A GÊNESE DO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA NO BRASIL: ENTRE A RELIGIÃO E O ESTADO



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Transcrição:

A GÊNESE DO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA NO BRASIL: ENTRE A RELIGIÃO E O ESTADO Ewerton Rezer Gindri 1 CEFAPRO - TGA ewertongindri@gmail.com Resumo: Pretende-se nesse texto confirmar a ideia de que o ensino de língua portuguesa no Brasil se efetiva depois da instalação do Diretório dos Índios, em 1757, e não no início da colonização. Recorreremos a conhecimentos históricos sobre a Reforma Protestante e sua antagonista a Contra-Reforma para construirmos um pano de fundo político-religioso. Também, baseandose em textos da época, demonstra-se que o ensino da língua portuguesa insere-se em um contexto em que a política de estado lusitana, que nessa época buscava fortalecer-se e distanciar-se do estigma da dominação castelhana, era muito mais determinante do que as razões religiosas. Essas observações deverão, por fim, servir de base para a compreensão do surgimento do mito do monolinguísmo no Brasil e, juntamente com o estudo das tendências de ensino e pesquisa de língua, viabilizar uma análise coerente do preconceito lingüístico, em solo brasileiro. Palavras-chave: ensino, política-linguística, língua. Acredito que começar a falar do ensino de língua portuguesa a partir da chegada dos primeiros colonizadores, ou mesmo dos primeiros jesuítas, é um equívoco. Nesse texto procuraremos demonstrar nosso ponto de vista, e ligar o começo do ensino da língua portuguesa ao movimento de afirmação nacional português, que precedeu às reformas implantadas por D. José, culminando com as Instruções de 1759. De quem se propõe a estudar os eventos transcorridos durante os séculos medievais, exige-se que compreenda a configuração social da época, principalmente a interface entre política e religião. Vivia-se a preocupação com a salvação da alma. Cria-se na verdade revelada. O Papa, vigário de Deus, arrogava para si o prestígio do antigo Império Romano e muitos reis, por motivos vários, o apoiavam nisso. O fato é que a igreja católica medieval pregava uma salvação oriunda das obras. Isso era muito apropriado, uma vez que as obras podiam ser realizadas basicamente de duas formas: pela obediência cega ou através de doações. Contudo a Reforma Protestante 2 vem 1 Professor Formador de Língua Portuguesa do Centro de Formação dos Profissionais da Educação do Estado de Mato Grosso, CEFAPRO. 2 Não entraremos em detalhes históricos, pois esse não é o intuito do texto, por isso falaremos de uma forma geral sobre o pensamento protestante, mesmo sabendo que este logo se ramificou dando origem a várias correntes.

questionar essa doutrina e seu primeiro expoente, Martinho Lutero, vai afirmar categoricamente: o justo viverá da fé. A antiga dicotomia fé versus obra está novamente diante da cristandade e na ruptura formada por ela está a questão da leitura. A leitura era limitada, mesmo os religiosos tinham acesso a poucos livros 3 e sua leitura não tinha por objetivo a interpretação, já que a revelação já havia ocorrido e não poderia ser questionada, mas tão somente a memorização. Os religiosos então passavam ao povo uma versão empobrecida e tendenciosa do que liam e nada além disso chegava às classes subordinadas. Não se via problema teológico nisso, uma vez que acreditava-se que a fé vem pelo ouvir. Lembremos também que todos os livros estavam escritos nas línguas originais, a maioria em latim, mas nunca em língua vulgar. Leiamos a declaração de Anchieta sobre a educação dos meninos do Brasil e verifiquemos a menção a memorização e ao ensino de latim. Os meninos da escola primária, que completam o número de oitenta, dão mostra incomum de sua virtude. Com muita aplicação, procuram traçar as primeiras letras, para se poderem transferir depois às aulas de latim. Atraídos pelos prêmios, envidam grande esforço nas freqüentes disputas a respeito da doutrina cristã, que decoram cantando, e das regras da aritmética. (Carta ânua da Província do Brasil, de 1583, do provincial José de Anchieta ao geral Pe. Cláudio Acquaviva Bahia do Salvador, 1/1/1584) A ideia de que a fé provinha do ouvir e que não se podia pensar em uma interpretação individual da verdade divina é a principal diferença entre a pregação católica medieval e a protestante. Os protestantes investiram pesado na alfabetização, não por motivos educacionais, como se faz hoje, mas por motivo de fé. Acreditava-se que todo o homem tinha o direito de ler e interpretar a palavra de Deus, por isso também há na Reforma Protestante um enorme esforço para a tradução da Bíblia para o vernáculo, mas não somente a leitura era valorizada, também a escrita. Imaginava-se que o cristão além de ler e compreender a vontade de Deus para sua vida deveria também escrever suas opiniões. Dá-se por isso o ensino do vernáculo nos países protestantes durante os séculos XVI e XVII. Contudo poderíamos argumentar que a Contra-reforma católica desenvolveu um sistema de ensino que fez largo uso do vernáculo sim, mas não aceitamos a ideia de que isso tenha se caracterizado um ensino, vejamos o porquê. O Concílio de Trento deliberou a favor do uso do vernáculo para a catequização e introdução de conhecimentos de latim. Então lendo o que escreveu Anchieta percebemos que o vernáculo era apenas um meio para o fim, o ensino da gramática latina. Hansen destaca que 3 Lembremos que os livros nessa época eram manuscritos.

