A preservação da face na entrevista televisiva



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Transcrição:

A preservação da face na entrevista televisiva Bruna Wysocki Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) Universidade de São Paulo (USP) Rua Odemis, 37-05.783-180 São Paulo SP - Brasil Abstract. Considering the studies by Goffman (1974), the purpose of this paper is to analyze the strategies of face-works utilized during the verbal interaction, when the faces are threatened. Keywords. face-work; interaction; interview; discourse. Resumo. Considerando os estudos de Goffman (1974), o presente trabalho tem por objetivo analisar o uso de estratégias de preservação das faces durante uma interação verbal, quando as faces dos indivíduos são ameaçadas. Palavras-chave. Preservação de face; interação; entrevista; discurso. 1. Considerações Iniciais Ao entrarem em contato com outros participantes em um encontro social, seja através de um contato face a face, ou mediado, as pessoas tendem a colocar em ação o que Goffman (1974) denomina linha, ou seja, um padrão de atos verbais e não-verbais pelos quais o interactante expressa sua visão sobre a situação e sua avaliação não só dos participantes, mas, especialmente, de si mesmo. Assim, para o autor, face é compreendida como um valor social positivo, o qual a pessoa reclama para si através da linha que os outros presumem ser assumida por ela durante um contato específico. Quando uma pessoa segue uma linha que projeta uma imagem consistente de si mesma, apoiada por julgamentos e evidência transmitidos pelos outros participantes, ela tem, está em ou mantém uma face. Porém, em encontros sociais podem ocorrer incidentes que ameacem a face de um dos interactantes, levando-o a selecionar, entre as práticas de salvamento da face constituintes de seu repertório, as mais eficazes para utilizar em uma determinada situação, com o propósito de neutralizar o ato ofensivo e preservar sua face. O presente trabalho analisará as estratégias de preservação da face utilizadas em uma entrevista televisiva, transmitida em 1998, pelo SBT, no Programa Livre, quando o ex-presidente Fernando Collor de Mello é entrevistado por uma platéia composta por estudantes. Durante a entrevista mediada por Sérgio Groisman, os entrevistadores ameaçam a face do entrevistado, obrigando-o a encontrar procedimentos que o auxiliem na tentativa de salvar a sua imagem pública, prejudicada pelo impeachment ocorrido em 1992. 2. A Interação Verbal Podemos considerar a interação verbal uma atividade cooperativa em que os interlocutores influenciam-se mutuamente e desempenham papéis sociais: Estudos Lingüísticos XXXVI(3), setembro-dezembro, 2007. p. 15 / 23

Os falantes não somente trocam informações e expressam idéias, mas também, durante um diálogo, constroem juntos o texto, desempenhando papéis que, exatamente como numa partida de um jogo qualquer, visam a atuação sobre o outro. (Brait, 1999: 195) Os indivíduos preocupam-se em entender o que foi dito pelo interlocutor e com a interpretação adequada de seus enunciados. Portanto, os participantes de uma interação verbal colaboram para o projeto de construção de sentido de seus interlocutores. A interação pressupõe um conjunto de regras que caracterizam o comportamento adequado para um determinado evento. Através de acordos, os indivíduos procuram cumprir essas regras, porém, se alguma delas for rompida, pode ocorrer uma situação de conflito. O uso de procedimentos para a preservação da auto-imagem (face) pode ser considerado uma tentativa de estabelecer um acordo que garanta o bom desempenho de um evento. Para Goffman (1981), existem dois tipos de pressões sofridas por qualquer interação face a face: as comunicativas, responsáveis pela boa transmissão das mensagens, e as rituais, responsáveis pela preservação das faces dos interlocutores. Assim, a natureza humana é construída por regras morais determinadas pela sociedade: Ces règles déterminent l évaluation personnelle et des autres, la répartition des sentiments et les types de pratiques employées pour maintenir un équilibre rituel d un genre défini et obligatoire. Il est bien possible que l aptitude générale à être lié par des règles morales appartienne à l individu, mais les règles particulières qui font de lui un être humain proviennent des nécessités inhérentes à l organisation des rencontres sociales. (Goffman, 1974: 42) Para cada papel social vivenciado por um indivíduo, há um diferente ritual em que observamos uma preocupação com a preservação da face, ou seja, com a imagem pública a qual todos possuem e querem que seja preservada. 