O BRASIL DE LISBOA. Vitor Claret Batalhone Júnior Mestrando pelo PPG em História da UFRGS Bolsista CAPES bitaka@gmail.com



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Transcrição:

O BRASIL DE LISBOA Vitor Claret Batalhone Júnior Mestrando pelo PPG em História da UFRGS Bolsista CAPES bitaka@gmail.com Resumo: João Francisco Lisboa, jornalista e historiador maranhense, foi considerado por Capistrano de Abreu como um dos maiores historiadores brasileiros do século XIX, especialmente por ter sido julgado o pioneiro na escrita de uma história das municipalidades. Entretanto, isso não foi suficiente para que Lisboa se igualasse a Varnhagen, o grande historiador brasileiro da época. A proposta deste trabalho consiste em analisar algumas das características da escrita da história de Lisboa em confronto com outras de Varnhagen, avaliando quais eram as possibilidades discursivas para maior valorização do último do que de Lisboa. No confronto dos enunciados entre uma história mais regional e uma história geral do Brasil, podemos observar algumas das possibilidades discursivas sobre como se escrevia a história do Brasil no século XIX. Palavras-chave: Varnhagen; historiografia; Lisboa. João Francisco Lisboa, jornalista e historiador maranhense, foi considerado por Capistrano de Abreu como um dos maiores historiadores brasileiros do século XIX, especialmente por ter sido julgado o pioneiro na escrita de uma história das municipalidades (ABREU, 1931, p.205). Entretanto, isso não foi suficiente para que João Francisco Lisboa se igualasse a Francisco Adolfo de Varnhagen, o grande historiador brasileiro da época. A proposta deste trabalho consiste em analisar algumas das características da escrita da história de Lisboa, especificamente em seu Jornal de Timon, em confronto com outras de Varnhagen em sua História geral do Brazil, avaliando quais eram as limitações e as possibilidades discursivas para a maior valorização do último enquanto historiador, do que de João Francisco Lisboa. Na primeira edição da História geral do Brazil de Varnhagen havia algumas notas referentes a João Francisco Lisboa, as quais foram posteriormente eliminadas da segunda edição da referida obra do Visconde de Porto Seguro (ABREU, 1931, p.211-212). O motivo de tal alteração foi antes de tudo uma questão pessoal e política em função da polêmica sobre o indianismo histórico-literário indianismo caboclo segundo Varnhagen, na qual ambos os autores debatiam sobre o papel do nativo na

formação do Brasil e sobre as violências impetradas pelos portugueses contra os indígenas. 1 Varnhagen argumentava que o nativo era um elemento contrário ao espírito de civilização ao qual o Brasil deveria aderir e fazer progredir. Se o índio era um elemento presente na formação da nacionalidade brasileira, nem por isso ele deveria ser louvado em detrimento de sua hipotética natural pureza. Ao contrário, João Francisco Lisboa arguia ao lado dos defensores do indianismo romântico, como Gonçalves de Magalhães, que acreditavam ser o índio o representante ideal da nacionalidade. Assim, não encontramos mais na segunda edição da História geral do Brazil tais notas de Varnhagen com referência a João Francisco Lisboa. Antes da polêmica, cujas cartas foram publicadas por Varnhagen sob o nome de Os índios bravos e o senhor Lisboa, Timon 3º, João Francisco havia sido enviado em missão oficial para a capital lusa homônima, em lugar de Gonçalves Dias, para copiar documentos relativos ao Brasil presentes nos arquivos portugueses. Nesse período, por volta de meados da década de 1850, Lisboa havia estabelecido uma espécie de bom relacionamento com o Visconde de Porto Seguro, recebendo inclusive orientação de Varnhagen sobre assuntos históricos (CARVALHO, 1995, p.13-15). Publicado em folhetins entre 1852 e 1858, o Jornal de Timon versa de uma forma geral, sobre política e história recente da província do Maranhão, sendo que os folhetins de número 5 a 12 recebem inclusive o nome de Apontamentos, notícias e observações para servirem à história do Maranhão. Em suas páginas, Lisboa analisa por exemplo o processo eleitoral no Maranhão na década de 1840, embora repetidamente não precise qual o ano exato a ser narrado, colocando reticências após o algarismo da dezena referente ao ano específico dentro da década citada (LISBOA, 1995, p.1, 177). Teria sido esta uma atitude deliberada para evitar um posicionamento subjetivo na narrativa e manter a imparcialidade tão cara aos historiadores da época, ou antes, para evitar o surgimento de desafetos entre seus possíveis contemporâneos? Não se sabe ao certo, mas acreditamos que a questão mais importante a ser colocada é se e porque essa e outras características da escrita da história de Lisboa o deixaram num rol de segundo plano do cânone da historiografia brasileira. 1 Sobre tal polêmica, ver também OLIVEIRA, Laura Nogueira. Os Índios Bravos e o Sr. Visconde: os Indígenas Brasileiros na Obra de Francisco de Adolfo Varnhagen. Dissertação de Mestrado. Orientador: Prof. Dr. Ciro Flávio de Castro Bandeira de Melo. Belo Horizonte: UFMG / FAFICH, 2000.

