Artigo Reflexivo ATENÇÃO BÁSICA À SAÚDE: UM OLHAR A PARTIR DAS PRÁTICAS DE INTEGRALIDADE EM SAÚDE 1



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Transcrição:

Artigo Reflexivo ATENÇÃO BÁSICA À SAÚDE: UM OLHAR A PARTIR DAS PRÁTICAS DE INTEGRALIDADE EM SAÚDE 1 BASIC HEALTH CARE: THE POINT OF VIEW OF HOLISTIC HEALTH CARE PRACTICES ATENCIÓN BÁSICA A LA SALUD: UNA MIRADA DESDE LAS PRÁCTICAS DE INTEGRALIDAD EN SALUD Roseni Pinheiro 2 RESUMO Este trabalho visa a apresentar uma reflexão crítica sobre a atenção à saúde, no que tange à efetivação dos princípios do SUS, ao papel da enfermagem e à atenção básica como um espaço fértil de atuação e formação profissional. Tal reflexão tem as práticas de integralidade em saúde como eixo analítico, destacando o cuidado como categoria constituinte de um "saber-fazer" que fundamenta o agir em saúde, sendo a enfermagem agente relevante nesse processo. Por fim, ressaltase a necessidade de conhecer as experiências inovadoras no SUS na atenção básica, espaços de práticas em defesa da vida e do direito à saúde. Palavras-chave: Serviços Básicos de Saúde; Cuidados Básicos de Enfermagem; Cuidados Integrais a Saúde; Cuidados Primários de Saúde; SUS (BR). ABSTRACT This is a critical reflection on health care, on the implementation of principles of the Brazilian Single Health System (SUS), the role of nursing and basic health care as a field for professional training. This reflection takes holistic health care as its analytical axis, highlighting health care as a "know how to do" that underlies action in health, where nursing is a relevant agent in this process. Finally, we underline the need to get to know the innovative experiences in the SUS in basic health care, opportunities for the practice of the defense of life and the right to health. Key words: Basic Health Services; Primary Nursing Care; Comprehensive Health Care; Primary Health Care; SUS (BR) RESUMEN Este trabajo tiene por objetivo presentar una reflexión crítica sobre la atención a la salud en lo que respecta a tornar efectivos los principios del SUS, el rol de enfermería y la atención básica como un espacio fértil de actuación y formación profesional. Dicha reflexión tiene las prácticas de integralidad en salud como eje analítico, destacando el cuidado como categoría constituyente de un "saber-hacer" que fundamenta la acción en salud, siendo enfermería un agente relevante de este proceso. Por fin, se realza la necesidad de conocer las experiencias novedosas del SUS en la atención básica, espacios de prácticas en defensa de la vida y del derecho a la salud. Palabras clave: Atención integral a la salud, enfermería, Sistema Único de Salud 1 Trabalho apresentado na mesa-redonda "Atenção à Saúde: universalização / focalização, a enfermagem e a atenção básica ambulatorial.", durante o 50º Congresso Brasileiro de Enfermagem realizado no Riocentro, Rio de Janeiro, em novembro de 2003. 2 Enfermeira sanitarista. Professora visitante do Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro; coordenadora do Laboratório de Pesquisas sobre Práticas de Integralidade em Saúde (LAPPIS), que conta com o apoio de CNPq, FAPERJ, UERJ e Ministério da Saúde. Endereço para correspondência: IMS/UERJ. Rua São Francisco Xavier, 524/ sala 7.014-E. Maracanã Rio de Janeiro RJ CEP 20559-900. E-mail: roseni@uerj.br / lapppis.sus@ims.uerj.br 174 REME Rev. Min. Enf; 9(2): 174-178, abr/jun, 2005

INTRODUÇÃO Refletir sobre o tema proposto Atenção à Saúde: universalização/focalização, a enfermagem e a atenção básica ambulatorial significa considerar o lugar onde estou, onde situo o objeto principal das atividades de pesquisas e de ensino no Laboratório de Pesquisa sobre Práticas de Integralidade em Saúde (LAPPIS), que coordeno no Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS-UERJ): as práticas de saúde. Esta reflexão, inevitavelmente, deverá iniciar-se pela necessidade de compreendermos valores, sentidos e significados atribuídos pelos sujeitos em suas práticas no cotidiano dos serviços sobre o "cuidado em saúde". Entre esses valores defendo, aqui, a integralidade no cuidado à saúde na atenção às pessoas. Entendo a integralidade como um princípio norteador de uma política de Estado para a saúde o SUS, que tem no campo das práticas um espaço privilegiado para a materialização da saúde como direito e como serviço. Isso significa dizer que a integralidade, como eixo norteador de uma política, deverá ser construída cotidianamente, por permanentes interações democráticas dos