3. A Face Ameaçada Os indivíduos, durante uma interação, precisam cuidar para preservarem sua face e a dos outros interactantes, pois, ao ameaçarem a face do próximo, podem também causar uma ameaça à própria face. Portanto, em uma interação face a face, é estabelecido um estado em que os interactantes aceitem a linha do outro, ou seja, após a tensão provocada pelo encontro social, os interactantes praticam uma negociação, a fim de não ameaçarem mutuamente as faces envolvidas na interação. Quando neutralizar uma ameaça à face, o interactante precisa estar ciente das interpretações que os outros possam ter a respeito de seus atos, para escolher, entre as práticas habituais de salvamento da face, as mais eficazes. Um indivíduo pode estar na face errada, sempre que houver uma informação a respeito de seu valor social incompatível com a linha seguida por ele. Ele pode estar fora da face, caso não possua uma linha pronta, compatível com aquela seguida pelo grupo. O interactante que está na face errada ou fora da face pode sentir-se envergonhado e constrangido em contato com os outros, porém, existem aqueles capazes de ocultar esse sentimento: Suivant l usage commun, j emploierai le terme assurance pour désigner l aptitude à supprimer et à dissimuler toute tendance à baisser la tetê lors des rencontres avec les autres. (Goffman, 1974:12) Estudos Lingüísticos XXXVI(3), setembro-dezembro, 2007. p. 16 / 23

Assim, o termo perder a face refere-se ao sujeito que está na face errada, fora da face ou envergonhado (shamefaced) e o termo salvar a face relaciona-se ao sujeito que sustenta para os outros a impressão de não ter perdido a face. Existem três níveis de responsabilidade atribuídos à pessoa que provoca uma ameaça à face: em primeiro lugar, o ofensor pode agir por ingenuidade e ocasionar uma ameaça involuntária; em segundo lugar, a ameaça pode ser resultado de malícia ou rancor com o objetivo claro de provocar um conflito ameaça premeditada; em terceiro lugar, a ameaça pode ser provocada por ofensas acidentais, ou seja, a pessoa sabe da possibilidade de ameaça à face, mas não faz por rancor. Para Brown e Levinson (1994), todo indivíduo social possui duas faces: a- Face Positiva: relacionada à necessidade de ser reconhecido e aprovado socialmente. b- Face Negativa: relacionada ao desejo de não ter seu território pessoal invadido, de atuar com liberdade, sem ser coagido. Nas interações verbais existem atos que podem colocar em risco a imagem pública tanto do locutor quanto do interlocutor. Esses atos ameaçadores da face são denominados FTAs (face threatening acts) e analisados de quatro modos por Brown e Levinson (1994); a- Atos que ameaçam a face negativa do ouvinte: ordem, conselho, ameaça, aviso,... b- Atos que ameaçam a face positiva do ouvinte: reclamação, crítica, desaprovação,... c- Atos que ameaçam a face negativa do falante: aprovação de uma oferta, aceitação ou expressão de um agradecimento,... d- Atos que ameaçam a face positiva do falante: auto-humilhação, confissão e admissão de responsabilidade, desculpas,... 