Viagem a outro cinema,



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Transcrição:

Viagem a outro cinema, vestígios de outro Brasil Ana Paula Spini Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professora do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). anapaula.spini@gmail.com artcultura24_copia.indd 225

Viagem a outro cinema, vestígios de outro Brasil A travel to a different cinema, remains of a different Brazil Ana Paula Spini PAIVA, Samuel e SCHVARZMAN, Sheila (orgs.). Viagem ao cinema silencioso do Brasil. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011, 312 p. 1 Cf. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. In: LIMA, Luiz Costa (org.). Teoria da cultura de massa. São Paulo: Paz e Terra, 2000. Mais de um século nos separa do surgimento do cinema. O espectador de hoje, ao menos o mais jovem, acostumado aos efeitos especiais, às escolhas do que vê definidas pelas preferências de gênero, à febre da terceira dimensão, à interatividade dos videogames, pode experimentar grande estranhamento, e até mesmo impaciência, frente ao cinema do início do século XX. O cinema, em consonância com as demandas de seu tempo, tem participado da constituição de novas formas de percepção e sensibilidade. 1 O livro Viagem ao cinema silencioso do Brasil, organizado por Samuel Paiva e Sheila Schvarzman, proporciona ao leitor uma viagem a outro cinema, permitindo vislumbrar vestígios de outro Brasil. A coletânea disponibiliza para os estudiosos do tema reflexões e abordagens sobre um período do cinema brasileiro que se mostra repleto de possibilidades de investigação. A obra é resultado do trabalho de um grupo de pesquisadores de cinema e audiovisual, vinculados a instituições em sua maioria, universidades do estado de São Paulo, que, desde 2002, reúne-se na Cinemateca Brasileira para assistir ao acervo de filmes realizados entre os últimos anos do século XIX e primeiras décadas do século XX, disponíveis em seu arquivo. O cinema transformou-se, como linguagem e como indústria, ao longo do século XX, em um processo de disputas, tensões, recusas e acomodações. Se, por um lado, são várias as experiências cinematográficas que impedem pensar o cinema no singular, algumas transformações são marcos que atravessam as diferenças. O marco referencial, que nomeia o cinema do início do século XX como silencioso, é a invenção do som gravado a trilha sonora, os ruídos, as falas. Adota-se como parâmetro uma invenção posterior ao cinema que vem a se constituir como objeto de estudo. Viagem ao cinema silencioso no Brasil é composto por uma introdução, quatro seções temáticas e anexos. Na introdução, Carlos Roberto de Souza traça um histórico do que chama de estratégias de sobrevivência dos filmes silenciosos brasileiros. Destaca as ações da Cinemateca Brasileira, que estabeleceu, em 1985, um Programa para a Restauração de Filmes e guarda a maior parte dos filmes silenciosos preservados. O texto traz à tona o tema da constituição dos acervos de filmes públicos, a partir de iniciativas que vão desde a prospecção e coleta dos materiais, passando pela restauração e pela conservação, até esses filmes se tornarem acessíveis ao público. Dessas ações, enfatiza as etapas de prospecção e acesso, 226 ArtCultura, Uberlândia, v. 14, n. 24, p. 225-230, jan.-jun. 2012 artcultura24_copia.indd 226