sujeitos, pautada por valores emancipatórios fundados na garantia da autonomia, no exercício da solidariedade e no reconhecimento da liberdade de escolha do cuidado e da saúde que se deseja obter. Tal entendimento talvez nos auxilie a nos compreender como sujeitos coletivos, como aponta José Ricardo Ayres, "resultantes da intersubjetividade que somos", vivendo em espaços públicos, ainda carentes de um agir político compartilhado e sociabilizado-os serviços de saúde. (1) Uma explicação para essa carência se deve ao fato de nos faltar a compreensão de que esses espaços constituem locais de "encontros", com uma visão distinta daquela tradicionalmente atribuída ao atendimento e/ou consulta, nos quais as relações de poder-saber se acentuam, estabelecendo hierarquizações nem sempre desejáveis na relação entre cuidador e cuidado. Uma visão voltada para a construção de projetos coletivos, integrados, de cuidado em saúde, em que os profissionais, gestores e os usuários / pacientes seriam co-responsáveis pela produção de um saberfazer, feito por gente que cuida de gente. Nesse sentido, o sucesso de nossas ações cotidianas não se restringiria ao êxito da técnica, mas residia na capacidade de reconhecimento de suas dimensões éticas e estéticas no agir na atenção à saúde. Ou seja, acreditamos serem essas as dimensões em que se concentram os atributos desejáveis à prática do cuidado integral em saúde. Esta reflexão faz parte do esforço de convencimento de que, ao analisarmos as políticas de saúde e seus princípios, a forma de organização de seu processo de trabalho, devemos estar atentos à complexidade, pluralidade e diversidade dos problemas apresentados e das respostas que serão necessárias para resolvê-las. Para tanto, cito algumas críticas sintentizadoras dessa discussão. Em primeiro lugar, devemos refletir sobre as maneiras como são construídas essas respostas e suas aplicações para solucionarem os problemas de saúde considerados prioritários pelos usuários dos serviços. A materialização da integralidade, assim como da universalização e da eqüidade, espelham os grandes desafios de concretização do direito à saúde em um país de profundas desigualdades como o Brasil. Desafios que necessitam ser enfrentados, para, ao fim consolidarmos as conquistas sociais obtidas na Constituição de 1988, mediante a defesa radical da democratização das relações entre os diferentes sujeitos na luta cotidiana pela implementação de políticas sociais mais justas. Nessa perspectiva, é possível compreender a focalização no contexto das práticas de saúde, com outros sentidos, entre eles as estratégias de consolidação da própria universalização, convivendo com diferentes formas de intervenção destinadas à concretização dos princípios do SUS. Em segundo lugar, acreditamos que tratar desigualdades requer, em grande medida, definições técnicas e políticas voltadas para o estabelecimento de prioridades, com base nos valores que regem as sociedades sobres os bens e serviços a serem distribuídos à população. Esses valores estão fundados na justiça social e personificados nas instituições, como resultado de uma ampla participação política dos membros dessa mesma sociedade, capaz de desenvolver habilidades e responsabilidades de como lidar com as diferenças nas demandas por saúde. Ou seja, para tratar desigualdades, há de se construir respostas desiguais, o que não quer dizer que, nesse movimento de construção, sejam expropriados os valores que defendemos, traduzidos por princípios por exemplo, a integralidade em saúde. As práticas integrais em saúde requerem, no cotidiano dos sujeitos nos serviços de saúde, sobretudo das equipes de saúde, uma postura ética, política e moral de reconhecimento da diferença na diversidade das demandas apresentadas pelas pessoas que buscam os serviços de saúde, assim como nas respostas governamentais oferecidas para solucioná-las. Partimos do pressuposto de que o reconhecimento da diferença deve ter, na resposta por ela demandada, os atributos habilitadores de uma política de saúde de fato justa. Em terceiro e último lugar, advertimos que a presente reflexão deve contribuir para o debate de diferentes temas sobre as políticas de saúde. Destacamos o financiamento da saúde, pois julgamos insuficiente o aporte de recursos destinado para o setor, sobretudo para garantir a integralidade na atenção e no cuidado em saúde. Contudo, é possível afirmar que as possibilidades de se construir o direito à saúde ganham contornos mais nítidos quando observamos a ação criativa dos novos atores, verdadeiros sujeitos em ação que, na luta pela edificação de um sistema de saúde universal, democrático, acessível e de qualidade, têm con- REME Rev. Min. Enf; 9(2): 174-178, abr/jun, 2005 175

