Contexto cultural contemporâneo: o declínio da função paterna e a posição subjetiva da criança



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Transcrição:

Contexto cultural contemporâneo: o declínio da função paterna e a posição subjetiva da criança Manuela Rossiter Infância - tempo de brincar, coisa séria. Sônia Pereira Pinto da Motta O atendimento de crianças e familiares no estágio supervisionado do Curso de Psicologia da Universidade Federal de Alagoas, o exercício da função de analista na clínica com crianças e o trabalho de coordenadora e supervisora nos Centros de Atenção Psicossocial do Estado de Alagoas colocou-me diante de um grande número de crianças acometidas de sintomas que refletem a questão da intervenção dos pais e das demais alteridades na vida das crianças. Tal fenômeno não é observável apenas na esfera do atendimento clínico, já que seus determinantes são da ordem do que constitui o laço social pós-moderno. Diariamente, assistimos, nos diversos meios de comunicação problemas relativos às crianças nas diversas esferas que envolvem suas relações com a lei e a interdição situadas pelas autoridades. De maneira particular, o desacato aos professores e aos pais deflagra problemas constantes que veem exigindo discussões complexas no terreno da Educação e da Justiça. O sismo que abala as ordenações do convívio social no âmbito da delinquência juvenil, das síndromes cognitivas, da toxicomania, dos distúrbios alimentares, fobias, etc., é algo que convoca à questão da constituição do sujeito pós-moderno e da conseqüente implicação dos representantes simbólicos da autoridade e dos interditos. Nesta perspectiva há quase sempre um discurso que remonta a um contexto cultural de tempo passado, de uma época mais tranquila onde as crianças obedeciam aos ditames dos pais que transmitiam à lei simbólica e consequentemente aos dos seus representantes. Deste modo o passado se transforma num tempo mítico e de imediato marca o presente como um tempo de grandes dificuldades, permeado de muitos enigmas e sombrias perspectivas. Pensamos que a questão não se põe nesta ordem, visto que o passado não volta, ainda que tenhamos que seguir os registros dos seus trilhos para compreender o presente e as suas vicissitudes. Com o imperativo do consumo advindo da política capitalista que passou a reger a economia mundial em termos globalizados, a alteração radical do papel social das mulheres do ponto de vista do trabalho e da sexualidade, as famílias de múltiplas aparências (mono-parentais, recompostas, filhos de homossexuais, etc.), a internet, o

declínio das grandes ideologias de cunho religioso, social e político, a forma de organização da cultura ocidental ganhou novas coordenadas. Tais coordenadas ainda são pouco metabolizadas. Dessa forma, é inevitável que diante de tais mudanças de paradigmas desconheça-se qual intervenção é capaz de conter os efeitos dramáticos de mudanças tão velozes e radicais. O cerne da alteração cultural de nossa contemporaneidade é, como já foi sublinhado, a destituição da lei, que ao se inscrever, funda a cultura e consequentemente o alicerce de seus valores éticos e morais. Sabemos que é próprio à cultura a subversão de certos princípios e a ressignificação da conjuntura dos laços sociais, seja pela via de conquistas indeléveis das relações humanas no âmbito sócio-político-econômico, seja pela aquisição de novos conhecimentos que ampliam a exigência de reordenação da lógica precedente a tal conhecimento. Contudo, vivemos uma mutação cultural muito particular, desde que o que fundamentalmente se altera é a relação com a lei e com os legisladores, justamente seu ponto de sustentação. A ética desse discurso é uma ética guiada pela busca dos objetos de consumo severamente ditado pelo mercado globalizado e que se confundem com o objeto da falta que funda o desejo. Tal operação, à medida que mascara a relação do sujeito com seu desejo ímpar, produz uma exacerbação do imperativo das demandas. Todavia, a ausência de correspondência entre o objeto do desejo e o objeto da demanda, termina por produzir sujeitos desencontrados com os mesmos objetos aos quais estão submetidos. É nesta problemática da infância a qual pretendemos nos debruçar: Como se dá a posição subjetiva da criança com o declínio da função paterna no contexto cultural contemporâneo? Para isso, é necessário revisitar a história da relação da criança com a alteridade na cultura. A redefinição e as novas representações da concepção de infância estão diretamente relacionadas com a mudança do lugar da criança na família e na sociedade. Segundo Postman (2005), pouco se sabe a respeito do lugar da criança na Antiguidade Clássica, mas, assinala-se que entre os gregos e romanos se desenvolveu uma rigorosa concepção de educação. Nessa época, vigoravam interditos na convivência entre adultos e crianças que diziam respeito à austera limitação de sua inclusão no circuito da palavra e da sua autonomia para proceder com seu ato. A importância atribuída à educação das crianças pelos adultos da época sofre uma destituição na Idade Média. Nesse período, as crianças eram tidas como adultos pequenos, que circulavam entre os demais. Na Idade Moderna, a autoridade paterna foi incessantemente revalorizada. O pai passa a ter obrigações morais com 2