4. Face-works Face-work é o termo utilizado por Goffman (1974) para referir-se aos procedimentos utilizados para amenizar ou restaurar a face ameaçada dos participantes de uma interação: Par figuration (face-work) j entends désigner tout ce qu entreprend une personne pour que ses actions ne fassent perdre la face à personne (y compris elle-même). La figuration sert à parer aux <<incidents>>, c est-à-dire aux événements dont les implications symboliques sont effectivement un danger pour la face. (Goffman, 1974:15) Durante uma interação, os indivíduos possuem dois pontos de vista: um defensivo, com o objetivo de preservar a própria face, e um protetor, uma preocupação em preservar a face do outro. As práticas de salvamento da face (face-work) geralmente são defensivas e protetoras ao mesmo tempo, porém, em algumas situações, tendem a ser mais defensivas ou mais protetoras. Ao tentar salvar a face do outro, é preciso cuidar para não perder a própria face e, ao salvar a própria face, deve-se atentar para o risco de ameaçar a face alheia. Procedimentos de atenuação podem ser utilizados para evitar os efeitos de uma ameaça à face de um interactante, porém, uma vez feita a ameaça e reconhecida publicamente, temos o status de incidente 1, em que uma série de movimentos Estudos Lingüísticos XXXVI(3), setembro-dezembro, 2007. p. 17 / 23

corretivos é realizada a fim de minimizar a tensão na interação social e retornar ao equilíbrio ritual. Os atos colocados em movimento para restabelecer esse equilíbrio são chamados intercâmbio 2. Segundo Goffman (1974), além do evento que introduz a necessidade do intercâmbio corretivo, quatro movimentos clássicos podem ocorrer: desafio (consiste em chamar a atenção para a conduta desviante); oferenda (movimento que oferece ao ofensor a chance de corrigir a ofensa e de restabelecer a ordem expressiva); aceitação (a oferenda pode ser aceita como uma forma de restabelecer a ordem expressiva e as faces apoiadas por esta ordem); agradecimento (a pessoa perdoada transmite um sinal de gratidão àqueles que lhe perdoaram). Para não se tornarem vulneráreis a críticas e opiniões contrárias, os participantes de uma interação verbal utilizam procedimentos atenuadores do grau de ameaça à face. Rosa (1992), em seus estudos sobre marcadores de atenuação, pôde identificar duas categorias: uma que promove o apagamento das marcas da enunciação, denominada marcadores de distanciamento ; outra que, ao contrário da primeira, manifesta as marcas da enunciação no enunciado, chamada de marcas da enunciação. Para a análise desse trabalho, estudaremos somente as marcas da enunciação que auxiliam no intuito dos interlocutores de preservarem a face numa interação verbal. Assim, Rosa (1992) encontra quatro tipos de marcadores nessa categoria: os de opinião (acho, crio, suponho, acredito, me parece, eu vejo,...); os de rejeição (que eu saiba, não sei se, se não estou enganado,...); os metadiscursivos ( antes disso eu quero dizer uma coisa,...) e os hedges (assim, quer dizer, digamos, quem sabe, talvez,...). Os marcadores hedges alteram o valor ilocutório do enunciado. Alguns podem sinalizar uma atividade de planejamento verbal (hedges indicadores de atividades cognitivas) e outros podem diminuir o comprometimento do locutor com seu enunciado (hedges que expressam incerteza). Porém, há ocorrência de marcadores hedges que compartilham tanto das características dos hedges indicadores de atividades cognitivas quanto dos hedges que expressam incerteza : 5. Análise do Corpus Os marcadores hedges de ambos os tipos funcionam como elementos de atenuação do valor ilocutório dos enunciados, pois provocam no ouvinte um efeito de dúvida, imprecisão ou incerteza e, assim diminuem a responsabilidade do locutor com relação aos conceitos emitidos. Por isso mesmo, esses marcadores cumprem um papel análogo ao que é exercido pelos marcadores de rejeição, e previnem eventuais reações desfavoráveis, preservando, assim, a face do falante. (Galembeck, 1999: 188) A entrevista analisada foi apresentada ao vivo em agosto de 1998, no Programa Livre, exibido pelo SBT, quando o entrevistado e ex-presidente Fernando Collor de Melo (L1) pretendia candidatar-se novamente à Presidência da República, após ter sido afastado em 1992 de seu cargo político, devido às denúncias de corrupção no governo federal, fato que se tornou histórico na política brasileira. Seu auditório é composto por estudantes de ensino médio e universitário (L2), que solicitam ao apresentador e mediador Sérgio Groisman (L3) a oportunidade de realizarem perguntas ao entrevistado. Como a entrevista foi transmitida ao vivo, em canal aberto, há também a existência de um auditório universal composto pelos telespectadores. No exemplo seguinte, observamos as ocorrências de preservação das faces: Exemplo 1: Estudos Lingüísticos XXXVI(3), setembro-dezembro, 2007. p. 18 / 23

