 10 anos do usucapião extraordinário do art , parágrafo único do Código Civil de 2002, pois o caso seria de aplicação do prazo de 20 anos estabelecido no art. 550 do Código Civil de Desnecessário maiores comentários para rebater a tese. O argumento de que aplicada a regra de direito intertemporal estabelecida no art do Código Civil, o prazo a ser aplicado é o previsto na lei velha, restando impossível a pretensão pelo prazo novo (10 anos), é questão que fundamenta a própria ação ajuizada, confundindo-se com o mérito apreciado pelo juízo singular e, na oportunidade, por esta Corte em sede de apelo. A aplicação dos novos prazos estabelecidos sobre as prescrições aquisitivas já iniciadas sob a égide do Código Civil anterior é decorrência da própria regra de transição consubstanciada no atual Estatuto Civilista, não havendo assim espaço para discussões nesse sentido. Assim, conheço do recurso, mas nego-lhe provimento. B) Mérito A apelante requer a declaração da ocorrência do usucapião extraordinário por posse-trabalho definido no parágrafo único do art do Código Civil, sob o imóvel em discussão. Ocorre que, diversamente do pronunciado pelo juízo sentenciante, a regra de transição aplicável à prescrição aquisitiva iniciada antes da vigência do Novo Código Civil não é a de seu art , mas aquela definida no art , que especificamente dispõe: Art Até dois anos após a entrada em vigor deste Código, os prazos estabelecidos no parágrafo único do art e no parágrafo único do art serão acrescidos de dois anos, qualquer que seja o tempo transcorrido na vigência do anterior, Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de Restando incontroverso o termo inicial do usucapião como sendo maio de 1994 (época em que houve a interrupção do pagamento do contrato de locação do imóvel), quando da entrada em vigor do Novo Código Civil em janeiro de 2003, haviam transcorridos exatos 8 (oito) anos e 7 (sete) meses. Com a entrada em vigor do novo Código, de acordo com o que orienta o art , foram acrescidos de dois anos, ou seja, é como se o prazo existente até o início da vigência do novo Estatuto ficasse sobrestado por dois anos, sendo que após este lapso, voltariam a correr pelo seu restante. Neste sentido é a posição do Superior Tribunal de Justiça: DIREITOS REAIS. USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIO. POSSE PARCIALMENTE EXERCIDA NA VIGÊNCIA DO CÓDIGO CIVIL DE APLICAÇÃO IMEDIATA DO ART , ÚNICO, DO CÓDIGO

5 FL. 641 CIVIL DE INTELIGÊNCIA DA REGRA DE TRANSIÇÃO ESPECÍFICA CONFERIDA PELO ART RECURSO ESPECIAL CONHECIDO EM PARTE E, NA EXTENSÃO, PROVIDO. 1. Ao usucapião extraordinário qualificado pela posse-trabalho, previsto no art , único, do Código Civil de 2002, a regra de transição aplicável não é a insculpida no art (regra geral), mas sim a do art , que prevê forma específica de transição dos prazos do usucapião dessa natureza. 2. O art , único, do CC/02, tem aplicação imediata às posses ad usucapionem já iniciadas, qualquer que seja o tempo transcorrido na vigência do Código anterior, devendo apenas ser respeitada a fórmula de transição, segundo a qual serão acrescidos dois anos ao novo prazo, nos dois anos após a entrada em vigor do Código de (Resp RJ. Relator: Min. Luis Felipe Salomão. Quarta Turma. Julgamento: 02/03/2010) Na prática, e como forma de não haver confusão no cômputo do prazo, é como se os períodos aquisitivos já iniciados fossem suspensos em janeiro de 2003, voltando a transcorrer pelo seu restante apenas em janeiro de Assim, se em janeiro de 2003 a autora contava com 8 anos e 7 meses, seu prazo aquisitivo sofreu suspensão e só voltou a correr em janeiro de 2005, ou seja, a aquisição da propriedade pelo usucapião extraordinário por posse-trabalho (parágrafo único, art ), de dez anos, operou-se em junho de Como a ação foi ajuizada em janeiro de 2009, em tese, houve o preenchimento do requisito temporal para o usucapião na modalidade pleiteada, equivocando-se portanto o magistrado quando da prolação da sentença. Quanto ao preenchimento dos demais requsitos do instituto, cabem alguns apontamentos. A posse da autora, ora apelante, teve origem em contrato de locação realizada entre ela e terceiro no ano de Em 1994, suspendeu o pagamento do aluguel porque descobriu não ser o locador o verdadeiro proprietário. A forma como obteve este conhecimento da situação não se encontra na instrução, contudo, é de se presumir que tenha advindo da ciência dos termos da matrícula do imóvel. Ocorre que desde fevereiro de 1992 consta na matrícula o registro da hipoteca do imóvel em nome da instituição financeira apelada. Ademais, também há o registro da aquisição da propriedade via arrematação do bem pela ré no ano de Em 1999 o imóvel tornou-se litigioso através de ação anulatória ajuizada por Roberto Massi em face da ré pretendendo a nulidade de sua alienação judicial. Ou seja, nunca houve qualquer tipo de inércia por parte do proprietário do imóvel, ao revés, se antes era Roberto Massi, depois tornou-se a própria ré, sendo sempre alvo de discussão o real domínio do bem. Neste contexto, não há via de acesso aos argumentos de usucapião da autora, porque na seara da controvérsia do imóvel, ela era simplesmente terceira que se beneficiava da discussão para prolongar sua posse.

