Marcele Zveiter, Jane Márcia Progianti e Octavio Muniz da Costa Vargens O trauma no parto e nascimento sob a lente da enfermagem obstétrica*



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Transcrição:

Marcele Zveiter, Jane Márcia Progianti e Octavio Muniz da Costa Vargens O trauma no parto e nascimento sob a lente da enfermagem obstétrica* Exploramos a cena do parto e nascimento que, no modelo medicalizado, pode causar marcas psíquicas importantes que ecoam na relação da mãe com o bebê. Entendemos a díade como protagonista e ambiente natural do parto e nascimento. Concluímos que o emprego de tecnologias de assistência que estabeleçam regras baseadas exclusivamente numa perspectiva da práxis científica pode imprimir demanda maior do que a capacidade de resposta da díade, constituindo fonte potencial de trauma. > Palavras-chave: Medicalização, parto, saúde da mulher, trauma artigos > p. 86-92 >86 This article discusses the scene of childbirth and being born, which, in the medicalized model, can leave strong psychic marks that echo in the mother s relationship with her baby. Here the dyad is seen as the protagonist and natural environment for childbirth and the author concludes that the use of technologies for health treatment that establish rules based exclusively on the perspective of scientific praxis may represent a demand that is heavier than the dyad s ability to correspond to it, constituting a potential source of trauma. > Key words: Medicalization, childbirth, woman s health, trauma Introdução O parto e o nascimento como uma celebração da vida, foram prejudicados com a medicalização da dor (Progianti et al, 2003). Tal fato contribuiu para que a mulher perdesse a capacidade de reagir à dor do parto, passando a percebê-lo como um sofrimento insuportável ou inútil, a ponto de exigir a *> Trabalho vinculado ao Núcleo de Estudos e Pesquisas Enfermagem, Mulher, Saúde e Sociedade (NEPEN-MUSAS), da Faculdade de Enfermagem da UERJ.

necessidade de ser inibido e não vivenciado (Progianti et al., 2004). Foi com base neste argumento, dentre outros, e considerando o desenvolvimento histórico das ciências da saúde e das práticas médicas no campo obstétrico, que ganharam força as formas de invasão e controle do evento, como, por exemplo, o uso do fórceps e a definição da cesárea como a melhor opção para parir. Neste contexto de uma assistência medicalizada, nem sempre se levaram em conta suas conseqüências traumáticas, tanto na esfera das psicopatologias quanto nas injúrias físicas causadas à mulher e ao recém-nascido. Na sala de parto, revela-se uma profunda disjunção entre a equipe profissional e a díade. De um lado, os profissionais que compartilham os princípios da racionalidade médico-científica que norteiam a sua conduta, de outro, a mulher que passa por um momento especial para a sua vida e para sua saúde e de seu bebê, que está experimentando o mundo pela primeira vez. Entendemos o parto e o nascimento como um evento singular que deve ser cuidado de maneira abrangente, considerando uma interface entre diferentes áreas do saber. Contudo, em nossa cultura, na maioria das vezes a vivência deste evento não é prazerosa para as mulheres que dão à luz e nem mesmo para alguns profissionais presentes na cena, que não compartilham da racionalidade medicalizada (ibid.). Neste trabalho exploramos uma perspectiva da cena do parto e nascimento, sem a pretensão de esgotar todas as possibilidades da sua abordagem. Tomamos como pressuposto que a cena do parto no modelo medicalizado pode causar marcas psíquicas importantes (tanto para a mãe quanto para o recém-nascido) e que estas marcas ecoam na relação da mãe com o seu bebê. A mãe e o bebê como protagonistas e ambientes naturais do processo fisiológico do parto e nascimento Na cena do nascimento tanto o corpo da mulher quanto o corpo do bebê passam por momentos de grande demanda de energia. Pensando a respeito do esforço materno no parto, remetemo-nos ao trabalho muscular da prensa abdominal, aos músculos do tórax, do períneo e de todos os outros músculos que são mobilizados. Além do trabalho muscular deve ser considerado o mecanismo necessário para que ocorram as acomodações ósseas que permitem a passagem do feto pelo canal do parto. A mobilização das junturas da pelve, que requer a tração de delicados ligamentos e a mobilização do disco interpúbico (Gardner, 1978). Odent (2000) destaca a fisiologia do hipotálamo e das glândulas supra-renais como fatores fundamentais para a compreensão do que ocorre na cena do parto. As taxas de adrenalina, ocitocina e endorfinas secretadas sofrem mudanças a cada etapa do trabalho de parto. Além disso, a atividade neocortical tende a baixar no momento da expulsão do bebê, o que favorece o incremento nas funções da porção mais primitiva do cérebro (ibid.). A ação da adrenalina é intensificar a atividade de expulsão do artigos >87

