Vem Dançar o Anarriê no Espetáculo Junino A Juventude Quadrilheira na Cidade de Salvador-BA



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Transcrição:

GT19 - Juventudes, territorialidades e identidades Vem Dançar o Anarriê no Espetáculo Junino A Juventude Quadrilheira na Cidade de Salvador-BA Catarina Cerqueira de Freitas Santos UFBA 1 Email: catarinacerqueira@oi.com.br Resumo: Em muitas festas da contemporaneidade a sociabilidade festiva é vivenciada pela juventude a partir da lógica do espetáculo. A festa junina, que ao passar dos anos incorporou uma série de elementos alheios aos aspectos mais tradicionais, é um momento de construção e/ou afirmação de identidades, principalmente para o público jovem. Dentro desse contexto, o presente trabalho tem por objeto de análise os grupos de jovens que dançam quadrilha na capital baiana. A proposta é analisar as modificações e ressignificações das quadrilhas e a inserção da juventude nesse processo, bem como perceber os diferentes interesses que (des)mobilizam esses jovens brincantes e as identidades construídas por eles a partir das suas experiências festivas. Palavras chaves: : quadrilhas juninas - juventude tradição espetáculo cultura popular 1 Mestranda do Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da UFBA. Atualmente participa do grupo, cadastrado pelo Cnpq, Oficina Cinema- História, e sob a orientação do prof. Dr. Jorge Nóvoa está desenvolvendo a dissertação de mestrado São João do Pelô: (Re)significações da Tradição no Espetáculo Junino. Essa pesquisa tem o apoio financeiro da FAPESB.

Introdução Espaços de encontros e trocas, as cidades são lugares por excelência de se fazer festa. Momentos de efervescência e êxtase, produção de memória e de (re) elaborações de identidades, as festas representam, sem dúvida, espaços de sociabilidade importantíssimos para as pequenas e grandes cidades brasileiras. Alguns festejos populares na contemporaneidade, entretanto, foram apropriados e transformados em mega-eventos com finalidades turísticas, prevalecendo a lógica dos interesses mercantis, e contribuindo para a retração de algumas manifestações populares. Isso ocorreu com a consolidação de uma sociedade de consumo, na qual os bens culturais também foram transformados em mercadoria a ser consumida, assentados no poder da mídia e do marketing. Se nessa sociedade do espetáculo (DEBORD, 1997) a cultura é pensada como uma cultura-mercadoria, a festa, nesses novos moldes, passaria a ser vista e consumida e não mais vivida. No Brasil, as Festas Juninas 2 possuem uma relevância cultural para as regiões Norte e Nordeste e atualmente oferecem uma mescla de características híbridas que condensam elementos da modernidade e da tradição. Nas últimas duas décadas, o São João em diversas localidades baianas tem se tornado uma festa cada vez mais espetacularizada, uma vez que agora os festejos são organizados com a participação de grandes grupos No Brasil, as Festas Juninas possuem uma relevância cultural para as regiões Norte e Nordeste e atualmente oferecem uma mescla de características híbridas que condensam elementos da modernidade e da tradição. Nas últimas duas décadas, o São João em diversas localidades baianas tem se tornado uma festa cada vez mais espetacularizada, uma vez que agora os festejos são organizados com a participação de grandes grupos multimidiáticos, empresas 2 O ciclo das festas juninas no Brasil gira em torno de três datas principais: 13 de junho, festa de Santo Antônio; 24 de junho, São João e 29 de junho, São Pedro. Comumente todo esse período é identificado unicamente como O São João. As festividades que compreendem o chamado ciclo junino - ou joanino tornaram-se muito expressivos nas regiões do norte e nordeste brasileiro, superando até mesmo o Natal, a principal celebração do calendário cristão.

