USO DO FLÚOR E CONTROLE DA CÁRIE COMO DOENÇA



Documentos relacionados
Como a palavra mesmo sugere, osteointegração é fazer parte de, ou harmônico com os tecidos biológicos.

PREFEITURA MUNICIPAL DE BOM DESPACHO-MG PROCESSO SELETIVO SIMPLIFICADO - EDITAL 001/2009 CARGO: ODONTÓLOGO CADERNO DE PROVAS

EDUCAÇÃO AMBIENTAL & SAÚDE: ABORDANDO O TEMA RECICLAGEM NO CONTEXTO ESCOLAR

3 Alguns fatores estão diretamente relacionados e influenciam o meio ambiente. São fatores físicos, biológicos, mecânicos e químicos.

Recomendada. A coleção apresenta eficiência e adequação. Ciências adequados a cada faixa etária, além de

Teste seus conhecimentos: Caça-Palavras

5 Discussão dos Resultados

PALAVRAS CHAVE: Promoção de saúde, paciente infantil, extensão

ADMINISTRAÇÃO GERAL MOTIVAÇÃO

COMISSÃO DE SEGURIDADE SOCIAL E FAMÍLIA VOTO EM SEPARADO

Profa. Maria Fernanda - Química nandacampos.mendonc@gmail.com

Eventos independentes

CAPÍTULO 25 COERÊNCIA REGULATÓRIA

Capítulo 2 Objetivos e benefícios de um Sistema de Informação

PALAVRAS-CHAVE Bioquímica, aula prática, efeito do ph, hidroxiapatita.

INTRODUÇÃO. Diabetes & você

Energia Elétrica: Previsão da Carga dos Sistemas Interligados 2 a Revisão Quadrimestral de 2004

NECESSIDADES NUTRICIONAIS DO EXERCÍCIO

FILOSOFIA SEM FILÓSOFOS: ANÁLISE DE CONCEITOS COMO MÉTODO E CONTEÚDO PARA O ENSINO MÉDIO 1. Introdução. Daniel+Durante+Pereira+Alves+

1 Introdução. futuras, que são as relevantes para descontar os fluxos de caixa.

AULA 6 Esquemas Elétricos Básicos das Subestações Elétricas

EMPRESAS CONTRATADAS Como manter com elas um relacionamento efetivo

5 Considerações finais

São Paulo/SP - Planejamento urbano deve levar em conta o morador da rua

O EMPREGO DOMÉSTICO. Boletim especial sobre o mercado de trabalho feminino na Região Metropolitana de São Paulo. Abril 2007

Um sistema bem dimensionado permite poupar, em média, 70% a 80% da energia necessária para o aquecimento de água que usamos em casa.

3 Metodologia 3.1. Tipo de pesquisa

RELATÓRIO. Participantes

ELABORAÇÃO DE PROJETOS

A EDUCAÇÃO PARA A EMANCIPAÇÃO NA CONTEMPORANEIDADE: UM DIÁLOGO NAS VOZES DE ADORNO, KANT E MÉSZÁROS

Análise de Conjuntura

TÓPICO ESPECIAL DE CONTABILIDADE: IR DIFERIDO

Gráfico 1 Jovens matriculados no ProJovem Urbano - Edição Fatia 3;

Gerenciamento de Projetos Modulo VIII Riscos

A necessidade do profissional em projetos de recuperação de áreas degradadas

POR QUE FAZER ENGENHARIA FÍSICA NO BRASIL? QUEM ESTÁ CURSANDO ENGENHARIA FÍSICA NA UFSCAR?

ipea políticas sociais acompanhamento e análise 7 ago GASTOS SOCIAIS: FOCALIZAR VERSUS UNIVERSALIZAR José Márcio Camargo*

O QUE É A ESCALA RICHTER? (OU COMO SE MEDE UM TERREMOTO)

Dentre os temas apresentados para serem trabalhados nos Atendimentos Volantes Coletivos destacamos os que seguem:

Disciplina Corpo Humano e Saúde: Uma Visão Integrada - Módulo 3

ADMINISTRAÇÃO I. Família Pai, mãe, filhos. Criar condições para a perpetuação da espécie

Fundamentos de Teste de Software

Módulo 8 Estudos de Caso 5 e 6

Implantes Dentários. Qualquer paciente pode receber implantes?

Seguro-Saúde. Guia para Consulta Rápida

A Meta-Analytic Review of Psychosocial Interventions for Substance Use Disorders

MEMÓRIA E RECOMENDAÇÃO DA REUNIÃO SOBRE CIÊNCIA E ENGENHARIA DE MATERIAIS.

O modelo lógico para um protocolo de atendimento à gestante. Gabriele dos Anjos e Isabel Rückert - FEE

O TRATAMENTO PROFISSIONAL DA HIPERSENSIBILIDADE.

Processo de Pesquisa Científica

Mudanças Socioespaciais em um Mundo Globalizado

ESTUDO DA FARMACOLOGIA Introdução - Parte II

A GESTÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS MUNICIPAIS: UMA ANÁLISE DAS PROPOSTAS PEDAGÓGICAS WIGGERS, Verena. UFSC/ PUC GT: Educação de Crianças de 0 a 6 anos /

TESTES RÁPIDOS: CONSIDERAÇÕES GERAIS PARA SEU USO COM ÊNFASE NA INDICAÇÃO DE TERAPIA ANTI-RETROVIRAL EM SITUAÇÕES DE EMERGÊNCIA

IFRS TESTE DE RECUPERABILIDADE CPC 01 / IAS 36

1. Introdução. 1.1 Contextualização do problema e questão-problema

Vida saudável. Dicas e possibilidades nos dias de hoje.

