Transformações no saber-fazer dos jornalistas a partir do digital: reflexos na formação profissional



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Transcrição:

Transformações no saber-fazer dos jornalistas a partir do digital: reflexos na formação profissional Tony Queiroga 1 tonyqueiroga@uol.com.br RESUMO O jornal impresso vive um momento de grave crise em boa parte dos mercados mundiais. Uma das forças motoras dessa situação é a mudança de paradigma tecnológico pela qual passamos. A informatização da sociedade, em particular o advento da internet, faz surgir novos hábitos de consumo de mídia; leitores e publicidade migram em grande parte para a web. Assim, o digital coloca em risco o futuro do jornal impresso e, talvez, o jornalismo como conhecemos hoje esteja em perigo. No entanto, a introdução do computador pessoal e da internet nas redações desencadeou uma revolução no modo de produção da notícia, especialmente por colocar ferramentas poderosas nas mãos dos repórteres. O que denominamos de tecnologias da notícia pode ser uma resposta ao desafio que jornais e jornalistas enfrentam. No entanto, o ensino dessas técnicas ainda não está devidamente contemplado pelas escolas de jornalismo no Brasil. Palavras-chave: Jornalismo. Crise. Tecnologias da notícia. Reportagem assistida por computador. Formação profissional. 1 Professor universitário, pesquisador na área de comunicação e novas tecnologias, além de fotógrafo e diretor de audiovisual. Doutor em jornalismo pela Universidade Nova de Lisboa (2009), Portugal; Mestre em Comunicação e Tecnologias da Imagem, pela ECO / UFRJ (1998). Atualmente leciona na Universidade Veiga de Almeida e na Faculdade CCAA, ambas no Rio de Janeiro (RJ). 31

E ste trabalho é um breve resumo dos resultados obtidos em nossa pesquisa de doutorado (2004-2009) 2, e suas consequências sobre a formação dos futuros profissionais de jornalismo, o que implica possíveis alterações nas capacitações desejáveis ao final do curso de graduação. A tese foi defendida e aprovada em julho do ano passado, na Universidade Nova de Lisboa (Portugal), sob a orientação do prof. Nelson Traquina. A investigação teve como objetivo analisar as amplas transformações ocorridas na rotina jornalística, principalmente durante a última década e meia, com o crescente investimento das tecnologias digitais no trabalho diário nas redações. Como contextualização desse fenômeno, descrevemos também o cenário no qual essas mudanças profissionais ocorrem, e com o qual tem direta relação. Basicamente, esse panorama inclui a crise que o jornal impresso vive com a competição direta da notícia publicada na internet, a mudança de hábitos de leitura por parte das audiências especialmente os jovens e a conseqüente migração de verbas publicitárias para a web, gerando uma perda de faturamento dos jornais, faturamento este já dilapidado pela menor circulação dos grandes jornais diários. Essa realidade, de alguma forma presente no Brasil e em Portugal (rea- 2 Título original do trabalho: Uma análise comparativa luso-brasileira das transformações na rotina jornalística com a introdução do computador e a chegada da internet às redações. 32

lidade coberta na nossa pesquisa de campo), é mais evidente nos mercados maduros dos países ricos, em particular nos EUA. Essas condições da comunicação social contemporânea trouxeram também desdobramentos na função do jornalista na sociedade, especialmente no que diz respeito à mudança do clássico papel de gatekeeper para o de principal encarregado de dar sentido ao fluxo infinito de informação nas sociedades atuais. Isto é, em um mundo de escassez de informação, cabia ao jornalista encontrar a informação relevante, fazer a triagem e a verificação do que seria publicado. No entanto, esse mundo já não existe. Atualmente vivemos em uma sociedade caracterizada pelo excesso da informação information overload. Nessas condições, os indivíduos em sociedade têm acesso a uma quantidade de informação inimaginada no passado, inclusive aquela oferecida por fontes primárias que antes só falavam com a mídia. Assim, de gatekeeper, de canal privilegiado da informação, o jornalista passará a ser valorizado pela capacidade de dar sentido ao fluxo narcotizante da informação, especialmente a encontrada na rede. Nesse novo cenário profissional, que pode parecer sutilmente igual ao anterior, a mesma tecnologia que dá origem à crise do jornal e do status do jornalista em sociedade, vai fornecer instrumentos para a superação desses mesmos desafios. 33

