QUANTAS ÁFRICAS O BRASIL CONHECE? A APLICAÇÃO DA LEI 10.639 E OS CONFLITOS DISCURSIVOS SOBRE A NOÇÃO DE ÁFRICA



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Transcrição:

QUANTAS ÁFRICAS O BRASIL CONHECE? A APLICAÇÃO DA LEI 10.639 E OS CONFLITOS DISCURSIVOS SOBRE A NOÇÃO DE ÁFRICA Christiane Rocha Falcão 1 RESUMO A urgência da lei 10.639/2003 que institui o ensino do conteúdo de História e Cultura Afro-Brasileira esbarra na noção primeira do que se entende por África, noção essa difundida entre o grande público geralmente pela inadequação dos livros didáticos de História dos ensinos fundamental e médio, pela interferência parcial da mídia de massa, pela reprodução diária dessas idéias em confluência com os conflitos cotidianos envolvendo experiências pessoais nos âmbitos da religião e política, entre outros. Nessa vereda, pode-se observar que o caminho para o respeito maior a citada lei, e, mais ainda, para a tolerância cultural é muito longo. Baseado na experiência de cursos de curta duração, para alunos de licenciatura em História, ministrados pela autoria, esse trabalho propõe-se a identificar a matriz dos direcionamentos dessas ações em busca de um estado mais tolerável culturalmente que esbarram nas construções simbólicas acerca da África que reproduzem a interpretação colonizadora. A partir da categoria de multiculturalidade do continente africano pode-se perceber que a distância entre o Brasil de alguns brasileiros e a África é maior que o oceano Atlântico, indo da compreensão do que é o continente até das influências dos degradados vindos a partir do século XV na cultura brasileira. O PAPEL DOS INTELECTUAIS NA CONSTRUÇÃO DE DISCURSOS NOS ESTUDOS AFRO-BRASILEIROS No âmbito dos estudos sobre Religião, pode-se dizer que a revista Religião e sociedade cumpre um papel relevante na divulgação de trabalhos de sociólogos, principalmente, que tem caimento ideal nos estudos antropológicos do tema. No artigo A volta do sagrado Os caminhos da Sociologia da Religião no Brasil, Rubem A. Alves nos proporciona um panorama interessante dessas pesquisas a partir da década de 30, período o qual o autor se refere como iniciático nos estudos sobre Religião no país. Alves afirma que o tema até então era relegado a mero acompanhamento de outros temas como superação da cultura brasileira arcaica e subdesenvolvimento. Além de sugerir o caminho de saída da religião como tema não tão prestigiado nas Ciências Sociais, o autor problematiza o papel social do pesquisador, e sua atuação nessa análise leva em conta contexto históricos e ideologias presentes nos espaços a ser pesquisados. 1 Mestranda do Programa de Pós Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco.

Christiane Rocha Falcão 120 120 Avaliando um primeiro momento e alguns momentos seguintes, Beatriz Góis Dantas, em Vovó Nagô, Papai branco Usos e abusos da África no Brasil (1988), nos apresenta um perfil, ainda que breve, dos estudiosos da cultura afro-brasileira mais conhecidos, como Nina Rodrigues e Artur Ramos. Esse primeiro momento dos estudos é marcado por uma rica contribuição etnográfica do médico legista Nina Rodrigues, que atravessou o período final do Brasil colônia e viu a república ser proclamada, bem como presenciou um Brasil de escravos livres, e cuja população poderia ser em maior quantidade em relação aos brancos. Esse panorama pessoal de Rodrigues nos ajuda a entender o direcionamento teórico impresso em seus estudos, e analisando o momento antropológico em outras partes do mundo, tinha-se a influência do pensamento evolucionista, a metodologia comparativista de James Frazer e a sua procura por leis gerais. Isso tudo norteia de certa forma a pesquisa de Rodrigues, acrescido da tendência brasileira ao eurocentrismo. Uma das bandeiras mais sucitadas por Rodrigues foi a da pureza nagô, assunto o qual tomaremos com relevância na próxima sessão desse artigo. A justificativa dada por Rodrigues à tese de hegemonia nagô é baseada nos argumentos de que sua mitologia seria mais evoluída, a existência do sacerdócio e o culto organizado, além da superioridade numérica. A elevação cultural seria equivalente à elevação biológico-racial. Ele se utiliza de uma categorização êmica que dividia os povos entre gente da costa e a gente da terra, as quais corresponderiam respectivamente aos africanos e aos mestiços. Dantas transcreve a noção de Rodrigues que coloca os povos reunidos em colônias de domínio da língua e do reflexo do catolicismo como uma justaposição aos cultos. O fato é que os estudos do médico maranhense se tornaram referência durante muito tempo, e, ousaríamos propor aqui, suas práticas de controle social de certa forma se reproduzem até hoje. Constata-se que a valorização da religião nagô em detrimento das outras, ao contrário do que muitos negros acreditaram na época, não significava a liberdade de culto, a sonhada tolerância cultural, ainda que parcial, mas sim uma forma refinada de dominação diferenciada, como nos diz Beatriz Góis Dantas, posto que se declara a invalidez das outras formas de culto de ascendência afro, e se reconhece apenas a nagô como composta por negros mais evoluídos, porém, mesmo esse reconhecimento não significa um exercício real de relativismo. No âmbito da justaposição com a religião católica, Dantas comenta as noções de Rodrigues a respeito do sincretismo, que seria uma fusão de crenças, também tomado como uma fórmula de elevação do negro, ou uma tentativa de branqueamento. Pode-se ver um claro paradoxo nas idéias de Rodrigues, explicado somente à luz do evolucionismo: se o nagô é o mais desenvolvido dos povos africanos porque é o que está mais perto da África, seria, de certa forma, contraditório que o sincretismo fosse uma possibilidade de inclusão no mundo dos brancos. Quanto mais perto da África, mais passível de se tornar branco? Tendo elegido a língua e a religião como medidas de nivelamento mental das comunidades africanas, buscou provar a inferioridade dos povos africanos a partir de contribuições

