SEÇÃO CARTAS: DIÁLOGOS, VOZES E INTERAÇÃO

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Transcrição:

2067 SEÇÃO CARTAS: DIÁLOGOS, VOZES E INTERAÇÃO Maria Alzira Leite -PUCMINAS Introdução As palavras fazem parte das mais diferentes situações em que vivemos. Bakhtin (2004) nos afirma que a palavra pode marcar as fases transitórias mais íntimas e efêmeras das mudanças sociais. Com as palavras informamos o que pensamos e sentimos; contamos fatos, externamos nossos desejos. Com as palavras agimos e interagimos com as pessoas, com o mundo. Nas diversas situações de comunicação, as palavras, geralmente, não são empregadas soltas ou combinadas aleatoriamente. Elas se unem e formam textos, que por sua vez, se organizam de modos diferentes uns dos outros, dependendo de quem os produz, do interlocutor, do assunto e da intenção. Inseridas em nossa atividade comunicativa há o gênero Carta do Leitor. Esse gênero encontrase em um determinado espaço da mídia impressa que matem uma Seção com o nome Cartas do Leitor, Painel do Leitor ou simplesmente Cartas. Os leitores se manifestam na Seção participando de uma espécie de debate com a finalidade de elogiar, criticar o jornal, a revista, o jornalista pela matéria publicada ou como determinado assunto foi conduzido. Há a possibilidade, ainda, de acrescentar ou comentar informações, além daquelas contidas no texto publicado. Assim, quando os leitores participam desse evento, se envolvem em uma alternância dos papéis comunicativos. Como diz SILVA (2002), há o autor (remetente) que envia a carta ao editor (destinatário) da redação. Este atua também como um leitor avaliador. Em seguida, caso haja reformulação no texto-base para a sua edição, o editor apresenta uma função de (co) produtor e tem direito de reestruturar o texto. Nesse processo há uma relação de simetria entre autor e editor que se debruçam sobre a formulação do texto. Na conclusão do processo, tem-se, de um lado, o autor, responsável pelo discurso e pela opinião ali em funcionamento e, de outro, o público-leitor, destinatários e leitores do periódico. Nesse instante (re)instaura-se uma relação de assimetria, levando em consideração as condições pré-fixadas de participação nesse evento. Para ilustrar essa concepção, observe o esquema que demonstra essa idéia: Circuito comunicativo 1ª. Etapa ASSIMETRIA Autor (remetente) Editor (destinatário) Leitor avaliador Público-leitor 2ª. Etapa S I M E T R I A Co-produtor Quadro adaptado - Circuito comunicativo

2068 Fonte: Tese da professora Jane Quintiliano Guimarães Silva, 2002. De acordo com as análises do projeto: O discurso da mídia impressa: uma rede argumentativa na seção cartas 1, desenvolvido no Programa de Pós-Graduação, a relação de assimetria, predomina no gênero Carta do Leitor, pois é a revista que mantém o diálogo e coordena a interação entre os leitores e os fragmentos publicados. Então, levando em consideração, a participação do leitor na Seção Cartas, em uma determinada situação de enunciação, o artigo a seguir, desenvolve uma reflexão em torno das possíveis vozes inseridas na Seção Cartas que se interagem e contribuem para uma determinada construção de sentido. Sob essa perspectiva, objetiva-se ao longo do trabalho; (1) apresentar considerações teóricas sobre gêneros, polifonia, interação sob a ótica de Bakhtin; (2) exemplificar análise por meio do gênero carta, na Revista Veja; (3) considerações finais das interações entre os fragmentos publicados na Seção Cartas. 1 Desenvolvimento 1.1 Os gêneros Nas esferas do uso da linguagem, os enunciados - unidades real da comunicação discursiva - se regularizam nas interações na forma de gêneros. Os gêneros do discurso são formas de enunciados, estáveis e normativas, elaboradas e colocadas em prática no nosso dia-a-dia por uma determinada situação discursiva, pela posição social e pelas relações pessoais entre os interlocutores, como nos diz Bakhtin (2003): O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana. Esses enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua mas, acima de tudo, por sua construção composicional. (Bakhtin, 2003, p. 262). Nesse âmbito, pode-se dizer que os gêneros estão vinculados a situações típicas da comunicação social. Essa é a natureza verbal comum dos gêneros: a relação intrínseca dos gêneros com os enunciados (e não com uma dimensão lingüística e/ou formal propriamente dita, desvinculada da atividade social, que excluiria a abordagem de cunho social