artigos >88 feto no final do trabalho de parto; a ocitocina é o hormônio responsável pelas contrações uterinas; e as endorfinas conferem uma sensação de bem-estar e diminuição da sensação dolorosa durante o trabalho de parto. Neste ponto chamamos a atenção para o ambiente onde ocorre o parto. A sala cirúrgica é estranha, com sua temperatura baixa, cheia de objetos e aparelhos que em nada se assemelham ao ambiente familiar. Os profissionais paramentados, executando uma movimentação típica do ambiente cirúrgico, também são elementos nada familiares. O medo provoca a secreção de doses elevadas de adrenalina em etapas bem anteriores à expulsão. O excesso de estímulos sensoriais causa uma intensificação na atividade neocortical que, com o medo e a insegurança, interfere como inibidora da liberação de ocitocina (Odent, 2000). Deste modo, existe grande possibilidade de que a mulher atendida no ambiente hospitalar, pela racionalidade médica tradicional, tenha um funcionamento orgânico desfavorável ao processo fisiológico do parto. O tempo do trabalho de parto pode ser aumentado pela fisiologia alterada de alguns elementos dos diferentes períodos do parto, como, por exemplo, ritmo e intensidade das contrações, gradiente de distribuição da pressão na musculatura esquelética e movimentação voluntária do esqueleto em geral. Entendemos, portanto, que a intensidade dos esforços e percepção da dor são variantes individuais, dependentes do ambiente, que contribuem na percepção do que seja o tempo vivido durante a experiência. Uma demora no trabalho de parto pode causar no bebê algumas conseqüências importantes. Segundo Winnicott (1990): Do ponto de vista do bebê, o nascimento anormal significa aquilo que do nosso ponto de vista chamamos de trabalho de parto prolongado (p. 168). O tempo de parto é um problema interessante por relacionar-se com o início da respiração e com a capacidade que cada bebê tem para tolerá-lo (ibid.). Cabe aqui uma reflexão: qual é o tempo de um trabalho de parto prolongado? O modelo medicalizado estabeleceu parâmetros para determinar o tempo ideal de duração de um parto. Este foi definido com base em estudos estatísticos da cultura medicalizada que analisaram a vitalidade do bebê a partir de uma escala quantificada de valores e indicadores em relação ao tempo do trabalho. Esqueceram que cada bebê é único e, portanto, tem tempo próprio para cada coisa em sua vida. Assim, pois, cuidar numa perspectiva humanística, nos obriga a negar esta idéia de tempo padronizado, baseada na quantificação estatística de processos humanos não quantificáveis, e tomar como norte a aceitação do ritmo psicofisiológico dos fenômenos da parturição vivenciados singularmente por cada mulher e cada bebê. Associada à idéia de tempo prolongado, neste modelo tradicional médico, está a idéia de desgaste físico e também do desgaste emocional ou psíquico da mulher e do bebê. Esta demanda energética, no entanto, só pode ser entendida como desgaste quando vista de fora. Quando se respeita a singularidade de cada ser compreende-se esta de-

manda como parte essencial do processo fisiológico. Para Winnicott (1956), o estado mental modificado da mulher a torna capaz de suportar tamanho desgaste. Chamou este estado de preocupação materna primária e o descreveu como um enlouquecimento normal. 1 No ambiente hospitalar medicalizado, que desconsidera este momento especial da saúde mental da mulher como sendo de fortaleza feminina intensa e coloca-a na condição de fragilidade extrema, as intervenções e invasões tem seu emprego justificado. O bebê também passa por momentos de alta demanda de energia, com a diminuição do aporte de oxigênio (que pode ser verificado pela diminuição no ritmo dos batimentos cardiofetais a cada contração) e o acavalgamento dos ossos do crânio. Do mesmo modo que o organismo feminino, o feto dispõe de mecanismos próprios para participar do momento do parto. O organismo fetal está pronto para responder como sujeito ativo na cena do nascimento (Zveiter, 2003). Durante o parto fisiológico, o bebê percorre o caminho com movimentos ativos, um verdadeiro ballet corporal. Em cada tempo, esses movimentos preenchem a vagina, fazendo progredir o trabalho de parto. Na nossa compreensão, este momento pode ser bastante prazeroso, constituindo uma expressão da sexualidade da mulher (Progianti et al., 2004). Para o bebê o momento do nascimento é parte importante na constituição de sua sexualidade, uma vez que é aí que se marca a transição dos cuidados maternos, adotados quando ainda no seu ventre, para aqueles proporcionados ao bebê quando já no mundo de relações sociais. O ambiente como determinante do modo de cuidar Entendemos que mãe e bebê possuem então uma fisiologia própria para este evento. Esta fisiologia pode ser sustentada ou modificada em relação direta com a maneira como se dá o cuidado profissional. Este cuidado é baseado num protocolo que descreve técnicas de clampeamento e secção do cordão umbilical, higiene, exame físico, instilação de nitrato de prata nos olhos, aquecimento, apresentação do bebê à mãe e oferta do seio materno. O modo de realização do protocolo de cuidados imediatos ao recém-nascido pode ser dirigido para uma facilitação do estabelecimento do vínculo mãe-bebê. Contudo, o que ocorre na maioria das vezes é que, no ambiente hospitalar tradicional, o foco de atenção dos profissionais está dirigido pela lógica do risco. E que risco é esse? As possíveis intercorrências, como infecções e injúrias provocadas pelo processo do parto, o que acaba originando uma inversão na ordem do que seria esperado pela fisiologia do parto e nascimento. Primeiramente a permeabilidade das vias aéreas e o corte do cordão umbilical, 1> Esta denominação está de acordo com o que Canguilhem postulou em 1943 como saúde:... estar em boa saúde é poder cair doente e se recuperar, é um luxo biológico. artigos >89