tribuído para o surgimento de inúmeras inovações institucionais, seja na organização dos serviços de saúde, seja na incorporação e/ou desenvolvimento de novas tecnologias assistenciais de atenção aos usuários do SUS. É nesse sentido que propomos a integralidade como eixo analítico do modelo de atenção à saúde, na medida em que nos ajuda a identificar os nexos constitutivos entre os componentes, aparentemente segmentados, de estruturação do tema proposto, quais sejam: a universalização (como um dos princípios do SUS), a enfermagem (como uma profissão majoritária na equipe de saúde) e a atenção básica (como um nível de atenção voltado ao maior contato). Em que pesem a diversidade e a pluralidade das temáticas abordadas, ficam evidentes os diferentes desafios a serem enfrentados pelos gestores, profissionais e técnicos para encontrar soluções para os problemas de saúde prioritários da população. Em relação às novas tecnologias assistenciais, mais especificamente, verifica-se que as práticas em saúde desenvolvidas nessas experiências vêm resultando em transformações no cotidiano das pessoas que buscam e oferecem cuidados de saúde. Entendemos que a prática do cuidado é uma construção social, histórica e cultural, cuja produção e reprodução se deve às diferentes instituições, em particular às instituições família e escola. Essa seria uma visão segundo a qual as práticas eficazes do cuidar se caracterizariam por ações interligadas entre si e relacionadas a duas outras dimensões da atuação dos profissionais em saúde quais sejam, a educação e a pesquisa. É justamente aqui, na interseção dessas dimensões, que encontramos as marcas da identidade do profissional de enfermagem, como um nexo constitutivo da temática proposta, na medida em que possuem os atributos habilitadores para efetivo exercício das ações do cuidar em saúde. Afinal, a enfermagem foi incorporando as práticas de cuidar como campo de domínio pelas próprias peculiaridades histórico-sociais da construção da profissão predominantemente exercido por mulheres para atender a uma clientela quase exclusivamente feminina, sendo essas mulheres na maioria das vezes chefes de família. São práticas que tiveram sua origem, observandose sua genealogia, no espaço doméstico, privado, particular, no interior das próprias famílias, bastando para isso apenas uma sabedoria prática, adquirida no exercício do "fazer cotidiano" e na "experiência de vida", passada de geração a geração. (2) A esse fazer cotidiano e experiência de vida se clamou, desde a Grécia antiga, de cuidado. Todavia, com a modernidade criou-se a prática do pesquisar, ou seja, de criar novos conhecimentos historicamente, revelando toda sua potência de transformação social da realidade. Contudo, os conhecimentos que vêm sendo produzidos têm-se constituído, ao longo da história, de forma fragmentada em seus espaços especializados e disciplinares, reforçando dicotomias entre o saber-fazer, dificultando o reconhecimento de experiências inovadoras nos diferentes níveis de atenção. Destacamos algumas delas, mais especificamente relacionadas à atenção básica, quais sejam, as ações de promoção da saúde e as tecnologias de gestão do cuidado. As propostas de promoção da saúde, por exemplo, que na maioria das vezes eram compreendidas como um conjunto de "tecnologias simplificadas, surgem nesse contexto como uma prática caracterizada por uma elevada densidade tecnológica, na qual a interdisciplinaridade dos conhecimentos envolvidos evidencia a alta complexidade das ações. Essa compreensão da promoção da saúde vem reforçar a importância da atenção básica na oferta de serviços públicos, como um dos loci mais importantes para a consolidação dos princípios do SUS, no qual a integralidade da atenção é o amálgama dos demais princípios e fundamenta o cuidado como uma tecnologia de saúde. O "cuidado na atenção à saúde" é tomado como uma tecnologia assistencial complexa, presente em todos os níveis de atenção do sistema, pois, ao praticá-lo, se buscaria estabelecer relações de saúde e relações sociais, ou seja, ao garantir as relações entre a epidemiologia, as ciências humanas e as ciências biomédicas, esse "cuidado" contribui para a construção de conceitos e estratégias assistenciais mais ricas e eficazes. Com relação à tecnologia do cuidado, verificamos três aspectos