6 FL. 642 O usucapião, em nome do princípio da função social da propriedade, termina por sancionar aquele proprietário que por determinado lapso de tempo se mostra indiferente com seu imóvel, não extraindo dele os proveitos inerentes do patrimônio, em prol da utilização que melhor atenda aos anseios de interesse social, e neste ponto a relevância da moradia alçada como direito fundamental na Carta Magna (art. 6º). In casu, não se observa este comportamento desidioso do proprietário para com seu imóvel, ao contrário, seu domínio sempre esteve em meio à discussões. Por derradeiro, não há qualquer elemento na posse da apelante que a credencie a postular a aquisição da propriedade pelo usucapião, ao contrário, não apenas demonstrou má-fé, pois poderia muito bem ter consignado o valor referente aos aluguéis face a dúvida quanto ao domínio do locador, como de que, na incerteza, transformou sua posse em posse precária pelo evidente abuso de direito. Ademais, em verdade, poderia-se até afirmar que a posse mesmo nem existiu, configurando-se apenas questão de mera permissão ou tolerância (art /Código Civil) a permanência da autora no imóvel durante as discussões que estavam travadas quanto a efetiva propriedade do bem entre a ré e terceiros. A questão da inversão da natureza jurídica da posse, inicialmente decorrente de contrato de locação para a posse ad usucapionem, não é de todo improvável 1, contudo, deverá ser analisada à vista das circunstâncias presentes no caso concreto. Na hipótese, não houve qualquer abandono por parte do proprietário, ao contrário, o que existia era justamente uma discussão acerca do domínio, fato conhecido da apelante. Diante todo o exposto, conheço do recurso, mas nego-lhe provimento para manter a dispositiva da sentença, todavia, por outros fundamentos. 1 EMENTA: CIVIL. USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIO. COMPROVAÇÃO DOS REQUISITOS. MUTAÇÃO DA NATUREZA JURÍDICA DA POSSE ORIGINÁRIA. POSSIBILIDADE. O usucapião extraordinário - art. 55, CC - reclama, tão-somente: a) posse mansa e pacífica, ininterrupta, exercida com animus domini; b) o decurso do prazo de vinte anos; c) presunção juris et de jure de boa-fé e justo título, "que não só dispensa a exibição desse documento como também proíbe que se demonstre sua inexistência". E, segundo o ensinamento da melhor doutrina, "nada impede que o caráter originário da posse se modifique", motivo pelo qual o fato de ter havido no início da posse da autora um vínculo locatício, não é embaraço ao reconhecimento de que, a partir de um determinado momento, essa mesma mudou de natureza e assumiu a feição de posse em nome próprio, sem subordinação ao antigo dono e, por isso mesmo, com força ad usucapionem. Precedentes. Ação de usucapião procedente. Recurso especial conhecido, com base na letra "c" do permissivo constitucional, e provido. (Resp DF. Relator: Min. Cézar Asfor Rocha. Quarta Turma. Julgamento: 05/12/2000)

7 FL. 643 D E C I S Ã O Como consta na ata, a decisão foi a seguinte: POR UNANIMIDADE, NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO, NOS TERMOS DO VOTO DO RELATOR. Presidência do Exmo. Sr. Des. Vladimir Abreu da Silva Relator, o Exmo. Sr. Des. Vladimir Abreu da Silva. Tomaram parte no julgamento os Exmos. Srs. Des. Vladimir Abreu da Silva, Des. Luiz Tadeu Barbosa Silva e Des. Júlio Roberto Siqueira Cardoso. Campo Grande, 07 de março de usv