Anuário do Instituto de Geociências - UFRJ

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Anuário do Instituto de Geociências - UFRJ A Fauna de Morcegos Fósseis como Ferramenta na Caracterização de Paleoambientes Quaternários The Fauna of Fossil Bats as Tool For the Characterization of Quaternary Paleoenvironments Leonardo Santos Avilla 1 ; Gisele Regina Winck 2, 3 ; Vanessa Maria Rodrigues Francisco 1 ; Bruno Bret Gil 1 ; Alexandre Granhen 1 & Débora Gabriel Costa 1 1 Laboratório de Mastozoologia, Departamento de Zoologia, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Av. Pasteur 458, Prédio da Escola de Ciências Biológicas, Urca, CEP 22240-290, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail. mastozoologiaunirio@yahoo.com.br 2 Pós-graduação em Biodiversidade Animal, Centro de Ciências Naturais e Exatas, Universidade Federal de Santa Maria, Fx. de Camobi, km 9, Campus Universitário, prédio 17, sala 1140, CEP 97105-900, Santa Maria, RS, Brasil. E-mail gwinck@yahoo.com.br 3 Pesquisadora associada, Laboratório de Ecologia de Vertebrados, Departamento de Ecologia, Instituto de Biologia Roberto A. Gomes, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rua São Francisco Xavier, 524, CEP 20550-019, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Recebido em: 30/03/2007 Aprovado em: 27/07/2007 Resumo Neste estudo pretende-se caracterizar o paleoambiente nas cercanias dos sítios Quaternários das grutas do sertão baiano e da região de Lagoa Santa durante o Pleistoceno. As paleofaunas de morcegos desses sítios foram comparadas com a fauna atual de 25 localidades, representando os principais biomas Neotropicais. Tal estudo foi possível, pois todas espécies de morcegos fósseis desses sítios fazem parte da fauna Neotropical atual, excetuando-se Desmodus draculae. Como os morcegos são ótimos caracterizadores ambientais, a associação das faunas atuais e fossilíferas permite reconhecer ambientes semelhantes. A similaridade entre as faunas foi verificada pelo Índice de Jaccard, com posterior análise de agrupamento por média não-ponderada (UPGMA). A paleofauna de Lagoa Santa agrupou-se com a fauna de Caatinga, sugerindo um ambiente seco e aberto para o entorno das grutas de Lagoa Santa durante o Pleistoceno. A paleofauna das grutas do sertão baiano não agrupou com nenhuma das faunas incluídas na análise. Muitos autores sugerem que o registro fossilífero destas grutas seja produto de mistura faunística. A dissimilaridade encontrada neste estudo entre paleofauna de morcegos das grutas baianas com as demais faunas analisadas corrobora o argumento de mistura faunística. Palavras-chave: Reconstituição paleoambiental; Quaternário; Pleistoceno; mamíferos; morcegos Abstract This study proposes to reconstruct the paleoenvironment from Quaternary sites of the caves in the sertão baiano and Lagoa Santa region during the Pleistocene. The paleofauna of bats from these sites were compared to the extant fauna of 25 localities, representing most important Neotropical biome. This study was possible because all bat fossil species from both sites were elements of the extant Neotropical fauna, excepting Desmodus draculae. Because bats are considered good environmental definers, the association of extant and fossil fauna permits the recognition of similar environments. The similarity between faunas was analyzed by Jaccard index with a posterior grouping analysis by UPGMA. The paleofauna of Lagoa Santa matched to Caatinga fauna, suggesting a dry and open environment adjacent to the Lagoa Santa caves during the Pleistocene. The paleofauna of sertão baiano caves matched to neither of the analyzed faunas. Most authors suggest that fossil record of the sertão baiano caves represents a faunal mixture. The dissimilarity between the paleofauna of bats from the sertão baiano caves and the other analyzed faunas resulted of this study is in agreement to the argument of a faunal mixture represented by the former. Keywords: Paleoenvironmental reconstitution; Quaternary; Pleistocene; mammals; bats 19