dos gêneros); isto é, a natureza sócioideológica e discursiva dos gêneros. Como tipos temáticos, estilísticos e composicionais dos enunciados individuais, os gêneros se constituem historicamente a partir de novas situações de interação verbal, da vida social que vão (relativamente) se estabilizando, no interior das diferentes esferas sociais. Em contrapartida, uma vez que se tem a constituição do gênero, este exerce, em retorno, um efeito normativo sobre as interações verbais (ou não verbais). Por isso pode-se dizer que os gêneros também são formas de ação: na interação. Eles funcionam como índices de referência para a construção dos enunciados, pois norteiam o autor no processo discursivo e serve como horizonte de expectativas para o interlocutor, no processo de compreensão e interpretação do enunciado. Dessa forma, para a interação é necessário tanto o domínio das formas da língua, quanto o das formas do discurso, isto é, o domínio dos gêneros do discurso. Por isso Bakhtin (2003) afirma: Quanto melhor dominamos os gêneros tanto mais livremente os empregamos, tanto mais plena e nitidamente descobrimos neles a nossa individualidade (onde isso é possível e necessário), refletimos de modo mais flexível e sutil a situação singular da 1 Projeto em desenvolvimento pela aluna de Pós-Graduação Maria Alzira Leite

2069 comunicação; em suma, realizamos de modo mais acabado o nosso livre projeto de discurso. (Bakhtin, 2003, p. 285) Se o autor conceitua os gêneros como tipos relativamente estáveis de enunciados, para entender essa relação é preciso compreender o que é o enunciado para o círculo bakhtiniano. 1.2 Enunciado, Enunciação Brait e Melo (2005) consideram que o conceito de enunciado não se encontra pronto numa determinada obra ou texto, como o próprio pensamento bakhtiniano. O sentido e as particularidades são construídos ao longo do conjunto das obras, implicados em outras noções também construídas. Porém, o enunciado equivale à frase ou a seqüência frasais. Salientam que do ponto de vista mais pragmático, é abordado como unidade de comunicação ou significação, necessariamente contextualizado. Porém, enfatizam ainda que nas diferentes Análises do Discurso, vertente francesa, o conceito de enunciado aparece em oposição a discurso. Outras vezes o enunciado é definido em oposição à enunciação. Em muitos desses, o enunciado é tido como produto de um processo, ou seja, a enunciação é o processo que produz o enunciado e nele deixa marcas que caracterizam a linguagem em uso. Para ficar mais claro e didático o entendimento sobre enunciado/enunciação há um quadro abaixo que resume alguns pontos sobre enunciado/enunciação, de acordo com os trabalhos de Beth Brait e Rosineide de Melo na obra Bakhtin Conceitos-Chave (2005). Discurso na vida e discurso na arte sobre poética sociológica (1926) Enunciado, Enunciado Concreto e Enunciação: Termos ligados ao discurso verbal, à palavra e ao evento TERMOS Enunciado (e as particularidades de sua enunciação.) Enunciado concreto CONCEITO O processo interativo, ou seja, o verbal e o não verbal que integram e fazem parte de uma situação. Palavra, texto, discurso ( e até mesmo enunciação concreta). Estabelece conexões com o contexto extraverbal. Esse contexto é essencial para a compreensão dos enunciados. Enunciação Enunciado concreto + a interação desse enunciado concreto. Marxismo e Filosofia da Linguagem (1929) Enunciação O termo é tratado numa perspectiva discursiva, implicada num caráter interativo, social, histórico, cultural. Estética da Criação Verbal (1979) Enunciado, Enunciado Estes termos estão amplamente implicados, são retomados para Concreto e Enunciação desenvolver o conceito de gêneros do discurso e além disso, entretecidas com situação, contexto, história. Quadro adaptado sobre as considerações de Beth Brait e Rosineide de Melo Fonte: Bakhtin Conceitos-Chave (2005) A partir desses pontos nota-se, mais uma vez, a valorização Bakhtiniana para a palavra, para a fala, para a enunciação dentro de uma natureza interativa, social e não individual. 1.3 Interação Verbal, Dialogismo

