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Transcrição:

A Identidade como Marco nos Estudos Culturais 1 Simone Munir DAHLEH 2 Universidade Federal de Santa Maria UFSM, Santa Maria, RS Resumo O presente trabalho busca construir uma discussão teórica sobre a problemática da identidade a partir do viés dos Estudos Culturais. O objetivo é mostrar como o conceito desenvolve-se, modifica-se e transforma-se na contemporaneidade. Para isso, traremos autores filiados aos Estudos Culturais que nos ajudam a compreender algumas especificidades dessa questão no contexto da América Latina. O conceito de identidade se transforma, e de uma identidade fixa e estável passamos a ser constituídos por múltiplas identidades mutáveis e fluidas. Palavras-chave Identidade; Estudos Culturais; Hall; Martín-Barbero; García Canclini. Introdução O presente trabalho busca construir uma discussão teórica acerca do conceito de identidade como marco nos Estudos Culturais. Para tal, traremos o conceito pelo olhar de autores filiados a essa perspectiva de estudos. Stuart Hall, referência central nos Estudos Culturais, com uma perspectiva a partir do Reino Unido, Jesús Martín-Barbero, situado na Colombia, portanto desenvolve seus estudos a partir de um viés latino-americano, Nestor García Canclini, antropólogo argentino e Renato Ortiz, sociólogo e antropólogo brasileiro. A demarcação dessas autores é importante para entendermos o lugar e o contexto que o trabalho se situa. O intuito da pesquisa é abordar o conceito de identidade a partir destes autores, ver as possíveis aproximações, conexões e distinções entre a problemática em torno da identidade. A relevância do trabalho diz respeito a entendermos melhor o conceito de identidade, que se constitui como um marco importante nos Estudos Culturais, para posteriormente podermos nos apropriar dele e utilizarmos sob diferentes perspectivas de 1 Trabalho apresentado no GP América Latina, Mídia, Culturas e Tecnologias Digitais, XVIII Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, evento componente do 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2 Mestranda em Comunicação na UFSM, e-mail: simonemunird@gmail.com 1

estudos. É importante destacar que não pretendemos trazer a definição de identidade como única ou definitiva, como afirma Stuart Hall (2006), o conceito de identidade, é demasiadamente complexo, muito pouco desenvolvido e muito pouco compreendido na ciência social contemporânea para ser definitivamente posto à prova (p.8), pretendemos sim, mostrar a perspectiva a partir do viés de determinados autores e articulá-los. Para tal, estruturaremos o trabalho, trazendo uma perspectiva de identidade de Denys Cuche, justamente para diferenciar o conceito que discutiremos de identidade, uma contextualização dos Estudos Culturais e posteriormente abordar a perspectiva de identidade de Hall, Martín-Barbero, García Canclini, Renato Ortiz, e articulá-los. A identidade de origem Começamos pela abordagem sobre o conceito de identidade de um viés essencialista na perspectiva de Denys Cuche (1999), justamente para diferenciarmos o conceito que pretendemos abordar nesse trabalho. O autor concebe identidade como algo proveniente das origens do sujeito. Tem uma natureza social do grupo no qual o indivíduo pertence, seja pelo fator raça ou pela cultura, a construção da identidade se faz no interior de contextos sociais que determinam a posição dos agentes e por isso mesmo orientam suas representações e suas escolhas" (CUCHE, p. 182). O autor refere-se aqui a uma concepção essencialista de identidade, calcada nas raízes do sujeito. A identidade para Cuche (p. 188), serve para localizar e categorizar o indivíduo, dessa forma, ela pode servir como processo, tanto de inclusão e pertencimento dentro de um determinado grupo social, como de exclusão a quem é diferente. Além disso, a identidade é uma construção social, acontece sempre em relação ao outro. O autor também comenta que ela pode servir como uma estratégia, prestar-se a reformulações e até a manipulações (p. 196), ou seja, a identidade aqui, pode ser performada para atingir um objetivo específico, porém essas estratégias também irão depender do lugar de pertencimento do indivíduo no interior do seu grupo social. Entrando na arena dos Estudos Culturais Os Estudos Culturais, segundo Escosteguy (2001) têm origem na Inglaterra no final dos anos 50 com os três textos fundadores dessa corrente de estudos: The Uses of Literacy (1957) de Richard Hoggart, Culture and Society (1958) de Raymond Williams e The Making of the English Working-class (1963) de Edward P. Thompson. É importante 2

