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Transcrição:

Entrevista ESPOROTRICOSE Dr. Rodrigo de Almeida Paes Dr. Dayvison Francis Saraiva Freitas Entrevistadora: Fernanda Rei Nas últimas décadas, foram registrados cada vez mais casos de esporotricose no estado do Rio de Janeiro, considerando-a como uma epidemia. A esporotricose é uma micose subcutânea (que acomete as camadas mais profundas da pele) muito comum na América Latina, inclusive no Brasil. Ela pode se desenvolver em humanos e animais, porém se observa, principalmente, uma frequente disseminação das lesões entre a população de felinos. Embora o fungo do gênero Sporothrix, causador da doença, se desenvolva de tal forma que pode levar ao óbito de pessoas e animais, ele está presente no ambiente, associado aos vegetais e ao solo de forma benéfica. Nesta entrevista, Fernanda Rei, aluna do curso de Ciências Biológicas: Microbiologia e Imunologia na UFRJ, esclarece diferentes aspectos sobre a esporotricose com o dermatologista Dayvison Francis Saraiva Freitas e o microbiologista Rodrigo de Almeida Paes, ambos pesquisadores no Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas/FIOCRUZ. 1. Qual a motivação que os levou a estudar esporotricose? Dr. Dayvison: Durante minha residência em dermatologia, atendi e acompanhei um caso muito marcante de um paciente que foi internado e precisou de um tratamento ambulatorial. Ele apresentava uma forma grave e muito disseminada, de difícil diagnóstico de esporotricose. A doença foi tema de monografia da minha residência, ilustrando o caso desse paciente e fazendo revisão sobre o assunto. Daí nasceu meu interesse sobre a doença, então tive oportunidade de entrar em contato com pesquisadores da FIOCRUZ e ingressar em mestrado e doutorado no mesmo assunto. Dr. Rodrigo: O interesse veio com a própria epidemia de esporotricose. Iniciei no laboratório como estagiário de nível médio em 1998, quando começaram os primeiros casos de esporotricose. Os casos foram aumentando e o volume de trabalho do laboratório 1

também. A maioria dos pacientes que vinham ser atendidos no laboratório, que faz diagnóstico de micoses, apresentavam esporotricose. Isolava-se muito fungo do gênero Sporothrix e a partir disso, desenvolvi meu mestrado e doutorado. 2. Quais são abordagens científica e clínica usadas em seus projetos? Dr. Dayvison: Eu faço predominantemente a abordagem ambulatorial, isto é, o atendimento dos pacientes. Acompanhamos a doença a partir do acompanhamento do grupo de pacientes. Normalmente temos o olhar retrospectivo sobre esses casos. As perguntas que vão sendo feitas ao longo dos meses de atendimento vão levantando questionamentos que nos permitem depois rever os prontuários, traçar o perfil dos pacientes atendidos e gerar resultados sobre eles com relação à resposta ao tratamento, formas de apresentação clínica e histórico epidemiológico. Além disso, fazemos alguns estudos mais programados, nos quais temos um controle maior. Dr. Rodrigo: Os meus projetos não estudam a doença e sim o fungo. Desde o meu doutorado, eu estudo a virulência do fungo Sporothrix, principalmente por meio do estudo da sua melanina, que é um pigmento de defesa do fungo. Quando ele está parasitando um organismo, a melanina o protege da fagocitose por macrófagos e também da ação de antifúngicos. Investigamos a susceptibilidade do fungo aos medicamentos disponíveis, observando se a resistência desse fungo aos antifúngicos tem aumentado. Em nossos estudos, tentamos associar os resultados laboratoriais ao quadro clínico do paciente. 3. Além da dimensão científica, a doença também possui dimensões sociais, epidemiológicas, veterinárias e econômicas. Como seus projetos são relevantes para compreender a doença em todas as suas dimensões? Dr. Dayvison: A partir do conhecimento gerado com esses estudos, os pontos críticos para entendimento e controle da doença são sinalizados para a rede de saúde. Conseguimos mostrar de forma científica que diferentes regiões estão começando a ser mais acometidas, de modo que o governo possa monitorar essas áreas para conter o avanço dessa doença. Existem propostas junto a veterinários sobre formas mais rápidas ou viáveis de diagnósticos da doença, bem como sobre novas formas de tratamento, pois alguns tratamentos se tornam insuficientes com o tempo. Além disso, é importante fornecer dados para educar e alertar a população quanto a medidas de higiene e de conduta com seus animais para prevenir, reconhecer e tratar a doença de forma correta. 4. Sabemos que a atividade de pesquisa, em geral, enfrenta dificuldades de várias ordens. Qual é o maior desafio para a pesquisa sobre esporotricose tanto na bancada como na clínica? Dr. Dayvison: Na pesquisa clínica, o problema é a falta de recursos, pois no Brasil é difícil o patrocínio tanto de órgãos públicos como de rede público-privada para dar andamento às pesquisas e superar problemas de infraestrutura institucional. No que diz respeito à pesquisa, temos que lidar com um problema relacionado à metodologia dos estudos 2