121 Quantas áfricas o brasil conhece? A aplicação da lei 10.639 e os conflitos discursivos sobre a noção de áfrica médicas. Em nota de roda-pé, Dantas relata que segundo Artur Ramos haveria três períodos básicos dos estudos sobre o negro no Brasil: o período anterior a Nina Rodrigues, que vai dos relatos do período colonial, até escritos de cunho sociológico, antropológico e lingüístico como dos autores João Ribeiro e Sílvio Romero; o período Nina Rodrigues que insere o uso do método comparativo e da sua teoria da sobrevivência; e o período de seus discípulos que seguem a metodologia e as teorias de Nina Rodrigues que começa por volta de 1926 modificando algumas categorias analíticas. Essa visão colonialista, poderíamos arriscar, permearia ainda a produção do seguidor maior de Rodrigues, o alagoano Artur Ramos, com tentativas de modificação de foco, mas com o pé analítico totalmente dentro dos ditos evolucionistas. O deslocamento da categoria analítica raça para a categoria da cultura serviria, aos olhos de Ramos, para suavizar equívocos cometidos por seu mestre Rodrigues. Dantas nos propõe que em Roger Bastide temos um contraponto em relação ao culturalismo, que teve seu momento maior na obra de Artur Ramos. É em Bastide que localizamos uma real mudança de paradigma, seguindo este por uma linha de pensamento que acompanhava os movimentos britânicos de Edmund Leach, que pensava o campo como um sistema que corresponderia a si mesmo e cujas pretensões de abrangência não iriam fundo a generalizações totalizantes, como nos propõem estudiosos funcionais como Radcliffe-Brown. Dantas vê em Bastide o contraponto aos culturalistas, porém assumindo que a perspectiva de Bastide é limitada e parcial. Avançando na revisão da literatura acerca desse período dos estudos afro-brasileiros, temos a contribuição do baiano Édison Carneiro para uma nova abordagem da cultura africana no Brasil: a folclorização. A exploração da cultura como bem exótico colabora para fechar num rótulo tais representações simbólicas. Mais uma vez se mascara o controle social valorizando demagogicamente aspectos caros às comunidades negras. O samba, as danças, os afoxés são tomados pela classe intelectual, e aqui se inserem os artistas, que se apropriaram de elementos estéticos. A tendência materialista histórica de Carneiro guia esse movimento. Dantas cita o trabalho de Maria A. Brandão e sua idéia de que também nesse período teria se iniciado uma intolerância etnocêntrica que teria culminado na folclorização dos aspectos da cultura afro. A repressão aos cultos africanos ai teria espaço, concomitante à repressão aos comunistas, posto que estes últimos teriam penetração nos cultos. Como contraponto do contraponto, a autora deposita na discussão sobre etnia dos autores Abner Cohen e Fredrick Barth, que se contraporiam à abordagem de Bastide no sentido de pensar o enfoque étnico para a análise da comunidade. Há de se considerar a década de 30 com o movimento nacionalista cultural, no qual Dantas enfatiza o uso da noção de cultura para compor deste. Dantas relata que o nacionalismo cultural e o movimento modernista muito se valeram da cultura negra, destacando a tentativa de corte de laços com a cultura européia e elevando a africana na constituição do Brasil como nação. Nesse ínterim, o regionalismo se vale da exaltação do negro para reivindicá-la ao Nordeste, posto que nessa região se