de bebidas e comidas, promotores culturais, além do próprio Estado e das prefeituras das cidades. Essa comunicação é fruto da coleta de dados e das impressões iniciais do trabalho de campo desenvolvido a partir do projeto de mestrado São João do Pelô: (Re)significações da Tradição no Espetáculo Junino. Um dos objetivos desse projeto é analisar como são estabelecidas as relações entre manifestações culturais juninas e a dimensão mais espetacularizada da festa. Nesse sentido o estudo das quadrilhas é importantíssimo para as minhas análises já que a quadrilha, por si só, condensa elementos da tradição e do espetáculo. Foram realizadas entrevistas com integrantes da Federação Baiana das Quadrilhas Juninas (Febaq), bem como com componentes de diferentes quadrilhas baianas. Entretanto, a maior parte do trabalho de campo foi realizado junto com a quadrilha junina Asa Branca, onde foi possível, através do acompanhamento dos ensaios, conhecer um pouco do universo quadrilheiro e descobrir os interesses que movem os participantes a se engajarem nesse movimento. (Quadrilha junina Asa Branca Evento: Concurso Estadual de Quadrilhas Juninas 2009- Salvador/BA) Mas, de onde veio a quadrilha junina? Originária de uma contradança de mesmo nome trazida ao Brasil pela corte imperial portuguesa, ela teve suas figuras e passos modificados ao longo do tempo e dos lugares em que foi sendo executada. A princípio, eram quatro ou oito casais que se organizavam em duas filas uma em frente à outra, com

as quatro extremidades. As quadrilhas pertenceriam às danças baixas, assim chamadas porque nelas os casais fazem pequenos gestos cerimoniosos com os braços e pernas e quase não levantam os pés, evitando movimentos bruscos (Ribas, 1983). As descrições dos viajantes da época do Brasil colonial apresentam as quadrilhas como danças praticadas nos salões ricos da corte, tanto na cidade quanto no campo. Ao longo dos anos, a quadrilha democratizou-se até se tornar uma dança praticada pelos menos abastados, e claro, se transformou nesse processo. Mas por que e como essa dança se tornou uma importante referência da festa do interior? Segunndo Luciana Chianca (2010) O que explica esse deslocamento simbólico é o fato político e as implicações culturais da mudança de poder do Brasil republicano, quando os costumes do período colonial e imperial foram desprezados pelas camadas burguesas urbanas e citadinas. Provavelmente nesse momento a quadrilha teria sido abolida das festas dos citadinos ricos, continuando a ser dançada pela população mais distante dos grandes centros urbanos, os interioranos geograficamente e simbolicamente. A Quadrilha Junina Contemporânea Nobre e cortês na origem, a quadrilha tornou-se uma dança e um espetáculo popularizado e reinventado, marcando as festas de São João de todo o país. As transformações culturais que as quadrilhas sofreram correspondem a uma forma de adaptação a novas realidades sociais e aos novos sujeitos. Ainda que suas referências sejam rurais, a quadrilha na atualidade é também a expressão de uma cultura urbana condensando diversos elementos da modernidade. Canclini (2000) defende a idéia de que é necessário pensar que na cultura urbana também há cultura popular. Como o universo do popular equivocadamente costuma ser associado com o primitivo e com o que não é moderno, não se valoriza as manifestações da cultura popular urbana que estão presentes na sociabilidade citadina. Para Canclini é possível perceber que em algumas manifestações da cultura popular urbana, a (...) busca do moderno aparece como parte do movimento produtivo de âmbito

popular (CANCLINI, 2000, p. 206), contrariando uma concepção idílica da cultura popular como puro reflexo de um tempo arcaico. As quadrilhas incorporaram novos elementos com, por exemplo, a introdução de um tema gerador da quadrilha que propiciará a criação de um cenário específico, do figurino (cada dia mais sofisticado um matuto chique), da musicalidade e, claro, dos passos de dança. Alguns elementos ditos tradicionais ainda são obrigatórios; como a presença do casamento, grande roda, formação do túnel. No que diz respeito às quadrilhas baianas ainda existem alguns diferenciais se compararmos com as outras quadrilhas do Nordeste. Nos concursos nacionais as quadrilhas baianas são vistas pejorativamente como mais um grupo de axé porque são as únicas que se apresentam acompanhadas por músicos ao vivo. Outros elementos também se diferenciam: saias mais longas, que dão ideia de maior movimento, os cabelos das damas que ficam soltos, criando uma estética distinta das outras. A introdução de batidas mais fortes e de alguns passos de dança afro compõe ainda o quadro das especificidades baianas. (Fonte: Site São João da Bahia 2011)