Articulemos portanto a hipótese acima à questão das datas e do possível resguardo quanto à subjetividade ou desafetos. Verificamos que possivelmente não foram esses os problemas, pois em muitas passagens Lisboa se coloca dentro da narrativa, efetuando inúmeros julgamentos, ou mesmo cita personagens de grande conhecimento público à época, como o caso do presidente de província Anastácio Pedro de Moura e Albuquerque. João Francisco julga ainda os desordeiros que purgavam a sociedade como fezes perniciosas nas inúmeras revoltas da década de 1840 no Brasil (LISBOA, 1995, p.51). Em uma nota de referência à documentação por exemplo, o autor expõe ainda, ao contrário das situações na qual o último algarismo da data foi substituído por reticências, a data completa na qual fora publicado o periódico de que se servia. Documento o qual Lisboa garante ter copiado textualmente (LISBOA, 1995, p.215). 2 Casos como esses são recorrentes nas páginas de seu Jornal de Timon. Sua presença no texto aparece inclusive sob a forma de seu método de coleta de informações não escritas. Sobre isso, João Francisco Lisboa adverte que o leitor compreenderá que estes cruéis momentos pareciam voar, e que os circunstantes, à exceção de um de quem colhi estas informações, atordoados por sua própria conta, tinham bem pouco vagar e lucidez para notar todas estas coisas (LISBOA, 1995, p.57). Assim, Lisboa foi constantemente testemunha e juiz dos fatos que narrou, embora reforçasse sempre que a maior parte das circunstâncias que Timon refere são rigorosamente históricas (1995, p.97, 111, 119). Obviamente não foi em vão a escolha do pseudônimo Timon. Tal nome foi utilizado não somente pelo visconde de Cormenin (1788-1868) para difundir suas sátiras políticas contra Luís Filipe da França, como se referia primeiramente a Timon, o Misantropo, um contemporâneo de Sócrates que se dizia desacreditado com as pessoas de seu mundo e época (LISBOA, 1995, p.17, 39-44). Como o Timon grego mas também inspirado pelo parisiense, embora alegasse não possuir o mesmo cabedal e engenho deste último, João Francisco Lisboa é a priori um juiz dos fatos e personagens que narra, pois os considera cheios de vícios e defeitos. Como ele mesmo afirmou: Timon tem presenciado algumas destas cenas, e visto mesmo certos homens, não de todo faltos de mérito e gravidade, que, esquecendo-se um pouco do que devem a si mesmos, atiram-se uns por cima dos outros, sem lhes 2 Copiado textualmente do Caruru nº2, de 10 de junho de 1846.