L2: é::... diante de uma possível candidatura nessas eleições... como o senhor pretende i/éh:: se apresentar diante do povo que uma vez te elegeu e depois te depôs... e quais são as suas propostas? L1: veja que... eu me apresento hoje diante...diante de todos vocês... tendo sido... o homem público... mais investigado desse país... o mais humilhado mais xingado o mais achincalhado o mais execrado e seguramente o mais investigado... o último homem público que sofreu alguma coisa parecida em termos de:: de::... investigação... foi o doutor Getúlio Vargas em 1950... e que lamentavelmente não suportou aquela pressão e deu fim a sua própria vida... então hoje eu me apresento... tendo sido como disse investigado de cima a baixo... quer dizer foram 2 anos de/e meio de investigação... em que investigaram TOda a minha vida... e todo o resultado dessa investigação foi levado a consideração da mais alta corte de justiça do país... que me considerou inocente daquelas acusações e eu me pergunto se hoje há um homem... bom/se nós/se nós estamos vivendo num estado democrático de direito e se nós acreditamos que à justiça cabe julgar as denúncias que são feitas... e não ao... ao nosso interesse partidário então nós temos que reconhecer que esse é o canal legítimo que nós podemos recorrer dentro de uma democracia para sabermos quem está com a razão... e a mais alta corte de justiça do país me declarou inocente dessas acusações eu não sei se houve um homem público brasileiro hoje submetido às mesmas investigações a que eu fui submetido se eles poderiam apresentar ao final dessas investigações esse atestado que me foi dado pela mais alta corte de justiça do país de inocente daquelas acusações... fui julgado pelos políticos fui... e fui condenado fui julgado pela justiça e fui absolvido e o que eu desejo agora é nada mais nada menos... que seja dado o direito ao eleitor de fazer esse julgamento sem intermediários... que votem contra mim ou a favor de mim mas o eleitor representando a sua consciência representando o seu desejo representando as suas expectativas e não que meia dúzia de gatos pingados... lá no congresso nacional se arvorem no direito de em nome de 35 milhões de eleitores... de fazerem o que fizeram... vocês todos se lembram que quem comandou esse processo contra mim foi o então presidente da câmara dos deputados... chamado Ibsen Pinheiro que três ou quatro meses após a é:: eles terem me arrancado da presidência... eles mostraram a sua verdadeira face Eles os anões do orçamento... Eles sim estavam assaltando o tesouro nacional eles sim estavam fazendo as... é as diabruras e travessuras que todos nós conhecemos... e se eles me arrancaram da presidência é porque minha gente seguramente eu não era um deles e não estava fazendo o jogo deles Quando o entrevistado formula a pergunta no exemplo 1, ele não sabe ainda quais são os objetivos de Collor ao apresentar-se no programa. Para preservar sua face, L2 cuida para que o interlocutor interprete a questão proposta como uma possibilidade e não uma certeza sobre a candidatura de Collor. Assim, L2 evita uma ameaça a sua face, caso o entrevistado não tivesse por finalidade candidatar-se nas eleições daquele ano. Após proteger sua face, o entrevistador ameaça a face positiva de seu interlocutor, ao solicitar-lhe a apresentação de propostas para um futuro governo, na condição de um candidato que demonstrou credibilidade para ser eleito e não conseguiu mantê-la, sendo deposto antes de cumprir seu mandato. O próprio ato de tentar candidatar-se novamente possui um grau de ameaça à face daqueles que apoiaram sua saída da Presidência. Ao repetir por três vezes que a mais alta corte de justiça, aquela especializada e reconhecida socialmente capaz de condenar ou não pessoas do país e que o declarou Estudos Lingüísticos XXXVI(3), setembro-dezembro, 2007. p. 19 / 23