enfatizar aqui, que, apesar desses textos terem sido fundamentais para se começar a pensar essa corrente de estudos, eles não são escritos para fundar os Estudos Culturais, mas surgem justamente porque começam a problematizar as questões culturais e sociais. O Center for Contemporary Cultural Studies (CCCS) surge em 1964 como uma forma de organizar essa linha de estudos. As relações entre a cultura contemporânea e a sociedade, isto é, suas formas culturais, instituições e práticas culturais, assim como suas relações com a sociedade e as mudanças sociais, vão compor o eixo principal de observação do CCCS (ESCOSTEGUY, 2001, p. 27). Para tal, é preciso entender os Estudos Culturais como um projeto intelectual vinculado com a ideia de formação histórica (contexto), na qual o projeto foi construído, ou seja, é preciso levar em conta o histórico cultural que configura um determinado momento. Stuart Hall, de acordo com Escosteguy (2001) assume o CCCS de 1968 a 1979. Seus estudos focavam no desenvolvimento da investigação sobre as práticas de resistência das subculturas, além de incentivar as análises sobre os meios de comunicação massivos, mostrando seu papel central nas diretrizes da sociedade. A identidade em foco Se antes, como vimos em Cuche (1999) as identidades eram construídas sob um viés essencialista, fixo e seguro, na modernidade elas encontram-se em declínio e abrem espaço para outras identidades. Para Stuart Hall (2006), as novas identidades estão fragmentando o indivíduo, que anteriormente se encontrava unificado e estável dentro de suas referências e tradições de origem. A identidade do sujeito era definida e marcada pelas suas raízes e história. Hall (2006, p. 9), comenta que, com as mudanças estruturais ocorridas no final do século XX, novos panoramas culturais se instauraram. Como resultado disso, a fragmentação da classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, ou seja, tudo o que ancorava o indivíduo em lugares seguros e fixos começa a desintegrar-se. Com a estabilidade fragilizada, as próprias identidades começam a se modificar também, pois o que unificava o sujeitos, fragmenta-se e transforma-se em fluido, maleável. Isso tudo constitui uma crise de identidade (p. 9) e então de uma identidade una, o indivíduo passa a ter várias identidades, e algumas delas contraditórias que partem em diferentes direções (p. 12-13). O sujeito passa a constituir-se de múltiplas identidades, ao mesmo tempo. Para Renato Ortiz (2000), o processo de globalização insere todas essas 3