retrospectivos. Pode haver falhas na documentação, isto é, casos em que os próprios médicos não documentam aspectos relevantes de forma adequada. Isto pode prejudicar o resultado final da pesquisa. Finalmente, há casos em que a gente, mesmo conseguindo programar a pesquisa e começar a acompanhar desde o início, enfrenta problemas como a perda da continuidade dos pacientes, falta de material tanto de laboratório quanto de remédio ou falta de verba em geral. Dr. Rodrigo: Na bancada, além de financiamento e infraestrutura que são bastante limitantes, existem questões próprias da biologia do fungo que limitam as pesquisas. Ele é um fungo dimórfico, ou seja, possui duas morfologias distintas: uma morfologia filamentosa quando está no ambiente, e uma morfologia leveduriforme, quando está parasitando o organismo. O metabolismo desse fungo é distinto em cada forma e não é fácil manter essas duas formas em laboratório, pois precisamos ficar constantemente manipulando. Por conta das duas morfologias distintas, o experimento acaba sendo duplicado, para testar as duas formas dele e isso aumenta o tempo da pesquisa. Além disso, o Sporothrix é um microrganismo de crescimento lento, comparado a bactérias e leveduras, que crescem de um dia para o outro. Ele cresce de uma semana a dez dias. Então, a manipulação do fungo é uma questão limitante. 5. Considerando que se trata de um fungo comumente encontrado no ambiente, é possível a erradicação da doença? Dr. Dayvison: Tendo em vista que ele está presente no ambiente, não é possível erradicar a doença, mas é possível controlá-la para diminuição do número de casos. O que se espera, além de providências tomadas por autoridades, é que a própria população contribua para o controle da doença. 6. Estamos ouvindo falar que os casos de esporotricose aumentaram muito. O que era considerado um surto já é considerado uma epidemia no Rio de Janeiro. O que nos faz poder afirmar que o surto se tornou uma epidemia? Dr. Rodrigo: A questão dos números que são mostrados, pois, nos últimos anos, o número de casos aumentou de dois para setecentos, por ano. Outra questão é o perfil epidemiológico, pois a pessoa que geralmente chegava com as lesões características da doença era um trabalhador rural, que se espetava no espinho de uma planta, se cortava com um graveto de madeira, por exemplo. E esse é o padrão dessa doença ao redor do mundo: alguém apresenta a doença a partir da manipulação de material de origem vegetal. Mas no atual cenário do Rio de Janeiro, o contexto é completamente diferente. Apenas uma minoria relata situações de manuseio de vegetais ou solo e 99% das pessoas acometidas contam que entraram em contato com um gato doente, através de mordida ou arranhaduras. Então, a transmissão se tornou zoonótica: o animal adoece e transmite a doença. Mas ele não é um vetor transmissor, ele também é um paciente que, se não for tratado, evolui para óbito mais comumente do que as pessoas. 3

