O papel da leitura nos primeiros anos escolares Janice Aquini PUCRS O que faz a criança considerar o livro como um brinquedo, nos seus primeiros anos de escola, e deixar de valorizá-lo, à medida que vai avançando o seu grau de escolaridade? O motivo pelo qual escrevo este artigo é a necessidade premente em que alguns professores de literatura se encontram, enquanto educadores, de uma metodologia mais adequada aos interesses dos alunos. Essa questão é de uma real importância, pois visa a uma reflexão maior sobre os valores dados ao livro, enquanto objeto lúdico, trabalhado nas séries iniciais, em comparação com a maneira pela qual o livro chega às mãos dos alunos, nas séries subsequentes. Muitas vezes, uma criança pequena, ao ver seus pais lendo jornais, livros ou revistas, quer usá-los também, como se fossem brinquedos. Além de querer imitar os adultos nessa brincadeira, ela anseia em poder segurar e em fazer experiências com esses objetos, pois eles fazem parte de sua vida diária. Além do mais, são nas experiências diárias da criança que repousam as origens da curiosidade. As crianças, ao brincar, manifestam tudo o que lhes causou profunda impressão. É por meio do brinquedo que as crianças mostram seus sentimentos, suas experiências de vida e sua visão de mundo. Para a criança, o livro é visto como um brinquedo com o qual ela observa, investiga, experimenta e imita, fazendo reconstruções internas, e não simplesmente copiando e realizando repetições mecânicas. O momento em que a criança está totalmente absorvida pelo seu livrobrinquedo é um momento muito especial, um momento mágico e precioso, no qual ela está exercitando uma capacidade da maior importância, da qual dependerá sua eficiência profissional quando for adulto, que é a capacidade de observar e de manter a atenção concentrada. Além do mais, a participação do adulto pode enriquecer e dar prestígio a essa brincadeira ; sua criatividade pode estimular o processo criativo da criança; e sua paciência e serenidade poderão estimular a capacidade do
infante de observação e concentração. Ler juntos reforça os laços afetivos e, geralmente, as crianças gostam quando um adulto lê com ou para elas, pois sentem que esse jogo, assim, se torna mais valorizado. Assim sendo, a criança, tendo o devido estímulo à literatura, pode dar vazão aos seus sonhos, a sua imaginação e à criatividade, ressignificando papéis sociais, valores e costumes. Enfim, sentindo a vida como ela é e como desejaria que fosse. Para que esses estímulos continuem, ao longo da vida do aluno, a escola deve produzir um ensino eficaz de leitura, tentando cumprir certos requisitos, tais como: dispor de uma biblioteca bem aparelhada, na área da literatura; professores com boa fundamentação teórica e metodológica e programas de ensino que valorizem a literatura. Segundo Ezequiel Theodoro da Silva (1983), se isso não acontecer, os objetos de leitura passam por um processo de obscurecimento intencional, e as circunstâncias que deveriam promover o livro tornam-se cada vez mais drásticas, fazendo com que o acesso fique mais difícil. O primeiro passo para a formação do hábito de leitura é a oferta de livros próximos à realidade do leitor, que levantem questões significativas para ele. A familiaridade do leitor com a obra gera predisposição para leitura e o consequente desencadeamento do ato de ler. A literatura pode dar prazer porque tem seu fim em si mesma, isto é, funciona como um jogo em torno da linguagem, das idéias e das formas, não devendo estar subordinada a um objetivo prático imediato. O que constatamos em algumas escolas, no entanto, é o considerável despreparo de alguns professores quanto à abordagem da obra literária, o que pode levar o aluno a um total desinteresse pelo livro. Uma leitura descompromissada, livre e estimulante à imaginação e à criatividade ou ao senso crítico, não é enfatizada. A cada leitura, os alunos precisam responder as atividades de gramática e redação, sem qualquer relação com o caráter artístico de um texto literário. Os professores não oferecem atividades, nem utilizam recursos que permitam a expansão dos conhecimentos dos alunos, das suas habilidades intelectuais, da sua criatividade ou da sua tomada de posição. Com isso, a livre discussão e o debate são esquecidos. Aulas expositivas e exercícios escritos e 2
orais de interpretação são praticados pela maioria dos professores, o que também promove a falta de incentivo e de motivação dos alunos para a leitura. Esses profissionais valem-se, muitas vezes, de atividades repetitivas, com total obrigatoriedade, satisfazendo-se com a simples leitura dos textos solicitados por meio das fichas de leitura ; isso faz com que a criança ou o jovem perca completamente o prazer pela atividade proposta, pois a cobrança do texto solicitado é extremamente notória. Segundo Bordini e Aguiar (1988), um modelo de aula de literatura, em algumas escolas brasileiras, poderia ser descrito como uma sequência de atividades mais ou menos estáticas: apresentação de um texto, explicação do vocabulário, exercícios de interpretação, exercícios gramaticais e composição. Para que isso seja evitado, devemos levar em consideração que a literatura pode aproximar-se das atividades lúdicas em geral, tendo como uma de suas finalidades provocar a emoção e a diversão do leitor, sem oferecer-lhe vantagens materiais. De acordo com as autoras citadas (1988), mesmo sem obrigatoriedade, o jogo não é, entretanto, um ato incontrolado, mas estruturado a partir de regras às quais o indivíduo deve se submeter. A literatura também tem esse mesmo caráter, uma vez