2070 Os estudos de Mikhail Bakhtin muito têm contribuído para se compreender a questão da importância da interação verbal. Bakhtin (2004) critica o monologismo saussureano e aborda a relevância do dialogismo para os estudos da linguagem, defendendo que: A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas lingüísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua. (Bakhtin, 2004, p. 123) Assim, o dialogismo se dá através da interação entre o eu e o outro no texto, pois uma enunciação completa só é concebida quando relacionada a outras enunciações completas, devido a enunciação ser algo de domínio social e não individual. Bakhtin (2004: 123) ressalta, ainda, que a interação verbal não se dá apenas através da comunicação em voz alta entre as pessoas, no diálogo face a face, mas também através do ato de fala impresso, sendo o livro um dos exemplos da impressão dos atos de fala. Por meio dessa impressão há um contato, uma interação, entre o que é dito pelo locutor e o que é lido e compreendido pelo interlocutor, daí a idéia de que existe o dialogismo em ação na comunicação entre as pessoas, seja essa comunicação dada pela fala ou escrita. 1.4 Polifonia É importante ressaltar que o grande centro temático de todas as ramificações do pensamento bakhtiniano está na prosa artística, mais especificamente no romance. Em sua obra Problemas da Poética de Dostoiévski (1997) embora o tema central seja a literatura de Dostoiévski, a discussão sobre o romance como gênero aparece em vários momentos, sempre relacionada à discussão sobre a natureza da linguagem, literária ou não, como, aliás, foi a marca de todo o trabalho de Bakhtin. O conceito de polifonia encontra-se nessa obra e é uma das maiores marcas do pensamento bakhtiniano. Para Bakhtin, Dostoiévski foi o criador de um novo gênero literário, o romance polifônico, cuja característica marcante (entre outras exigências) estaria no fato de que na obra do romancista russo as vozes que ressoam no texto não se sujeitam a um narrador centralizante (como em geral acontece no romance considerado tradicional); elas relacionam-se umas às outras em condições de igualdade. De acordo com Paulo Bezerra (2005): O que caracteriza a polifonia é a posição do autor como regente do grande coro de vozes que participam do processo dialógico. (...) A polifonia se define pela convivência e pela interação, em um mesmo espaço do romance, de uma multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis, vozes plenivalenentes e consciências eqüipolentes, todas representantes de um determinado universo e marcadas pelas peculiaridades desse universo. (Paulo Bezerra, 2005, p.194 e 195) Tanto o dialogismo quanto a polifonia se definem pela convivência e pela interação em um determinado espaço. No entanto, alguns pesquisadores chamam a atenção para uma possível distinção entre dialogismo e polifonia. Para Barros (2005) o dialogismo é o princípio dialógico constitutivo da linguagem e de todo o discurso. Já a polifonia se caracteriza por um certo tipo de texto, aquele em que o dialogismo se deixa ver e são percebidas muitas vozes polêmicas em um discurso. E Barros (2005) deixa claro que: Nos textos polifônicos, os diálogos entre discursos mostram-se, deixam-se ver ou entrever; nos textos monofônicos eles se ocultam sob a aparência de um discurso único, de uma única voz. Monofonia e polifonia são, portanto, efeitos de sentido, decorrentes de procedimentos discursivos, de discursos por definição e constituição dialógicos. ( Barros, 2005, p. 34).

2071 Já, Clark e Holquist (2004), ressaltam que Bakhtin refere-se à polifonia como um fenômeno cujo outro nome é o dialogismo. De qualquer forma as vozes discursivas se interagem orientando o discurso como se pode observar no próximo tópico. 1.5 Revista Veja: seção cartas A Revista Veja é uma revista semanal, brasileira, publicada pela Editora Abril. Sua primeira edição foi publicada em 1968, e foi criada pelos jornalistas Victor Civita e Mino Carta. Dados da tabela geral de circulação da editora Abril revelam uma tiragem de 1.107.050 exemplares, por ano, sendo que na tabela geral de circulação, constam 919.520 assinaturas, 187.530, vendas avulsas e no exterior 4.589 exemplares vendidos. A revista aborda temas a respeito do cotidiano da sociedade brasileira e, por vezes, mundial, como política, economia, cultura, comportamento e guerras. Seus textos são elaborados em sua maior parte por jornalistas, porém, nem todas as seções são assinadas. Trata também temas como tecnologia, ecologia e religião com certa regularidade. Possui seções fixas sobre cinema, literatura, música e guias práticos sobre assuntos diversos. De acordo com os estudos Marplan Consolidados em 2006 - editora abril, o perfil dos leitores da Veja quanto ao sexo tem-se como maior número o feminino, quanto à classe social prevalece a B e