INVESTIMENTO A LONGO PRAZO 1. Princípios de Fluxo de Caixa para Orçamento de Capital

Indicamos inicialmente os números de cada item do questionário e, em seguida, apresentamos os dados com os comentários dos alunos.

FONTES E FORMAS DE ENERGIA

Política monetária e senhoriagem: depósitos compulsórios na economia brasileira recente

Aula 17 Projetos de Melhorias

Pedagogia Estácio FAMAP

Aula 2 Revisão 1. Ciclo de Vida. Processo de Desenvolvimento de SW. Processo de Desenvolvimento de SW. Processo de Desenvolvimento de SW

Docente: Willen Ferreira Lobato

Denise Fernandes CARETTA Prefeitura Municipal de Taubaté Denise RAMOS Colégio COTET

Confira as respostas às principais dúvidas sobre o PIDV PORTAL PETROS

Mostra de Projetos 2011

5 EDI - As montadores e suas distribuidoras

4 Metodologia e estratégia de abordagem

1. O papel da Educação no SUS

A Propaganda de Medicamentos no Brasil

3 Qualidade de Software

JOGOS ELETRÔNICOS CONTRIBUINDO NO ENSINO APRENDIZAGEM DE CONCEITOS MATEMÁTICOS NAS SÉRIES INICIAIS

JORNALZINHO DA SAÚDE

Organização em Enfermagem

Higiene bucodental. Professora Monica Zeni Refosoco Odontologia UNOCHAPECÓ

Curso: Diagnóstico Comunitário Participativo.

TÉCNICAS DE PROMOÇÃO E PREVENÇÃO DA CÁRIE DENTÁRIA EM CRIANÇAS

Categorias Temas Significados Propostos

Equilíbrio Químico. PROF. NÚRIA Kc, Kp, Ka, Ki, Kb E ph

5 CONCLUSÃO Resumo

função de produção côncava. 1 É importante lembrar que este resultado é condicional ao fato das empresas apresentarem uma

APRESENTAÇÃO DO PROJETO GEO CIDADES

APOSTILA AULA 2 ENTENDENDO OS SINTOMAS DO DIABETES

PROJETO DE LEI Nº, DE 2006 (Do Sr. Ricardo Santos e outros) O Congresso Nacional decreta:

OS CANAIS DE PARTICIPAÇÃO NA GESTÃO DEMOCRÁTICA DO ENSINO PÚBLICO PÓS LDB 9394/96: COLEGIADO ESCOLAR E PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO

Desigualdade Entre Escolas Públicas no Brasil: Um Olhar Inicial

O que é Programa Rio: Trabalho e Empreendedorismo da Mulher? Quais suas estratégias e ações? Quantas instituições participam da iniciativa?

Estratégias adotadas pelas empresas para motivar seus funcionários e suas conseqüências no ambiente produtivo

... que o nervo do dente é chamado Polpa e é responsável pela nutrição e sensibilidade dental?

TERMO DE REFERÊNCIA PARA A AUDITORIA DE DEMONSTRAÇÕES FINANCEIRAS DO PRODAF

Por que sua organização deve implementar a ABR - Auditoria Baseada em Riscos

SINCOR-SP 2015 NOVEMBRO 2015 CARTA DE CONJUNTURA DO SETOR DE SEGUROS

5 Considerações finais

Eixo Temático ET Gestão de Resíduos Sólidos VANTAGENS DA LOGÍSTICA REVERSA NOS EQUIPAMENTOS ELETRÔNICOS

CURSO: Desenvolvimento Web e Comércio Eletrônico DISCIPLINA: Gestão da Qualidade Professor: Ricardo Henrique

SEQUÊNCIA DIDÁTICA: ORALIDADE

SIGNIFICADOS ATRIBUÍDOS ÀS AÇÕES DE FORMAÇÃO CONTINUADA DA REDE MUNICIPAL DE ENSINO DO RECIFE/PE

Transcrição:

2 USO DO FLÚOR E CONTROLE DA CÁRIE COMO DOENÇA Jaime Aparecido Cury INTRODUÇÃO A Odontologia passou por grandes mudanças conceituais no século XX. Entre elas, uma das mais significativas em termos de saúde foi o entendimento da cárie dental como doença, seu tratamento e prevenção. Sendo o desenvolvimento da cárie dental decorrente do acúmulo de bactérias sobre os dentes e da ingestão freqüente de açúcar, as medidas primárias para o seu controle seriam a desorganização periódica da placa dental bacteriana e a disciplina no consumo de carboidratos fermentáveis. Entretanto, a medida de maior impacto para o controle do desenvolvimento da cárie tem sido o uso de flúor. 1 * Embora seu uso isolado não impeça o desenvolvimento da cárie, apenas reduza a sua progressão, o declínio mundial da manifestação desta doença tem sido atribuído ao uso abrangente de uma ou mais formas de utilização do flúor. Em acréscimo ao efeito relevante, porém limitado, do benefício do uso isolado de flúor, um aumento da prevalência de fluorose dental tem geralmente sido observado concomitante com a redução de cárie atualmente constatada. Logo, considerando o presente e as perspectivas quanto ao século XXI, os desafios deste capítulo são: Devemos continuar usando flúor da mesma forma que fazíamos há pouco tempo no passado? Considerando que o uso isolado de flúor só reduz a cárie dental, quais associações devem ser feitas com outras medidas preventivas (controle mecânico e/ou químico da placa e da dieta) para impedir a cárie primária ou evitar a cárie secundária? Como o flúor deve ser utilizado sem preocupações com a fluorose dental? Quais são as implicações clínicas na forma de usar flúor, considerando o seu mecanismo de ação, o atual declínio da cárie e o aumento da prevalência de fluorose dental? Para abordar estes aspectos, e por questão didática, este capítulo foi dividido em tópicos, os quais, embora não tenham como objetivo esgotar o assunto, estão em uma seqüência buscando coerência de informações. COMPOSIÇÃO QUÍMICA DO ESMALTE DENTINA E IMPLICAÇÕES CLÍNICAS Durante muito tempo, o enfoque foi a composição química do esmalte; em função de ser esta a estrutura dental que primeiro se expõe na cavidade bucal, ficando sujeita às variações do meio ambiente. Atualmente, com as perspectivas de controle de cárie de esmalte e com o aumento da expectativa de vida das populações, o fenômeno de retração gengival expõe a dentina radicular, que passa a merecer considerações em termos do seu comportamento no meio bucal. Tanto o esmalte como a dentina são compostos de minerais à base de apatita (sais contendo cálcio e fosfato), os quais são extremamente dinâmicos, quer seja quando do desenvolvimento dental como após a erupção. Assim, durante muito tempo o conceito que persistiu foi a estratégia de tentar melhorar a estrutura cristalina dos dentes para torná-los mais resistentes aos desafios do meio ambiente e, por conseguinte, à cárie dental. Durante a mineralização dos dentes, duas substâncias, flúor e carbonato, entram naturalmente na estrutura dental. Estas substâncias, por suas propriedades antagônicas, ainda despertam a atenção dos pesquisadores na tentativa de tornar o dente mais resistente à cárie dental. Com relação ao flúor, por muito tempo predominou o conceito de que incorporando-se ao dente formaria fluorapatita (FA), a qual sendo menos solúvel que a hidroxiapatita (HA), não só explicaria a menor ocorrên- *Termo genérico para definir as formas químicas iônica (fluoreto ou íon flúor), ionizável (mineralizada, na forma de MFP) e nãoionizável (ligado covalentemente) do elemento flúor.

34 Odontologia Restauradora Fundamentos e Possibilidades cia de cárie quando da ingestão de água fluoretada, como justificaria o uso de flúor sistêmico (suplementos, p.ex., medicamentos fluoretados). Na realidade, quando se ingere flúor durante a formação dos dentes, não se forma FA, mas incorpora-se uma quantidade de flúor correspondente a aproximadamente apenas 10% de substituição de HA por FA. Esta concentração de flúor (Tabela 2-1) não torna o esmalte mais resistente aos ácidos produzidos pelas bactérias, pois para ficar menos solúvel seriam necessários 30.000 ppm de F. Dessa forma, considerando-se que no esmalte de quem ingere flúor não se forma FA e sim apatita fluoretada (AF), a necessidade de considerar a ingestão de flúor como indispensável para controlar a cárie deveria ser questionada. Isto será abordado nos próximos tópicos deste capítulo com relação à indicação de flúor sistêmico. Enquanto o flúor incorporado ao dente poderia, a princípio, contribuir para uma maior resistência ao desenvolvimento de cárie, o carbonato tem propriedades antagônicas. Assim, ele participa da composição química dos dentes formando apatita carbonatada. Esta, sendo mais solúvel aos ácidos que a HA (ou AF) explicaria por que a cárie se desenvolve mais rapidamente na dentina que no esmalte, devido à dissolução destes minerais mais solúveis. A concentração maior de carbonato no esmalte dos dentes decíduos que no dos permanentes também seria a melhor explicação do porquê há uma progressão mais rápida da cárie nos primeiros. Por outro lado, isto não implica dizer que a cárie não pode ser controlada em dentina ou nos decíduos. Em adição, a concentração de carbonato é alta no dente recém-erupcionado, sendo que o desenvolvimento da cárie se inicia através da dissolução deste mineral. Deste modo, menor concentração de carbonato deveria ser desejável, e isto tem sido observado quando da mineralização do esmalte na presença de flúor. Assim, se existe algum efeito sistêmico devido ao flúor ingerido, isto poderia ser atribuído mais a uma diminuição de carbonato do que à quantidade de AF no dente. Entretanto, isto também ocorreria independentemente da ingestão de flúor. Deste modo, quando é feita uma aplicação tópica de flúor profissional em um dente recém-erupcionado, ou na dentina logo após uma raspagem radicular, há uma dissolução da apatita carbonatada com reestruturação mineral do dente. O mesmo ocorreria quando do uso regular de dentifrício fluoretado. Ainda com relação à composição química dos dentes e particularmente do esmalte, deve ser enfatizado que este, embora sendo extremamente duro, é um sólido poroso. Essa porosidade é devida a água e proteínas do esmalte, permitindo que essa estrutura calcificada seja permeável e troque matéria com o meio ambiente. Essa porosidade pode ser aumentada se houver no esmalte uma maior concentração de proteínas. Assim, quando o flúor é ingerido, durante a amelogênese haverá menor reabsorção de proteínas, formando um esmalte mais poroso, refletindo-se em opacidade que caracteriza a fluorose dental. Embora o esmalte mais poroso devido à ingestão de flúor não seja necessariamente mais suscetível à cárie, dados atuais sugerem que defeitos de formação do esmalte por outras causas podem explicar uma maior atividade ou risco à doença. Outro aspecto básico da composição orgânica protéica do esmalte, que merece breve comentário, é com relação às tentativas de remineralizar um esmalte que perdeu mineral pelo processo de cárie. Durante o chamado tratamento de manchas brancas, a estratégia tem sido permeabilizar com ácido a zona superficial da lesão de cárie. Por outro lado, um dente com lesão de mancha branca apresenta dissolução de minerais no corpo da lesão com exposição das proteínas. Estas, por inibirem crescimento de cristal, poderiam ser uma das explicações do insucesso dos procedimentos clínicos utilizados. Sem entrar no mérito da maior importância de se controlar a doença ao invés de tratar seus sinais, parece ser mais racional remover as proteínas do interior do esmalte do que furar sua superfície com ácido. Deve ser enfatizado que, independentemente do procedimento utilizado, ao se tentar tratar isoladamente uma mancha branca é cometido o mesmo erro do passado, quando se acreditava que restaurando um dente se estaria curando o paciente da doença cárie. Deste modo, embora a composição química do dente seja importante, o seu comportamento vai depender de fatores do meio ambiente bucal. FÍSICO-QUÍMICA DO ESMALTE DENTINA SALIVA E IMPLICAÇÕES CLÍNICAS Quando um dente erupciona, ou quando há exposição radicular, as estruturas minerais do esmalte e/ou dentina ficam sujeitas às variações do meio ambiente Tabela 2-1 Concentração de flúor no esmalte em função da distância da superfície dental. Flúor no esmalte Distância da superfície Estudos (ppm) (µm) 600,0 10,0 CURY & USBERTI, 1982 1020,0 5,5 CURY et al., 1985 1801,0 2,7 ROSALEN & CURY, 1991