inocente das acusações, L1 busca uma aprovação, um crédito. Assim, se pessoas que não possuem vínculos com essa justiça praticarem a ação de condená-lo, elas colocarão em dúvida toda a autoridade, competência e prestígio atribuídos pela sociedade ao poder judiciário. Portanto, L1 cria uma potencial ameaça à face daqueles que o condenam. Collor utiliza um marcador hedge não sei se com o intuito de indicar uma incerteza quanto ao que foi dito e de atenuar um ato potencialmente ameaçador a sua face, pois não se compromete por inteiro com a informação dada. Ao responder a pergunta (exemplo 1), L1 atribui o fato de ter sido deposto à responsabilidade de terceiros ( meia dúzia de gatos pingados... lá no congresso nacional ), numa tentativa de minimizar os efeitos da ameaça feita à sua face. Porém, ao defender sua face, L1 ameaça a face positiva daqueles que faziam parte do congresso e, conseqüentemente, ameaça também a face positiva daqueles que votaram nos integrantes desse congresso. Constatada a ameaça, o interlocutor L3, no exemplo abaixo, elabora sua pergunta: Exemplo 2 L3: agora...é...quando quando ((aplausos)) quando o senhor fala ((pausa prolongada)) quando o senhor fala quatro ou cinco gatos pingados... o senhor está se referindo a maioria do congresso naquele momento... TAMBÉM eleito pelo povo assim como o senhor? L1: sem dúvida sem dúvida/me refiro/quer dizer é uma força de expressão... eu me refiro ah:: ao ao congresso nacional comandado por este que eu já falei o nome e que em nome de 35 milhões né tomaram aquela atitude sem terem autoridade moral para isso porque ele que comandou tudo ele que atropelou todo o processo... porque minha gente vocês talvez não tenham parado um pouco pra acompanhar todo esse processo foi uma foi uma do ponto de vista jurídico né foi uma violência atrás de outra porque não me foi dado direito de defesa em nenhum instante não me foi dado ah: oportunidade de poder falar dentro ((risada)) dentro do processo de modo que as coisas foram acontecendo assim de uma forma ah:... violenta e ah: ah ah inclusive... afetando a própria constituição né... de modo que:: o que eu desejo nesse momento é de colocar o meu nome ao julgamento popular é só isso Logo que percebe a ameaça à face dos eleitores, L3 (exemplo 2), chama a atenção de Collor para os efeitos provocados pelo seu enunciado ( quando o senhor fala quatro ou cinco gatos pingados... o senhor está se referindo a maioria do congresso naquele momento... TAMBÉM eleito pelo povo assim como o senhor ) e ameaça a face positiva do entrevistado. L1 (exemplo 2), ao identificar a crítica e a ameaça a sua face, reformula seu enunciado através de um marcador de atenuação hedge quer dizer, que sinaliza uma atividade de planejamento verbal e modifica o valor ilocutório do enunciado. Existe um outro marcador de atenuação hedge, também utilizado por L1, talvez, que provoca um efeito de incerteza e minimiza seu comprometimento com o enunciado, protegendo, assim, sua face. De acordo com os movimentos corretivos para se restabelecer o equilíbrio ritual estudados por Goffman (1974), verificamos que a pergunta formulada no exemplo 1 é Estudos Lingüísticos XXXVI(3), setembro-dezembro, 2007. p. 20 / 23

um desafio, em que o entrevistador chama a atenção para a conduta desviante do entrevistado (tentar se candidatar depois de ter sido eleito e afastado do cargo). A resposta dada por L1 (exemplo 1) consiste numa explicação em que o entrevistado tenta minimizar sua responsabilidade ao atribuir a meia dúzia de gatos pingados o fato de ter sido afastado do cargo. Porém, a explicação não é aceita por L3 (exemplo 2) e um novo desafio é feito ao entrevistado (L3 chama a atenção de Collor para a ameaça à face daqueles que votaram nos integrantes do congresso). No exemplo 3, a seguir, o entrevistador (L2) ameaça a face positiva do entrevistado, ao atribuir-lhe falta de memória e crença em um ditado popular. Porém, ao ameaçar a face positiva de seu interlocutor, ele produz também