identidades numa situação nova. As diferentes identidades não vão acabar, mas elas vão se exprimir dentro deste novo contexto (p. 71), as identidades nessa nova era, tendem a transformar-se junto com as mudanças, em alguns momentos serão expressões complementares, em outros serão expressões conflitivas (2000, p. 71). Assim como Hall, Ortiz também sinaliza o aspecto das identidades contraditórias, quer dizer, nesse novo milênio, as novas identidades encontram tanta referências para identificar-se que algumas delas podem apresentar-se certas vezes como conflituosas entre si, pois a todo momento são postas a prova com relação a outras identificações, por isso mesmo, as novas identidades encontram-se deslocadas da ideia de identidade fixa, para Hall (2006, p. 13), imaginar uma identidade plenamente coerente passa a ser uma fantasia. Com a modernidade e as novas tecnologias, nossas referências se multiplicam, os sistemas de representação e significação são tantos que fazem com que o sujeito possa se identificar nem que seja temporariamente com algumas representações e assuma para si tal identidade em tal momento, isso sempre de forma cambiante e fluida (HALL, 2006). A mudança é apontada aqui como o fator principal das sociedades modernas, com relação as sociedades tradicionais (p. 14). Essas mudanças não ocorrem de forma rápida e simples, mas sim, por meio de reflexões sobre as inúmeras informações que o sujeito recebe, para só então agir/modificar suas práticas. O processo não se dá de forma automática, mas é complexificado diante de todas essas novas transformações. As sociedades modernas vêm sendo descentradas por forças externas a si, e caracterizadas por informações distintas vindas de fora (provenientes dos meios de comunicação e novas tecnologias), o que irão produzir diferentes maneiras de posicionar o sujeito, quer dizer, criar múltiplas identidades (Hall, 2006, p. 17). De forma que, as identificações não se dão mais apenas pelos interesses de classe, outros fatores começam a ter peso significativos para essas novas identidades, como raça, questões políticas, sociais, culturais, a identidade muda de acordo com a forma como o sujeito é interpelado ou representado, a identificação não é automática, mas pode ser ganhada ou perdida. Ela tornou-se politizada (2006, p. 21). Para haver uma identificação, então, torna-se insuficiente ser apenas de uma mesma categoria, por exemplo, ser mulher, ser negro e identificar-se com as mulheres ou com os negros. O processo de identificação passa a ser mais complexo, não bastando mais somente ser do mesmo espaço, ou ocupar a mesma posição. Inúmeros aspectos passam a interferir nessa encadeação, e para haver alguma 4

identificação, um consenso entre outros fatores que o sujeito concorde conjuntamente nessas categorias representadas deve ser evidenciado. A intervenção tecnológica apontada por García Canclini (1990, p. 288) constitui uma transformação importante no que diz respeito a organização dos grupos e sistemas simbólicos, criando hibridações que enfraquecem a determinação de que a classe social define as culturas, pois os bens passam a circular de forma mais acessível. E a partir desse novo cenário e cruzamentos, surgem novas identidades sociais. O autor atenta que, apesar dos bens circularem com maior facilidade, isso não significa que as diferenças entre as classes deixem de existir, apenas passam a não ser mais determinantes. Podemos dizer que Martín-Barbero (1997) também concorda com o enfraquecimento da determinação de classe, como única interpretação para entender as diferenças culturais e de identidade. Para o autor, tentar explicar as diferenças culturais pelas diferenças de classe, impede de pensar a pluralidade, as matrizes e a alteridade cultural, pois impossibilita der ver as especificidades dos conflitos que estão articulados na cultura e nos modos de luta que são produzidos a partir desses distintos lugares (p. 39-40). Hall (2006) identifica cinco principais rupturas que acarretaram no deslocamento das identidades modernas, são elas: o pensamento marxista, que defende que o desenvolvimento do sujeito ocorre pelas condições que lhes são dadas; a descoberta do inconsciente de Freud, que desloca o pensamento de que o indivíduo tem uma identidade fixa, pois a identidade irá se formar a partir da relação com o outro e através de processos psíquicos do inconsciente; o trabalho do linguista Ferdinand de Saussure que rompe com a ordem de que somos autores de nossas afirmações, visto que nós apenas nos posicionamos dentro de um quadro de referência preexistentes; os estudos de Michel Foucault que trazem a ideia do poder disciplinar, que diz respeito a manter o indivíduo sob vigilância para discipliná-lo e o quinto e último deslocamento apontado é o feminismo, com seus novos valores de ser político (politização do sujeito), resistência as estruturas dominantes e a política de identidade, em que cada categoria apoia seu semelhante, de acordo com seus interesses. Todos esses deslocamentos apontam as maneiras pelas quais as identidades modernas transformam-se e como não é mais possível pensar as novas identidades contemporâneas sob um viés único ou essencialista. Outro aspecto sinalizado por Hall (2006, p. 47-48), diz respeito as identidades nacionais. Muitas vezes nos definimos referindo-se ao nosso lugar de 5

