PANACCIO, C. Qu est-ce qu un concept. Paris: Vrin, 2011, 124 p. (Coleção Chemins Philosophiques).

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Transcrição:

PANACCIO, C. Qu est-ce qu un concept. Paris: Vrin, 2011, 124 p. (Coleção Chemins Philosophiques). Júlia Rodrigues Molinari* O livro de Claude Panaccio faz parte da coleção Chemins Philosophiques da Editora Vrin, que tem como objetivo realizar uma exposição breve e de fácil compreensão sobre temas filosóficos de diversos campos, e como público alvo estudantes de graduação, ensino médio ou leitores com pouco conhecimento no assunto. Com o título O que é um conceito?, este livro pretende apresentar de maneira simples e didática uma discussão atual sobre diversas teorias acerca do que seriam os conceitos, e qual a relevância filosófica dessa noção. O autor se propõe a analisar a noção de conceito partindo de uma pequena apresentação de seu significado, seguida de uma descrição de como esta ideia aparece em diversos autores, começando na antiguidade e passando por alguns nomes medievais e modernos, para chegar nos desdobramentos de discussões contemporâneas. O livro dá destaque, entre outros, a autores como Aristóteles, Agostinho, Tomás de Aquino e Guilherme de Ockham, e retoma algumas de suas noções, buscando mostrar sua relevância para questões atuais. Panaccio já havia indicado, ainda, em outras obras, o desejo de realizar esse procedimento de atualização dos textos de Ockham em relação a questões sobre teoria do conhecimento, como é dito no prefácio do livro Ockham on concepts. 1 Assim, esta pequena obra parece estar incluída num projeto maior do autor, de trazer o nominalismo ockhamiano acerca dos conceitos para as discussões atualmente vigentes. * Graduanda no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo sob orientação do prof. José Carlos Estêvão e bolsista da FAPESP. 1 PANACCIO, C. Ockham on concepts. Burlington: Ashgate Publishing Company, 2004.

2 A argumentação é apresentada em um percurso compreensível, expondo a noção de conceito como algo necessário para explicar certos modos de comportamentos cotidianos dos homens, assim como para sustentar certas teses dentro das ciências humanas e, entretanto, como uma noção cuja definição não encontra ainda um consenso nos autores atuais, nem sequer uma teoria completa que consiga solucionar todos os problemas inerentes a ela. O livro é dividido em duas partes. A primeira consiste na exposição da posição do autor, a partir da comparação de diversas teorias sobre o que é um conceito; a segunda, apresenta duas pequenas traduções de textos de dois autores, Guilherme de Ockham e Jerry A. Fodor, seguidas de comentários, a fim de corroborar o que foi argumentado na primeira parte. A estrutura da exposição é bastante didática, como bem pretende a obra, mas a dificuldade aumenta conforme o autor chega a problemas que ainda não possuem uma solução muito clara. Buscaremos aqui mostrar em linhas gerais o caminho da exposição, realizando alguns comentários acerca da posição do autor. O livro se inicia indicando que nosso pensamento é composto por conteúdos complexos, que podem ser divididos em partes menores e unitárias. Essas partes unitárias, elas mesmas indivisíveis, são identificadas como conceitos. É afirmado que elas são capazes de serem combinadas de diversos modos em pensamentos complexos, chamados de proposições, passíveis de serem julgados verdadeiros ou falsos. Os conceitos são, assim, de um modo mais técnico, unidades subproposicionais, que podem ser combinadas umas com as outras de muitos modos. Segundo Panaccio, essa noção de conceito percorreu a história da filosofia ocidental. Aristóteles já identificava essa estrutura do pensamento, quando chamava essas unidades de noêma (p. 8), e as considerava como as partes que compõem todo pensamento abstrato. A palavra conceito é, em seguida, vinculada ao vocabulário latino dos autores medievais, vocabulário este que permaneceu em uso em detrimento do termo grego. De acordo com o texto, também os medievais, a partir da leitura de Aristóteles, discutiram a existência, a natureza e a origem dessas unidades que compõem o pensamento. Ainda, outros