Em um ambiente de mídia no qual a comunicação acontece em todas as direções, em escala praticamente infinita, e cada vez mais suscetível às diversas formas de manipulação ideológica engendradas pelos agentes interessados em controlar a informação publicada, é de extrema importância dotar repórteres de meios para continuar fazendo um jornalismo o mais objetivo e isento possível. Para isso, o computador, a internet e a digitalização da informação na sociedade serão cada vez mais fundamentais na rotina das redações jornalísticas. Em resumo, o que está em jogo é a sobrevivência do formato do jornal impresso, e tudo o que esse modelo representa, bem como o futuro do papel social que o jornalismo construiu no desenvolvimento das democracias, especialmente nos últimos dois séculos. Da crise do jornal às tecnologias da notícia O jornalismo sempre dependeu das tecnologias que emprega (STEPHENS, 1993; LAGE, 2001; PINHO, 2003). A tecnologia não é apenas essencial para as formas de publicação de um jornal impresso por exemplo, novas técnicas de impressão alteraram a escala da tiragem dos jornais ou uma nova mídia faz surgir novos modelos de jornalismo, vide o telejornalismo. Ela também é marcante na forma de trabalho do repórter por exemplo, o telégrafo e depois o telefone 34

se tornaram ferramentas essenciais no dia-a-dia das redações. Portanto, mudanças tecnológicas afetam esses dois importantes aspectos do fazer jornalístico: o meio de publicação e a forma de produção do conteúdo. A crise vivida pelos jornais em papel hoje tem como origem as transformações geradas na mudança de paradigma tecnológico em toda a sociedade. Pelo menos desde o final da década de 1980, as tecnologias da comunicação e da informação transitam do padrão analógico para o digital, o que podemos denominar de convergência digital. Entre outras coisas, esse fenômeno da técnica gerou o aparecimento de uma nova mídia: a Mídia Digital. A sociedade passou a ter mais um canal poderoso de circulação da notícia, canal esse que vem se juntar e complementar as outras mídias já desenvolvidas. Na última década e meia, a internet se tornou no mais rápido e importante avanço tecnológico na comunicação de massa, atraindo centenas de milhões de usuários. Esse movimento é intensificado pela rapidez e facilidade da publicação de diversos tipos de informação, e pelo padrão de contéudo gratuito que foi adotado e permanece na internet até hoje. Portanto, é sob essas condições de origem que a crise do jornal se apresenta. Diversos analistas do desafio que os impressos enfrentam apontam que a melhor solução seria os jornais encontrarem um papel específico, algo que 35

suas características de produto permitissem fazer melhor do que qualquer outro veículo noticioso. Este nicho estaria centrado na contextualização e no aprofundamento dos temas socialmente relevantes, não em uma aposta na corrida contra a agilidade da internet e seus textos superficiais e incompletos uma característica marcante em boa parte do que é publicado na rede. Em poucas palavras, os jornais de papel devem apostar no aprofundamento das notícias em reportagens de fôlego (MEYER, 2007). Por outro lado, se o futuro do jornal está em perigo devido à mudança do padrão tecnológico da nossa cultura, essa mesma mudança disponibiliza novas ferramentas que vão permitir ao repórter produzir um jornalismo de maior qualidade, onde a capacidade de apurar e investigar é grandemente ampliada pela facilidade de processamento da informação nos computadores e a praticamente infinita disponibilidade de dados na internet, especialmente na web. A conjugação desses recursos na rotina do jornalista faz aparecer, principalmente a partir da década de 1990 nos EUA, novas técnicas de produção jornalística. Entre essas formas estão o jornalismo de precisão e a reportagem assistida por computador. Jornalismo de precisão é a aplicação de técnicas de pesquisa das ciências sociais na produção de reportagens. O pioneiro desse modo de fazer jornalismo foi o ameri- 36