Uso do Flúor e Controle da Cárie como Doença 35 bucal. A saliva, por apresentar cálcio e fosfato os principais minerais componentes da estrutura cristalina dos dentes, protege naturalmente tanto o esmalte como a dentina. Por outro lado, essa propriedade biológica da saliva é dependente do ph. Assim, variações de ph devido a produtos da dieta ou da conversão de açúcar em ácido pela placa dental determinarão o limite da capacidade da saliva de proteger os dentes. Neste aspecto, a dentina é muito mais sensível às variações de ph que o esmalte, considerando sua composição e pelo fato de que ela naturalmente deveria estar em contato com o fluido tecidual e não com a saliva. Assim, o conceito de ph crítico tem sido estabelecido em Odontologia para definir quando a saliva não tem mais capacidade de proteger a estrutura mineral dos dentes. Por outro lado, considerando-se que nos dias atuais as pessoas estão expostas ao flúor, seja pela ingestão de água e/ou pelo uso de dentifrícios fluoretados, a presença constante de flúor na saliva muda suas propriedades físico-químicas com relação ao chamado ph crítico de dissolução do dente. A Tabela 2-2 sintetiza essas relações entre ph do meio, presença ou ausência de flúor na saliva, efeito na estrutura mineral dos dentes e conseqüências clínicas para o esmalte e/ou dentina. O primeiro aspecto relevante da tabela, tendo em vista as implicações clínicas, é que o ph crítico para o esmalte é diferente do da dentina. Assim, enquanto a saliva consegue proteger o esmalte até que o ph não seja inferior a 5,5, a dentina é mais sensível e não resiste a um ph inferior a 6,5. Isto é relevante quando se discute cariogenicidade de alimentos, considerando o chamado ph mínimo atingido na placa dental. Desse modo, produtos que a princípio não são considerados cariogênicos para o esmalte, por não atingir ph inferior ao crítico, podem ser cariogênicos para a dentina radicular. Assim, o clínico deve estar preparado para orientar a dieta de adultos envolvendo desde produtos amiláceos até o uso de adoçantes em pó contendo lactose. O segundo aspecto que deve ser enfatizado na Tabela 2-2, é que o ph crítico não é o mesmo quando da presença de flúor. Assim, quando água fluoretada é ingerida continuamente ou dentifrício fluoretado é usado regularmente, só será crítico para o esmalte um ph inferior a 4,5. Deste modo, há uma faixa de segurança entre ph 4,5 e 5,5, na qual o flúor exerce um dos seus efeitos para controlar o desenvolvimento da cárie dental. Na sua ausência, e quando de um ph menor que 5,5, porém maior que 4,5, haverá dissolução de minerais do esmalte. Embora na presença de flúor a dissolução de minerais tipo HA ou AF não seja evitada, uma certa quantidade de cálcio e fosfato é simultaneamente reposta para o esmalte na forma de FA. Assim, o resultado da simples presença de flúor no meio ambiente bucal será uma redução de perda de minerais, interferindo diretamente com a desmineralização do esmalte. Este conhecimento tem uma série de implicações clínicas. A primeira delas é quanto à margem de segurança entre ph 4,5 5,5, ilustrada na Fig. 2-1. Embora isto seja um fator físico-químico, não se deve supor que o uso de flúor possa compensar qualquer consumo de açúcar. Tendo em vista que o flúor não impede a perda de mineral, mas a reduz de maneira significativa, a ausência total de cárie seria mais bem explicada quando simultaneamente ao uso de flúor, e seguida uma disciplina de consumo de açúcar. A segunda seria o fato de que nesta reestruturação de mineral com troca de HA por FA, a deposição ocorre basicamente na superfície dental. Isto explicaria a ocorrência de uma lesão subsuperficial e a posterior resistência à progressão da cárie. A terceira implicação clínica é que o uso de flúor leva a uma redução significativa da perda de mineral, que pode manter-se num estágio subclínico ou se manifestar como lesão de mancha branca de Tabela 2-2 ph do meio, presença ou ausência de flúor, efeitos físico-químicos e conseqüências para a estrutura dental. Efeito Físico-Químico Conseqüências para ph Flúor no Dissolução de Dissolução Formação Dissolução meio minerais mais de de de Esmalte Dentina solúveis* HA e AF FA FA 7,0 Não Não Não Não Não Re Re 7,0 Sim Não Não Sim Não Re+ Re+ <6,5>5,5 Não Sim Não Não Não Re Des <6,5>5,5 Sim Sim Não Sim Não Re+ Des - <5,5>4,5 Não Sim Sim Não Não Des Des+ <5,5>4,5 Sim Sim Sim Sim Não Des Des <4,5 Indiferente Sim Sim Não Sim Cárie aguda/erosão *Apatita carbonatada e fosfato de cálcio amorfo; Re = Remineralização; Re+ = Remineralização ativada; Des = Desmineralização; Des = Desmineralização reduzida; Des+ = Desmineralização aumentada.