Quando observamos o perfil dos participantes percebemos que a maioria tem entre 20 e 35 anos, mas o número de jovens com menos de 20 anos vem crescendo, segundo um dos diretores da quadrilha Asa Branca. Muitos são amigos, parentes, filhos ou vizinhos de pessoas que já dançaram ou continuam dançando.a década de 80 foi o auge das quadrilhas na Bahia. Só em Salvador no inicio da década de 90, segundo os dados da FEBAQ, havia 110 quadrilhas atuantes principalmente nos bairros populares. Hoje, entretanto, em toda a capital só existem 11 grupos de quadrilha. Quais seriam as causas de uma diminuição tão drástica? Os próprios quadrilheiros me informaram suas hipóteses sobre essa questão: 1) Violência e a marginalidade: Como o tráfico, e a violência em geral, os bairros ficaram muito perigosos e a as atividades que antes eram realizadas de maneira comunitária diminuíram, consequentemente as quadrilhas também perderam espaço. 2) Falta de apoio de órgãos estatais: O fato das quadrilhas não receberem investimentos concretos, acabou desmotivando vários quadrilheiros. O numero reduzido de concursos, e a premiação de valor baixo que é oferecida aos campeões, também é um fato destacado como desmobilizador 3) Outras formas culturais: O pagode e outras formas de sociabilidade que surgiram nos últimos anos contribuíram para a construção de identidades juvenis que não consideram a quadrilha junina como um elemento cultural relevante para a sua formação. Dentro dessa lista eu incluo ainda outro elemento recorrente na fala dos quadrilheiros, mas que geralmente não figura como um dos fatores determinantes para a diminuição do número de quadrilhas: a profissionalização das mesmas. As quadrilhas para se tornarem mais competitivas nos concursos, tendo assim maior visibilidade e, portanto chances maiores de atrair recursos, investiram na produção de verdadeiros espetáculos. Para colocar uma quadrilha na rua são gastos em média 25 mil reais. A quadrilha mais cara da

Bahia, Forró Asa Branca gastou no ano passado cerca de 40 mil reais. Os panos para produzir as roupas (muita seda e cetim) foram trazidos de São Paulo. Aliado a essa questão, coreógrafos, cenógrafos e estilistas profissionais, em alguns casos, são contratados para auxiliar na montagem da quadrilha. A luxuosidade e os custos decorrentes dessa opção, não são para todos. As quadrilhas que não conseguiram acompanhar tal evolução simplesmente sucumbiram. Uma questão polêmica em torno da profissionalização das quadrilhas surge quando o assunto é o dinheiro. Na maioria dos grupos, os músicos, as costureiras, os cenógrafos, e os profissionais que trabalham no apoio e na preparação da quadrilha são recompensados financeiramente. Já os dançarinos não recebem nada e pagam um carnê para poder dançar. Muitos dançarinos questionam essa relação desigual, mais o argumento de alguns donos de quadrilha é que os dançarinos são antes de tudo brincantes e não dançarinos profissionais ainda que alguns quadrilheiros tenham se tornado profissionais depois de ingressar nas quadrilhas. O argumento deles é simples: na verdade os dançarinos estariam contribuindo para a sua manifestação