uma ameaça a sua face positiva, pois a própria existência desse dito popular já ameaça a face de todos aqueles que são brasileiros. Exemplo 3: L2: é::: o senhor acredita no dito popular que o brasileiro não tem memória... por isso o senhor está ree/candidatando... a propósito o senhor tem memória? L1: ((aplausos)) não o povo... o povo... o povo brasileiro o povo brasileiro tem memória o povo brasileiro tem memória o que o povo brasileiro está fazendo né deste período para cá é fazendo o seu verdadeiro juízo... porque eu digo pra vocês minha gente eu já tive a idade de vocês não é eu já estive em colégios secundários eu era líder estudantil era líder é::... na universidade na época do golpe militar né eu levei muita pancada fui preso duas vezes de modo que eu se tivesse na posição de vocês naquela oportunidade com aquela campanha da mídia eu seguradamente estaria também na ruas pedindo a deposição do presidente que fosse então eu eu entendo perfeitamente tudo que se passou e entendo... a mobilização que foi feita com os jovens porque eu também já fui mobilizado... então ah:ah: de modo que eu acredito que o povo brasileiro sim tenha memória... eu tenho memória por exemplo memória exata de tudo o que aconteceu... desde que eu comecei de ah::: di a::: na::: minha faixa dos quatorze quinze dezesseis anos a participar de alguma forma da vida política do meu país (...) O entrevistado, ao responder a pergunta de L2, projeta-se no discurso através do marcador de opinião eu digo. Desta forma, ele indica o modo como gostaria de ser interpretado pelos seus interlocutores e atenua uma possível ameaça posterior a sua face. Porém, ao tentar se identificar com seu auditório (composto por jovens), o entrevistado ameaça a face positiva de seus interlocutores quando diz: eu entendo perfeitamente tudo que se passou e entendo... a mobilização que foi feita com os jovens porque eu também já fui mobilizado.... Essa ameaça é percebida pelos entrevistadores, como observamos a seguir, no exemplo 4: Exemplo 4: L2: é:: eu quero saber se::::assim/se quer se submeter a um julgamento popular agora né... então eu quero saber se você não acha... que:: se o seu poder de persuasão é maior que a capacidade de discernimento do povo que não tem cultura e não tem e...ducação necessária e/é facilmente manipulado ((gritos e aplausos do auditório)) L1: veja que:: ((gritos do auditório)) você me atribui um poder de persuasão que eu não sei se tenho o que eu sei que tenho (...) Estudos Lingüísticos XXXVI(3), setembro-dezembro, 2007. p. 21 / 23

O entrevistador L2 (exemplo 4) chama a atenção para a ameaça que foi produzida durante o enunciado anterior de L1 (exemplo 3). Juntamente com o desafio lançado ao entrevistado, a locutora L2 ameaça a face positiva do seu interlocutor quando lhe atribui a idéia de que o povo, seus eleitores, não possuem cultura e educação e são manipulados facilmente. No momento em que o entrevistado percebe a ofensa, ele também provoca um desafio, amenizando, através do marcador de atenuação hedge eu não sei se, uma potencial ameaça a sua face e a de seu interlocutor. Assim, o entrevistado coloca em dúvida o conhecimento de seu interlocutor, mas não se compromete inteiramente com o que foi dito. A seguir, no exemplo 5, L1 exprime um agradecimento e ameaça a sua própria face negativa ao admitir para si o poder de persuasão. Exemplo 5: L2: ((incompreensível)) L1: bom então se tenho obrigado ((risada do locutor e aplausos do auditório)) agora agora agora pessoal o que eu sei que tenho é o seguinte é o que muitos de vocês têm... eu não sei fazer nada na minha vida que não seja com paixão com ardor ((risos e gritos do auditório)) com vontade não não a paixão piegas ((risos)) não... não... cês estão entendendo não é essa paixão paixão piegas paixão piegas é uma paixão no sentido de me dedicar integralmente àquilo que eu tô fazendo... então... então às vezes... às vezes vocês é como ela entende a persuasão ah:: talvez seja a vontade que eu tenho de transmitir a MInha verdade cada um tem a sua verdade... e eu GOSto de transmitir a minha verdade