importantes: o primeiro se refere à democratização do processo de trabalho na organização dos serviços; o segundo diz respeito à renovação das práticas de saúde numa perspectiva de integralidade da atenção e o terceiro se volta à valorização do cuidado como uma tecnologia complexa em saúde. Tal complexidade não se define pelo custo do equipamento utilizado na prestação do cuidado, mas pelo reconhecimento da existência de diferentes dimensões sociais, econômicas, políticas e culturais que envolvem os sujeitos. Essas experiências se caracterizam por uma forte associação entre recursos humanos, informacionais, materiais e financeiros, que têm na raiz de suas concepções a idéia-força de considerar o usuário como sujeito a ser atendido e respeitado em suas necessidades, buscando garantir autonomia no cuidado de sua saúde. A partir de uma lógica sistêmica, inerente à gênese do SUS, as propostas que destacamos aqui apresentam estratégias de melhoria do acesso a serviços e medicamentos, assim como o desenvolvimento de práticas integrais do cuidado às populações consideradas especiais e de riscos de saúde. Observamos propostas que tratam de capacitações voltadas para a humanização do atendimento e para a promoção da solidariedade social, até a realização de estudos operativos destinados à avaliação e registro de projetos ou segmentos específicos da gestão ou mesmo do cuidado em saúde. Algumas dessas propostas estão associadas à incorporação de tecnologias computacionais (criação 176 REME Rev. Min. Enf; 9(2): 174-178, abr/jun, 2005

de softwares e sistemas de informação), destinadas à modernização da relação entre profissionais e serviços, e entre estes e os usuários. Mas todas elas estão relacionadas com a promoção e a gestão do cuidado em saúde, mediante a valorização do profissional e do usuário, garantindo sua autonomia, de modo a estabelecer uma relação democrática entre demanda e oferta, com ações integrais na atenção. Outro aspecto interessante dessas experiências diz respeito à pluralidade dos temas abordados, que refletem a especificidade e a complexidade dos contextos em que estão inseridos. Muitas delas traduzem a historicidade de movimentos sociais que, ao longo do tempo, vêm buscando o atendimento de suas reivindicações e demandas. Entre eles, destacamos aqui os movimentos das áreas de saúde reprodutiva e saúde mental. As duas áreas se relacionam com antigas lutas sociais, com uma identidade própria e ancorada em demandas de movimentos coletivos específicos, como os movimentos de mulheres e o da reforma psiquiátrica, para os quais as reformas das instituições de saúde são, até os dias de hoje, questão central de suas reivindicações. Embora a origem desses movimentos preceda a própria implantação do SUS, a incorporação de tecnologias em saúde, nas duas áreas, legitima a capacidade que esse sistema de saúde tem para promover transformações sociais, sobretudo quando suas ações são potencializadas. No entanto, há de se ter claro que os limites dessas ações, assim como a construção da integralidade estarão relacionados em grande medida à baixa permeabilidade das instituições políticas e sociais aos valores democráticos defendidos no texto constitucional. Podemos afirmar, segundo alguns estudos, que o estilo de gestão, a cultura política e os partidos políticos (entenda-se programa de governo), quando porosos a esses valores, elevam as possibilidades de surgimento de um agir em saúde, capaz de renovar e recriar novas práticas, mediante a inclusão de diferentes conhecimentos, fruto de uma mesma interação, que é construída na relação entre usuário, profissional de saúde e gestor. Essas práticas são nada menos que estratégias concretas de um fazer coletivo realizado por indivíduos em defesa da vida. Por fim podemos resumir, em três palavras, as práticas dos sujeitos no cotidiano dos serviços de saúde para construção da integralidade: diversidade, pluralidade e inovação. Destas, destacamos dois aspectos específicos. O primeiro aspecto refere-se às possibilidades de essas experiências se tornarem campo de formação em saúde. Exemplo concreto é a Política de Educação Permanente e Desenvolvimento no SUS, desenvolvida pela SEGEST / Gestão da Educação, sob direção do prof. Ricardo Burg Ceccim. A proposta busca mudanças nas estratégias de organização e do exercício da atenção a ser construída na prática concreta das equipes, pela interinstitucionalidade e desenvolvimento da política de educação no SUS, considerando as necessidades de saúde de grupos sociais