cultural não morrer; pois sem esse dinheiro seria impossível dançar quadrilha. Alguns quadrilheiros mais debochados ainda afirmam: ninguém reclama por pagar por um abadá caríssimo durante o carnaval, qual o problema de pagar por uma vestimenta bem mais sofisticada para dançar quadrilha? Outro ponto bastante intrigante quando observamos os conflitos que emergem a partir da introdução de uma lógica espetacular diz respeito a participação de travestis nas quadrilhas. Na regulamentação dos concursos que ocorrem na Bahia é vetada a participação de travestis como damas (é importante destacar que um número considerado de homossexuais e travestis participam sempre como cavalheiros). A fala de uma dançarina que, discordando com tal regulamentação é bastante interessante. Para ela: A quadrilha hoje é um espetáculo. Os dançarinos representam um papel e, por isso, tanto faz uma mulher ou uma travesti fazerem o papel da dama. Contrariamente, o presidente da FEBAQ, entretanto, apoia-se no argumento da tradição para defender o veto às damas travestis. Pois defende que tradicionalmente na quadrilha o papel da dama é da mulher e do cavaleiro é do homem. Assim como não seria possível eliminar determinados elementos tradicionais da quadrilha (grande roda, túnel.. anarie..), não é possível alterar essa relação.

No momento é importante perceber as contradições que emergem nos discursos entre o que é concebido enquanto tradição e o espetáculo pelos participantes. Em determinados momentos tradição e espetáculo se articulam perfeitamente. Mas, nesse caso, estão em trincheiras opostas. Cultura: entre a negociação e o conflito

É impossível pensar tradição sem levar em conta inovação. A reflexão de Hobsbawn e Ranger (1984, p.9) sobre as invenções das tradições é bem recorrente nos estudos que buscam um contraponto da construção de uma noção de permanência e uma imutabilidade atemporal de determinados aspectos da cultura. Para o autor tradição é Um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas. Tais práticas de natureza ritual ou simbólica visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado, aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer uma continuidade com um passado histórico apropriado. Os autores apontam que a terminologia tradição inventada inclui tanto as tradições deliberadamente inventadas e institucionalizadas, quanto as que surgiram em determinado momento difícil de precisar e se estabeleceram com enorme rapidez. Tal reflexão é importante porque historiciza as práticas culturais e traz a tona, implicitamente a mutabilidade das culturas seja por razões endógenas ou exógenas. Contudo, rotular uma tradição como inventada não resolve a questão das tradições na contemporaneidade. Principalmente se levarmos em conta a significação que os sujeitos atribuem às suas tradições, ou seja, as representações e as identidades construídas a partir dessas tradições independentemente das invenções, uma vez que elas permanecem legítimas e reais para os seus atores. Na atualidade é muito corrente a apropriação das tradições culturais para fins turísticos e/ou mercadológicos. Isso ocorreu com a consolidação de uma sociedade de consumo, na qual os bens culturais também foram transformados em mercadoria a ser consumida, assentados no poder da mídia e do marketing. Se nessa sociedade do espetáculo (DEBORD, 1997) a cultura é pensada como uma cultura-mercadoria, a festa junina, por exemplo, é pensada como um produto turístico a ser vendido.

No caso da quadrilha junina, ainda que ela seja considerada um dos grandes símbolos das tradições das festas juninas, é fato que com a introdução de uma lógica mercadológica nesses festejos, a quadrilha junina perdeu espaço e em muitos casos se tornou um apêndice dos grandes shows musicais. Entretanto ela ainda se faz presente e sua presença é interessante para os organizadores dos festejos espetaculares para, de certa forma, legitimar o seu evento. Ao refletir sobre a cultura nos países latino-americanos na contemporaneidade, o autor Nestor Canclini (200) aponta que, seguindo a lógica da industrial cultural, o popular seria o que vende e o que agrada multidões. Nesse sentido o que importa é o popular enquanto popularidade, e obviamente produções da cultura popular também são apropriadas e ressignificadas pela indústria cultural para atender demandas mercadológicas. Na sua análise, a convivência entre o tradicional e o moderno, os conflitos e diálogos estabelecidos pelos domínios da cultura erudita, da cultura popular e da cultura de massa, acabam por produzir o que ele denomina de culturas híbridas. Há, contudo a necessidade de estabelecer um contraponto: a reapropriação das quadrilhas dos espaços e, principalmente - ainda que possa parecer contraditório, - da visibilidade que a Indústria Cultural pode possibilitar. É útil citar o exemplo das quadrilhas juninas de Salvador: durante anos, quando elas iam buscar apoio estatal, não eram recebidas e o apoio era recusado. Já a partir do ano de 2007, quando o São João foi considerado um produto turístico que deveria ser explorado as portas foram abertas para as quadrilhas, e hoje há um concurso estadual, promovido pela Secretaria do Turismo, importantíssimo para suscitar a criação de novos grupos quadrilheiros. È interessante visualizar outra questão: a FEBAQ sempre buscou financiamento para as quadrilhas através da participação em editais, mas nunca foi bem sucedida principalmente porque as quadrilhas, segundo os parâmetros estabelecidos pela secretaria do Estado, não estariam enquadradas nas manifestações da cultura popular. Quando iam solicitar patrocínio de instituições privadas a recusa era a mesma sob o argumento que