3 autores como Descartes, Locke, Kant e Frege são mencionados por Panaccio como parte dessa discussão. Mas o que parece haver de comum entre todos eles, segundo nosso autor, é a concordância em asseverar que tais conceitos são aquelas unidades de pensamento que aparecem na definição aristotélica como tendo a função de compor uma proposição. Tendo estabelecido esse ponto de partida comum, Panaccio afirma que atualmente essa discussão ainda não foi concluída, e faz parte do campo da filosofia da mente e da psicologia. Desse modo, ele começa propriamente a apresentar algumas questões acerca do tema. Em primeiro lugar, é afirmado que a existência dos conceitos não é algo postulado, nem também algo conhecido empiricamente, pois não é possível haver qualquer tipo de apreensão ou percepção deles. Em vista disso, a discussão sobre a existência dos conceitos se encontra num campo de hipóteses, mas hipóteses que são criadas em vista de explicar certas coisas, estas sim passíveis de serem percepções cotidianas. A tese central que precisa, portanto, ser explicada e justificada nessa obra é aquela que afirma ser o pensamento humano feito de proposições, que podem ser julgadas verdadeiras ou falsas, e que são compostas por unidades subproposicionais chamadas conceitos. Panaccio nos diz, então, que é preciso esclarecer a natureza e as implicações dessa hipótese dos conceitos como unidades de representação mental. Para isso, ele aponta três exigências que são características de uma teoria dos conceitos e que nela precisam ser garantidas (p. 13): 1) Semântica: os conceitos devem ser estruturas mentais que representam uma realidade; 2) Sintática: os conceitos devem poder ser combinados, compondo proposições e julgamentos; 3) Epistemológica: a atribuição de conceitos como estruturas do pensamento humano precisa explicar parcialmente o comportamento humano, isto é, deve em alguma medida ser causa dele. Assim, para que uma hipótese de conceitos como representações mentais seja bem estruturada, é preciso que ela apresente argumentos para explicar e

4 justificar esses três critérios apresentados. Tendo em vista isso, Panaccio buscará, ao longo do livro, uma teoria que melhor dê razões suficientes para as três exigências citadas, a partir da análise e comparação de teorias de diversos autores da história da filosofia. Supomos aqui que esses três critérios são apresentados para, de algum modo, justificar a utilidade de se estabelecer uma teoria da cognição baseada na hipótese da existência de conceitos. De alguma maneira, as exigências permitem estabelecer explicações cujo uso, segundo o autor, se faz necessário em alguns campos das ciências humanas e da vida prática cotidiana. Essa justificativa, de fato, parece imprescindível, pois o autor indica que existem algumas teorias que pretendem descartar a hipótese dos conceitos, buscando em seu lugar uma explicação no campo da neurobiologia. Entretanto, entendemos que, se for possível mostrar que esses três critérios podem ser sustentados, há de fato alguma utilidade no desenvolvimento de uma teoria sobre os conceitos. Ao argumentar que alguns pretendem descartar tal hipótese, Panaccio apresenta argumentos de Guilherme de Ockham para, em primeiro lugar, justificar hipótese da existência dos conceitos, antes mesmo de tentar satisfazer seus três critérios. O procedimento aqui parece pertinente, ao levar em consideração que, antes de se apresentar uma teoria dos conceitos, é preciso justificar sua necessidade, indicando também outras propostas de explicações atuais. Não obstante, ele não recusa a abordagem da neurobiologia, mas apenas indica que uma teoria da cognição baseada em conceitos possui suas utilidades e, por isso mesmo, não precisa ser descartada. O fato de Panaccio utilizar um autor medieval para justificar este argumento é, ademais, uma abordagem interessante. Ao tratar de Guilherme de Ockham, ele mostra a relevância e atualidade de algumas discussões dos medievais, algo que em muitos casos é ignorado por autores contemporâneos. A posição de Ockham é contraposta a outras abordagens de soluções para o problema da realidade dos conceitos, sendo escolhida como aquela que melhor serve para o que Panaccio pretende sustentar.