cano Philip Meyer, ainda na década de 1960. Meyer usou técnicas de pesquisa de campo e análise estatística dos resultados para obter informação objetiva sobre uma revolta ocorrida em Detroit, nos EUA, em 1967. Como o volume de dados era muito grande, a análise só foi possível com o uso de computadores. Esse foi o primeiro caso de uso direto de computadores no fazer jornalístico. Reportagem assistida por computador (RAC) é um conceito que surge quando essas máquinas começaram a invadir as redações dos jornais americanos, ainda no final da década de 1980. Ela engloba todas as formas de pesquisa e apuração que utilizam o computador e dados digitalizados. Logicamente, esse tipo de reportagem teve crescimento exponencial com o aparecimento da internet e sua adoção pelos jornalistas durante a última década do século passado. Assim, de forma genérica, o uso do binômio computador-internet no trabalho jornalístico pode definir uma grande área de práticas denominada de reportagem assistida por computador. No caso, o jornalismo de precisão é uma das formas avançadas de RAC. Dispensável dizer que esses métodos são cada vez mais importantes no cotidiano de jornalistas, não apenas na América, mas em todas as latitudes, incluindo Brasil e Portugal. Na busca por saídas para a crise no qual se encontra, o jornalismo, especificamente a sua versão em papel, pode 37

e deve tirar o maior proveito possível dessas técnicas, de modo a produzir melhores reportagens e matérias de contexto e aprofundamento, apesar das adversidades a que hoje está sujeito menos infraestrutura nas redações, redução do número de jornalistas, aceleração do ritmo de trabalho, competição acirrada com outras formas de publicação noticiosa etc. Em termos conceituais, na nossa pesquisa, denominamos todos os diversos usos hoje possíveis do computadorinternet no cotidiano dos jornalistas de tecnologias da notícia. A pesquisa de campo A partir da importância que vemos nas denominadas tecnologias da notícia, não apenas na produção de jornalismo de qualidade, mas como uma resposta possível e eficaz para a crise, nosso trabalho privilegiou uma pesquisa de campo para entender como repórteres portugueses e brasileiros fazem uso do computador-internet no seu dia-a-dia. Primeiro, fizemos a opção por trabalhar com as redações de jornais impressos de qualidade. Entendemos que é nesse meio que estão as melhores condições para se fazer um jornalismo de ponta, crítico e reflexivo. Segundo, para representar esse segmento, foram escolhidos alguns dos principais diários de Portugal e Brasil. Nossa amostra de conveniência incluiu: Correio Braziliense, Folha de São 38

Paulo, Estado de São Paulo, JB, O Dia, Zero Hora, Revista Época e Diário Catarinense (Brasil); Público, Jornal de Notícias, Correio da Manhã e Revista Visão (Portugal). No total responderam ao questionário da pesquisa 225 jornalistas, entre repórteres e editores, a maior parte deles via e-mail a outra parcela menor respondeu presencialmente. O foco do questionário estava na mensuração do uso do computador-internet pelos jornalistas no cotidiano (fazer), bem como na opinião sobre esse uso (saber). Em resumo, tentamos medir o saber-fazer dessas práticas profissionais. Alguns resultados A totalidade das respostas foi processada com o auxílio do programa estatístico SPSS (Statistical Package for the Social Sciences), o que gerou em uma quantidade muita grande de resultados. Abaixo, apenas uma pequena parcela dos mais relevantes. Uma primeira constatação importante foi o amplo desconhecimento dos conceitos de jornalismo de precisão e RAC entre os jornalistas dos dois países. Na média, cerca de 55% dos jornalistas não conhecem os conceitos, isso sem contar os casos de falsos positivos gerados pelo entendimento, mesmo que errado, desses conceitos, de certa forma auto-explicativos na própria nomenclatura o que foi constatado entre os respondentes. Acreditamos que o 39