aquilo não era quadrilha de verdade. A partir de 2009 foi visível a mudança de postura dos grupos de quadrilha que para conseguir financiamento voltaram às origens, ou seja, resgataram elementos juninos mais tradicionais, na dança, na composição dos ritmos e nos temas escolhidos. Foi possível observar que nos últimos três anos, por exemplo, os temas escolhidos estão mais ligados à cultura nordestina, os cabelos das moças estavam presos e os passos de dança mais moderados. Isso é uma demonstração clara das estratégias dos grupos populares para obter determinados ganhos de grupos hegemônicos. Elencando tais elementos e pontuando as implicações da introdução do espetáculo na típica dança junina é possível afirmar que as quadrilhas juninas de Salvador são manifestações da cultura popular? Cultura e popular são duas expressões que quando estão juntas não são vistas com muita simpatia por determinados pesquisadores. Alguns teóricos não entendem que as relações sociais são dialéticas e, portanto categorias estanques e fechadas em si mesmas não dão conta dos fenômenos sociais! Por conta disso a formulação de um conceito de cultura popular e a categorização de uma manifestação como tal deve levar em conta o conflito e o embate em relação às culturas hegemônicas. A cultura popular não deve ser definida por uma essência, a priori, mas pelas estratégias instáveis, diversas com que os próprios setores constroem suas posições. Concordando com Cuche (2002, p. 149) Toda cultura particular é uma reunião de elementos originais e de elementos importados, de invenções próprias e de empréstimos. Com as quadrilhas juninas não é diferente: a relação de disputa, conflito, apropriações e (re)apropriações são eminentes nas relações circulares da cultura. Bakhtin (1999) problematizou a influência recíproca entre as práticas culturais populares e as hegemônicas, rompendo as fronteiras e sugerindo um fluxo regular de permeabilidade entre elas. Seu estudo enfoca a obra de Rabelais e os aspectos cômicos e do grotesco nas festas públicas de rua principalmente no carnaval que permitem a inversão momentânea da ordem. Bakhtin formula um conceito fundamental, a circularidade cultural, que vai ser