quanto à idade há um empate entre pessoas de 25 a 39 anos e + de 50 anos. A Seção Cartas da Revista Veja se diferencia das demais Revistas como Istoé, Época, Carta Capital, primeiramente pela maior quantidade de cartas publicadas, em seguida, por não conter propagandas embutidas na seção e o mais interessante, há um espaço destinado aos comentários do editor e dos leitores, valorizando o público assíduo de Veja, a própria revista ou alguma história que a envolve. O que chama a atenção e é ponto de análise desse trabalho, como já foi dito anteriormente, são as vozes, os diálogos e as interações presentes na Seção Cartas da Veja. A interação, de acordo com Brait (1997), é um componente do processo de comunicação, de significação, de construção de sentido e faz parte de ato de linguagem. Para Marcuschi (1999), a interação vem marcada na superfície textual e faz parte do próprio texto. Trata-se de uma especial relação do sujeito com a linguagem e por isso mesmo produz efeitos de sentido. No caso das Cartas, temos uma relação na qual a mídia orienta e dirige a interação em sua Seção, com vistas a produzir um certo sentido. Observe o exemplo abaixo: Lindíssima a abertura dos Jogos Pan-Americanos! Parabéns a todos os que participaram da sua organização e execução. O momento mais marcante foi o das vaias ao senhor presidente. Pena que ele não tenha entendido que elas não foram do Rio de Janeiro, e sim de brasileiros que estão realmente cansados de ver um lobo em pele de cordeiro, que nada vê, nada sabe e nada faz para acabar com a corrupção e os desmandos deste país. Perdeu mais uma chance o senhor presidente ( O suspense durou até o final, 18 de julho). O nosso presidente da República não precisa ficar triste com as vaias recebidas na solenidade de abertura dos Jogos Pan-Americanos do rio de Janeiro. Manifestações espontâneas como essa muitas vezes servem mais como incentivo para que trabalhe com responsabilidade, quando eleito para cargo tão importante. Belo Horizonte, MG Leitor D Natal, RN - Leitor A Diz-se que o Rio repercute o Brasil. Na festa de abertura do Pan, provavelmente não estavam presentes nas arquibancadas os beneficiários (?) das bolsas federais. Haja vista a recepção dada ao presidente deste país. Carioca, você mais uma vez Lula ficou triste com as vaias que recebeu na abertura do Pan. Relaxa e Goza, presidente. São Paulo, SP Leitor E

2072 me emociona. Você me engrandece! Rio de Janeiro, RJ - Leitor B Apesar de todas as cores, dos figurinos e dos fogos, a vaia para Lula foi o momento mais bonito da abertura do Pan. O que ele esperava? Aplausos? São Paulo, SP Leitor C Seção Cartas Fonte: Veja, edição 2018, no. 29, de 25 de julho de 2007. Em uma análise geral temos: o subtítulo da Seção remete o leitor para o evento jogos Pan- Americanos, no entanto, o que marca a idéia central, ou seja, o tema de maior repercussão naquele evento é o momento das vaias. Dessa forma, temos a construção de um texto maior, com a primeira carta, pontuando a beleza e organização dos jogos, porém, já temos inserido nesse fragmento, o assunto central (das vais) e uma crítica ao atual governo. No segundo excerto temos o retrato de um Brasil corrupto na festa de abertura do Pan. Na terceira parte, retoma-se o tema central, mas enfatizando o lado psicológico do Presidente e isso fica mais claro na quarta carta. A orientação discursiva se fecha com a última carta em que o leitor cita a frase célebre da Ministra Marta Suplicy: Relaxa e goza! Sob a perspectiva Bakhtiniana, primeiramente, temos os enunciados que são as unidades de comunicação social que se regularizam nas interações na forma de gêneros do discurso. Depois, a enunciação se constrói na interação tipificando o tema, o estilo, a composição e seguindo um determinado curso histórico. Logo após, a mídia impressa ao fazer uso desse gênero vai regular e organizar as interações a partir do espaço Seção. Outro ponto a ser defendido é que o dialogismo está presente na interação entre os leitores nas cartas por eles produzidas. E a polifonia no espaço Seção onde os fragmentos são publicados. Como já mencionado em Bakhtin, (Barros) reitera o dialogismo como o princípio constitutivo da linguagem e a condição de sentido do discurso. Então, pode-se dizer que o dialogismo ocorre entre os leitores, que por sua vez, são seres sociais, cidadãos críticos, vivem num contexto sócio-histórico, participam de uma situação enunciativa mantendo relações entre discursos-enunciados