conhecimento correto dos conceitos de jornalismo de precisão e RAC seja relativamente menor. Apesar desse desconhecimento, fruto da ausência de conteúdos sobre as tecnologias da notícia nos cursos de jornalismo, é certo e evidente que os jornalistas dos dois países praticam a RAC, bem como em alguns casos, aplicam técnicas de jornalismo de precisão. Isso se deve, entendemos, ao grande apelo do computador-internet como instrumento de produção jornalística. Significa também que, apesar do pouco conhecimento e treinamento, repórteres tentam tirar o máximo dessas ferramentas, o que é encorajador. Por exemplo, uma parcela muito significativa faz uso cotidiano e intenso do e-mail e das pesquisas online como auxílio ao trabalho de reportagem. Embora escassos e limitados, os processos de formação e treinamento na área das tecnologias da notícia são mais evidentes no Brasil do que em Portugal, com destaque para a Folha de São Paulo, jornal que oferece regularmente algum treinamento em RAC aos seus contratados. Isso é, embora o início da informatização das redações dos grandes jornais de ambos os países tenha começado há mais de duas décadas, os jornais não pensaram programas regulares de treinamento para melhorar a utilização do computador e da internet pelos repórteres nas atividades normais de apuração, salvo a única excessão brasileira. 40

Também podemos constatar que, apesar das distâncias culturais e de formação, e da falta de intercâmbio entre portugueses e brasileiros, existe uma grande similaridade entre ambos no que se refere às práticas das ferramentas digitais nas redações dos dois lados do Atlântico. Essa constatação reforça os estudos de Traquina (2002) e outros que apontam para os jornalistas como fazendo parte de uma tribo internacional isto é, compartilham, por força da profissão, de uma cultura básica, expressa aqui pela apropriação utilitária dessas ferramentas digitais na medida que elas permitem o acesso a uma imensa quantidade de informação, com grande economia de tempo variável chave da profissão. As respostas dos jornalistas também indicam uma consciência muito forte das transformações pelas quais passam o jornalismo. Por exemplo, a grande parte dos repórteres dos dois países concordou que a tecnologia digital transformou radicalmente o modo de se fazer jornalismo. Ao adotar a web como fonte de informação, os repórteres são críticos e mantêm um alto grau de questionamento sobre a confiabilidade dos conteúdos disponíveis. Na mesma direção, apesar da intensa utilização das ferramentas digitais na rotina de trabalho, os jornalistas manifestaram alguma resistência contra a adoção sem freios das novas tecnologias. O que não é necessariamente uma má notícia, tendo em vista que existem problemas e cuidados para uma boa utilização da internet. 41

Segundo a amostra dos dois países investigados, por mais que o apelo prático da internet seja forte, como vimos, os profissionais da notícia ainda não abandonaram o uso de uma das suas ferramentas mais tradicionais: o telefone. No entanto, podemos dizer que a internet se tornou uma ferramenta mais importante que este último, particularmente entre os portugueses. Como resultado desses tempos de grandes mudanças, decididamente existe um certo mal-estar na profissão. Ele se expressa no substancial nível de pessimismo entre os jornalistas investigados em relação ao futuro da profissão. Nesse item, também os portugueses são mais pessimistas que os seus colegas brasileiros. No contexto que se desenha a partir dessas conclusões, fica evidente a transformação operada por esses instrumentos no cotidiano dos jornalistas, muito embora ainda exista um potencial latente a se explorar. Isso é, mesmo sem formação específica, repórteres fazem uso intenso do computador e da internet. No entanto, para a melhor prática, ainda falta alcançar uma capacitação no uso produtivo dessas ferramentas digitais. Uma resposta possível: melhorar a formação do futuro profissional A tecnologia digital transformou o modo da produção jornalística desde o primeiro dia em que o computa- 42