1 Introdução Apesar de inúmeros os estudos sobre a fauna de mamíferos do Quaternário do Brasil (Cartelle, 1995; Cartelle, 1999; Guérin et al., 1996), muito pouco se sabe sobre o ecossistema em que esses organismos habitavam. Alem disso, a grande maioria desses estudos paleontológicos evidencia apenas a Megafauna de mamíferos, deixando os micromamíferos (principalmente, marsupiais, roedores e morcegos) em um segundo plano. Os estudos de reconstituição paleoambiental do Quaternário brasileiro são baseados em inferências não-testáveis, fundamentados nas características ecológicas individuais dos elementos que compõem as paleofaunas. Principalmente, pois mamíferos hoje presentes em ecossistemas Neotropicais distintos foram encontrados associados em sítios cársticos do Quaternário Brasileiro (os ambientes deposicionais mais explorados até o momento) (Cartelle & Lessa, 1989; Auler et al., 2004). E assim, são observadas muitas discrepâncias quando são realizadas caracterizações ambientais sobre esses elementos da paleofauna. Dentre essas, cabe destaque a associação de Myocastor coypus (Molina, 1782) (Myocastoridae, Rodentia), um roedor semi-aquático típico dos pampas do sul da América do Sul, e Lama guanicoe (Muller, 1776) (Camelidae, Artiodactyla), camelídeo andino, ambos restritos a ambientes frios e secos (Redford & Eisenberg, 1992), com restos de primatas atribuídos a florestas tropicais úmidas (Cartelle & Hartwig, 1996; Hartwig & Cartelle, 1996; Hartwig, 2002). Muitos autores interpretam essa associação como uma mistura faunística (Auler et al., 2004). Neste estudo utilizou-se uma análise estatística na tentativa de se recuperar informações sobre o ambiente de entorno dos dois principais sítios deposicionais cársticos do Quaternário Brasileiro as grutas do sertão baiano (Bahia) e Lagoa Santa (Minas Gerais). Para tal, tomou-se a paleofauna de morcegos de ambos os sítios como objeto de estudo, e realizou-se uma comparação dessas com a fauna recente de diversos ecossistemas Neotropicais. Além disso, os resultados forneceram subsídios testáveis para uma argumentação sobre a fidelidade das associações encontradas nos sítios analisados. Este estudo evidencia a importância da microfauna de mamíferos do Quaternário Brasileiro na reconstituição paleoambiental desse período. 2 Material e Métodos As comunidades de morcegos são comumente utilizadas como caracterizadores ambientais (Fleming, 1988). Partindo deste princípio, assumese que a similaridade entre faunas atuais e fossilíferas permite reconhecer ambientes semelhantes. Foram analisadas as paleofaunas de morcegos do Quaternário registradas nas cavernas BA e MG, que são compostas por morcegos presentes na fauna Neotropical atual. A única exceção é Desmodus draculae, morcego-vampiro gigante, atualmente extinto. Neste estudo considerou-se ambas paleofaunas como unidades faunísticas autóctones e sincrônicas, como são habitualmente avaliadas (Paula-Couto, 1975; Czaplewski & Cartelle, 1998; Salles et al., 1999; Fracasso & Salles, 2005). Dessa forma, essas paleofaunas de morcegos foram comparadas com a fauna atual de 25 localidades, representando os principais biomas Neotropicais: Floresta Tropical Centro-americana, Floresta Amazônica, Caatinga, Cerrado e Mata Atlântica (Figura 1). Diversos estudos foram utilizados no levantamento das faunas de morcegos atuais (Mares et al., 1981; Willig & Mares, 1989; Marinho-Filho, 1996 a, b; Pedro & Taddei, 1998; Simmons & Voss, 1998; Faria et al., 2006) e fósseis da Bahia e Minas Gerais (Paula-Couto, 1975; Czaplewski & Cartelle, 1998; Salles et al, 1999; Fracasso & Salles, 2005). A similaridade entre as faunas foi verificada pelo Índice de Jaccard (C J ), com posterior análise de agrupamento por média não-ponderada (UPGMA Rohlf, 1963). Neste método, a distância entre dois grupos é dada pela média das distâncias entre os elementos de ambos os grupos. A análise de agrupamentos baseia-se em uma matriz de semelhança contendo similaridades ou dissimilaridades entre todos os pares envolvendo ν objetos (unidades amostrais ou variáveis) a serem agrupados, e os grupos são obtidos pela agregação de objetos (ou grupos de objetos) mais semelhantes (para uma discussão sobre análise de agrupamento, veja Pielou, 1984). Foram realizadas 1000 iterações de auto-reamostragem (bootstrap) para analisar a significância dos agrupamentos, considerando válidos aqueles com p 0,05. Todas as análises foram realizadas com o auxílio do software Multiv 2.4 Beta (Pillar, 1996). 20

Figura 1 Localização das cavernas consideradas neste estudo. A. Carste de Lagoa Santa, MG (modificado de Berbert-Born, 2002). B. Grutas do sertão baiano (modificado de Czaplewski & Cartelle, 1998). 21