5 Um dos autores apresentado como possibilidade de solução é Tomás de Aquino, cuja teoria estabelece que os conceitos são objetos intencionais, isto é, objetos aos quais o pensamento se direciona e cuja existência difere do próprio pensamento. Também a posição de Frege é explicada em linhas gerais, mostrando que alguns afirmam a existência dos conceitos como entidades abstratas independentes da mente e existentes em um terceiro mundo (nem na mente, nem nas realidades externas a ela). Ambas são descartadas, optandose pela posição de Ockham, na qual os conceitos são atos de pensamento realmente existentes, que não diferem do próprio pensamento nem existem num mundo separado. Segundo essa concepção, os conceitos são signos mentais que têm por função representar coisas singulares e existentes. Estabelecido isso, Panaccio segue sua exposição a partir dessa definição dos conceitos como representações mentais que, segundo ele, é a mais utilizada atualmente pelos psicólogos e filósofos ditos cognitivistas ( cognitivistes, p 18). Ao longo da obra, ele cita outros autores com posições em certa medida semelhantes a Frege, mas sempre para mostrar que elas devem ser descartadas devido aos problemas que elas acabam por gerar. Ainda, o primeiro apêndice do livro, que apresenta um texto de Guilherme de Ockham, busca comentar com mais detalhes agora a partir do próprio texto do autor essa definição dos conceitos como atos mentais realmente existentes, capazes de representar coisas singulares. Tendo em vista essa definição dos conceitos como atos ou estados mentais que representam objetos singulares, o texto passa então a considerar uma primeira função desses conceitos: a categorização da realidade. Essa função consiste no nosso julgamento que classifica realidades que observamos a partir de algum conceito. Por exemplo, se vejo um cavalo, julgo que ele faz parte do grupo referente ao conceito de cavalo que já tenho em minha mente. A questão posta é: como nós realizamos essa classificação, ou então, como nós vinculamos uma certa realidade a um certo conceito que temos e não a outros? A pergunta sobre o funcionamento da categorização levará à exposição de várias tentativas de respostas, principalmente no campo da psicologia. Panaccio apontará os prós

6 e contras, assim como a possibilidade de compatibilizar diversas teorias em uma mesma explicação. Mas os conceitos, para além da mera categorização, possuem uma função semântica, isto é, não servem apenas para classificar, mas também representam certas coisas da realidade (p. 36). Por isso, o passo seguinte apresentado pelo livro é a investigação da dimensão semântica dos conceitos. Nesse capítulo, procura-se estabelecer um modo de cumprir a primeira exigência apresentada como condição para uma teoria dos conceitos: que eles possam representar, de alguma maneira, uma realidade. Pergunta-se agora, portanto, como os conceitos são capazes de representar outras coisas que não eles mesmos. Uma primeira análise a ser feita consiste no fato de que, se considerarmos que o estado mental de uma pessoa, e que corresponde a um determinado conceito, é singular e distinto do estado mental de outra pessoa tese que já foi justificada ao se abandonar a ideia dos conceitos como entidades abstratas independentes do pensamento, então o conceito de algo (de cavalo, por exemplo) em alguém deve ser diferente do conceito dessa mesma coisa no pensamento de outra pessoa. Isso poderia levar à conclusão de que os conceitos não são capazes jamais de representar as mesmas coisas para pessoas distintas, pois cada pessoa possui um conceito realmente diferente de qualquer outra. A dimensão semântica dos conceitos, porém, ao contrário da mera categorização, permite evitar essa dificuldade. Panaccio afirma que, ainda que o conceito de cavalo, por exemplo, seja diferente em cada uma das pessoas, visto que são estados mentais distintos, em todos os casos ele possui a mesma função semântica de representar todos os cavalos singulares. A função semântica é identificada como uma capacidade de representação dos conceitos, vinculada a uma universalidade na sua significação, que é sempre a mesma, não importando que o conceito seja realmente distinto na mente de cada pessoa. Essa explicação parece se assemelhar muito à teoria dos conceitos como signos naturais nos