e utilizam um determinado gênero para se manifestar. Assim, no texto dos leitores há muitas vozes ou discursos, com um caráter ideológico que se cruzam, se completam, respondem umas às outras ou polemizam entre si no interior do texto, como ocorre, por exemplo, na última carta do quadro da Seção Cartas. (Ver última carta, leitor E) Há a voz do leitor da revista Veja, levando em consideração que a carta foi publicada nessa revista e que ele provavelmente leu a reportagem que tratava do semblante triste do presidente no dia da abertura do jogos Pan-Americanos. Esse leitor, inserido em um momento sócio-histórico e dotado de um conhecimento, convive, dialoga com outras pessoas, que também mantém relações com outros discursos. Assim, o discurso desse leitor não é individual. Há indícios, que esse leitor conhece o contexto conturbado da política no Brasil, envolvendo denúncias de corrupção e caos nos aeroportos, pois utiliza um tom irônico para tratar do sentimentalismo do presidente e da fala da Ministra Marta Suplicy. Dessa forma, ao formar sua opinião, nessa interação discursiva, ele se manifesta através de um gênero chamado carta do leitor. Já a polifonia aparece na seção Cartas envolvendo a voz do leitor(remetente), do editor (remetente), co-produtor, mídia, público leitor. No espaço Seção há o discurso da mídia que orienta as publicações dos leitores e estes participam do processo dialógico. Conclusão A Carta do Leitor é produto de uma interação social que reflete o pensamento de uma comunidade e no seu contexto sócio-histórico-ideológico.

2073 Após as análises apresentadas observa-se que nos fragmentos da Seção Cartas, Revista Veja, há um conjunto de vozes na estrutura da Seção Cartas. Nessa Seção há uma interação entre o leitor (remetente) e o público leitor, mas acima de tudo, existe uma interação maior e implícita entre os fragmentos publicados. Essa interação é orientada pela mídia, que permite a manifestação da voz do leitor, no entanto, quem fala por ele é o próprio veículo de comunicação que rege, cria ou recria todas as outras vozes das cartas. Assim, seguem as publicações em uma linha seqüencial e formam um texto maior que produz um determinado efeito de sentido. Talvez aquele que a mídia quer como conveniente. Referências BAKHTIN, Mikhail (VOLOSHINOV) (1929/1991/2004). A relação entre a infra-estrutura e as superestruturas. In: Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec. Trad. Michel Lahud e Yara F. Vieira. pp.41-42. BAKHTIN, Mikhail (VOLOSHINOV) (1979/1992/2003). Os gêneros do discurso. In: Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes. Tradução Paulo Bezerra. pp.261-270. BAKHTIN, Mikhail (VOLOSHINOV) (1929/1991/2004). A interação verbal. In: Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec. Trad. Michel Lahud e Yara F. Vieira. pp.123-124. BAKHTIN, Mikhail (1929/1997) Peculiaridades do gênero, do enredo e da composição das obra de Dostoievski. In: Problemas da poética de Dostoiévski. 2ª. Ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio: Forense universitária. pp.101-180. BARROS, Diana Luz Pessoa de. Contribuições de Bakhtin às teorias do Discurso. In: BRAIT, Beth. (org.) (2005). Bakhtin dialogismo e construção do sentido. São Paulo: Unicamp. pp.32-34. BEZERRA, Paulo. Polifonia. In: BRAIT, Beth. (org.) (2005). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto. pp. 193-195. BRAIT, Beth. (org.) (2005). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, pp.63-64. BRAIT. Beth. 1997. O processo interacional. In: PRETI, Dino (org). Análise de 4 textos orais. São Paulo: Humanistas. pp.189-214. CLARK, Katerin & Holquist. Michael (1998). Mikhail Bakhtin. São Paulo: Perspectiva. pp. 260-261. http://publicidade.abril.com.br/beral_perfil_leitor.php http://publicidade.abril.com.br/geral_circulação-revista.php MARCUSCHI, Luiz Antônio.1999. Marcas de interatividade. Processos de textualização na escrita. In: Revista de filologia em língua portuguesa, v. 2. USP. Humanistas. pp. 139-155. SILVA. Jane Quintiliano G. As práticas comunicativas da carta: formas interativas do convívio social. In: SILVA. Jane Quintiliano G. Um estudo sobre o gênero carta pessoal: das práticas comunicativas aos indícios de interatividade na escrita dos textos. Belo Horizonte MG: Universidade Federal de Minas Gerais. Tese de Doutorado, 2002, pp.76-77. VOLOSHINOV, V.N. O discurso na vida e o discurso na arte. Trad. Para uso didático por C. Tezza e C. A. Faraco. s.d.