3 Resultados e Discussão Apesar da fauna de Mata Atlântica apresentarse no dendrograma em três blocos regionais distintos (Mata Atlântica Sul, Sudeste e Nordeste - um padrão similar foi observado recentemente em estudos filogeográficos para a Mata Atlântica (Costa, 2003; Moraes-Barros et al., 2006)), os agrupamentos referentes aos grandes biomas Neotropicais incluídos foram corroborados pela análise conduzida neste estudo de similaridade faunística (Figura 2). Figura 2 Os maiores biomas da América do Sul (modificado de Redford & Eisenberg, 1992). Os números indicam os biomas representados neste estudo. 1. Floresta Tropical Centro- Americana; 2. Floresta Amazônica; 3. Cerrado; 4. Caatinga; 5. Mata Atlântica. Os resultados desta análise evidenciam que as faunas de morcegos são excelentes caracterizadores ambientais. Todavia, argumentações sobre as faunas de morcegos atuais não fazem parte do objetivo deste artigo, e futuramente farão parte de outras análises mais abrangentes sobre mamíferos Neotropicais conduzidas pelo autor sênior. Dessa forma simplificou-se o dendrograma resultante apresentado na Figura 2 (Figura 3). 22 Índice de Jaccard Figura 3 Dendrograma resultante das análises da fauna de morcegos dos principais biomas. Foram considerados como agrupamentos válidos aqueles com Índice de Jaccard igual ou superior a 0.5.

A paleofauna de morcegos da região de Lagoa Santa agrupou com a fauna de Caatinga (Figuras 2 e 3). Porém, essa relação é corroborada por um valor relativamente baixo do índice de Jaccard (32,5%). Esse padrão sugere que o ambiente no entorno dos carstes de MG durante o Pleistoceno não era uma Caatinga, contudo, similarmente, poderia ser um ambiente seco e aberto. Esse argumento pode ser reforçado pelo fato de que todos ambientes tropicais úmidos incluídos na análise encontram-se agrupados no dendrograma resultante (Figuras 2 e 3). Auler et al. (2004) argumentam que a presença de Protopithecus brasiliensis Lund, 1938 (Primata de grande porte), provavelmente braquiador (Hartwig & Cartelle, 1996), associado a uma diversa paleofauna de morcegos, indicaria uma floresta úmida. Rejeita-se aqui tal argumento quando a diversidade de morcegos em biomas mais secos é analisada, e.g.,como o Cerrado (Marinho-Filho, 1996 a, b) e Caatinga (Mares et al., 1981; Willig & Mares, 1989), que são tão diversos quanto os ecossistemas mais úmidos Neotropicais. Além disso, muito pouco se sabe sobre aspectos paleoecológicos de P. brasiliensis para confiar uma caracterização ambiental apenas por sua presença. O único bioma Neotropical recente que apresenta a associação de Myocastor coypus e Lama guanicoe é o Chaco (Redford & Eisenberg, 1992). Este bioma é bastante complexo e pode ser divididos em duas sub-unidades, o Chaco de altitude e lowland, sendo o segundo composto por ambientes áridos e florestas semi-áridas decíduas (Kalcounis- Rüppell et al., 2003). Salis et al. (2004) determinaram que o Chaco Brasileiro apresenta uma maior similaridade de espécies botânicas com a Caatinga do que com os outros biomas Neotropicais. Além disso, Prado & Gibbs (1993) mencionam a vegetação do Chaco Brasileiro como integrante das formações residuais de climas secos do Pleistoceno, da qual também faz parte a Caatinga Nordestina. Ainda, o Chaco apresenta uma grande diversidade de primatas, inclusive o gênero Alouatta Lacépède, 1799 (Redford & Eisenberg, 1992), o único representante remanescente da Tribo Alouattini (McKenna & Bell, 1997), que também inclui Protopithecus brasiliensis. A inexistência de estudos publicados com o levantamento da fauna de morcegos do Chaco impossibilitou a inclusão deste bioma na análise conduzida neste estudo. Todavia, os argumentos apresentados sugerem que o ambiente no entorno das cavernas da região de Lagoa Santa poderia ser similar ao Chaco, com a presença de uma floresta decídua semi-árida. A paleofauna de morcegos das grutas do sertão baiano não agrupou com nenhum dos biomas Índice de Jaccard Figura 4 Dendrograma resultante simplificado das análises da fauna de morcegos dos principais biomas. Foram considerados como agrupamentos válidos aqueles com Índice de Jaccard igual ou superior a 0.5. 23