aqueles a quem governa, retomando os cuidados com a educação e a sustentação material de seus filhos por longos anos. Entretanto, a própria modernidade contribuiu para a alteração dos valores relacionados aos sentidos da infância. As crianças são inseridas na vida adulta precocemente: os hábitos de consumo, as decisões para aquisição dos bens da família, a moda a, linguagem e mesmo a eroticidade próprias aos adultos, são agora, coisas de crianças. As mudanças ocorridas na família ao longo do séc. XX assinalaram uma crise dos valores familiares e consequentemente uma alteração na configuração dos papeis dos sujeitos, particularmente, das crianças. Com a estruturação da sociedade capitalista, as mulheres e mães deixam a posição exclusiva de cuidadoras dos filhos e da vida doméstica para terem seu espaço no mercado de trabalho e na vida social. Para compensar as decorrentes frustrações dos filhos, as mães, com a concordância dos pais, passam a ser permissivas quanto às demandas das crianças. O que resulta no reinado das crianças sobre a autoridade dos pais. Implanta-se, assim, o discurso pós-moderno obstinado em abolir a falta e, consequentemente, o desejo. O consumo ordena: não! À falta, à tristeza, à solidão, submetendo o sujeito ao engodo do prazer pleno, ao império do gozo. A sedução para o consumo promete felicidade, fertilidade, juventude perene, ausência de solidão, beleza etc.. O ideal consumista se prevalece da crença num objeto sempre disponível. A ciência tenta a todo custo construir todas as respostas às indagações do humano com os avanços tecnológicos, cibernética, produção in vitro, clonagem, encurtamento das distâncias, subversão do tempo e medicalização. O discurso da contemporaneidade é o de respostas instantâneas e aplacadoras dos limites humanos. Contudo, a descontinuidade entre saber e verdade, revela a falta constitutiva do humano. Na criança há um sujeito-por-vir que irá se estruturar a partir do assujeitamento e da alienação a um Outro que o instala no simbólico, antes mesmo de seu nascimento. A subjetividade humana, ou melhor, toda lógica que situa o humano na cultura fundase na construção de uma equação que situa um sujeito a partir do outro, portanto, uma lógica que cunha o lugar para existir a partir da lei que demarca o limite entre um e outro. Essa lei é a lei de linguagem, é a lei que constitui o humano nos limites do simbólico. (Mafra, 2009, p. 18). 3