dor entrou na redação e isso já faz mais de três décadas. Depois desse encontro, e cada vez mais rapidamente, tudo mudou. A rotina de trabalho, o ambiente nas redações, as ferramentas para a reportagem, as formas de publicação e até mesmo o próprio papel social do jornalista construído com cuidado a partir do desenvolvimento da idéia de democracia e da livre circulação da informação, tudo está em acelerada transformação. O binômio computador-internet permitiu o maior salto tecnológico na história do jornalismo. Em suma, esse conjunto digital representa um novo meio de publicação para o jornalismo, uma mídia; bem como, constitui um novo tipo de ferramenta de grande poder para o trabalho jornalístico. A internet é a face mais visível e comentada do fenômeno; o jornalismo online significou, ao mesmo tempo, uma nova forma noticiosa e uma ameaça para os antigos canais de divulgação da informação, principalmente para os veículos impressos. Mas, esse novo ambiente também representou o aparecimento das aqui denominadas tecnologias da notícia. O futuro dos jornais depende basicamente da qualidade da informação que eles vão conseguir colocar no papel ou em qualquer outro suporte alternativo 3. Entendemos que as tecnologias da notícia são instrumentos fundamen- 3 Hoje, praticamente todos os jornais são híbridos. Existem no papel e na web. 43

tais para alcançar esse objetivo. Contudo, por si só, elas não podem ser encaradas como a panacéia dos problemas atuais do jornalismo. Como qualquer instrumento, elas dependem do bom uso, o que no jornalismo significa repórteres capacitados e preparados, em todos os aspectos. Como os resultados da pesquisa mostraram, os profissionais brasileiros e portugueses ainda carecem muito desse preparo. O alto desconhecimento dos conceitos básicos indica o quanto ainda há por fazer nesse campo, embora isso não impeça que os repórteres já façam uso produtivo dessas ferramentas. Porém, isso só reforça o potencial que ainda está por ser explorado: os jornalistas poderiam fazer mais a partir de treinamento adequado, inclusive iniciado durante seus anos de formação nas escolas de jornalismo. Tendo em vista o potencial das tecnologias da notícia, conforme a experiência dos jornalistas americanos, os primeiros a adotar o computador e a rede como instrumentos de trabalho, é importante garantirmos as melhores condições para que essas técnicas possam fazer parte das rotinas nas redações dos jornais, grandes ou pequenos, de todas as partes do país, de forma mais intensa e produtiva. O bom uso desses instrumentos pode representar um caminho mais seguro para o futuro do jornalismo entre nós. É necessário então transformar a realidade profissional. Esse processo deve começar pela disseminação das boas práticas com as ferramentas digitais, o que, em outros 44

termos, significa diminuir as barreiras que existem para a sua maior difusão, principalmente aquelas referentes à capacitação e ao treinamento dos repórteres. Assim, entendemos que a transformação dessa realidade precisa começar dentro das próprias escolas de jornalismo com o ensino das técnicas nas disciplinas de formação, bem como a valorização do treinamento entre os jornalistas nas redações, um descaso imperdoável das direções dos jornais. Um aspecto dessa questão é que a profissão de jornalista claramente precisa de formação continuada, no entanto, talvez nenhuma outra área profissional dedique tão pouco espaço para o aprimoramento do que o jornalismo produzido na grande imprensa nacional. É evidente que as transformações operadas pela tecnologia digital foram de alguma forma assimiladas pelos cursos de jornalismo, no entanto, o que se privilegiou foi a vertente mais visível do fenômeno. Praticamente não há curso de graduação que não cubra o conteúdo denominado de jornalismo online, ou uma das suas outras denominações 4. No caso, o que geralmente se ensina, ou ao menos se apresenta, são as novas formas de publicação da notícia, agora na sua versão digital em rede. Se prepara o aluno para pensar na publicação para web, a adaptação do texto para a tela, os recursos multimídia, as questões de diagramação etc. 4 Outros nomes que encontramos: jornalismo digital, webjornalismo ou mesmo ciberjor- Outros nomes que encontramos: jornalismo digital, webjornalismo ou mesmo ciberjornalismo. 45