7 textos de lógica de Guilherme de Ockham, ainda que Panaccio não atribua essa explicação a ele. 2 Segundo Panaccio, os psicólogos se concentraram principalmente na dimensão da categorização, inclusive realizando diversos experimentos empíricos para tentar formular uma teoria mais precisa de como ela ocorre, mas deram pouca ou nenhuma importância à dimensão semântica dos conceitos. A filosofia é apontada aqui como aquela que deu destaque ao estudo da função semântica dos conceitos, algo que Panaccio parece considerar de muita importância. Não é dito, entretanto, que essa discussão semântica pareça se aproximar da discussão sobre lógica nos autores medievais, em especial em Guilherme de Ockham. É possível ver aqui, novamente (ainda que não de modo explícito), uma certa atualização das discussões medievais para a atual concepção dos conceitos. Supomos que o longo estudo dessas obras de lógica realizado por Panaccio em alguma medida influenciou sua abordagem que destaca a função semântica dos conceitos. Podemos resumir a descrição do campo semântico dos conceitos em duas perguntas: por que os conceitos representam semanticamente algumas coisas do mundo e outras não? Ou ainda, por que meu conceito de cavalo pode representar todos os cavalos do mundo, mas não todos os cães, por exemplo? Não se trata mais de discutir como classificamos em uma categoria as coisas que percebemos, mas sim de nos perguntarmos sobre a capacidade de significação dos conceitos. Para tratar dessas dificuldades, Panaccio indica três possíveis teorias: (1) a teoria da semelhança; (2) a teoria da causalidade; (3) a teoria da finalidade. As vantagens e desvantagens das três são expostas, buscando qual delas seria capaz de garantir também que as outras duas exigências iniciais sejam satisfeitas. Por fim, a partir dessa comparação, Panaccio opta pela terceira, pois considera que ela parece resolver melhor os problemas colocados e os critérios 2 Ockham define os conceitos como unidades de pensamento que surgem naturalmente na alma a partir de um processo apreensivo e que têm a capacidade de significar naturalmente aquelas coisas que causaram sua apreensão. Eles são, portanto, signos naturais singulares que têm uma função de significar universalmente quando colocados dentro de uma proposição. Cf. GUILHERME DE OCKHAM, Suma de Lógica [Suma de Lógica, parte I]. Tradução de F. Fleck. Porto Alegre, Edipucrs, 1999. cf. tb. PANACCIO, Ockham on Concepts, 2004.

8 pré-estabelecidos, ainda que ela não seja uma teoria completamente consolidada. Além disso, uma quarta posição, chamada de inferencialista ( inferencialiste, p. 52) por Panaccio, é indicada e rapidamente descartada sem muitas explicações. O segundo apêndice do livro, entretanto, apresenta um comentário que busca recusar essa posição com um pouco mais de detalhes. A teoria da semelhança aponta que há algo nos conceitos que se assemelha às coisas que ele significa e por esse motivo ele é capaz de representálas. Essa teoria é identificada como sendo a posição dos autores antigos e medievais, sendo chamada por Panaccio de teoria clássica. A teoria da causalidade, por outro lado, diz que os conceitos são capazes de representar as coisas que os causam, isto é, as coisas que produzem uma apreensão que levaria ao surgimento do conceito no pensamento. Por último, a teoria da finalidade defende que os conceitos representam as coisas segundo uma função que é atribuída por nós a ele, isto é, que os conceitos podem ter diferentes finalidades e representar as coisas segundo as finalidades que são a eles dadas. As duas primeiras teorias são indicadas como insuficientes para explicar a representação, enquanto que a terceira é dita não descartar as anteriores, mas sim abranger uma explicação maior e, por isso mesmo, mais completa. A teoria da finalidade, ademais, parece ser a escolhida por ser a que melhor garante a satisfação dos três critérios apresentados inicialmente (semântico, sintáxico e epistemológico). Nesse ponto do livro, parece haver uma excessiva simplificação na divisão apresentada, ao indicar que os autores medievais se encontram unicamente na teoria da semelhança. É certo que o tema da similitude é abordado por diversos autores e utilizado como explicação para a relação entre o nosso conhecimento e a realidade, mas não é apenas ele que compõe a concepção de conhecimento conceitual no período medieval. A ideia de causalidade, por exemplo, não somente surge como um passo necessário para a apreensão do conceito em diversos autores que participaram da tradição dos estudos de Aristóteles, como Tomás de Aquino e Duns Escoto, mas também como aquilo mesmo que permite que os conceitos representem as coisas apreendidas, na teoria dos signos naturais de Guilherme de Ockham.

