Álvaro de Campos e Ricardo Reis: convergências, divergências e importância no sistema heteronímico de Fernando Pessoa



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Transcrição:

Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários. Patos de Minas: UNIPAM, (3):118 123, 2010 ISSN 1984 0705 Álvaro de Campos e Ricardo Reis: convergências, divergências e importância no sistema heteronímico de Fernando Pessoa MIRIANE PEREIRA DAYRELL SOUTO Resumo: Este trabalho tem como objetivo traçar uma análise comparativa entre poesias de Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Para isso, foram selecionados dois poemas a fim de se compararem temáticas, características de estilo e traços importantes na caracterização do perfil de dois dos heterônimos de Fernando Pessoa. Por serem heterônimos que seguiram diferentes rumos no sistema heteronímico criado por Pessoa, há distintos elementos em seus poemas, mas ao mesmo tempo é possível depreender algumas semelhanças, tornando os então um interessante e fértil campo de análise. Palavras chave: Heterônimos de Fernando Pessoa; Poesia; Literatura Portuguesa. 1. Considerações iniciais O trabalho poético de Fernando Pessoa é singular e carrega em palavras grandes significações e ideias dotadas de imenso teor para análise. Ao dividir sua obra entre seus heterônimos, a peculiaridade entre a poesia de cada um deles se torna um amplo objeto de pesquisa. Portanto, uma comparação entre poesias dos heterônimos de Pessoa é um trabalho que desperta tanto os pontos convergentes quanto os divergentes em relação à temática e à própria maneira de escrever como forma de expressão. Fernando Pessoa tinha muitos heterônimos, contudo três foram os principais: Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro. Além disso, também possuía sua obra ortônima, em que escrevia suas poesias em que ele mesmo assina as obras. Neste trabalho, a obra de dois de seus heterônimos será analisada por meio de duas poesias. Álvaro de Campos e Ricardo Reis ocupam polos importantes no sistema heteronímico criado por Pessoa. Serão analisadas as poesias Não quero recordar nem conhecer me, de Reis, e Começo a conhecer me. Não existo, de Campos. Para isso, será usado como base o texto teórico e crítico Fernando Pessoa ou o poetodrama, de José Augusto Seabra, que traça paralelos entre as diferentes fases de Fernando Pessoa. 2. Poemas de Reis e Campos: objeto da análise comparativa Os poemas abaixo serão analisados de forma que seja estabelecida uma comparação, buscando definir primordiais elementos da poesia de Reis e Campos. Crátilo 118

MIRIANE PEREIRA DAYRELL SOUTO Ricardo Reis 1 Não quero recordar nem conhecer me. Somos demais se olhamos em quem somos. Ignorar que vivemos Cumpre bastante a vida. Tanto quanto vivemos, vive a hora Em que vivemos, igualmente morta Quando passa conosco, Que passamos com ela. Se sabê lo não serve de sabê lo (Pois sem poder que vale conhecermos?) Melhor vida é a vida Que dura sem medir se. Álvaro de Campos 2 Começo a conhecer me. Não existo. Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram, ou metade desse intervalo, porque também há vida... Sou isso, enfim... Apague a luz, feche a porta e deixe de ter barulhos de chinelos no corredor. Fique eu no quarto só com o grande sossego de mim mesmo. É um universo barato. 3. Análise Em uma análise superficial de dois dos heterônimos criados por Fernando Pessoa, o que se destaca são as diferenças explícitas existentes entre suas criações poéticas. Ricardo Reis e Álvaro de Campos parecem ocupar polos opostos, diferindo se em pontos importantes que influem de forma significativa na concepção da obras criadas pelos mesmos. Ambos têm percepções distintas em relação à vida, ao destino e à realidade. Campos assume uma posição resignada diante da vida e revela uma relação conflituosa com a realidade. Reis aceita o destino, sente se conformado com a sua realidade, acreditando ser essa a maneira mais viável de encontrar a felicidade e driblar o caráter efêmero da vida. 1 PESSOA, O guardador de rebanhos, p.130. 2 PESSOA, Tabacaria e outros poemas, p. 84. Crátilo 119

Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários. Patos de Minas: UNIPAM, (3):118 123, 2010 Contudo, além das diferenças, há semelhanças entre Reis e Campos, que são perceptíveis através de uma análise comparativa mais aprofundada e atenta. Por meio dos dois poemas acima, sendo cada um deles escrito pelos poetas preditos, este estudo se propõe a buscar as diferenças tão visíveis e as semelhanças escondidas por trás de seus valiosos e significativos versos. O próprio Fernando Pessoa já se atentava para as diferenças entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Os dois, considerados como discípulos do mestre Alberto Caeiro, tinham diferenças na própria caracterização. Reis era médico, já Campos, engenheiro. Ricardo Reis herdou de Caeiro o sensacionismo, em que as sensações são o melhor meio de descobrir e experimentar o mundo; já Álvaro de Campos aceitou do mestre o aspecto deduzível e subjetivo da sua atitude e se caracteriza também pelo excesso das sensações. Reis foi considerado poeta das odes neoclássicas, clássico, e Campos, o poeta das odes futuristas, moderno. Em meio às diferenças, os dois constroem uma obra permeada pela subjetividade e objetividade, que se entrecruzam; contudo cada um escolhe o meio e a medida de como as mesmas serão colocadas e aplicadas em suas criações. Apesar de ambos oscilarem entre objetividade e subjetividade, são distintos em sua criação poética. Reis se assemelha mais a Alberto Caeiro, com sua objetividade, as coisas como realmente são. Álvaro de Campos, por sua vez, está mais próximo de Fernando Pessoa ele mesmo. Acima, no poema de Reis, percebe se a simetria dos versos; no de Campos, os versos são longos com métrica irregular. No poema de Ricardo Reis, na ode Não quero recordar nem conhecer me, já é possível perceber uma característica peculiar do poeta: a capacidade de querer sentir as coisas sem senti las. Traçar um caminho de rememorações da vida talvez seja uma necessidade sentida, mas não é cumprida. Seria perder tempo diante do que pode ser vivido, experimentado. Sentir a vida, mas ao mesmo tempo deixar de perceber o passar do tempo, como algo que caracteriza a perda, a dilaceração do tempo, que se esvai; portanto o melhor a se fazer é aproveitá lo em vez de pensar nos motivos pelos quais o mesmo se vai. No poema de Álvaro de Campos, há uma imensidão de sentimentos ou propriamente angústias, que brotam justamente da imersão do poeta nas necessidades de autoconhecimento e de investigar as raízes de sua existência, de sua vida. A necessidade de buscar algo que se encaixe na obscuridade do não conhecido se torna o fado do poeta, sua não existência diante dos resultados do ato de conhecer a si mesmo. Enquanto Reis nega sua vontade de se conhecer, alegando a falta de precisão deste ato, Campos o faz, descobrindo a vaguidão de seu universo, de si mesmo. A partir dessas constatações, as divergências de opiniões entre a temática dos poemas, que é o autoconhecimento e a vida, são capazes de revelar as diferenças entre os poetas. Os dois heterônimos partem de uma mesma temática, o conhecimento da vida ou autoconhecimento, todavia seguem diferentes rumos. Ricardo Reis inicia seu poema em primeira pessoa e segue em terceira, o que permite afirmar que o poeta parte de Crátilo 120

MIRIANE PEREIRA DAYRELL SOUTO uma visão coletiva, incluindo se. Já Álvaro de Campos, inicia seu poema em primeira pessoa e dessa forma o segue até o final, exceto na parte em que usa o imperativo, partindo de uma visão interior e individual, excluindo se. Ricardo Reis, no poema, parece acreditar que se o homem conhecer a si mesmo deixará de perceber que vive, não aproveitará as suas vivências, pois se voltará para seu próprio interior. Álvaro de Campos, ao contrário, busca conhecer se e encontra a falta de sua existência. Por meio desse paradoxo de sensações, busca definir se embutido em um individualismo que o faz deixar de perceber a vida nesse processo de introspecção. O heterônimo Ricardo Reis parte da objetividade até chegar à subjetividade. Campos faz o caminho contrário. Parte do subjetivo até objetivá lo. Dessa forma, os dois encaram os modos de sentir de formas distintas, partindo do tema relacionado à vida, e inebriam seus versos com distintos modos de percepção. No poema de Reis, a objetividade do tema o leva a refletir, até que tais reflexões são marcadas pela subjetividade, numa conclusão própria. Já no poema de Campos, a subjetividade é vista nos primeiros versos como uma necessidade, entretanto, numa busca de respostas às suas indagações individuais, acaba por objetivar a sua sensação primeira, estabelecendo relações com a universalidade do tema. Campos era um heterônimo que se excedia ao expressar seus sentimentos e percepções diante do mundo. Esses excessos de expressão revelam os segredos que constituem sua criação poética. No poema, suas divagações acerca da própria existência sugerem um cansaço provocado justamente pelo fato de exceder os limites da expressão. No poema de Reis, há uma emoção harmônica que se traduz no ritmo e nas concepções do poeta. Em relação à forma, os dois optam por escrever poemas breves, mas dotados de grandes significações. Ricardo Reis dá ritmo ao seu poema através da própria emoção, da escolha das palavras que são geradas a partir das ideias. Campos é objetivo nas descrições feitas, tem uma linguagem mais simples. Por meio da pontuação sugestiva, busca ultrapassar os limites das palavras para expor claramente suas ideias. As reticências parecem ser o próprio cansaço, a falta de discernimento diante de uma questão tão complicada. Reis constrói um poema mais regular que o de Campos em relação à métrica e às rimas. Apesar de dois versos de Campos se parecerem com a prosa (são versos longos que dão ao poema um caráter descritivo), o poeta não deixa de se preocupar com a forma de seu poema. Campos tem uma contenção formal em que a subjetividade se objetiva no próprio construtivismo do poema. Nesse aspecto, ele se assemelha a Ricardo Reis, aos aspectos de seu neoclassicismo. Os dois heterônimos diferem se também na concepção do ritmo nos poemas. Ricardo Reis acredita que a existência da música na poesia está nas ideias que decorrem das palavras. Para Álvaro de Campos a música decorre da emoção, a poesia é uma prosa em que o ritmo é, portanto, caracterizado como artificial, um cantar sem música. Crátilo 121

Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários. Patos de Minas: UNIPAM, (3):118 123, 2010 No poema de Reis, as ideias parecem ditar o ritmo, as indagações, as afirmações. As palavras transmitem as ideias do poeta e da maneira como estão dispostas, dão musicalidade. No poema de Campos, a emoção controla o ritmo. A extrema subjetividade proporciona a musicalidade. A poesia parece realmente uma prosa musicada. O imperativo é usado pelos dois para denotar ordem, só que em contextos distintos. Reis parece mais aconselhar, dizer uma verdade que acredita ser universal, um conselho para todos. Campos dá uma ordem, como se fosse uma necessidade extrema atendê la, um mandamento que reflete a si próprio. Ricardo Reis acredita que viver a vida é a melhor forma de felicidade, sem pensar em motivos pelos quais se vive ou nas complicações arriscadas desse ato comum a todos os humanos. Álvaro de Campos quer mostrar sua indignação perante a indefinição daquilo que considera o que é viver, distanciando se da realidade. Em relação às sensações, Ricardo Reis dá mais valor à expressão do conteúdo do poema, caracterizando a vida e a necessidade de vivê la. Álvaro de Campos opta pela extrema expressividade que parece sobrepor se ao conteúdo, ao tentar demonstrar uma emoção individual. Reis tenta equilibrar a dor e o prazer da vida, Campos se excede em sua dor ao buscar explicações para o próprio existir, não encontrando o mesmo equilíbrio. Os dois, em meio ao objetivo e subjetivo, fazem considerações diferentes a partir de um estopim único: a vida. Ricardo Reis parte do objetivismo, que caracteriza o ato de objetivar totalmente ações e coisas, ou seja, eliminar vestígios da subjetividade e mostrar tudo como realmente é. Assim, Reis parte dessa significação e tenta equilibrar tal objetivismo com a subjetividade. Já Álvaro de Campos se excede no subjetivismo até objetivá lo poeticamente. Campos se excede tanto em sensações quanto em expressão. Reis é mais objetivo, explica o que realmente acredita ser o autoconhecimento, algo que não serve de sabê lo. Reis resume sua ideia no último verso: Melhor vida é a vida. Não há o que procurar, a existência é justificável por si mesma. Campos quer defini la, nos últimos versos de seu poema, e é possível ver essa sua necessidade: Fique eu no quarto só com o grande sossego de mim mesmo./ É um universo barato. Deseja a imersão em seu próprio pensamento para descobrir o que realmente é, um emaranhado de ideias sem muito valor, inexpressivo para ele, o que ele demonstra com extrema expressividade. Enfim, os dois heterônimos buscam por meio dos mistérios da vida, traçar suas ideias que transformadas em versos, revelam a personalidade dos mesmos. São ambos muito importantes para entender quem realmente era Fernando Pessoa ele mesmo. Tanto Ricardo Reis, com sua poética que demonstra equilíbrio, quanto Álvaro de Campos, que ultrapassa as sensações e recai na dúvida, na contradição do ser da existência, são poetas grandiosos, criados por uma mente com capacidade de discernimento, com espírito e construções poéticas admiráveis. Crátilo 122

MIRIANE PEREIRA DAYRELL SOUTO Miriane Pereira Dayrell Souto é graduanda do curso de Letras da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), e bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CNPq / UFU. e mail: mirianedayrell@hotmail.com Referências PESSOA, Fernando. O guardador de rebanhos e outros poemas. São Paulo: Cultrix, 1998. PESSOA, Fernando. Tabacaria e outros poemas. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996. SEABRA, José Augusto. Fernando Pessoa ou o poetodrama. São Paulo: Perspectiva, 1982. Crátilo 123