embaraçar a figura que fazem, até que consigam lugar onde sejam mais visíveis, e onde, sem perda de um momento, possam logo expor às luzes do novo astro as suas comendas, os seus galões e o brilho das elevadas posições que ocupam no grande mundo provincial (LISBOA, 1995, p.60). De forma análoga, embora mantendo suas peculiaridades, Varnhagen também tinha dificuldades em manter uma imparcialidade narrativa, como nos afirma Cezar: [...] apesar de seu esforço retórico, Varnhagen perde-se completamente. A distinção entre sujeito e objeto da pesquisa, fundamento teórico da emergente ciência histórica, era uma premissa que Varnhagen tinha muita dificuldade em respeitar. Ele a elidia com mais freqüência que supunha e que nós, à primeira vista, possamos supor. A presença do autor no interior de suas composições é algo que impressiona. Narraremos, explica no primeiro capítulo da Historia geral do Brazil, os successos segundo nol-os hajam apresentados, em vista dos documentos, a reflexão e o estudo; e alguma que outra vez, sem abusar, tomaremos a nosso cargo fazer aquellas ponderações a que formos levados por intimas convicções; pois triste do historiador que as não tem relativamente ao seu paiz, ou que tendo-as, não ousa apresental-as. Mesmo no seu trabalho mais ponderado, mais próximo do que a ciência da história do século XIX era capaz, ele não consegue se ocultar no texto. Nem ao menos procura dissimular sua presença (2007, p.161-162). No que tange à imparcialidade ou ausência do sujetio na produção de uma narrativa hsitórica, os posicionamentos de Varnhagen e Lisboa nos parecem bastante peculiares. O Visconde dedicou inclusive um capítulo de sua História geral do Brazil a seu estimado pai. Portanto, apesar da alta consideração que a objetividade e os procedimentos ditos científicos exerciam sobre os dois historiadores, podemos notar que a presença do autor na produção da narrativa foi um elemento comum a ambos os autores, assim como a valorização positiva do testemunho, ou melhor, do procedimento cognitivo que podemos definir como autópsia. Segundo François Hartog, a autópsia seria o fenômeno cognitivo representado pelo testemunho e relato crível garantido por seu narrador, seria o olho do viajante que autoriza o narrador a descrever aquilo que ele próprio testemunhou, ou que ouviu de um terceiro que viu. O narrador, assim, garantiria a legitimidade da narrativa: Com efeito, trata-se do olho como marca de enunciação, de um eu vi como intervenção do narrador em sua narrativa para provar algo (1999, p.263, 273). Segundo Cezar, essa prática silenciosa, pelo menos até o século XIX, através da qual os historiadores emprestam aos seus trabalhos garantias extra textuais, aparece recorrentemente obras de Varnhagen (2007, p.173). Como afirmado acima, Lisboa