artigos >90 depois o aquecimento artificial no berço, calor irradiante, o que facilita o exame físico, o clampeamento do cordão e a prevenção de infecções oftálmicas com a instilação de nitrato de prata e depois, e somente depois, a apresentação do bebê à sua mãe com a oferta do seio materno. Neste modo de entendimento do que seja cuidar do bebê desconsidera-se a fisiologia do parto e nascimento como um processo integrado dos sistemas, mãe e bebê (Zveiter, 2003). Esta lógica de atendimento, desde a ordenação das prioridades, é invasiva e demanda ainda mais energia tanto da mãe quanto do bebê. Esta demanda extra de energia para responder à invasão do ambiente pode constituir a base das marcas psíquicas que se farão representar em falhas no vínculo mãe-bebê (Progianti et al., 2004). Os efeitos das intervenções no nascimento A teoria das relações precoces mãe-bebê de Winnicott (1990) fornece instrumental teórico para discutir este tipo de questão, chegando a formular recomendações sobre o modo como os bebês devem ser cuidados na sala de parto. Os efeitos deste cuidado sobre o nascimento, a que Winnicott se refere, são nitidamente efeitos sobre a constituição psíquica do bebê. Os métodos de quantificação do tempo e das condições físicas em que se dá o parto não são suficientes para a conclusão sobre as conseqüências psíquicas deste nascimento. Nascer não é, para o bebê, perceber que está se separando do corpo da mãe (Winnicott, 1949). Para inferir sobre seu estado mental ao nascimento é preciso considerar que durante a vida intra-uterina existem repetidas experiências de intrusão do ambiente, como, por exemplo, as contrações de Braxton- Hicks (contrações de baixa intensidade, que ocorrem no último trimestre da gravidez. Elas não são prenúncios de trabalho de parto e fazem parte do desenvolvimento da gestação). Nesta situação de ação do ambiente, o feto reage, mas ele experimenta, logo após a contração, um relaxamento e o retorno à situação anterior, quando não é necessário reagir. É como se ele fosse se preparando lentamente para a experiência de intensidade máxima: o nascimento. Portanto, no nascimento fisiológico, a intrusão do ambiente pode ser suportada graças à experiência intra-uterina de um retorno a uma situação em que não é preciso reagir (ibid.). Existe uma relação entre o que o bebê e a mãe experimentam no parto. A mãe saudável é capaz de se deixar levar pelo desenrolar das fases do trabalho de parto, de modo semelhante ao que ocorre com o bebê. Mãe e bebê vivenciam as conseqüências do trabalho de parto sem nenhuma possibilidade de prever o seu término. Assim sendo, embora a organização psíquica do bebê pareça estar pronta para suportar a dor de modo mais eficaz do que o adulto, as marcas desta dor podem deixar cicatrizes psicológicas traumáticas, que serão sentidas posteriormente (Spitz, 1965). Assistência como potencial de trauma Coloca-se aqui um problema: como é possível tomar o nascimento como traumático