7. Quais fatores podem ter favorecido a evolução do surto à epidemia? Dr. Rodrigo: Um dos fatores, que está associado ao próprio fungo, é a sua virulência. Antes de começar essa epidemia, qualquer livro mais antigo de esporotricose dizia que era causada por Sporothrix schenckii e em 2007, uma série de estudos foi feita devido à epidemia que estava acontecendo no Rio de Janeiro e descobriu-se que na verdade era um grupo de várias espécies que não se diferenciavam morfologicamente (apenas pela biologia molecular). Foram definidas várias espécies envolvidas, inclusive Sporothrix brasiliensis que é a que circula na epidemia felina no Rio de Janeiro. Diversos estudos mostraram que essa espécie é a mais virulenta desse conjunto. Um segundo fator é o saneamento básico. Os casos estão concentrados não em bairros ricos ou com esgoto tratado. Normalmente, a doença aparece em locais de carência de saneamento e presença de ratos, pois algumas pessoas criam gatos por necessidade, para evitar a disseminação dos ratos. Os primeiros casos dessa epidemia ocorreram no município de Duque de Caxias, e nos bairros de Ricardo de Albuquerque e Anchieta, e até hoje, ocorre muito na divisa com a baixada e na própria baixada. Outro fator é a questão da população de gatos que aumentou, pois na década de 1980, não havia tantos gatos no Rio de Janeiro como hoje em dia. 8. Existem outras regiões do Brasil ou no mundo que apresentam um quadro semelhante ao encontrado atualmente no Rio de Janeiro? Dr. Dayvison: Com os números de casos que acontecem no Rio de Janeiro, não. Mas existem lugares em que ocorre a transmissão gato-homem como Pelotas no Rio Grande do Sul, região metropolitana de São Paulo, Distrito Federal, Juiz de Fora, Belo Horizonte e regiões metropolitanas de Recife, Curitiba, Salvador, Natal, João Pessoa e Vitória. 9. Qual o grupo mais vulnerável? Dr. Dayvison: A esporotricose é uma doença ocupacional. Geralmente, pessoas que mexem na terra por profissão ou lazer são mais suscetíveis. Mas no Rio de Janeiro, a doença deixou de ser somente ocupacional para ser associada a pessoas que estão mais envolvidas com gatos. Embora tenha um aspecto feio e seja trabalhosa de tratar, é uma doença benigna que não ameaça a vida, na maior parte dos casos. Os casos de morte estão associados a pacientes imunossuprimidos. Sendo assim, um grupo vulnerável seria, por exemplo, pacientes com HIV que não estão tratando corretamente esta infecção. 10. Existem diferenças entre a incidência da doença em ambientes rural e urbano do estado do RJ? Dr. Rodrigo: A notificação da doença é obrigatória, mas não funciona bem. Sabe-se que na área rural não é tão frequente quanto na área urbana, mas não se sabe se as pessoas não adquirem a doença ou simplesmente não notificam. Dr. Dayvison: Tirando essa questão da notificação, provável que não sejam comuns os casos, pois os números seriam conhecidos assim como os números da 4

paracoccidioidomicose, que é uma doença transmitida por outro fungo e acontece com frequência nas regiões rurais. Essa história da transmissão pelo gato se dá na área urbana e periurbana, mal urbanizada, mas não chega a ser frequente na área rural. 11. Por que não acontece a transmissão de humano para outro humano? Dr. Rodrigo: A principal questão é a quantidade de fungo que está presente nas lesões do ser humano. O gato é capaz de transmitir, pois ele contém uma quantidade elevada de fungo em suas lesões, boca e unhas. E, por ser necessária uma inoculação traumática, seria preciso que um humano machucasse o outro e duas lesões tivessem contato, o que é raro de acontecer. Com os gatos isso é comum por arranhaduras e mordeduras e até mesmo os espirros dos felinos, que são resultado do comprometimento respiratório causado pelo fungo. Os hábitos dos gatos favorecem a transmissão da doença pelas brigas e pelo fato de se lamberem. 12. Existe alguma explicação para os gatos serem mais afetados do que outros animais? Dr. Dayvison: Não se sabe a resposta exata para isso, mas acredita-se que esteja relacionado com o hábito de vida desses animais. A princípio, imaginaram que teria associação com os gatos que fossem FIV/FeLV positivo, mas já viram que não necessariamente. De fato, falta algo na imunidade do gato que permite que essa doença se torne mais forte, quando comparado a outros animais e aos humanos. 13. A disseminação dos fungos nos gatos é similar à disseminação no organismo do homem? Dr. Rodrigo: Sim. O fungo pode se disseminar, em qualquer ser vivo, tanto pelo sistema linfático como pelos vasos sanguíneos. Nos humanos, é mais comum que ocorra a disseminação linfática. Em pacientes mais graves, o fungo é encontrado na corrente sanguínea também. No gato, pode ocorrer disseminação linfática, mas isso é a minoria dos casos. Em geral, nos gatos ocorre a disseminação através da corrente sanguínea. Não se sabe ainda o motivo para essa diferença de disseminação. 14. O que tem sido feito para lidar com esta epidemia? Dr. Dayvison: Existem pesquisadores estudando essa doença, o que permite conhecer melhor as formas e o padrão de transmissão da doença, o comportamento do fungo, as mudanças de resposta ao tratamento, entre outros. Isso facilita o entendimento de alternativas para combatê-la. Existem palestras educativas em diferentes instituições que envolvem treinamento de médicos, tentativas de divulgação da doença na mídia e fornecimento dos medicamentos para o tratamento pela rede pública. Antes, a FIOCRUZ fazia o diagnóstico e tratamento de quase todos os pacientes, mas a infraestrutura não dava para suportar a demanda. Portanto, outras instituições do SUS passaram a fazer o diagnóstico e tratamento. Os casos que hoje em dia chegam à FIOCRUZ são os mais graves ou que não respondam bem ao tratamento convencional. 5