também se tornava frequentemente fiduciário de suas próprias afirmações e narrativas históricas. Era Timon mesmo quem observava, garantia, avaliava e julgava as personagens de sua própria narrativa. Ao mesmo tempo, a fonte escrita de arquivo, ou seja, o documento histórico mais caro a grande parte dos historiadores, se encontrava numa posição central e privilegiada em relação às atenções de Varnhagen e Lisboa. No século XIX, o documento escrito de arquivo era considerado o elemento principal na constituição de garantias e legitimidade das narrativas históricas, como se as fontes primárias possibilitassem um acesso o mais direto possível ao passado (GRAFTON, 1998, p.55). Durante as décadas de 1840 e 1850, o IHGB colocou am ação uma estratégia que se acreditava fundamental para dar início ao processo de escrita de uma história do Brasil, uma vez que o país havia se tornado uma nação independente. Uma vez implantado o Estado Nacional, impunha-se como tarefa o delineamento de um perfil para a Nação brasileira, capaz de lhe garantir uma identidade própria no conjunto mais amplo das Nações, de acordo com os novos princípios organizadores da vida social do século XIX (GUIMARÃES, 1988. p.6). O patamar básico dessa estratégia era portanto a descoberta, a coleta e a crítica de documentos que possibilitassem a consecução da escrita da história nacional. Nesse sentido, Varnhagen foi claramente louvado por seus pares como aquele que mais fontes descobriu, coletou ou editou para que fosse possível se escrever a História Pátria. Podemos afirmar que o Visconde largou à frente de seus colegas de Instituto justamente por ter manipulado tamanha nas palavras de Capistrano de Abreu massa ciclópica de documentos (ABREU, 1931, p.135). Enquanto exercia suas atribuições de diplomata na Europa, Varnhagen percorria os inúmeros arquivos europeus em busca de documentos relativos à história do Brasil. Nesse processo, descobriu, coletou, criticou e editou inúmeras obras de grande importância, como por exemplo Gabriel de Sousa, Frei Vicente do Salvador, Gândavo, Frei Gaspar de Madre Deus, Fernão Cardim, o Orbe Seráfico de Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão, e o Diário de Pero Lopes de Sousa, editado por Varnhagen em 1839 (WEHLING, 1999, p.140). 3 3 Varnhagen descobriu e/ou editou diversos documentos básicos para a história do Brasil, como, por exemplo e apenas sobre material do século XVI, um inédito de frei Luís de Sousa, permitindo esclarecer a expedição de Cristóvão Jacques; o Diário de navegação, de Pero Lopes de Sousa; documentos sobre os problemas diplomáticos entre Francisco I e D. João III; o livro de Nau Bretoa, de 1511; a Narrativa

Assim, apesar de tamanha importância e mérito de Varnhagen em relação às descobertas documentais, João Francisco Lisboa também os descobriu e coletou na Europa como afirmado mais acima. Além disso, também os utilizou na escrita des suas obras, inclusive no seu Jornal de Timon, que versava sobre a história das eleições e os costumes do Maranhão da década de 1840 (CARVALHO, 1995, p.14). Lisboa reconhecia plenamente a função dos documentos no processo de produção historiográfica da sua época, chegando em alguns momentos a afirmar que a citação exaustiva de fontes, apesar de poder parecer um amontoado de frioleiras e trivialidades, era necessária pois a verdade histórica não exige menos, e que por isso ele conservava fielmente não só as idéias, senão o estilo e a frase dos documentos de que se servia (1995, p.84-85). Entretanto, a diferença se faz notar quando focamos a análise não somente sobre o fato de ambos terem coletado e utilizado fontes de arquivos em suas histórias, mas também quando agregamos à análise a questão das perspectivas orientadoras de ambos os historiadores em relação às possibilidades de se contar a História Pátria segundo as dimensões regional e nacional. Segundo Jörn Rüsen, devemos entender por perspectiva orientadora, as perspectivas gerais nas quais o passado aparece como história e adquire sentido em relação à experiência e à práxis da vida humana, direcionando-as (RÜSEN, 2001, p.31-32). Assim, encontramos tanto na História geral de Varnhagen quanto no Jornal de Timon de Lisboa, uma concepção de história guiada pela idéia de nação. A História geral do Brasil de Francisco Adolfo de Varnhagen é uma história escrita fundamentalmente sob o viés da história nacional, especialmente sob o foco da formação do Brasil em relação a seu passado colonial, não foi em vão que sua obra maior se chamou História geral do Brasil: antes da sua separação e independência de Portugal. Como bem nos lembrou Cezar, na obra de Varnhagen a idéia de nação funciona como um conceito organizador e como um recurso narrativo em si (2002, p.576). Epistolar de Fernão Cardim; e o Tratado de Gabriel Soares de Sousa, cuja autoria definiu e cujo texto estabeleceu em definitivo na edição de 1851.. WEHLING, Arno, op. cit., p.140. Ver também CEZAR, Temístocles. Quando um manuscrito torna-se fonte histórica: as marcas de verdade no relato de Gabriel Soares de Sousa (1587). In: História em revista. Pelotas, RS Vol. 6 (dez. 2000), p. 37-58.