as duas pontas do processo, que no Brasil têm sido promovidas por meio de projetos vinculados a empresas governamentais. Na primeira seção do livro, Sobre gênero no cinema silencioso, composta por escritos de Luciana Corrêa de Araújo, Sheila Schvarzman, Samuel Paiva e Alfredo Luis Suppia, nota-se que o trânsito entre o gênero cinematográfico e sua ressignificação em solo brasileiro é uma abordagem que perpassa todos os textos. A seção faz pensar sobre os limites da universalidade do gênero, definidos pela especificidade de sua apropriação por realizadores brasileiros. Coloca em questão o aspecto da nacionalidade, da identidade nacional na produção do cinema silencioso brasileiro. Luciana Corrêa de Araújo, ao se indagar sobre os limites da incorporação do modelo norte-americano nos filmes brasileiros silenciosos, realiza uma análise que compara as características marcantes das narrativas de dois filmes específicos David, o caçula, de Henry King, e Tesouro perdido, de Humberto Mauro. A autora observa semelhanças entre os dois filmes, mas enfatiza diferenças, na construção do herói, que ela atribui a fatores culturais, pelo fato de a narrativa cinematográfica ser permeada por valores da sociedade na qual o filme é produzido. Considera, assim, que nos filmes silenciosos brasileiros, como prevalecem as categorias de senhor e escravo, profundamente enraizadas na mentalidade brasileira da época, há a dissociação entre o herói e o galã. Nas palavras de Luciana Araújo, não espanta, portanto, que outros façam o trabalho justiceiro pelo galã afinal, ele é o senhor que, ao contrário do escravo, não precisa se submeter ao trabalho para se mostrar valoroso. Sheila Schvarzman analisa o filme Brasil pitoresco, viagens de Cornélio Pires, de 1925, relacionando-o ao gênero internacional de filme de viagem, mas também a práticas cinematográficas vigentes no Brasil, como a cavação. O filme é produto tanto de um olhar colonialista, que vê o outro como exótico, quanto da prática de viabilizar a realização cinematográfica por meio da cavação, encomenda ou patrocínio do filme, por autoridades ou pela elite econômica. Em uma abordagem histórica dessa produção, a autora se preocupa em analisar vários aspectos: o contexto de realização, o lugar do qual Cornélio Pires olha o que filma, o filme, a relação entre o gênero e seus limites explicativos definidos pelas particularidades locais e, finalmente, a recepção, dividida entre o sucesso de público e a crítica negativa da Cinearte. Tal estudo possibilita a Sheila Schvarzman entrever projetos distintos de Brasil no momento de realização e de exibição do filme. Samuel Paiva, a partir da proposta metodológica de Charles Musser para a análise do cinema dos primeiros tempos sob uma perspectiva historiográfica, volta-se para a intertextualidade entre o cinema e a revista Cinearte, ao investigar o tratamento dado pela revista ao gênero viagem, um dos mais populares do cinema de então. Ainda que seja possível identificar uma linha ideológica para a revista marcada por um projeto de Brasil à imagem dos Estados Unidos e por um projeto de criação de uma indústria cinematográfica brasileira, o autor não deixa de considerá-la como um campo de força, no qual visões de mundo distintas conviviam e se confrontavam. A reflexão se completa quando, ao investigar filmes de ficção, chamados à época de posados, constata-se a presença de elementos característicos do gênero viagem, inclusive em Barro humano, filme do maior crítico do gênero viagem Adhemar Gonzaga, e na própria revista nos anos 1920. R e s e n h a s ArtCultura, Uberlândia, v. 14, n. 24, p. 225-230, jan.-jun. 2012 227 artcultura24_copia.indd 227

228 ArtCultura, Uberlândia, v. 14, n. 24, p. 225-230, jan.-jun. 2012 Alfredo Luiz Suppia focaliza o gênero ficção científica para analisar a sua inserção na produção silenciosa brasileira. Usa a denominação protoficção científica como um gênero que antecede a ficção científica, termo que se tornou recorrente desde os anos de 1930. Nota que a associação entre a comédia e o fantástico no cinema silencioso ocorreu independentemente da nacionalidade da produção cinematográfica, mas perdurou no Brasil e no México por muito tempo, ao contrário do que ocorreu em países como Estados Unidos, França e Inglaterra. O autor identifica nos fatores de ordem econômica e cultural as razões para a baixa produtividade do gênero nesse período, salientando a necessidade de estudos que deem conta dos aspectos culturais e investiguem a valorização do realismo-naturalismo e do documentarismo na produção silenciosa brasileira, bem como a desvalorização do gênero fantástico. Na segunda seção do livro, Tensões nas representações sociais, Annateresa Fabris e Mariarosaria Fabris, Flávia Cesarino Costa e Luciene Pizoquero debruçam-se sobre filmes naturais, não posados, e encontram ambiguidades presentes neles próprios, no cotejo com periódicos e na relação entre temporalidades distintas no processo de realização de uma obra cinematográfica, como a modernidade no uso da tecnologia de filmar e o olhar tradicional sobre o que é representado no filme. Annateresa Fabris e Mariarosaria Fabris refletem sobre a passagem do navio Regia Nave Italia pela costa brasileira no ano de 1924, com a função de propagandear entre os descendentes italianos da América Latina os feitos da Itália de Benito Mussolini. Para tanto, as autoras utilizam como fontes os periódicos da época e o filme A Real Nave Itália no Rio Grande do Sul. As imagens são analisadas a partir da percepção do espectador hodierno, deixando de lado uma investigação dos sentidos do filme no contexto em que foi realizado. No confronto com as fontes escritas, é possível verificar as diferenças entre as notícias sobre o acontecimento e a forma como a passagem do navio foi representada no filme. Flávia Cesarino Costa enfoca dois filmes sobre práticas populares de cura e se propõe a analisar as ambiguidades neles detectadas, tomando como ponto de partida a questão da conexão entre discurso científico, sensacionalismo e exibição da miséria. Analisa o registro das imagens de cura em relação ao período posterior ao encenado nos filmes, em que o Estado passou a regular o que deveria ser mostrado e o que deveria ser interditado. Seu texto abre caminho para uma melhor compreensão desses filmes como práticas socioculturais. Lucilene Pizoquero aborda a representação da mulher da elite em três filmes de curta duração produzidos em Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo entre 1909 e 1920. A autora descreve detalhadamente as cenas dos filmes e realiza uma breve análise sobre o papel da mulher burguesa na sociedade de então. A título de conclusão, ela destaca que a modernidade celebrada na utilização da película para registro de efemérides das elites convive com o que chama de resquícios do passado recente marcado pelo patriarcalismo escravocrata e colonial. Na terceira seção do livro, A viagem da nação, Eduardo Morettin, Ana Lobato e Paulo Menezes tratam de aspectos da identidade nacional ao analisar filmes de viagem, e consideram as possibilidades de autoria em um período histórico no qual os filmes eram realizados sob encomenda. Eduardo Morettin examina a imagem do Brasil nas obras do cineartcultura24_copia.indd 228