9 Ademais, a própria ideia de um conceito representar as coisas segundo sua finalidade pode ser encontrada na lógica de Ockham, dentro da teoria da suposição, como explicaremos a seguir. A suposição é a função que os conceitos possuem dentro de uma proposição de significar segundo um modo específico, isto é, de significar enquanto colocado no lugar de algo. Assim, um conceito pode ter sua significação natural, ou seja, significar aquilo que o causou, ou então supor por algo que não corresponda a isso, como por exemplo na frase cavalo é palavra, na qual cavalo supõe não pelos cavalos singulares e existentes no mundo, mas sim pela própria palavra. Poderíamos dizer, anacronicamente (visto que Ockham não usa esse termo), que na frase indicada o conceito tem a finalidade de representar algo outro que não aquilo que o causou. Isso nos faz concluir que, pelo menos dentro do âmbito da lógica, um conceito pode ter diversas finalidades de representar diferentes coisas. 3 Questionamos a necessidade de Panaccio classificar os autores clássicos exclusivamente na teoria da semelhança, visto que ele também conheceria os pontos de convergência com as outras teorias, que acabamos de apresentar. A divisão nos pareceu demasiadamente simplificada. Entretanto, talvez fosse a intenção do autor não se aprofundar demais nessa classificação, dada a função introdutória do livro. Os dois últimos capítulos da obra são dedicados a desenvolver de modo mais aprofundado a teoria da finalidade, apontando seus limites e seus desdobramentos na discussão atual sobre os conceitos, que ainda não está concluída. Um desses capítulos trata da dimensão lexical dos conceitos qual a relação deles com a linguagem e se eles podem se originar de palavras. O outro trata dos conceitos naturais, conceitos que são resultados da nossa apreensão natural da realidade (como homem e cavalo ). Nesse capítulo, a segunda exigência apontada inicialmente, a saber, a necessidade dos conceitos terem uma função sintática, é abordada tendo em vista a teoria da finalidade. Panaccio estabelece aqui a necessidade de algumas capacidades naturais ao nosso 3 Sobre os tipos de suposição, cf. GUILHERME DE OCKHAM, op. cit., pp. 315-320.

10 pensamento (como a capacidade de combinar representações mentais em proposições e julgamentos). Ainda neste último capítulo, Panaccio tenta mostrar mais detalhadamente a dimensão epistemológica dos conceitos, tentando explicar como eles têm um papel no comportamento humano. Por fim, é apresentada uma conclusão pequena e organizada, retomando os pontos principais que foram estabelecidos ao longo do livro. A obra como um todo não dá demasiada atenção para explicações sobre o processo cognitivo que levaria à formação dos conceitos, mas sim para a função destes e a melhor maneira de defini-los, levando em consideração os três critérios iniciais. Temas como possíveis teorias da cognição humana não são abordados, pois, ainda que não sejam desvinculados do assunto do livro, provavelmente escapariam ao seu escopo, que pretendia unicamente circunscrever a temática dos conceitos. Visto que o objetivo do livro era realizar uma apresentação introdutória do tema, tal tarefa foi bem realizada, na medida em que a exposição foi feita de modo didático e de fácil compreensão. O tema é exposto de maneira a se tornar interessante e permitir explicações para certas situações cotidianas, com exemplos muito claros e simples, o que aproxima o leitor da discussão, visto que ela é situada dentro de um campo de conhecimento muito geral. Entretanto, como consequência do próprio método utilizado, algumas explicações foram um pouco vagas, e por isso mesmo, também inconclusivas. No geral, acredito que o objetivo do livro foi atingido pois, além de ser uma leitura simples, ele leva necessariamente a questionamentos cujas respostas não se encontram ali, pressupondo uma pesquisa mais aprofundada.