O Visconde de Porto Seguro escreveu sua história inscrevendo o Brasil no processo temporal progressivo e coletivo concebido como história da humanidade especialmente a partir do foco da expansão marítima européia pioneira, a portuguesa, e consequente processo de colonização das novas terras (MATTOS, 2000, p.106-107). 4 Martius já havia proposto anteriormente tal história para o Brasil. Considerando a história da humanidade no meio de seu desenvolvimento superior, Martius propõe como objetivo de um historiador brasileiro inserir a história do país nesse processo, uma vez que o país encontra-se em desenvolvimento progressivo, como o atestava a mescla de populações (WEHLING, 1999, p.41). Para Varnhagen, e com certeza para muitos de seus contemporâneos, era como se o Milagre de Ourique de 25 de julho de 1139 estendesse uma sagrada aura monárquica até 7 de setembro de 1822, abençoando o nascimento do aguardado Império, gestado após três séculos de história colonial (RODRIGUES, 1978-1988, p.6-8). Ou seja, o Visconde de Porto Seguro construiu sua História geral segundo a concepção de que o Brasil é íntegro, uno, [e] independente por obra e graça da Casa de Bragança, motivo pelo qual o grande tema de seu livro é a obra da colonização portuguesa no Brasil (RODRIGUES, 1978-1988, p.13-17). 5 A idéia de um Brasil uno nacional e territorialmente no século XIX, condicionava que muitos dos historiadores da época enxergassem na história das antigas colônias portuguesas na América, a história do futuro Estado Nacional brasileiro, de forma a colaborar com o processo que experimentaram e motivaram contemporaneamente, enquanto membros do grupo social dominante, de consolidação do Estado e de formação da nação. Na obra de Varnhagen, os atores e a dinâmica social convergem para um ponto teleológico que é a formação brasileira (WEHLING, 1999, p.187). João Francisco Lisboa também escreveu sob a perspectiva orientadora nacional. Entretanto, justamente por compartilhar de tal concepção de história que conformava a história das antigas colônias portuguesas na América como uma pré história do futuro 4 Ver também: MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo Saquarema. São Paulo: HUCITEC; [Brasília, DF]: INL, 1987. 5 José Honório Rodrigues já registrou o fato de que o grande tema de Varnhagen foi a obra colonizadora de Portugal no Brasil, enquanto Américo Jacobina Lacombe destacou o apoio dado às linhas gerais da colonização portuguesa. O motivo subjacente, evidente na obra e na correspondência de Varnhagen, foi valorizar o predomínio da origem portuguesa em detrimento dos negros e indígenas, tema delicado numa época de grande afluxo de mão-de-obra africana e na qual correntes antilusitanas destacavam o papel indígenas na colonização. WEHLING, Arno, op. cit., p.187.