15. Qual seria a melhor maneira de lidar com essa epidemia atual? Dr. Rodrigo: O ideal seriam melhorias nas questões de saneamento básico e aterros sanitários. Isso é algo mais difícil de conseguir, porém em um contexto mais aplicável à sociedade: as pessoas precisam assumir uma guarda responsável dos animais, ou seja, castrar os animais, o que evita o comportamento agressivo, não abandonar o animal doente, nem matá-lo. Caso o animal venha a falecer pela doença, não se deve enterrá-lo, pois isso devolve o fungo pra natureza. E no caso das pessoas que mexem com solo, devem usar sempre luvas ao manusear a terra. E fazer o tratamento adequado do animal ou da pessoa doente. 16. O que é indispensável que a população saiba em relação à esporotricose? Dr. Rodrigo: O tratamento dessa doença é demorado, portanto o paciente se mostra ansioso para que sua recuperação aconteça logo. Porém é necessário compreender que o desaparecimento desse tipo de lesão pode durar até seis meses, dependendo do caso, pois o remédio tem um efeito lento. Dr. Dayvison: É importante conscientizar que o gato não é o culpado e sim a maior vítima da doença, então ele precisa ser cuidado de forma adequada. A doença no gato é tratável, por isso não há necessidade de matar o animal doente. Além disso, é bom saber que uma pessoa infectada não é capaz de transmitir a doença para outra pessoa sadia. Inclusive, essa doença não é transmitida através da placenta, ou seja, da mãe grávida para o seu bebê. Algumas pessoas se preocupam se o remédio é tóxico ao organismo, porém ele é bem tolerado, de forma que não é comum que agrida o fígado ou estômago. 17. Quais devem ser os procedimentos adotados por alguma pessoa que descubra que seu animal ou ela própria estão com a doença? Dr. Dayvison: No caso do animal, ele deve ser encaminhado ao veterinário o mais rápido possível. Uma dica legal é que o município do Rio tem dois locais de atendimento para esses casos: o Instituto Jorge Vaitsman (localizado em Av. Bartolomeu de Gusmão, 1.120, São Cristóvão, Rio de Janeiro/RJ e no site http://www.rio.rj.gov.br/web/vigilanciasanitaria/ijv) e o Centro de Controle de Zoonoses (Largo do Bodegão, 150, Santa Cruz, Rio de Janeiro/RJ e http://www.rio.rj.gov.br/web/vigilanciasanitaria/ccz). Se possível, deve-se manter o gato isolado e em local limpo até a cicatrização das lesões. Finalmente, a castração do animal é importante para diminuir os hábitos de agressividade entre os felinos, o que facilita a disseminação da doença. O próprio veterinário vai determinar o momento ideal para isso. No caso de um indivíduo acometido, deve-se procurar qualquer posto da saúde ou clínica de família, onde a pessoa irá passar por uma triagem, diagnóstico e tratamento de forma gratuita. Se a forma da doença já estiver avançada, será encaminhado a um dermatologista ou para a FIOCRUZ. Não há necessidade de isolamento do paciente. 6

18. Quais são as perspectivas sobre o futuro da doença? Dr. Rodrigo: Gerar maiores dados do genoma do fungo, aumentando o entendimento de como ele causa a doença. Dr. Dayvison: Embora a doença continue em níveis altos durante alguns anos, os estudos e tentativas vão continuar sendo feitos para que seja controlada e volte aos níveis observados antes da epidemia. Espera-se elaborar programas de conscientização da população, colaborações de pesquisa e de centros administrativos, como a prefeitura, para que o diagnóstico da doença seja mais rápido e, consequentemente, o tratamento também. Sobre os pesquisadores Dayvison Francis Saraiva Freitas Pesquisador em Dermatologia Infecciosa no INI/Fiocruz - RJ. Especialista em Clínica Médica e em Dermatologia. Doutor em Medicina na área de concentração de Doenças Infecciosas e Parasitárias e Pós-Doutor em Micologia INI/Fiocruz. Docente Permanente dos Cursos de Pós-Graduação Stricto Sensu em Pesquisa Clínica em Doenças Infecciosas do INI/Fiocruz e em Medicina Tropical do IOC/Fiocruz. E-mail: dayvison.freitas@ini.fiocruz.br Rodrigo de Almeida Paes Pesquisador no INI/Fiocruz - RJ. Doutor em Biologia Celular e Molecular - Fundação Oswaldo Cruz. Tecnologista em saúde pública da Fundação Oswaldo Cruz. Experiência na área de Microbiologia, com ênfase em Microbiologia Médica, atuando principalmente nos seguintes temas: diagnóstico (microbiológico e imunológico) de micoses, esporotricose, interações microbianas, suscetibilidade a antifúngicos, melaninas e outros fatores de virulência. E-mail: rodrigo.paes@ini.fiocruz.br 7