com a absoluta sinceridade... e com e com absoluta convicção daquilo que estou dizendo... e não sou somente eu... eu acredito que todos aqueles que estejam numa posição de:: homem público colocando seu nome ao julgamento popular eles têm não somente o direito mas o dever de passar a sua verdade... e deixe que população o povo o povo eu sempre digo pode ser inculto... mas não é burro... o povo é muito mais sábio do que nós podemos imaginar... e o POvo é o que nós temos sempre que ver minha gente as grandes transformações sociais... as grandes transformações sociais as grandes mudanças históricas ocorridas no mundo em qualquer época que se considere... teve a decisiva participação popular... então o povo (...) Com o objetivo de amenizar os efeitos da ameaça produzida pelo entrevistador, L1 coloca em dúvida a compreensão de persuasão expressa por L2 e reformula o conceito de acordo com sua própria interpretação: talvez seja a vontade que eu tenho de transmitir a MInha verdade. Através da utilização do marcador hedge talvez, Collor diminui seu comprometimento com o enunciado, numa tentativa de preservar sua face positiva e a de seu interlocutor também. Portanto, quando o entrevistado procura não ameaçar a face de seu interlocutor, ele também está preservando sua própria face de uma possível ameaça. 6. Considerações Finais De acordo com as análises dos segmentos identificamos que a própria presença de Collor é uma ameaça à face de seus interlocutores e sua tentativa de candidatar-se novamente põe em risco a face de um público que apoiou o processo de impeachment. Portanto, no começo da interação verbal, entrevistado e entrevistadores Estudos Lingüísticos XXXVI(3), setembro-dezembro, 2007. p. 22 / 23

procuram utilizar procedimentos que atenuem os efeitos de possíveis ameaças à face, visto que o encontro social inicial já pressupõe um conflito entre os interactantes. Ao entrarem em contato, os indivíduos interrompem o equilíbrio inicial preexistente e dado o conflito inicial, inicia-se a negociação por parte de um dos locutores. Após a reação do interlocutor, se não houver um acordo favorável, reformulações serão feitas até chegarem a um acordo sobre o fechamento da interação verbal. Goffman (1974), ao estudar os movimentos corretivos utilizados pelos interactantes para restabelecerem o equilíbrio, fornece-nos um modelo de comportamento interpessoal ritual, porém um modelo que pode variar numa interação, uma vez que um interlocutor pode não aceitar a oferenda corretiva e criar novos desafios, até chegarem a um acordo final de término da interação verbal. A interação verbal é uma atividade cooperativa em que interlocutores preocupam-se em manter uma imagem pública compatível com a linha adotada por eles. Para isso, utilizam procedimentos para preservarem essas imagens num jogo em que o locutor, ao proteger a sua imagem, pode ocasionar uma ameaça à face do interlocutor e, conseqüentemente, uma ameaça a sua própria face. 1 Termo utilizado por Goffman (1974). 2 Termo utilizado por Goffman (1974). Referências BRAIT, Beth. O processo interacional. In: PRETI, D. (org.) Análise de textos orais. São Paulo: Humanitas, 1999. BROWN, P. e LEVINSON, S. C. Politeness. Some universals in language use. Cambridge: Cambridge University Press, 1994. FÁVERO, L. L; ANDRADE, M.L.C.V.O. e AQUINO, Z.O. Papéis discursivos e estratégias de polidez nas entrevistas de televisão. Revista Veredas, Juiz de Fora, v. 6, 2000. GALEMBECK, P. T. Preservação da face e manifestação de opiniões: um caso de jogo duplo. In: PRETI, D. (org) O discurso oral culto. São Paulo: Humanitas, 1999. GOFFMAN, E. Forms of Talk. Oxford: Blackwell, 1981. Les rites d interaction. Paris: Les editions de minuit, 1974. ROSA, M. Marcadores de atenuação. São Paulo: Contexto, 1992. SILVA, L.A. Polidez na interação professor/aluno. In: PRETI, D. (org.) Estudos de Língua Falada. São Paulo: Humanitas, 1998. SILVEIRA, S. B. Reclamações e movimentos corretivos: um estudo de caso. Revista Veredas, Juiz de Fora, v. 4, 1999. Estudos Lingüísticos XXXVI(3), setembro-dezembro, 2007. p. 23 / 23