Portanto, o que os currículos tentam passar cobre apenas uma das transformações que o digital traz para o jornalismo. E, em nossa opinião, talvez não a mais importante. Os programas basicamente ignoram que a forma de trabalhar do repórter é profundamente alterada com o computador e a internet. Apresentar as novas ferramentas digitais, as tecnologias da notícia, praticamente não faz parte de qualquer curso de formação, pelo menos no nível da graduação no país. Para que as redações brasileiras possam, em futuro próximo, fazer um maior e melhor uso do computador e da internet seria preciso enfrentar essa deficiência incluindo, por exemplo, pelo menos uma nova disciplina em paralelo a que hoje encontramos em todos os currículos. Contemplar o estudo do digital como meio de publicação, bem como instrumento do jornalismo, é o que devemos esperar de uma boa escola profissional que entendeu os desafios tecnológicos que toda a comunicação social enfrenta hoje. A introdução do ensino das tecnologias da notícia nos currículos das escolas de jornalismo é uma necessidade urgente. Essa ação permitirá uma introdução básica ao tema já na formação dos futuros profissionais, que deveria ter início em um estudo conceitual introdutório, partindo rapidamente para as imensas dimensões práticas das técnicas. Os melhores cursos americanos fizeram isso há muito tempo e com bons resultados. 46

Enquanto os responsáveis pelas diretrizes curriculares da área não se manifestam, um passo simbólico para iniciar essa discussão necessária seria a tradução para o português da obra inaugural do jornalismo de precisão, Precision Journalism, o primeiro e fundamental manual sobre a aplicação das técnicas de pesquisa social ao jornalismo, escrito por Philip Meyer ainda na década de 1970. O livro permanece inédito entre nós. As notícias divulgadas pela mídia são, em boa parte do mundo contemporâneo, a principal fonte de informação pública. Elas permanecem sendo a fonte primária pela qual os cidadãos conseguem as informações necessárias para fazer suas opções pessoais, seja em assuntos públicos, seja no mais privado dos temas. Nada indica que deixarão de ser tão cedo. Não é possível, no complexo mundo de hoje, imaginarmos a vida sem as notícias. Os jornais, como empresas e como instrumento básico das democracias, terão de ser cada vez mais eficientes. No aspecto econômico, devem encontrar a estrutura ideal para a produção do jornal do futuro. No aspecto do seu papel social, precisam dar conta, mesmo com todas as restrições impostas por questões econômicas, de continuar a ser a voz dos interesses difusos na sociedade e exercer o controle dos poderes constituídos, como também ser o espaço de debate público das questões fundamentais que nos orientarão para o futuro. 47

Para garantir esse destino, é preciso começar já. Nessa situação, papel fundamental cabe às escolas de formação dos futuros profissionais. Orientar o já natural uso das tecnologias digitais na produção de um jornalismo de qualidade é um desafio não desprezível, mas que deve ser logo encarado. Aumentar a qualidade e o impacto da informação jornalística nas sociedades contemporâneas, tarefa a qual as tecnologias da notícia podem dar forte contribuição, é um dos caminhos possíveis para, assim como ontem e hoje, podermos manter vivo o jornalismo amanhã e no dia depois de amanhã. Referências Bibliográficas LAGE, Nilson. A reportagem: teoria e técnica de entrevista e pesquisa jornalística. Rio de Janeiro: Record, 2001. MEYER, Philip. Os jornais podem desaparecer?: como salvar o jornalismo na era da informação. São Paulo: Contexto, 2007. PINHO, J. B. Jornalismo na Internet. São Paulo: Summus, 2003. STEPHENS, Mitchell. História das Comunicações. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1993. 48

TRAQUINA, Nelson, Uma Comunidade Interpretativa Transnacional: a tribo jornalística. Media & Jornalismo 1, Lisboa, p. 45-64, 2002. 49