o latim era a língua obrigatória em todas as atividades; no teatro, permitia-se o uso de português em diálogos dramáticos, mas não em tragédias e comédias. Então percebemos que se tratando de Brasil, por exemplo, o ensino do latim em missões da Companhia de Jesus continuou, mesmo que tenhamos a impressão de que se valorizava o vernáculo, seja ele o do Rei ou a língua geral. Faria destaca que Em 1566 é publicado o Catechismus ex Decreto Concilii Tridentini, dirigido explicitamente aos párocos (ad parochos), e não diretamente aos fiéis: os primeiros devem, contudo explicitá-lo oralmente aos segundos a fim de que o povo fiel se aproxime dos sacramentos com mais respeito e mais devoção. (FARIA, 2007) Nesse mesmo texto Faria, citando Julia, faz uma afirmação que me parece suficiente para encerrarmos a discussão sobre a natureza do ensino jesuítico, concluindo que não podemos falar de um ensino da língua portuguesa nesse período, seja no Brasil ou no próprio império. Vamos ao texto. Em 1651, Nicolas Le Maire publica O Santuário inacessível aos profanos ou A Bíblia proibida ao vulgo. Nesse livro, afirma que uma das práticas mais importantes da Igreja [...] consiste em ocultar os mistérios aos indignos e distanciar os profanos do santuário. Para o autor, o vulgar não é somente a borra do povo que se arrasta sob os pés dos outros ; compreende também os soberbos, os impuros, os ignorantes, os fracos e curiosos, os indiscretos, os imundos. A leitura não é nem para os artesãos e as mulheres nem para toda espécie de pessoas de qualquer condição. Nicolas Le Maire salienta ser necessário humildade de não ler sem mestre nem intérprete. Portanto, a leitura não é necessária e nem mesmo útil a todos. (FARIA, 2007) Faremos agora um recorte em nossa abordagem, limitando-nos a falar sobre o império luso, já que é dele que provém o Brasil e nele se desenvolve nosso objeto. Devemos primeiramente lembrar que Portugal era um país católico, e na época imperial possuiu uma relação muito estreita com o vaticano. Havia entre a Igreja e a Coroa Portuguesa um pacto, ao qual podemos chamar de Projeto Colonial. Esse projeto passava pela expansão do império e pela catequização dos índios, e consequente fortalecimento da Igreja Católica. Até agora falamos de uma situação onde a Igreja Católica era ameaçada pela expansão protestante, contudo queremos demonstrar que houve, durante o século XVII, eventos que ameaçaram o poderio de Portugal, culminando em meados do século XVIII numa mudança paradigmática na política linguística do império. Devemos lembrar que em 1580, no auge do poder, Portugal perde seu imperador, o Rei D. Sebastião, que desaparece durante campanha militar no Marrocos. Baseando-se em parentescos e leis vigentes a Espanha anexa Portugal e