Christiane Rocha Falcão 122 122 localizam a nação que seria originariamente africana. Os estudos sobre o negro se iniciam nos fins de XIX, ao passo que a elite intelectual se vale do popular como fator valorativo regional, se apropriando desses valores e dirigindo-os de forma descontextualizada e apresentando como idealmente local. Haveria um interesse maior nos intelectuais acerca disso que nos adeptos. As viagens à África nos anos 30 feitas pelos dirigentes de terreiros seriam tentativas de reafricanização. Os que não podiam ir à África, buscavam estudar o ritual pelos livros dos antropólogos, que haviam escrito sobre eles. Uma espécie de relação inversa em que os pais-de-santo aprendem com estudiosos que aprenderam com eles, com o perigo do percurso etnocêntrico às vezes. No Regionalismo de Gilberto Freyre a preocupação não é a superioridade nagô, mas sim a mestiçagem como elemento identitário. A ligação do regionalismo com o movimento modernista representa para Dantas um paradoxo, posto que em Gilberto Freyre, a mistura está para a pureza assim como a modernidade está para a tradição. Na ótica de Dantas, dentro das idéias de Rodrigues estaria o reconhecer os nagôs baianos a fim de justificar que o grande número de negros livres no país não iria ser a decadência do país por conta que esses seriam negros superiores e passíveis de branqueamento, o que tiraria o Nordeste do destino de ser subdesenvolvido. Sob a ótica de Freyre, o reconhecimento desses negros justificaria o subdesenvolvimento. Fechamos essa sessão levantando a idéia de que os intelectuais, em muitas dessas teorizações, se encaixariam na categorização adotada a partir da discussão sobre etnicidade em Barth e em Cohen como dos de fora. EXPERIÊNCIA A expansão dos cursos superiores à distância abriu caminhos para muitos moradores de municípios do interior do estado de Sergipe que possivelmente não teriam possibilidade de cursar uma universidade pela distância geográfica e pelas dificuldades provenientes da concorrência de vagas em universidades federais. Tais cursos à distância têm, obrigatoriamente, que ser acompanhados de uma carga horária de extensão de maneira presencial. Várias empresas de consultoria se vinculam às universidades para oferecer esses cursos e garantir que os créditos cursados pelos alunos sejam reconhecidos pela universidade. Nessa oportunidade, fui contratada como professora para realizar oficinas de vinte horas, para alunos da licenciatura em História, sob a perspectiva da implantação da lei 10.639/2003 promulgada pelo Governo Federal, que indica a aderência das escolas em designar uma parte do conteúdo curricular para tratar de História e Cultura Afro-Brasileira. Nesse sentido, foi necessário elaborar uma forma de sensibilização para os alunos, cujo perfil era de 80% de já professores. O primeiro módulo do curso visa fazer uma sensibilização acerca da noção de etnocentrismo, e da imagem de África que se tem. Durante os debates sobre a idéia de África, a maioria das contribuições dos alunos descreveu uma África de fome e corrupção, e indagados sobre como se adquiriu essa