Estado Nacional brasileiro, concebida já como história do Brasil, João Francisco podia escrever uma história dos costumes e das práticas eleitorais de sua província natal, ou como chamavam à época, pátria natal, sem entender com isso que escrevia uma história regional e não nacional (LISBOA, 1995, p.114). Para Lisboa, o século XIX era justamente o século da nação e dos povos civilizados, assim como o era para Varnhagen (1995, p.238). A diferença foi que Varnhagen escreveu uma história geral do Brasil, uma história cujo sentido foi dado justamente em função da formação da nação e do Estado segundo a perspectiva das consequências temporais das ações do passado colonial em tal formação, e cujas fontes sem sua maioria ele descobriu, coletou, criticou ou editou. De maneira próxima porém diferente, João Francisco escreveu uma história do Brasil segundo a perspectiva de que uma descrição detalhada dos hábitos eleitorais e costumes de uma província eram tão importantes à História Pátria quanto uma grande história geral do Brasil. Ambas eram histórias do Brasil, escritas segundo uma perspectiva orientadora nacional, cuja produção valorizava enormemente a função do documento escrito, embora não eliminando o espaço de utilização potencial dos testemunhos não escritos em suas histórias. Se Capistrano pode considerar João Francisco Lisboa um dos grandes historiadores do Brasil, embora sem a genialidade de Varnhagen, foi porque este escreveu uma história geral e não monografias (1995, p.198). Além disso, reconhecia assim como Lisboa, o grande mérito da descoberta de documentos coloniais por parte do Visconde. Mesmo em relação à história do Maranhão por exemplo, o historiador cearense julgou haver uma pequena vantagem por parte de Varnhagen (ABREU, 1995, p.198). Segundo Capistrano, somente dois historiadores à época poderiam ter sobrepujado Varnhagen, embora não o tenham feito: João Francisco Lisboa e Joaquim Caetano da Silva (1995, p.200-201). Entretanto: Há alguns anos, quando não havia rebentado a luta entre os dois, Lisboa escrevia que a história do Brasil, depois do livro de Varnhagen, não seria novamente escrita tão cedo. As palavras de Timon se vão verificando: o trabalho é muito grande, as facilidades não são pequenas, e além disso, os homens que poderiam tomá-lo a si, vão desaparecendo. Se estudarmos a corporação que entre nós representa, ou pelo menos deve representar, os estudos históricos; se lançarmos os olhos para o Instituto Histórico, veremos aí homens distintos, e que têm adiantado nossos

conhecimentos em diferentes questões; nenhum, porém, será capaz de escrever uma história do Brasil (ABREU, 1995, p.200-201). Neste confronto dos enunciados acerca de como deveria ser escrita a História Pátria, entre uma história de caráter mais regional e uma história geral do Brasil, embora ambos os autores em questão julgassem que suas histórias fossem histórias do Brasil, o que podemos observar quanto às possibilidades discursivas de se efetuar uma série de enunciados acerca da história nacional é que até as primeiras décadas do século XX ao menos, a história do Brasil era considerada de forma privilegiada enquanto uma história geral do Brasil, cujo sentido era a formação da nação e do Estado Nacional. Embora Lisboa considerasse ter escrito uma história do Brasil, as avaliações posteriores o colocaram antes na classificação de uma história provincial, regional, ou melhor, das municipalidades. Em suma, o Brasil de Varnhagen era um Brasil de ares portugueses em razão da grande valorização do passado colonial e da colonização portuguesa. O Brasil de Lisboa, embora inserido nesse mesmo universo discursivo, era um Brasil aberto a uma análise singular, sem que com isso ele se considerasse um historiador provincial, ou de uma outra pátria, como chamavam à época. Bibliografia - ABREU, J. Capistrano de. Ensaios e estudos: (crítica e história). 1. série. Rio de Janeiro: Sociedade Capistrano de Abreu, 1931. - CARVALHO, José Murilo de. Lisboa e Timon: o drama dos liberais do império. In: LISBOA, João Francisco. Jornal de Timon: partidos e eleições no Maranhão. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.5-29. - CEZAR, Temístocles. L'écriture de l'histoire au Brésil au XIXe siècle: essai sur une rhétorique de la nacionalité : Le cas Varnhagen. Tese de Doutorado. Orientador: Prof. Dr. François Hartog. Paris: EHESS, 2002. -. Quando um manuscrito torna-se fonte histórica: as marcas de verdade no relato de Gabriel Soares de Sousa (1587). In: História em revista. Pelotas, RS Vol. 6 (dez. 2000), p.37-58. -. Varnhagen em movimento: breve antologia de uma existência. Topoi: Revista de História. Rio de Janeiro: Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ / 7Letras, v.8, n.15, p.159-207, jul.-dez., 2007.

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