essa subordinação dura até 1640. A partir dessa data a dinastia dos Bragança tem a responsabilidade de fortalecer a nação e destruir o estigma da subordinação espanhola. Nos séculos XVII e XVIII a ideia de nação passa pela de homogeneidade, inclusive linguística. Nesse quesito Portugal também teve que se livrar da mal-fadada herança hispânica, já que muitos acreditavam que o português era tão somente mais um dos dialetos do espanhol. O professor José Pereira da Silva afirma que na primeira metade do século XVIII, ainda não se tinha plena consciência em Portugal da existência de uma língua nacional nem mesmo a consideravam um instrumento linguístico independente em relação à língua espanhola. O mesmo filólogo cita o depoimento de Rafael Bluteau, de 1727, que diz: No ano de 1668, cheguei a este reino e, desde aquele tempo, raro foi o dia em que não me aproveitasse de alguma notícia da língua portuguesa... [imaginava-se que a língua portuguesa era] casualmente formada de vários fragmentos da língua mourisca e castelhana... Sobre esta errada apreensão, tenho tido grandes debates com estrangeiros de porte e literatos[...]. (SILVA, 2009) Nota-se pelo texto acima que a questão da política linguística não era mais um domínio da religião, não se podia mais falar de ensino de língua pensando apenas em termos de fé, era necessário afirmar fronteiras, aumentar o número de súditos e firmar-se como nação. Esse papel fica devidamente exemplificado ao lembrarmos o papel decisivo da língua quando o Tratado de Madri, de 1777, usa o uti possidetis, para delimitar as terras da América Latina. Cientes da importância da implementação da língua em sua colônia, Portugal não podia mais admitir, mesmo antes do Tratado de Madri, a prática jesuítica. Mariani afirma que no caso da colonização portuguesa no Brasil língua e nação estão conjugados em termos da formação de uma comunidade linguístico-jurídica distintiva de um povo, ou seja, a língua portuguesa é uma instituição nacional (MARIANI, 2003). Essa consciência leva a coroa portuguesa a emitir diversas ordens régias no final do século XVII e começo do XVIII, sem, contudo lograr êxito na implantação efetiva da língua portuguesa no Brasil, uma vez que na colônia falava-se uma língua de raiz indígena, embora artificial, chamada de geral. A esse respeito é importante aqui lembrar que O que está em jogo na colonização linguística e na institucionalização do português no território brasileiro nem é tanto, ou apenas, uma diversidade de línguas e de falares em termos tecnicamente sociolinguísticos, mas sim uma heterogeneidade linguística que será parte integrante de uma memória do que no século XIX vai ser nomeado como língua brasileira. (MARIANI, 2003)

Então os fatos que ocorrem durante o século XVIII são importantes não somente do ponto de vista linguístico, mas também para a formação de uma memória discursiva que é fundante para a identidade nacional brasileira. É nesse sentido que Orlandi afirma o português-brasileiro e o português-português se recobrem como se fossem a mesma língua, no entanto não são. (...) A nossa língua [brasileira] significa em uma filiação de memória heterogênea. (ORLANDI, 2002). Em 1701, o Rei português escrevendo a D. João de Lencastro, recomenda aos missionários: que procurem ensinar aos índios na língua portuguesa; porém é necessário que eles primeiro saibam a dos índios. Para este fim (...) hajam mestres e práticos nas línguas não só dos índios, mas dos pretos (...). Essa aparente contradição parece nos mostrar uma tentativa de se aproveitar o aparato jesuítico para os propósitos da coroa, o que manteria o pacto entre Estado e Igreja. Contudo em 1722 a recomendação é repetida, mas de forma mais enfática:... seria mui conveniente do serviço de Deus e meu que não só os instruam [os índios] na Religião Católica na sua mesma língua, mas que os ensinem a falar Português.... Depreendemos dessa fala que a Companhia de Jesus continuava a priorizar a Religião Católica deixando o serviço do Rei no esquecimento. Em 1727 o rei percebe e afirma que...os índios (...) não só não são bem instruídos na língua portuguesa, mas que nenhum cuidado se põe em que eles a aprendam de que não pode deixar de resultar um grande desserviço de Deus e meu.... Com o desserviço da Companhia de Jesus e a crescente necessidade de se proteger as fronteiras brasileiras, especialmente as da Amazônia, em 1757 é promulgado o Diretório dos Índios, por D. José I, através de seu ministro o Marques de Pombal. Mas devemos lembrar que o Diretório não era somente um instrumento político para a defesa de fronteiras, era também o reflexo de uma ideologia que envolvia conceitos de civilidade, nação e colonização. O Diretório é um instrumento ideológico, pelo qual se impõe à colônia a vontade da metrópole e constroem-se os meios necessários ao assujeitamento e apagamento cultural do outro. Essa ideia pode ser percebida já em um documento que precede em dois anos a publicação do Diretório, o Alvará Régio de 4 de abril de 1755, que dizia Eu, El Rey. Faço saber aos que este meu Alvará de ley virem, que considerando o quanto convém que os meus reaes domínios da America se povoem, e que para este fim póde concorrer muito a communicaçaõ com os Índios, por meio de casamentos: sou servido declarar que os meus vassallos deste reino e da America, que casarem