123 Quantas áfricas o brasil conhece? A aplicação da lei 10.639 e os conflitos discursivos sobre a noção de áfrica idéia, a resposta foi pelos meios de comunicação e pelos livros didáticos. Foi observado que quando se fala de África, se pensa num país só, e não num continente. Nessa oportunidade foi utilizado o conteúdo do livro da professora Leila Leite Hernandez, A África na sala de aula, o qual nos ajudou a compreender minimamente a geografia política do continente e a sua história colonizadora, desde o período pré-colonizador, passando pela partilha na Conferência de Berlim, e chegando aos dias de hoje. Esse entendimento foi de grande valia para desmistificar a imagem cristalizada de um país só, com miséria e fome, compreendendo a variedade cultural dos diversos países, podendo encontrar realidades como a da África do Sul, bem diversa do Egito hoje, ou do Benin. A partir disso, focamos na Partilha da África, na diáspora e no processo de entrada das diversas etnias em alguns pontos da América: Estados Unidos, Cuba e Brasil. Na abordagem dessas realidades, como forma metodológica, focou-se nas heranças culturais reproduzidas, como blues, jazz e rock n roll, a rumba, o samba. O entrecruzamento de aspectos políticos com culturais nos auxiliou numa busca maior pela alteridade. Focando no Brasil, abordamos as heranças lingüísticas na língua portuguesa falada no Brasil, bem como a importância da tradição oral. Seguindo a idéia de busca da alteridade, uma outra parte do módulo foi destinada a expor e discutir contribuições para a arte brasileira e a representação do imaginário negro na música, na obra de artistas como Clara Nunes, Banda Reflexus, Os Tincoãs, entre outros, sendo realizadas algumas audições e discussões seqüenciais. A partir de então, volta-se para os aspectos políticos da abordagem, adentrando o percurso dos estudos afro-brasileiros desde Nina Rodrigues até estudiosos atuais. Outra parte do módulo é destinada à discussão sobre as demarcações quilombolas, desde o normativo até o imaginário ai constituído. A seguir era discutido o religioso, momento o qual as discussões eram mais exaltadas, posto que a índole religiosa das turmas era sempre diversificada. Passando pela religião, sempre com dificuldade de encerrar tal módulo, passou-se para a abordagem normativa da lei 10.639/2003. A oficina se repetiu em seis municípios sergipanos, sempre com boa aceitação. Eram utilizadas várias mídias, como fragmentos de música; de filmes, como Soy Cuba, Atlântico Negro, entre outros; fotografias, posto que minhas pesquisas já eram realizadas em terreiros de candomblé há dois anos; além de mapas. O dinamismo da oficina era um ponto alto, havendo problemas na duração. A aceitação dos temas foi satisfatória, ficando a resistência concentrada nas discussões religiosas. Observa-se que a falta de contato com literaturas alternativas, bem como com obras artísticas e acadêmicas com abordagens diversificadas colaborou pra o engessamento de noções referentes às matrizes africanas. A falta de compromisso da grande mídia com novas formas de tratamento do tema contribui para tal situação. O novo projeto do Governo Federal teria um apoio maior se os meios de comunicação se propusessem a captar a nova essência dos estudos afro-brasileiros, e isso se reverbera na recepção. O mesmo podemos propor acerca dos livros didáticos. É essa formação crítica que pode nos ajudar a

Christiane Rocha Falcão 124 124 horizontalizar o conhecimento acerca do continente africano e de suas heranças e nossa cultura. É como se o princípio da aculturação, tão vigente nos estudos de Artur Ramos, ainda vigorasse, tendo em face que a distância entre o autor e a nossa realidade é de quase noventa anos. Talvez seja uma incoerência que esse artigo traga a lei 10.639/2003 em seu título e não trate fundamentalmente desta. Minha proposta aqui é pensarmos a aplicabilidade da lei em meio a uma oferta de informações ainda não adequada. Não se trata de maquiar tentativas com a reprodução de tentativas passadas, que culminaram no controle social disfarçado, mas de realmente levar a nossas casas uma proposta sólida de repensar as relações raciais dentro de um novo projeto de Brasil. Coloco sempre o termo racial entre aspas, por acreditar que o recorrente chamamento desse termo é como ressuscitar um zumbi executado há muito nas discussões antropológicas, porém ainda muito chamado de volta à vida nos nossos discursos cotidianos. Não tenho a pretensão de resolver tal postura epistemológica aqui, apenas lanço mão dela para instigar algum debate construtivo. CONSIDERAÇÕES FINAIS As discussões entre sagrado e profano pelo menos desde o início do século XX, no eixo da religião, tem em autores como o sociólogo francês Émile Durkheim uma abordagem prioritária. Aqui adotaremos a noção de sagrado e profano proposta indiretamente pelo sociólogo alemão, mas radicado desde cedo na França, Arnold van Gennep, em que o profano seria as atividades do cotidiano e o sagrado seria uma condição realimentada nas fases dos diversos ritos de passagem, como o de nascimento, morte, iniciação, entre outros. Para van Gennep, o sagrado, condição daquele que passa, seria a ocasião em que a energia (mana) se renova, e é essa energia que passa pelas fases de preliminares, de transição e de pós-liminaridade, em que aquele que passa sai de uma condição, se prepara para uma nova condição, e finalmente se torna alguém diferente, entrando numa nova condição. Ao adotar essa noção, podemos pensar uma apresentação do grupo folclórico São Gonçalo, radicado em Sergipe, como exemplo dessa renovação de energia. É na apresentação do folguedo, que seria a fase transitória, que os brincantes são colocados como sagrados, afinal não é qualquer pessoa que pode brincar no grupo, e que a energia é renovada. Ali pode ser vista, salvas exceções, a manifestação de alegria, de autoestima de um grupo de pessoas que cresceram tendo como referenciais não a secularização proposta pela modernidade desenfreada, mas sim a ritualização constante de uma herança cultural dinâmica, movimentada e modificada por seus atores. Aqui, não reduzo as sensações particulares de cada brincante do grupo, mas registram-se sensações entusiastas daquele que vê com olhos de admiração um grupo de pessoas que se divertem narrando uma história vivida por antepassados nossos. Mais do que adotar conceitos prontos de patrimônio cultural, religião e cultura popular, podemos propor o foco de abordagem na alegria e da fé de pessoas que