grafista amazonense Silvino Santos que datam dos anos 1920. Analisa três filmes como um conjunto narrativo, no qual são expostas as relações litoral/ interior e cidade/campo. O autor se preocupa com a dimensão autoral inscrita nos filmes encomendados, nos quais Silvino é tido como operador de equipamento. A análise fílmica empreendida por Morettin tanto dá conta da imagem de Brasil construída nas oposições tornadas harmônicas entre modernidade/natureza, quanto do olhar do cinegrafista sobre o que filmava, a despeito de quem comandava o processo de registro das imagens, fosse o empresário interessado na propaganda de suas empresas amazonenses, fosse o cientista norte-americano em expedição, interessado na catalogação da riqueza da floresta amazônica. Ana Lobato analisa dois filmes do final da década de 1920 de Luiz Thomaz Reis, responsável por todo registro imagético da Comissão Rondon a partir de 1912. Identifica elementos da política positivista que embalava os objetivos expedicionários em uma linguagem própria ao gênero filmes de viagem, como a representação do interior como um lugar longínquo. Ressalta ainda componentes ficcionais no documentário, como a criação de fábulas. Para a autora, isso indica conhecimento e exploração da linguagem cinematográfica por parte de Reis, levando-a a supor a realização de encenação nos filmes em questão. Paulo Menezes também se ocupa das produções de Luiz Thomaz Reis, porém no período de 1917 a 1938, com foco na caracterização dos índios e na estrutura narrativa. Salienta as mudanças verificadas nos filmes em relação à forma como os índios são mostrados, num percurso que vai da conformação das suas atividades, festas e rituais, aos olhares católicos e à integração dos indígenas à nação, quando aparecem tomando parte da Comissão Rondon, já no final da década de 1930. Para o autor, essa integração ganha corpo, nas lentes de Reis, por meio da escola e do trabalho, no início dos anos 1930, e na religião como instrumento de construção da nação, no final da década. Na quarta seção do livro, Os arquivos e a memória, Glênio Nicola Póvoas, Guiomar Ramos e Mauro Alice transitam entre arquivos em construção, memórias de vida e suas relações com acontecimentos históricos, recorrendo, para isso, a fontes diversas, tais como o próprio filme, o testemunho oral, os periódicos e o livro de memórias. Glênio Nicola Póvoas relata sua experiência com a catalogação do arquivo da Leopoldis-Som no Arquivo de Mídias da RBS TV. Na pesquisa em periódicos, busca as referências temporais e a caracterização dos conteúdos recorrentes para a catalogação do cinejornal Atualidades Gaúchas. Levanta questões pertinentes à aproximação verificada entre os olhares do cinejornal e as fotografias dos jornais e da Revista do Globo, ampliando, assim, as possibilidades analíticas sobre a relação entre imprensa e ações do Estado. Guiomar Ramos procura um diálogo entre as memórias de Dona Guiomar, sua tia-avó, mulher da elite paulistana nascida em 1908, acerca da viagem ao Brasil dos soberanos belgas, em 1920, e o filme produzido na Bélgica sobre essa viagem, Voyage des nos souverains au Brésil. Seu objetivo é compreender a magnitude do evento de 1920 com base no cruzamento das fontes selecionadas: o testemunho de Dona Guiomar, o filme e a imprensa. Por fim, Mauro Alice articula os depoimentos transcritos por Ecléa Bosi no livro Memória e sociedade: lembranças de velhos ao filme Voyages de R e s e n h a s ArtCultura, Uberlândia, v. 14, n. 24, p. 225-230, jan.-jun. 2012 229 artcultura24_copia.indd 229

nos souverains au Brésil. Se os depoimentos são tratados pelo autor como memória, o filme é tratado como estofo social da memória, uma vez que fixa aspectos da população com o frescor de algo que ainda não se transformara em memória. A seção dos anexos da obra é composta por um relatório de viagem aos Estados Unidos do tenente Luiz Thomaz Reis, para apresentar um filme da Comissão Rondon, e por um útil levantamento da filmografia silenciosa brasileira preservada. O mérito da publicação consiste tanto na restituição do movimento ao que repousa nos arquivos da Cinemateca Brasileira, quanto na abertura para possíveis desdobramentos dos estudos propostos, o que torna a sua leitura bastante profícua para os pesquisadores de cinema, de audiovisual e de história. Refletir sobre os filmes brasileiros dos últimos anos do século XIX e primeiras décadas do século XX torna-se um exercício fundamental para pensar a historicidade da experiência do cinema e a sua relação com aspectos da história do Brasil e com os projetos de identidade nacional. Resenha recebida em maio de 2012. Aprovada em junho de 2012. 230 ArtCultura, Uberlândia, v. 14, n. 24, p. 225-230, jan.-jun. 2012 artcultura24_copia.indd 230