com as Índias della, naõ ficaõ com infamia alguma, antes se faráõ dignos da minha real atenção [...] (Alvará Régio de 4 de abril de 1755) Percebe-se no Alvará que a coroa objetivava o fortalecimento de seu império e que havia percebido que necessitava de mais súditos, vendo nos índios um potencial crescimento nesse número. Entretanto havia mister que os súditos da coroa falassem a língua do rei e é nesse contexto que se insere o Diretório. Leiamos agora os pontos do Diretório ligados à língua, especificamente do 6 ao 8 parágrafo. No parágrafo sexto lê-se o seguinte: Sempre foi máxima inalteravelmente praticada em todas as Nações, que conquistaram novos Domínios, introduzir logo nos povos conquistados o seu próprio idioma, por ser indisputável, que este é um dos meios mais eficazes para desterrar dos Povos rústicos a barbaridade dos seus antigos costumes; e ter mostrado a experiência, que ao mesmo passo, que se introduz neles o uso da Língua do Príncipe, que os conquistou, se lhes radica também o afeto, a veneração, e a obediência ao mesmo Príncipe. Percebe-se que a imposição linguística é justificada pela tradição. Portugal se coloca no status de nação conquistadora, o que lhe dá direitos de tal. Erradicar a pretensa barbárie dos povos conquistados aparece como missão dos conquistadores, mas também uma noção de que sem o que no documento se chamou de afeto, veneração e obediência ao Príncipe não se tem súditos. A língua é, nesse contexto, um instrumento homogeneizante a serviço do império. Os vassalos devem falar a língua do Príncipe, e não esse aprender a língua do povo. Portanto os casamentos de súditos portugueses com índias ou de mulheres portuguesas com índios eram aceitos e até mesmo desejados, com a condição de que seus cônjuges fossem verdadeiros membros do império, tendo abandonado os antigos costumes e sua língua nativa. Nesse tocante, ainda no parágrafo 6, falasse do que ocorreu no Brasil, falasse do uso da língua geral: nesta Conquista se praticou tanto pelo contrário, que só cuidaram os primeiros Conquistadores estabelecer nela o uso da Língua, que chamaram geral; invenção verdadeiramente abominável, e diabólica. Além do relato documental da situação de poliglosia brasileira, devemos nos ater ao que é dito a respeito da língua geral, começando pelo conceito que se tinha de invenção na época. Mariani cita o dicionário de De Bluteau que afirma que... as verdadeiras invenções são as que Deus revela, disso Mariani conclui que A língua geral, por sua vez, é chamada de invenção diabólica, invertendo os sentidos a ela atribuídos pelos jesuítas. O referido parágrafo continua