A internalização da imagem pela criança ocorre pela via de um discurso que será responsável por um processo de identificações, onde assim, irá constituir-se a sua estruturação subjetiva. É na verdade a instalação da alteridade na criança. Lacan (1991) designa a alteridade como Outro, instância destacada do outro semelhante, que contém as respostas e razões para a existência, o outro da ordem do Inconsciente, da pulsão, da transferência e da cultura. Desde seus ensaios iniciais, passando por Totem e Tabu, até o final de sua obra, em Moisés e o Monoteísmo, Freud articula a questão: o que é um pai? O Pai para Freud é da ordem do inconsciente. E a inscrição da lei do pai, no sentido em que Lacan a depreende, não é o equivalente da transmissão do patronímico, mas sim uma complexa operação simbólica a que ele chamou de Metáfora Paterna. O pai para a psicanálise não é então o pai real ou macho simbólico, mas uma função que articula desejo e castração (...). O pai é simbólico e funciona como função na medida em que indica a presença de uma lei que subordina todos os sujeitos. (Megale, 1999, p. 248). O pai em sua função de nomeador impõe uma restrição do gozo. É o Nome-do- Pai, nomeação simbólica, que confere a identidade, que registra, que marca. Nomedo-Pai, não é o nome da pessoa do pai, mas a atribuição que a mãe dá à sua palavra ou ainda à sua autoridade. É o pai simbólico, a lei que instala o sujeito na linguagem. O simbólico preexiste ao sujeito e, até que se formule a palavra de um pai endereçada a seu filho, há toda uma rede de relações simbólicas determinando a funcionalidade dessas palavras. A instalação da ordenação da lei no humano não obedece a uma fórmula aritmética, e sim, ao modo enigmático, no sentido de ser inconsciente e irredutível, de como o sujeito se inscreve no mundo e inscreve suas relações com todos os elementos do mundo que representará em seu psiquismo. Contudo, a palavra dos pais serve de âncora, de referência, num certo nível do processo de inscrição da lei, e, se bem que esse seja um nível posterior a outros mais complexos desse processo, é um tempo imprescindível. Um sujeito humano encontra na palavra das alteridades que o situam no mundo os termos para urdir a lógica das fronteiras éticas de sua existência, e a operatividade dessas palavras se efetiva, caso isso se estabeleça desde sempre, desde que uma criança nasce, confirmando-se a cada indagação que acomete o sujeito em seu desamparo e desconhecimento. 4

Essas intervenções, quando textuais, oferecem palavras com as quais a criança poderá estabelecer uma representação, uma expressão para o que dará rumo às suas satisfações e/ou frustrações. E é só a partir disso que se estabelecerá a autonomia desse sujeito, no jogo simbólico das negociações com os pais que darão lugar às ordenações dos acolhimentos e das recusas dos ditames constitutivos do simbólico, na via dos sentidos para a existência. Encontramos na contemporaneidade o esgarçamento das referências simbólicas, declínio de um sistema que parece não precisar mais de seus membros, a falta do interdito que constitui o princípio moral, mas, sobretudo encontramos a insuficiência da operação que constitui a posição do sujeito da subjetividade. Roudinesco (2003) afirma que ao perder sua auréola de virtude, o pai que dominava, fornece então uma imagem invertida de si mesmo, já que no contexto cultural contemporâneo essa autoridade intervém permissivamente. Com a ausência do pai em sua função, a lei não vigora, a criança mutilada das sociedades pós-industriais, se engendra ao hedonismo. Seguindo Julien (2000), na passagem da modernidade a pós-modernidade, assistiu-se a destituição do mestre e do pai como legisladores da lei e do dever. É nesse sentido que se coloca uma nova economia de gozo onde não existe a instância reguladora da fronteira entre o sujeito e o outro. A lei é necessária para que se compreenda a existência do limite. Laznik (1991) nos mostra que um interdito é um enunciado sob forma de imperativo negativo. Um pai ao dizer não, afirmava a proibição do gozo absoluto, situando que nem tudo era possível, e que eram necessários lutos para que se operassem consequentes soluções ímpares para o desejo, para a edificação do exercício da criação humana. Ao compreender a ética fundada no desejo, a psicanálise não pretende dar conta do que fica circunscrito ao laço social, mas oferece os elementos que nos interrogam sobre os fios que tecem o laço. É neste sentido que propomos, através de uma revisão da literatura, discutir os efeitos do declínio da função paterna na constituição subjetiva da criança. Referências Bibliográficas JULIEN, Philippe. Abandonarás teu pai e tua mãe. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2000. LACAN, Jacques. As Psicoses. Seminário 3. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1991. 5

LAZNIK, Marie-Christine. Os nãos do pai. Salvador: Ágalma, 1991. Coleção Psicanálise da Criança: Coisa de Criança. V.1, n.1. MAFRA, Taciana de Melo. A Toxicomania e sua relação com a adolescência. Rio de Janeiro: Cia. de Freud, 2009. MEGALE, Fernando Carlos Santaella. Reprodução assistida e função paterna: implicações. In. Anais TOMO II. Trata-se de uma criança. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1999. MOTTA, Sônia Pereira Pinto. O mal-estar na infância. In. Anais TOMO II. Trata-se de uma criança. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1999. POSTMAN, Neil. O desaparecimento da infância. Rio de Janeiro: Grafhia, 2005. ROUDINESCO, Elisabeth. A família em desordem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. 6