incluídos nesta análise, mesmo a paleofauna do Quaternário da região de Lagoa Santa. Muitos autores sugerem que o registro fossilífero dessas grutas baianas seja produto de uma mistura faunística. Czaplewsky & Cartelle (1998) apresentam datações para dois exemplares de morcegos fósseis registrados em duas diferentes cavernas do complexo cárstico do sertão baiano, e encontram assincronismo entre as amostras - Mormoops megalophylla (Peters, 1864) - Toca da Boa Vista, 20.060 ± 290 anos; e, Desmodus rotundus (E. Geoffroy, 1810)- Gruta dos Brejões, 12.200 ± 120 anos. Essas datações marcam também dois momentos distintos no último período glacial do Pleistoceno, o mais antigo seria o início da última glaciação, e o mais recente seu término (ou início do período interglacial). Em termos ambientais pode se dizer que o mais antigo envolveria a ampliação das áreas secas na região Neotropical, e o mais recente o aumento das coberturas vegetais úmidas. Eisenberg (1989) indica que Mormoops megalophylla é característico das florestas secas decíduas do Norte da América do Sul e Central. Dessa forma, o registro desta espécie na Toca da Boa Vista e sua datação sugerem uma cobertura de florestas secas decíduas no sertão baiano durante o início do último período glacial. Cabe destacar também, que M. megalophylla não é mais registrada no território brasileiro, sugerindo que a ampliação dos ambientes tropicais úmidos ocorridos no final do último período glacial, podem ter causado sua extinção. Esses argumentos, juntamente com o padrão dissimilar expresso no dendrograma (Figura 3), podem sugerir uma mistura faunística para a paleofauna de morcegos das grutas do sertão baiano. Contudo, a maioria dos autores que aponta uma mistura faunística argumenta que nestas grutas registram-se mamíferos hoje típicos dos Andes (Lama guanicoe) e pampas (Myocastor coypus), habitantes de ambientes frios e secos, associados a registros de primatas típicos de florestas úmidas. A indicação de um ambiente úmido para esses primatas reside no fato desses possuírem longos membros anteriores, o que poderia sugerir hábitos braquiadores, muito comuns em antropóides de florestas tropicais úmidas e estratificadas (Hartwig & Cartelle, 1996; Auler et al., 2004). A associação de Lama guanicoe, Myocastor coypus e Protopithecus brasiliensis (esse um dos primatas supracitados) encontrada nas cavernas da região de Lagoa Santa também é registrada nas cavernas do sertão baiano. Rejeita-se a idéia de uma mistura faunística baseada nessa associação, pela mesma razão apontada para a argumentação do carste de Lagoa Santa. O outro primata registrado nas grutas baianas, Caipora bambuiorum Cartelle & Hartwig, 1996, é classificado como um Atelini (McKenna & Bell, 1997), tribo esta representada por primatas braquiadores exclusivos de florestas tropicais úmidas (Eisenberg, 1989). Contudo, acredita-se que a filogenia apenas, não garante que Caipora teria as mesmas características etológicas de seus pares. 4 Conclusões Confirmou-se que as faunas de morcegos são excelentes caracterizadores ambientais. A paleofauna de morcegos das cavernas de Lagoa Santa sugere que o ambiente no entorno dessas cavernas durante o Pleistoceno seria seco e aberto, muito provavelmente uma floresta seca decídua. A paleofauna de morcegos do complexo cárstico do sertão baiano representaria uma mistura faunística. Este estudo evidenciou a importância de se utilizar a paleofauna de micromamíferos, principalmente os morcegos, em análises de reconhecimento paleoambiental. 5 Agradecimentos À comissão organizadora da III Jornada Fluminense de Paleontologia. Ao Dr. Cástor Cartelle por permitir a análise dos morcegos fósseis depositados na coleção da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Ao prof. Kleberson de Oliveira Porpino (Universidade do Estado do Rio Grande do Norte) e à prof a. Dr a. Lílian Pagliarelli Bergqvist (Universidade Federal do Rio de Janeiro) pela revisão do manuscrito. 6. Referências Auler, A. S.; Wang, X.; Edwards, R. L.; Cheng, H.; Cristalli, P. S.; Smart, P. L. & Richards, D. A. 2004. Quaternary ecological and Geomorphic changes associated with rainfall events in presently semi-arid Northeastern Brazil. Journal of Quaternary Science, 19: 693-701. Berbert-Born, M. 2002. Carste de Lagoa Santa, MG: Berço da paleontologia e da espeleologia 24

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