nascimento/vivência, e ao dizermos que somos brasileiros, por exemplo, mesmo sabendo que é apenas uma metáfora, internalizamos como se essa característica constituísse nossa essência. Além disso, essas identidades são construídas por meio de representações que nos são apresentadas e não inerentes a nós. Dessa forma as identidades nacionais são formadas por sentidos criados pelas culturas nacionais sobre nação e ao nos identificarmos com esses atributos, formamos nossas identidades nacionais, então podese dizer que a identidade nacional é uma comunidade imaginada (p. 51). Martín-Barbero (1997) entende que os sentidos criados de nação nos países latinoamericanos dizem respeito a uma adaptação de valores e significados estrangeiros, na América Latina em geral, a ideia de modernização que orientou as mudanças foi mais um movimento de adaptação, econômica e cultural, do que de aprofundamento da independência referindo-se ao nacionalismo brasileiro (p. 217-218). Já García Canclini (1990), entende esse processo de forma um pouco diferente, para ele as primeiras fases do modernismo latino-americano foram promovidos por artistas e escritores que voltavam para a América Latina após um período na Europa e ao invés de transpor as influências adquiridas lá, interessou mais conceber um viés próprio daqui, ou seja, como a experiência internacional poderia contribuir para o desenvolvimento dos seus países latino-americanos. O moderno não era transpor os valores europeus mas sim constituir valores nacionais próprios o moderno se conjuga com o interesse por conhecer e definir o brasileiro (1990, p. 76). O modernismo cultural, nesse caso se define por uma preocupação em representar a brasilidade com um repertório de símbolos próprios para a construção de uma identidade nacional (1990, p. 78). A identidade nacional busca unificar o povo em uma identidade cultural para criar um sentido de nação que possa representar a todos daquele lugar não importam quão diferente seus membros possam ser em termos de classe, gênero ou raça (HALL, 2006, p. 59). Sabe-se que esse representar a todos falha, pois é praticamente impossível incluir toda diversidade presente em uma nação numa totalização. Destacamos as questões de classes e gênero, que são diferentes e desiguais dentro de um país. Com relação ao gênero, essa desigualdade é ainda mais marcante, visto que, geralmente o masculino é apresentado como o padrão de toda nação enquanto o feminino exerce um papel secundário. As identidades agora, se configuram se afirmam num contexto globalizado. Como comenta Ortiz (2000, p. 71) antes esse processo se dava num território basicamente 6

delimitado pela nação. Nós tínhamos a ilusão de que só havia uma identidade, a nacional. As outras não apareciam. Há alguns anos a identidade feminina, a identidade étnica eram pouco lembradas. Além disso, as identidades nacionais tem passado por processos de migração nunca vistos antes e isso leva a uma pluralização de culturas nacionais e de identidades nacionais (HALL, 2006, p. 83, grifo do autor). A cultura nacional para Martín-Barbero (1997), tem em sua base o princípio de sustentar a estrutura do poder interno. A nação une o povo, transformando a diversidade de anseios em um só: o de participar do sentimento de nação. Dessa forma, o objetivo da nação é superar as fragmentações e lutas, tornando possível o acesso desses lugares com o centro, a capital (p. 217). García Canclini (1990), detecta nos ritos e no patrimônio nacional campos onde a identidade é posta em cena para representar a nação. Tais representações acontecem em locais públicos, para referir-se que pertence a todos, geralmente apresentam heróis, cenas e objetos considerados fundadores daquele povo e remetem à origem e à essência, ali se conserva o modelo da identidade, a versão autêntica (p. 170, grifo do autor). Contudo, os monumentos e museus representam apenas uma parcela daquele povo, visto que grande parte da diversidade das pessoas fica de fora das representações lá disponíveis testemunhos da dominação mais que uma apropriação justa e solidária do espaço territorial e do tempo histórico (p. 179). Dessa maneira, os rituais e o patrimônio cultural dos povos se constitui numa forma de naturalizar os padrões considerados ideais e apagar as diferenças daquelas pessoas. A história de todas as sociedades mostra os ritos com dispositivos para neutralizar a heterogeneidade, reproduzir autoritariamente a ordem e as diferenças sociais (GARCÍA CANCLINI, 1990, p. 179). Além disso, os ritos se apresentam como incontestáveis, o que legitima ainda mais essas representações. O ritual sanciona então, no mundo simbólico, as distinções estabelecidas pela desigualdade social (p. 180). O processo de globalização modifica e transforma as percepções de tempo e espaço, com isso as identidades também são modificadas pois as formas de representação mudam, as informações passam a chegar de forma mais rápida e de todos os lugares do mundo, nos deslocamos de um lugar a outro em um espaço de tempo curto que anteriormente não era possível, todas as identidades estão localizadas no espaço e no tempo (HALL, 2006, p. 71). Dessa forma, nossos modos de posicionamentos transformam-se e criamos novas identidades. 7