...Para desterrar esse perniciosíssimo abuso, será um dos principais cuidados dos Diretores, estabelecer nas suas respectivas Povoações o uso da Língua Portuguesa, não consentindo por modo algum, que os Meninos, e as Meninas, que pertencerem às Escolas, e todos aqueles Índios, que forem capazes de instrução nesta matéria, usem da língua própria das suas Nações, ou da chamada geral; mas unicamente da Portuguesa, na forma, que Sua Majestade tem recomendado em repetidas ordens, que até agora se não observaram com total ruína Espiritual, e Temporal do Estado. Percebemos que o Diretório não apenas impõe o ensino da língua portuguesa, mas proíbe o uso das demais, não permitindo o uso de nenhuma outra língua, pintando assim um quadro de monolinguísmo no Brasil. Atribui-se também ao uso da língua geral a ruína espiritual e temporal do Estado. No parágrafo 7 o Diretório, tendo como certo de que a língua é a base fundamental da Civilidade ordena que se criem nas aldeias duas escolas públicas, uma para meninos e outra para meninas, nas quais se ensine dentre outras coisas a língua portuguesa. O 8 parágrafo além de determinar as formas de pagamentos dos mestres, faz uma afirmação que merece atenção. Diz-se que No caso, porém de não haver nas Povoações Pessoa alguma, que possa ser Mestra de Meninas, poderão estas até a idade de dez anos serem instruídas na Escola dos Meninos, onde aprenderão a Doutrina Cristã, a ler, e escrever, para que juntamente com as infalíveis verdades da nossa Sagrada Religião adquiram com maior facilidade o uso da Língua Portuguesa. Percebemos que a catequização das meninas, assim como a dos meninos e de todos os que tinham idade para instrução, não era mais o principal fim, mas o domínio da língua portuguesa. Essa necessidade estatal deveria ser suprida mesmo que para isso as meninas, menores de dez anos, tivessem que estudar junto aos meninos da aldeia. Parece suficiente o que até agora foi dito para confirmar a ideia de que o estabelecimento do ensino de língua portuguesa no Brasil se dá após o Diretório dos índios, em 1757, e insere-se em um contexto onde a política de estado é muito mais importante do que as questões metafísicas que impulsionaram a criação do sistema de ensino da Companhia de Jesus. Ligia Trouche escreve que não pode restar dúvida de que estas medidas obtiveram um resultado prático, pois, em 1798, quando o Diretório foi abolido, a língua portuguesa

dominava, incontestavelmente, (à exceção da Amazônia) as regiões brasileiras, onde há quarenta anos predominava a influência Tupi, e cita Celso Cunha que afirma: A Reforma Pombalina instituiu o ensino público, tornou violentamente obrigatório o ensino elementar da língua portuguesa, destruindo línguas e culturas indígenas; em nível secundário, fez preceder a gramática portuguesa à gramática latina, que passaria a ser ministrada por compêndios em metalinguagem portuguesa, como nos únicos autorizados - os de Antônio Félix Mendes e Antônio Pereira de Figueiredo. (TROUCHE, 2009) Quanto à extensão, aceitação e características da política pombalina, no que se refere à política linguística muito se tem escrito, permanecendo, entretanto algumas dúvidas, principalmente no que se refere à criação do mito da homogeneidade linguística no Brasil. Contudo esse trabalho se limitará ao que se propôs, lembrando que a compreensão dos fenômenos que formaram o português brasileiro, e com ele a identidade nacional, são condição sine qua non para um ensino de qualidade e linguisticamente coerente. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, Rita Heloísa. O diretório dos índios; um projeto de civilização no Brasil do século XVIII. Brasília, Edunb: 1997. FARIA, Marcos Roberto de. Os jesuítas e a contra-reforma: contribuições para a história da leitura no Brasil-colônia In: 16 o COLE, caderno de anais ALB, Campinas: 2007. HANSEN, João Adolfo. Ratio studiorum e política católica ibérica no século XVII. In: VIDAL, Diana G.; HILSDORF, Maria Lúcia S. (Orgs.). Tópicas em história da educação. São Paulo, Edusp, 2001. MARIANI, Bethania. Políticas de Colonização Lingüística, In: Revista LETRAS n 0 27, UFSM, Santa Maria, 2003. ORLANDI, Eni Puccinelli. Língua e conhecimento lingüístico; para uma história das idéias no Brasil. São Paulo, Cortez, 2002. SILVA, José Pereira da. Um aspecto da política pombalina o ensino da língua portuguesa. Disponível na internet via http://www.filologia.org.br/pereira/textos/umaspecto.htm. Arquivo capturado em 21 de setembro de 2009.

TROUCHE, Lygia Maria Gonçalves. O marquês de pombal e a implantação da língua portuguesa no brasil reflexões sobre a proposta do diretório de 1757. Disponível na internet via http://www.filologia.org.br/anais/anais%20iv/civ12_9.htm. Arquivo capturado em 21 de setembro de 2009.