definido por Ginzburg como o influxo recíproco entre cultura subalterna e cultura hegemônica (GINZBURG, 1987, p. 20). Sendo assim o conceito de circularidade é bastante dialético e atual, por entender a cultura como algo dinâmico e como espaço de disputa de diversos setores sociais. Uma conceituação muito em voga para a compreensão das relações que são estabelecidas entre cultura popular\ massiva é a formulação proposta por Canclini sobre as culturas híbridas. O enfoque do livro Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade (2000) se direciona para as transformações das relações entre tradição e modernismo cultural e modernidade socioeconômica nos países latino-americanos. A tese de defendida por ele é que a globalização acentuou os cruzamentos interculturais, trazendo a tona novas formas culturais. Canclini procura construir uma nova perspectiva de análise do tradicional, levando em consideração as interações com a cultura de elite e com as indústrias culturais, para melhor sistematização, Canclini destaca alguns pontos, que vão de encontro a uma visão clássica de cultura popular, muito presente em estudos folcloristas criticados por ele. Ele próprio, entretanto, utiliza as terminologias folclore, culturas populares e culturas tradicionais como sinônimos, sem nenhum tipo de cautela. A primeira tese apontada pelo autor é que o desenvolvimento moderno não suprime as culturas populares tradicionais. Segundo o seu argumento, a expansão das comunicações massivas não acentuou o processo de extinção da cultura popular, vez que as culturas tradicionais se desenvolveram transformando-se (CANCLINI, 2000, p.215), e houve a necessidade do mercado de reconhecer a importância simbólica delas e, em certa medida, incorporá-las e difundi-las. Já que não se pode defender um desaparecimento das culturas tradicionais, cabe agora, segundo o autor, realizar estudos que questionem como elas estão se transformando e de que maneira ocorre a interação com as forças modernizadoras. Devemos estar atentos para perceber, segundo o outro argumento do autor, que o popular não é vivido pelos sujeitos populares como complacência melancólica para com as tradições (CANCLINI, 2000, p.221); existindo muitas

práticas que transgridem, através da crítica humorada, determinadas ordens sociais. Esse jogo de reafirmações de tradições que se tornaram hegemônicas ao mesmo tempo em que há a subversão paródica das mesmas é observado por Canclini em festas de rua, como o carnaval das cidades latinas ou no artesanato religioso exposto nas feiras populares que, com muita ambivalência, erotizam ou ridicularizam cenas bíblicas e imagens sacras. Se a crítica de Canclini é claramente voltada para os estudos folcloristas, observa-se, entretanto, que ele utiliza as terminologias folclore, culturas populares e culturas tradicionais como sinônimos, sem nenhum tipo de cautela no estabelecimento das diferenças entre elas. Esse tipo de confusão pode ser identificado como uma questão teórico-metodológica problemática, já que a adoção de determinados termos recupera sentidos históricos associados à idéia de atraso e inferioridade. O que mais nos preocupa, entretanto é que as abordagens sobre os processos de hibridismos culturais, sincretismos ou qualquer outro tipo de miscelânea são defendidas sem que seja realizado nenhum tipo de problematização. O cuidado é necessário porque tais construções teóricas podem veicular a idéia de que a mistura pode suprimir as marcas anteriores do que foi misturado. Ou, o que é mais preocupante, que essas misturas ocorrem de forma harmônica, sem conflitos e embates. Sobre esse processo, Durval Albuquerque nos lembra que: Fundir-se não é superar a diferença interna, é afirmá-la permanentemente, é afirmá-la como condição mesma da fusão. O sincretismo não é o desaparecimento da tensão entre o que se mistura, é a afirmação do conflito e da luta como a própria possibilidade do que aparece sincretizado. Albuquerque ( p.19) Não negamos a interação cultural e os processos diversos de apropriação cultural. Em hipótese alguma defendemos uma pureza cultural - e isso fica claro pelas escolhas teóricas que apresentamos até aqui. Apenas ao invés de adotarmos a concepção de hibridismo cultural, abraçamos a idéia de circularidade cultural, extraída a partir da obra de Bakhtin, citada anteriormente,

por acreditar que ela condensa com maior precisão e complexidade os movimentos contraditórios da cultura. Bibliografia: BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de Fraçois Rabelais. São Paulo: Hucitec: Editora da Universidade de Brasília, 1999. CANCLINI, N. G. Culturas híbridas. Estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: EDUSP, 1997 CHIANCA, L. Quando o Campo está na Cidade: Migração, Identidade e Festa. In: Revista Sociedade e Cultura, janeiro-junho 2010, vol. 10, nº oo1, Goiania. p. 45-59 CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: Edusc, 2002 HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. São Paulo: Paz e Terra, 1984. RIBAS, T. Danças Populares Portuguesas. Portugal: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Ministério da Educação, 1983.