36 Odontologia Restauradora Fundamentos e Possibilidades FORMAÇÃO DA PLACA DENTAL CARIOGÊNICA E SUAS IMPLICAÇÕES CLÍNICAS Fig. 2-1 Quedas de ph na placa dental em função do tempo após a exposição ao açúcar. Valores não-críticos (a); valores críticos quando da ausência de flúor (b); valores não-críticos quando da presença de flúor (c); valores críticos mesmo na presença de flúor (d). cárie paralisada. Como isto pode ter reflexos clínicos do ponto de vista estético, estratégias de associação de flúor com controle químico de placa dental são recomendadas em determinadas situações de risco de cárie. Outro aspecto relevante da Tabela 2-2 diz respeito à ação remineralizante da saliva. Quando o ph está acima de 5,5 ou 6,5, respectivamente com relação ao esmalte ou à dentina, a saliva tenta repor minerais perdidos pelos dentes. Essa capacidade remineralizante da saliva é melhorada pelo aumento do fluxo salivar e é ativada pela presença de flúor. Assim, o flúor aumenta de 2 a 4 vezes a capacidade da saliva de repor minerais perdidos pelos dentes. Uma das implicações clínicas deste conhecimento é que, embora isto seja verdade, nem todo mineral perdido é reposto. Cabe aduzir que o flúor é mais eficiente para repor pequenas perdas de minerais do que para remineralizar manchas brancas. Deste modo, é mais importante controlar a progressão da cárie escovando os dentes regularmente com dentifrício fluoretado do que tentar curar o dente de uma mancha branca usando aplicação tópica de flúor profissional. Em conclusão, há um dinamismo entre a composição dos dentes, suas propriedades físico-químicas e o meio ambiente bucal. Os fatores que determinarão o que ocorrerá com a estrutura mineral dos dentes são as flutuações de ph e a presença ou não de flúor no meio. Por outro lado, as variações de ph relacionadas com a progressão da cárie dental dependem da formação de uma placa dental cariogênica e da conversão de carboidratos (açúcares) em ácidos. Na saliva humana convivem milhões de bactérias, e algumas delas escolheram a superfície dura dos dentes como seu hábitat. Desde os primórdios da humanidade, as bactérias sempre aderiram aos dentes formando placa dental. Entretanto, tudo mudou nesta relação entre as bactérias e o homem quando a sacarose (açúcar da cana e da beterraba) passou a ser industrializada e usada freqüentemente. As bactérias, particularmente as do grupo mutans, possuem enzimas chamadas genericamente de glicosiltransferases, as quais estão presentes na superfície bacteriana e na película adquirida do esmalte. A partir da sacarose, exclusivamente, essas enzimas produzem substâncias pegajosas (polissacarídeos insolúveis) que facilitam a aderência das bactérias, mesmo às superfícies lisas. Simultaneamente, a sacarose fornece energia para as bactérias se multiplicarem, ficando entre elas esses polissacarídeos extracelulares (PEC). Assim, a sacarose facilita a formação de placa, a qual sendo mais porosa devido a essa rede (matriz) de polissacarídeos, torna a placa dental mais cariogênica. Isto facilita a difusão de açúcares por essa matriz, levando a quedas mais acentuadas de ph na interface dente placa. Adicionalmente, a placa dental formada pela presença de sacarose tem menores concentrações inorgânicas de cálcio, fosfato e flúor. A Tabela 2-3 mostra a composição de placas dentais formadas na ausência de sacarose (Controle), na presença dos carboidratos componentes da sacarose (Glicose e Frutose) e quando da exposição à sacarose, 8 vezes por dia. A implicação clínica desta propriedade da sacarose está no fato de que sua presença pode tornar alimentos anticariogênicos em cariogênicos. Este é o caso do leite, que perde suas propriedades anticariogênicas quando é açucarado, devido a mudanças na estrutura da placa dental. Outra relevância clínica no uso da sacarose diz respeito a produtos amiláceos. Estes podem ser considerados de baixa cariogenicidade para a dentina e nãocariogênicos para o esmalte. Entretanto, quando a sacarose é usada ao mesmo tempo que o amido, o potencial cariogênico deste aumenta. Isto é relevante quando a sacarose passa a fazer parte de uma cultura dietética antes só à base de amido, mudando a qualidade da placa dental formada. Outro aspecto a considerar é que o uso de derivados de amido para engrossar o leite da mamadeira é muito comum. Se isto ocorrer simultaneamente com uma dieta rica em sacarose, esses produtos amiláceos poderão manifestar cariogenicidade mesmo para o esmalte. Outra relevância clínica da capacidade da sacarose de formar produtos implicados com a formação da placa dental, seria a pesquisa por substâncias que inibam a formação desses polissacarídeos insolúveis. Assim, a clo-