125 Quantas áfricas o brasil conhece? A aplicação da lei 10.639 e os conflitos discursivos sobre a noção de áfrica nasceram com a graça de possuir no seu sangue e, possivelmente na sua pele, heranças vindas de além-mar, transformadas pelas nossas gerações, com toda a beleza e exaltação que lhe cabem. Alejandro Frigerio discute a multidimensionalidade da performance nas manifestações afro-latinoamericanas, e atesta que nas religiões é que mais se resguarda essa característica multidimensional, posto que teria sua expressão na performance musical, na dança, entre outros pontos. Ele analisa que tal aspecto seria o primeiro a desaparecer quando as manifestações afro-descendentes. Essa multidimensionalidade permite que tais manifestações transmitam mensagens de uma só vez. Entretanto, essa multidimensionalidade não pode ser captada fora de contexto, o que nos remete à obra de Gilbert Durand, quando este nos fala sobre a necessidade de um contexto para se entender o sentido dado ao símbolo. A multiculturalidade pressupõe um caráter conversacional, além do desempenho grupal. É a alegria e a fé é que nos ajudam a comunicar com o mundo. É daquilo que sentimos e aquilo em que acreditamos que nos faz seres de troca de idéias. A materialização disso vem em diversas formas, e aqui queremos acreditar que é dançando, cantando, rezando, comendo, trabalhando, que a nossa mensagem é transmitida. Essa bricolage de idéias unidas em sala de aula pode nos valer de uma discussão mais saudável, pautada nas reais origens do pensamento intolerante, abrindo espaço para discordâncias e concordâncias, enfatizando que o plano de debate está imbricado nas formas de abordagem e que a alimentação dessas podem não ser ideais para a real erradicação do pensamento preconceituoso. Nossa breve experiência em sala de aula desperta para a necessidade de uma revisão geral dos parâmetros utilizados para a discussão racial, e que deve atingir os planos da educação e da comunicação social, posto que a contribuição desses veículos é base para a fundação da crítica social.

Christiane Rocha Falcão 126 126 REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil: Contribuições para uma sociologia das interpenetrações de civilizações. São Paulo: Pioneira, 1989.. Estudos Afro-Brasileiros. Coleção Estudos. São Paulo: Editora Perspectiva, 1973. BARROS, J. F. P. de., TEIXEIRA, M. L. L. O código do corpo: inscrições e marcas dos orixás. In: Meu sinal está em seu corpo. Carlos E. M. Moura (org). São Paulo: Edicon/Edusp, 1989. DANTAS, Beatriz Góis. Vovó nagô, papai branco: usos e abusos da África no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1988.. Nanã de Aracaju: trajetória de uma mãe plural. In: Caminhos da Alma Memória afro-brasileira. São Paulo: Ed. Summus, 2002. DURAND, Gilbert. A Imaginação Simbólica. São Paulo: Cultrix/EDUSP, 1988. FRIGERIO, Alejandro. Artes negras: Uma perspectiva afrocêntrica. In: O percevejo, ano 11, n.12. Rio de Janeiro: Unirio, 2003. HERNANDEZ, Leila Leite. África na sala de aula. São Paulo: Summus Editorial/Selo Negro, 2005. LANDES, Ruth. A cidade das mulheres. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2002. LIMA. V. C. A família-de-santo nos candomblés jejes-nagôs da Bahia: Um estudo de relações intragrupais. Salvador: Corrupio, 2003. LUZ, M. A. Agadá Dinâmica da civilização africano-brasileira. Salvador: Edufba, 2003. PIERUCCI, Antônio Flávio; PRANDI, Reginaldo. A realidade social das religiões no Brasil Religião, sociedade e política. São Paulo: Ed. Hucitec, 1996. PRANDI, Reginaldo. Herdeiras do axé. São Paulo: Ed. Hucitec, 1996.. Os candomblés de São Paulo. São Paulo: Hucitec/Edusp, 1991. RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. São Paulo: Editora Nacional. 1977