Hall (2006) destaca a importância das identidades nacionais, contudo, as identidades locais, regionais e comunitárias têm se tornado ainda mais relevantes, pois as identificações globais muitas vezes são sobrepostas as culturas nacionais. A questão nacional já não tem o mesmo peso que teve há alguns anos. Isso porque o processo de globalização enfraquece, debilita a própria questão da identidade nacional, embora aponte em um outro sentido (ORTIZ, 2000, p. 71). Ao se expor a elementos e informações externas, fica cada vez mais difícil de manter as identidades culturais intocáveis, pois tendem a modificar-se ao serem apresentadas as diferentes identificações culturais. Quanto mais a globalização introduz tecnologia de informação capaz de fazer seu conteúdo chegar aos mais diversos lugares, juntamente com o consumo mediando a vida social, mais as identidades tornam-se livres e flutuantes, pois há uma infinita gama de opções para nos identificarmos, além das referências nacionais (HALL, 2006, p. 75). Mas isso não significa que as identidades nacionais serão apagadas, apenas que se abre um leque de novas possibilidades, de criação de outras identificações globais e locais (p. 78), Para Ortiz (2000, p. 71), o Estado-nação não está perdendo a vigência, mas sim a sua centralidade. García Canclini (1990, p. 268) atribui aos meios de comunicação os novos formadores das identidades coletivas, pois cada vez mais as informações que recebemos vêm da mídia e a troca de conhecimentos e sociabilidade fica em um entorno mais centrado, dentro de nossas casas, na vizinhança e com os amigos. A mídia nesse sentido se torna a constituinte dominante do sentido público da cidade, a que simula integrar um imaginário urbano desagregado (p. 268). Não é possível dizer que a globalização cria uma homogeneização global, já que esse processo se distribui de forma desigual no mundo. Nessa perspectiva, Hall (2006, p. 78) afirma que a globalização é uma ação do Ocidente, e além disso, quem domina o mercado global e distribui seus produtos para a periferia com o seu padrão é também o Ocidente, criando uma geometria do poder (p. 78). A globalização então é apontada como um processo que tem, sim, o efeito de contestar e deslocar as identidades centradas e fechadas de uma cultura nacional. Ela tem um efeito pluralizante sobre as identidades, produzindo uma variedade de possibilidades e novas posições de identificação e tornando as identidades mais posicionadas, mais políticas, mais plurais e diversas; menos fixas, unificadas ou transhistóricas (HALL, 2006, p. 87, grifo do autor). 8