Uso do Flúor e Controle da Cárie como Doença 37 Tabela 2-3 Composição da placa dental em função dos tratamentos. Tratamentos* Análises Controle Glicose + frutose Sacarose Peso úmido (mg) 4,5a 7,3a 13,2b Flúor (µg/g) 140,6a 27,4b 5,6b Fósforo (mg/g) 11,5a 0,5b 0,3b Cálcio (mg/g) 17,0a 1,9b 0,6b PEC (mg/g) 6,5a 11,8a 35,0b *Médias seguidas por letras distintas diferem estatisticamente; polissacarídeo extracelular. rexidina reduz a formação de placa mesmo na presença de sacarose e ausência de escovação; mecanismo esse que pode estar relacionado com a inibição da síntese de produtos de aderência. Na pesquisa por produtos naturais, descobriu-se que o extrato de algumas variedades de própolis inibem as glicosiltransferases que formam glucanos insolúveis, o que é extremamente promissor em termos de desenvolvimento e cultura popular. Esta alteração qualitativa e quantitativa da placa dental formada na presença de sacarose foi confirmada clinicamente com relação à atividade de cárie, como mostra a Tabela 2-4. Observa-se que a maior atividade de cárie está associada com a menor concentração inorgânica de íons na placa dental e maior concentração de polissacarídeos extracelulares (PEC). Em acréscimo, a Tabela 2-4 também mostra um desequilíbrio microbiológico da placa dental com um aumento de bactérias do grupo mutans. Assim, considerando a cárie como doença infecciosa, quando indicadas, medidas como o controle químico e terapêutico da placa visando o restabelecimento do equilíbrio da microbiota deveriam fazer parte dos procedimentos clínicos. Em conclusão, a placa dental formada na presença de sacarose apresenta particularidades bioquímicas (ilustradas no Diagrama 2-1), de tal modo que uma queda não tão acentuada de ph pode ser crítica em termos de desenvolvimento da cárie dental. DINÂMICA DO DESENVOLVIMENTO DA CÁRIE DENTAL E IMPLICAÇÕES CLÍNICAS Os fatores responsáveis pelo desenvolvimento da cárie dental são: o acúmulo de bactérias sobre os dentes e a ingestão freqüente de açúcar, o que está ilustrado no Diagrama 2-2. Assim, toda vez que açúcar é ingerido, penetra na placa dental onde é convertido em ácido, provocando uma queda instantânea do ph. Como foi descrito no item 2, atingidos os ph críticos para esmalte ou dentina, estes perderão cálcio (Ca) e fosfato (P) sofrendo desmineralização. O ph permanece crítico por um tempo que varia de 20 minutos a horas, e então retorna ao normal. O tempo para haver a reversão do ph depende da forma como o açúcar é ingerido em que período do dia, sendo também relevante a ação da saliva. Assim, se o açúcar for ingerido na forma líquida, o ph volta ao normal mais rapidamente do que se alimentos sólidos forem consumidos. Isto é relevante com a mudança de hábitos alimentares, pois embora a população tenha conhecimento de que a cárie é decorrente do consumo de doces, biscoito recheado é sinônimo de alimento. Este, por ser retentivo é 45% mais cariogênica que açúcar puro. Do mesmo modo, o ph retorna ao normal mais rapidamente se o açúcar for ingerido logo após as refeições do que à noite, antes de dormir. Assim, a conseqüência da amamentação no- Tabela 2-4 Composição da placa dental e cárie na dentição decídua. Padrão de cárie* Análises Livre Oclusal "Mamadeira" ceod 0 2,4a 5,6b Flúor (µg/g) 58,2a 32,5b 6,2c Fósforo (mg/g) 6,1a 4,0b 2,6b Cálcio (mg/g) 10,6a 7,9a 3,3b PEC (mg/g) 39,2a 47,4b 55,6b Açúcar/dia 2,9a 3,9b 5,3c S.mutans-logUFC/mg 8,6a 11,3b 14,3b *Médias seguidas por letras distintas diferem estatisticamente; PEC = polissacarídeo extracelular.

38 Odontologia Restauradora Fundamentos e Possibilidades Sacarose Ácidos + PEC ph neutro Proteínas Alterações ambientais e da matriz da placa ph baixo + PEC S. oralis S. sanguis Porosidade Alterações ecológicas e da estrutura da placa ESM Lactobacillus sp. Porosidade Conc. inorgânica Remineralização Desmineralização aumentada Diagrama 2-1 Desequilíbrio ecológico bacteriano e alteração da matriz da placa dental quando da exposição à sacarose (modificado de Marsh, 1994). ESM = estreptococos do grupo mutans. PEC = polissacarídeos extracelulares. Diagrama 2-2 Dinâmica do desenvolvimento de cárie. Acúmulo de bactérias sobre os dentes (1); ingestão de açúcar (2); produção de ácido (3); quedas de ph (4) com perdas de minerais das estruturas dentais (4 a); retorno do ph a normalidade (5) para esmalte-dentina (6); remineralização (6 a); repetição do ciclo (7); manifestação da doença cárie (8). turna com leite açucarado é ainda um dos problemas de cárie precoce na infância que exige um enfoque multiprofissional. Nesse aspecto, deve ser ressaltada a importância da simples ação mecânica da saliva. Esta passa pelos dentes em diferentes velocidades, diluindo o açúcar e o ácido produzido, o que explicaria o fato de a cárie se manifestar de maneira localizada. Isto explicaria, por ex., por que a prevalência de cárie é maior nos dentes anteriores superiores que nos inferiores. De alguma forma, isto também contribuiria para o aumento da atividade de cárie em volta de braquetes ortodônticos ou de qualquer coisa que interfira com o livre movimento unidirecional da saliva (por ex., grampos protéticos). Deste modo, o clínico deve estar atento não só para diagnosticar a ocorrência de hipossalivação nos pacientes, como para remover fatores retentivos das superfícies dentais ou minimizar seu efeito com medidas individualizadas. De qualquer forma, como ilustrado no Diagrama 2-1, o ph retornando a valores acima de 5,5 ou 6,5, respectivamente, com relação a esmalte ou dentina, a saliva tentará a repor os minerais perdidos pelo dente, havendo sua remineralização. Entretanto, embora a saliva tenha esta propriedade, ela não é eficiente em 100%, e perdas líquidas de minerais vão ocorrendo progressivamente até atingir um estágio clínico visível. Os fatores responsáveis por este desequilíbrio de perda e ganho de minerais são o acúmulo de placa dental, a freqüência no consumo de açúcar e o uso ou não de flúor. Assim, a Fig. 2-2 mostra a perda progressiva de minerais em esmalte submetido à sacarose de 0 a 8 vezes por dia e a não remoção de placa dental por 28 dias. Perdas de translucidez do esmalte são claramente visíveis com o aumento da freqüência de exposição à sacarose. Por outro lado, as principais perdas de minerais são subsuperficiais e seccionando os blocos (Fig. 2-3), para ana-