que, ao elaborar a sua obra, o autor institui normas e regras de composição, fornecendo indicadores de leitura, o quais o leitor segue com o criador. Ainda, segundo as autoras supracitadas, podemos ter o exemplo de uma aula, nas séries iniciais, em que o conteúdo é brincadeiras com linguagem e o objetivo é proporcionar à criança possibilidades de desenvolver seu potencial lingüístico. Por exemplo: o professor, através de observação do comportamento verbal da turma, em várias ocasiões, percebe que as crianças (ou algumas delas) têm dificuldade em reproduzir histórias e criar novas situações a partir das narrativas lidas. Para conscientizar os alunos dessa carência, o professor propõe uma brincadeira intitulada: Quem quiser que conte outra. Ele conta uma história omitindo o final e pede que os alunos a reproduzam oralmente, inventando um desfecho. Depois disso, retoma a história, levando-os a relatar os fatos principais com base nas ilustrações, e lê o final. A seguir, discute com a turma quais as diferenças entre as versões dos alunos e a conclusão original. 3
O professor sugere, então, uma atividade que os leve a inventar histórias, a partir do título da narrativa lida, no qual os alunos criarão novos personagens, com novos diálogos, em novos cenários. Fica combinado que, no fim do trabalho, cada aluno deverá contar uma história e representá-la, se assim desejar, através de outras linguagens: mímica, modelagem, desenho, construção com sucata, pintura, música, teatro, história em quadrinhos, cineminha etc. Podemos citar algumas possibilidades de leitura para essa atividade: Um avião e uma viola, O domador de monstros, Uma boa cantoria etc. Já em uma aula com alunos de séries mais avançadas podemos utilizar, entre outras obras, Um inimigo do povo, de Henrik Ibsen; O santo inquérito, de Dias Gomes e, ainda, A vida de Joana d Arc, de Érico Veríssimo, também com o objetivo principal de proporcionar ao estudante oportunidades de desenvolver seu potencial lingüístico. O professor aproveita, para debate em sala de aula, situações escolares em que tenha ocorrido impedimento de os alunos expressarem seu descontentamento com alguma norma ou ordem estabelecida. O debate é dirigido no sentido de permitir aos alunos que exteriorizem suas opiniões e busquem formas de encaminhar suas reivindicações. O professor apresenta as obras citadas e divide a turma em três grandes grupos e cada grupo é responsável por uma obra literária. A turma organiza um roteiro, podendo ser orientado pelo professor ou não. Os seguintes itens são importantes: 1) Personagens perseguidores e personagens perseguidos. 2) Razões histórico-sociais da perseguição. 3) Conflitos estabelecidos entre os dois grupos de personagens. 4) Formas de solução dos conflitos. 5) Tomada de posição do leitor. A atividade seguinte consiste na organização de um painel constituído por um representante de cada grupo, que fará uma exposição dos resultados obtidos. Dado o resultado do painel, os alunos partem para a ponderação das atitudes individuais dos heróis e vilões de cada história, tentando situá-las 4
como situações sociais conflitantes. Essa apreciação poderá ser efetuada sob forma de um júri simulado ou por ataque/defesa, como em certas entrevistas de televisão. Os três grandes grupos se subdividem em acusadores e defensores e, a, partir da releitura de seus respectivos textos, levantam evidências para sustentar as afirmações da acusação e da defesa. Nesse último exemplo, percebemos que há a possibilidade de trabalhar a literatura com alunos em idade escolar mais avançada, e não somente nas classes iniciais, em que o resgate do jogo simbólico se faz presente. Também notamos que os professores não mais precisam lançar mão das fichas de leitura. Pois, como no exemplo acima, quando existe representação de uma determinada situação, a imaginação é desafiada pela busca de soluções para os problemas criados pela vivência dos papéis assumidos. E as situações imaginárias estimulam a inteligência e desenvolvem a criatividade. A partir dessa reflexão, podemos detectar os problemas que alguns professores de literatura enfrentam, quando são desprovidos de uma orientação metodológica, fazendo com que o trabalho educativo culmine num ensino caótico e ineficiente. A aplicação passiva de qualquer método, sem levar em conta as condições circunstanciais da sala de aula, burocratizam o ensino, determinando sua perda de significado perante os alunos. A adoção de um método pedagógico supõe que foi feita uma opção por uma linha filosófica de educação. Essa escolha determina todo o processo de ensino-aprendizagem, orientando-o para um tipo de aluno que se quer formar. As atividades a serem propostas em sala de aula devem simular a característica do fenômeno literário, que inclui o prazer do texto, reafirmando a dimensão lúdica do ato de ler. É nesse sentido que os métodos têm como mola propulsora os interesses dos alunos, porque só há motivação para a leitura quando essa corresponde a uma necessidade interna, que deve ser satisfeita e desafiada. 5
Referências AGUIAR, Vera Teixeira & BORDINI, Maria da Glória. A formação do leitor. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988. GOMES, Dias. O santo inquérito. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966. IBSEN, Henrik. Um inimigo do povo. Rio de Janeiro: Globo, 1984. MACHADO, Ana Maria. Um avião e uma viola. São Paulo: Melhoramentos, 1982. SILVA, Ezequiel T. da. Leitura e realidade brasileira. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983. VERÍSSIMO, Érico. A vida de Joana d Arc. Porto Alegre: Globo, 1978. 6