para o bebê? Ou ainda: como um parto pode ser traumático a ponto de dificultar o vínculo mãe-bebê? Enquanto se trabalha atendendo ao parto no modelo medicalizado, o que se vê é o fenômeno biológico, as injúrias ao corpo e o tempo cronológico do processo. Quanto ao modo como se apresenta a dinâmica e como se sucedem os períodos do parto, não é possível isolar um momento como um fator de risco para o futuro aparecimento de um trauma. No entanto, a observação da interação mãe-bebê neste momento não se reduz ao que existe de visível nas trocas. É preciso manter uma visão bifocal, como disse Cramer, com atenção para o modo como o recém-nascido se apresenta e, do mesmo modo, para a relação mãe-bebê. Como a noção de risco se baseia em dados obtidos retrospectivamente, a identificação de alguns fenômenos como fatores de risco têm pouco valor nesse momento. Só num estudo retrospectivo pode-se estabelecer a relação entre o fator de risco biológico, os fatores de riscos sociais e os de riscos psicológicos determinados pelo ambiente (Cramer, 1987, p. 48). Contudo, isso não significa que se devam abandonar os esforços de pesquisa que tentam estabelecer as situações de risco para a aplicação de medidas preventivas. Coloca-se aqui um problema para os profissionais que se dedicam aos cuidados necessários durante o nascimento de um bebê. Dependendo da formação profissional, essas pessoas tendem a considerar uma das vertentes: as ciências biomédicas ou a natureza dos fenômenos humanos. No entanto, o tema do nascimento é suficientemente abrangente para comportar amplas discussões interdisciplinares. As pesquisas no campo das complicações decorrentes das injúrias do parto, distúrbios metabólicos, respiratórios e circulatórios, fundamentam o manejo dos problemas maternos e neonatais, porém as bases teóricas que estão por trás das rotinas de cuidados para o nascimento fisiológico, permanecem esparsas e desarticuladas (Kjellmer e Winberg, 1994). O cuidado que propomos, portanto, é fundamentado no reconhecimento da mulher e do bebê como protagonistas da cena e no respeito à singularidade de cada díade. O cuidado que propomos prevê o emprego de tecnologias não invasivas e potencializadoras do cuidado materno. O cuidado que propomos exige uma atitude sensível de acolhimento. Por pensarmos assim, rejeitamos a assistência sustentada pelas rotinas rígidas protocolares, pela intervenção desnecessária, pela invasão dos corpos, que se desenvolve num ambiente que toma da mãe e do bebê o direito de exercerem integralmente suas potencialidades. Considerações finais Nos cuidados a serem implementados no atendimento ao parto fisiológico não cabe a idéia de sistematização. Deve-se considerar que tanto a mulher quanto a criança adquiriram as condições necessárias e devem ser capazes de passar pelo momento do parto e nascimento. A assistência que desconsidera este fato incorre no risco de representar uma demanda extra àquela que é intrínseca ao evento. Dito de outro modo, uma tecnologia de as- artigos >91

artigos >92 sistência que estabeleça regras baseadas numa perspectiva da práxis científica, desconsiderando a mãe e o bebê como sujeitos preparados para responder eficientemente às exigências fisiológicas do evento pode imprimir uma demanda maior que a capacidade deles responderem. Esta demanda exagerada é fonte potencial de trauma para a díade. Justifica-se a intensificação do debate e pesquisa de alternativas para o atendimento a estes fatos da vida saudável: parir e nascer. Para uma redução dos riscos de uma intervenção traumática, o cuidado profissional na cena do parto deve funcionar como um facilitador para que o cuidado materno possa se manifestar, com toda sua força e eficácia desde os primeiros momentos de vida do ser humano. Referências CRAMER, Bertrand. A psiquiatria do bebê: uma introdução. In: A dinâmica do bebê. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987. p. 24-74. GARDNER, Ernest et al. Anatomia, estudo regional do corpo humano. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1978. KJELLMER, I. e WINBERG, J. The neurobiology of infant-parent interaction in the newborn: an introduction. Acta Paediatric Supplement, n. 397, p. 1-2, 1994. ODENT, Michel. A cientificação do amor. São Paulo: Terceira Margem, 2000. PROGIANTI, Jane Márcia et al. Parto e nascimento: reflexões de enfermeiras obstétricas. Enfermagem Atual, Petrópolis, RJ, ano IV, n. 20, p. 23-6, mar.-abr./2004. Participação da Enfermeira no Processo de Desmedicalização do Parto. Revista Enfermagem UERJ, Rio de Janeiro, v. 11, n. 3, p. 271-8, 2003. SPITZ, René A. (1965). O primeiro ano de vida. São Paulo: Martins Fontes, 2000. WINNICOTT, Donald W. (1949). Birth memories, birth trauma, and anxiety In: Collected papers: pediatrics throw psycho-analysis. London: Tavistock, 1958. p. 174-93. (1956). Primary maternal preoccupation. In: Collected papers: pediatrics throw psycho-analysis. London: Tavistock, 1958. p. 300-5. Experiência do nascimento. In: Natureza humana, Rio de Janeiro: Imago, 1990. p. 165-72. ZVEITER, Marcele. Contribuições ao documento da Organização Mundial de Saúde: cuidados essenciais ao recém-nascido comentários sobre as implicações psíquicas. 2003. 164p. Dissertação (mestrado em Saúde da Mulher e da Criança). Instituto Fernandes Figueira/Fiocruz, Rio de Janeiro. Artigo recebido em novembro de 2004 Aprovado para publicação em março de 2005