Uso do Flúor e Controle da Cárie como Doença 39 Fig. 2-2 Lesão de cárie (mancha branca) em função da freqüência de exposição à sacarose (0 a 8 x/dia). 0 2x 4x 8x Fig. 2-3 Lesão de cárie quando da exposição à sacarose 8 vezes por dia. R = Resina de embutimento; S = Superfície do esmalte dental; L = Extensão da lesão subsuperficial; E = Esmalte íntegro. Tabela 2-5 Porcentagem de perda de mineral em função dos tratamentos. Tratamentos Perda de mineral* (%) Controle Sacarose 2 x/dia 5 Sacarose 4 x/dia 11 Sacarose 8 x/dia 41 *Em relação ao controle. lisar a extensão da lesão, constata-se um desequilíbrio significativo quando sacarose foi usada 8 vezes por dia (Tabela 2-5). Deve ser enfatizado que os voluntários desta pesquisa estavam bebendo água adequadamente fluoretada, mas a placa dental não foi sequer desorganizada nenhuma vez por dia. Assim, considerando a dinâmica do desenvolvimento da cárie, é possível sugerir que quando a sacarose for ingerida de 2 a 4 vezes por dia, na presença de flúor, a perda de mineral será pequena. Entretanto, quando da exposição à sacarose 8 vezes por dia e na presença de placa acumulada, o desequilíbrio é totalmente deslocado no sentido de perda de mineral. Assim, é fundamental interferir nos fatores que levam ao desenvolvimento da cárie, isto é, desorganizar regularmente a placa formada e reduzir o consumo de açúcar. Ainda no contexto de que a cárie é um processo dinâmico alternante de perdas e ganhos de minerais, deve ser resgatado o trabalho clássico de cárie experimental em humanos idealizado por von der Feher (1970). Os estudantes que interromperam a escovação dental por 23 dias e bochecharam sacarose 9 vezes por dia apresentaram no período lesões iniciais de cárie. Porém, quando retomaram a escovação e reduziram a exposição à sacarose, as lesões desapareceram. Na época, concluiuse que houve remineralização das lesões, a qual foi ativada pelo bochecho de flúor que os voluntários passaram a utilizar. Este estudo mostrou que a cárie é uma doença totalmente controlável e que interferindo-se nos fatores responsáveis pelo seu desenvolvimento, isto é, acúmulo de placa e alto consumo de açúcar, é possível inclusive reverter e/ou paralisar sua progressão. Assim, considerando-se que a manifestação clínica inicial da doença cárie é uma opacidade localizada em superfícies de acúmulo de placa dental, a probabilidade do seu controle estará na capacidade de o profissional fazer o diagnóstico mais precoce da manifestação da doença. Deste modo, o profissional poderá trabalhar no sentido da reparação e/ou paralisação da progressão da doença. Neste contexto, o flúor tem sido um aliado importante, não no sentido de tratamento de manchas brancas ou para impedir a iniciação da doença, mas pela sua capacidade de efetivamente interferir no seu desenvolvimento, reduzindo sua progressão. AÇÃO DO FLÚOR NO CONTROLE DA DOENÇA CÁRIE E IMPLICAÇÕES CLÍNICAS Atualmente, há um consenso de que o flúor importante é aquele mantido constante na cavidade bucal, o qual é capaz de interferir com a dinâmica do processo de cárie, reduzindo a quantidade de minerais perdidos quando do fenômeno da desmineralização e ativando a quantidade reposta quando da remineralização salivar.