territorializados. Por meio da criação dos pólos de educação permanente em saúde, deseja-se trabalhar com os elementos que conferem à integralidade da atenção à saúde forte capacidade de impacto sobre a população e que são essenciais para a superação dos limites da formação de práticas tradicionais, como, por exemplo, acolhimento e vínculo. Nesse sentido, a atenção básica cumpre papel estratégico na dinâmica de funcionamento do SUS porque propicia a construção contínua com a população. Essa proposta inova na medida em que redefine a idéia de redes de ações e serviços de saúde, como uma cadeia de cuidado progressivo em saúde, no qual se considerem a organização e o funcionamento horizontal dos recursos, das tecnologias e da disponibilidade dos trabalhadores em saúde, para garantir a oportunidade, a integralidade e a resolução dos processos de atenção à saúde, da gestão, do controle social e da produção social de conhecimento. O segundo aspecto diz respeito ao desenvolvimento de novas práticas de atenção à saúde e ao aprendizado institucional que essas experiências podem suscitar na relação entre os três níveis de gestão do SUS. Destaca-se nessas experiências a predominância de iniciativas municipais. Embora tenhamos percebido a coerência entre as diretrizes municipais/estaduais com as diretrizes nacionais, no que concerne às políticas de saúde, fica evidente a importância do espaço local como locus privilegiado e eficaz de materialização de uma política de saúde. Analisando essas experiências, foi possível perceber que conceitos, definições e noções vêm sendo repensados, reconstruídos e renovados à luz da integralidade da atenção, como um valor democrático, formando verdadeiro amálgama dos demais princípios norteadores do SUS. Pensar o cuidado em saúde como uma tecnologia, por exemplo, e não somente como objeto de práticas de saúde realizadas na atenção básica nos demais níveis de atenção especializada em que a complexidade não seja dada pelo grau de hierarquização dos espaços e procedimentos por ela definidos, mas pelos recursos cognitivos, materiais e financeiros que reúne é sem dúvida um repensar inovador. Encerro este trabalho afirmando que tomar conhecimento dos relatos das experiências voltadas para a defesa explícita dos valores democráticos e da vida das pessoas nos desafia a pensar que a consolidação dos princípios do SUS, sobretudo a integralidade e suas ações, deve ser compreendida como uma estratégia concreta de um fazer coletivo e realizado por indivíduos em defesa da vida. Acreditamos que essas experiências nos ajudem a conceber a idéia de que o SUS dá certo, é legal, é conquista e que, na verdade, são vitórias cotidianas acumuladas por todos aqueles que lutam por políticas sociais mais justas. Tenhamos cuidado com o SUS, pois cuidar de si, de nós ou dos outros na saúde depende de uma combinação necessária entre ação, compro- REME Rev. Min. Enf; 9(2): 174-178, abr/jun, 2005 177

misso e solidariedade social com uma população que carece muito de atenção. Esperamos que num espaço bem curto de tempo não seja mais preciso falar em integralidade e cuidado como algo externo a nós, tampouco que se necessite de modelos para serem concretizados, mas um modo de andar da vida nos serviços, no sentido de construir cotidianamente uma Grande Saúde. Como dizia o amigo David Capistrano, "temos uma dívida muito grande para com os desassistidos, e eles têm pressa..." REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. Ayres JR. Sujeito, intersubjetividade e práticas de saúde. Rev Ciên Saúde Col 2001; 6 (1): 63-72. 2. Daher DV, Santo FHE, Escudeiro CL. Cuidar e pesquisar: práticas complementares ou excludentes? Rev Latino-Am Enf 2002; 10 (2): 145-50. 3. Pinheiro R, Mattos R. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado em saúde. Rio de Janeiro: IMS-UERJ; 2001. 4. Pinheiro R, Mattos R. Construção da integralidade: cotidiano, saberes e práticas de saúde. Rio de Janeiro: IMS-UERJ; 2003. 5. Pinheiro R. Práticas de saúde e integralidade: as experiências inovadoras na incorporação e desenvolvimento de novas tecnologias assistenciais de atenção aos usuários do SUS. In: Brasil. Ministério da Saúde. Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde- SAS / Projeto REFORSUS. Experiências inovadoras no SUS: relatos de experiências de Desenvolvimento de novas tecnologias assistenciais de atenção aos usuários. Brasília: Ministério da Saúde; 2002. Recebido em: 07/12/2005 Aprovado em: 30/08/2005 178 REME Rev. Min. Enf; 9(2): 174-178, abr/jun, 2005