Entretanto, isso não pode ser válido para todos, algumas pessoas ainda permanecem procurando suas identidades em uma certa tradição, a fim de recuperar as certezas fixas e seguras do passado (HALL, 2006, p. 87). Outra possibilidade que Hall (2006) aponta, são as hibridações. As identidades hibridas, dizem respeito àquelas pessoas que saem de seu lugar de origem para viver em outra cultura, contudo não abandonam suas tradições, eles devem aprender a habitar, no mínimo, duas identidades, a falar duas linguagens culturais, a traduzir e a negociar entre elas (HALL, 2006, p. 89). Para García Canclini (1990) as identidades possuem repertórios múltiplos, de forma que não é possível definirmos apenas uma identidade, pois elas são construídas por processos de hibridações (p. 302). Muitas de nossas obras de arte e da literatura icônicas, consideradas referências das identidades latino-americanas foram construídas, segundo García Canclini (1990, p. 306), por artistas e escritores híbridos, quer dizer, por pessoas que são latino-americanas mas que estavam fora do continente e experimentaram novas experiências e costumes, portanto, as representações da identidade latino-americanas foram construídas por olhares cruzados a partir de diversos outros lugares além do continente. Podemos dizer então, que nossa representação de identidade nacional é hibrida. Considerações finais O conceito de identidade é demasiadamente complexo e paradoxalmente pouco abordado nas ciências sociais. Já teve algumas definições contraditórias e diferentes entre si. Como comentado no início do trabalho, nosso intuito com essa discussão não é criar uma verdade indiscutível sobre a problemática da identidade, mas conceber um modo de ver esse conceito, que é a partir dos Estudos Culturais. A identidade anteriormente era concebida a partir de um lugar fixo, de nossas origens e tradições, mantinha-se estável e segura. Na conteporaneidade, essa concepção torna-se insustentável. O sujeito é submetido à diferentes sistemas culturais e informações provenientes de todos os lados. Nossas identidades passam a ser construídas por múltiplas referencias, assim sendo, passamos a ter diversas identidades ao mesmo tempo, pois não temos como escolher apenas uma. Ter apenas uma identidade na atualidade, seria uma fantasia, uma ilusão. 9

Com os cinco deslocamentos apontados por Hall (2006), vemos a identidade uno romper-se. Avanços com relação as concepções marxistas, psicanálise, linguística, posições políticas com as feministas e as relações de poder, complexificam o nosso modo de entender as identidades contemporâneas. Já não é mais possível dizer que ela parte de um só lugar e se mantem assim durante toda a vida. A identidade de uma nação, constitui-se a partir de ritos, museus, e aspectos/artefatos culturais. Geralmente, busca-se uma identidade nacional que represente todos os indivíduos daquela nação, mas como visto, acabam criando exclusões e dominações. Legitimando como únicas e autênticas as identidades que apresentam como sendo representativas daquela nação. A identidade nacional na América Latina possui algumas especificidades. Nossa imagem foi construída por pessoas latino-americanas que haviam estado um tempo no exterior, ou seja, suas experiências, a maioria na Europa, contribuíram para a formação das identidades nacionais na América Latina, através de obras de arte e da literatura. Assim, constituímos uma cultura hibrida. Uma junção de nossas características com referências da Europa. A discussão sobre a problemática da identidade é importante para nos localizarmos e para entendermos melhor esse conceito basilar para quem pesquisa Estudos Culturais e pretende trabalhar com a apropriação desse conceito e suas perspectivas, como por exemplo estudar a identidade de gênero. Para tal, precisamos ter essa base, para posteriormente, entender como ele se modifica e transforma-se na contemporaneidade, e como a problemática se desenvolve no nosso contexto da América Latina. Se as identidades fossem fixas e imutáveis, seria inaceitável termos outra identidade durante nossa vida. Com a modernidade e os deslocamentos da contemporaneidade, passamos a compreender que o processo de construção de identidade é muito mais complexo do que se imaginava. Assim, podemos assumir múltiplas identidades durante toda nossa vida, e elas podem variar e até mesmo serem contraditórias entre si, pois há tantas possibilidades e referências para nos identificarmos que não conseguiríamos assumir apenas uma identidade estável durante toda nossa vida. Dessa maneira, essa discussão nos ajuda a compreender, por exemplo, que a identidade de gênero também pode ser entendida de forma mais fluida e não fixa. 10

Referências BARBERO, Jesús-Martín. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997. CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas: Estrategias para entrar y salir de la modernidade. México: Grijalbo, 1990. CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru, Edusc, 1999. ESCOSTEGUY, Ana C. Estudos culturais: uma perspectiva histórica. In: Cartografias dos estudos culturais. Uma versão latino-americana. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. ORTIZ, Renato. Identidades culturais no contexto da globalização. São Paulo: Comunicação & Educação, 2000. 11