40 Odontologia Restauradora Fundamentos e Possibilidades Diagrama 2-3 Efeito do flúor na dinâmica do desenvolvimento de cárie dental, reduzindo a progressão da doença. (Modificado de Patta, N.) Isto está ilustrado no Diagrama 2-3, o qual enfatiza o principal mecanismo de ação do flúor e as limitações do seu uso isolado. Assim, o flúor não é capaz de interferir nos fatores responsáveis pela doença, isto é, a formação de placa dental e a transformação de açúcares em ácido. A primeira relevância clínica deste conceito é que o flúor isoladamente não impede a doença cárie. Isto mostra a importância dos controles da placa dental e/ou dieta para que um efeito máximo seja obtido. Por outro lado, embora o flúor não impeça a iniciação da doença, ele é extremamente eficiente em reduzir sua progressão. Esta redução da manifestação da doença, em termos dos seus sinais, é um fenômeno essencialmente físico-químico. Quando o açúcar é convertido em ácidos pela placa dental, atinge-se ph crítico para a dissolução dos minerais à base de apatita, porém devido à presença de flúor, uma certa quantidade desses minerais é simultaneamente reposta na forma de fluorapatita. Isto ocorre porque em determinado ph, o meio é subsaturante (deficiente) em relação a um tipo de mineral (HA) que assim dissolve-se, porém sendo super-saturante (excesso) em relação a outro (FA) este forma-se. Em acréscimo, quando o ph retorna ao normal, a saliva naturalmente tenta repor os minerais perdidos pelo dente, sendo esta propriedade remineralizante ativada pela simples presença de flúor no meio (saliva, placa ou fluido do esmalte dentina). Como resultado do efeito do flúor reduzindo a desmineralização e ativando a remineralização, há uma perda líquida de mineral menor do que se não houvesse flúor presente. A segunda repercussão clínica deste efeito é que usando flúor, as pessoas poderão viver toda a vida com todos os dentes. Entretanto, seqüelas da doença cárie poderão ter ou não manifestação clínica. Assim, estas reduções significativas de perdas de minerais poderão ficar num estágio subclínico ou se manifestar como uma lesão de cárie paralisada (Fig. 2-4). Deste modo, o profissional deve estar preparado para fazer o diagnostico diferencial entre uma lesão de cárie ativa de uma inativa. Embora, a lesão inativa não exija intervenção, ela pode representar um problema estético dependendo da sua localização. Daí o uso de flúor estar associado ao controle dos fatores responsáveis pela doença. Cabe assinalar, por ex., que quando da deficiência ou ausência do controle mecânico da placa, há a opção do uso de substâncias antimicrobianas para o controle da doença. Por outro lado, a maior repercussão do conceito atual da ação do flúor está no questionamento que fazíamos até pouco tempo no passado: Flúor sistêmico ou tópico? Qual deles? Nesta linha de raciocínio, ilustrada no Diagrama 2-3, seria indiferente ingerir ou não flúor, pois o importante é manter quantidades pequenas e constantes de flúor na cavidade bucal. O uso de qual via e as associações mais adequadas a cada situação concreta, vão depender desde a indicação em termos de saúde pública até a necessidade em função de indicadores de atividade ou risco de cárie. Por uma questão didática, serão abordados em seqüência as vias ( métodos ) sistêmica e tópica de usar flúor, considerando os vários meios, benefício e segurança. A apresentação estará centrada no desafio atual relacionado a como obter uma exposição apropriada ao flúor, que garanta os benefícios de redução de cárie sem maiores preocupações com riscos. FLÚOR SISTÊMICO MEIOS DE USAR E BENEFÍCIOS Generalidades O termo sistêmico está relacionado ao fato de que o flúor ao ser ingerido e, circulando pelo organis-

Uso do Flúor e Controle da Cárie como Doença 41 Fig. 2-4 Lesão de cárie paralisada na proximal do molar decíduo, que cumpriu todo o seu ciclo biológico. mo, atingiria os dentes em formação, onde se incorporaria entrando na mineralização dos dentes através de um efeito pré-eruptivo. Por muito tempo se acreditou que este seria o mecanismo pelo qual, por ex., a água fluoretada reduziria a cárie dental. Atualmente, é reconhecido que a fluoretação da água é um dos meios de saúde pública para manter flúor constante na cavidade bucal. Assim, o flúor ingerido é absorvido pelo estômago, atinge o sangue e é distribuído para o organismo. Ele atinge tecidos mineralizados, onde se incorpora; porém, reciclado pelos tecidos moles, atinge, por ex., as glândulas salivares quando retorna para a cavidade bucal. Assim, para garantir o efeito do flúor sistêmico, este teria que ser utilizado durante toda a vida e não só até os 13 anos, como se acreditava. Cabe enfatizar que quando se interrompe a ingestão de flúor, o organismo não tem mecanismos para manter sua constância em qualquer dos seus compartimentos. Assim, quando da interrupção ou paralisação da agregação de flúor ao tratamento da água, a concentração de flúor na saliva não é mais mantida constante. Deste modo, como mostra a Tabela 2-6, houve um decréscimo da concentração de flúor na placa dental quando do episódio de paralisação da fluoretação da água. Porém, quando o flúor foi novamente agregado ao tratamento da água, a concentração na placa foi reposta devido à ingestão contínua e conseqüente manutenção da constância nos líquidos corporais. A implicação clínica atual desta observação é que se um indivíduo ou a população depende exclusivamente de flúor sistêmico para controlar a cárie dental, este deverá ser utilizado continuamente. Isto foi extremamente relevante até pouco tempo no passado, quando água fluoretada era a única forma abrangente de usar flúor. No presente, para algumas populações que usam dentifrício fluoretado, não tem sido constatada diminuição da concentração de flúor na placa dental quando é interrompida a agregação de flúor ao tratamento da água. Por outro lado, quando se analisa flúor na placa dental, deve ser muito bem esclarecida esta relação heterodoxa. Assim, na ausência de placa dental ou consumo de açúcar não há necessidade de flúor. Porém, quando do uso de flúor, e mesmo na presença de placa, ou resíduos desta, haverá redução de cárie. Isto se deve ao efeito do flúor ao nível da placa. Entretanto, em termos práticos, é fundamental não considerar a necessidade da existência de placa dental para que o flúor tenha ação. Nesta discussão polarizada, iniciada em 1981, de efeito sistêmico (necessidade de ingerir) versus tópico (uso local) do flúor, os que então defendiam exclusivamente a existência do primeiro já aceitam o segundo. Por outro lado, como continua sendo discutido um possível efeito sistêmico, especula-se que para indivíduos com alto risco de cárie, a ingestão de flúor poderia ainda ter algum significado. Assim, existem vários meios de usar flúor sistêmico, e sua indicação deveria diferenciar-se em termos de importância quanto a saúde coletiva ou uso individual. Meios de usar flúor sistêmico Água fluoretada Trata-se de um método de uso coletivo do flúor, consagrado no século XX como uma das principais medidas de saúde pública, em função do seu impacto em reduzir os níveis de cárie na população. A eficiência deste método foi comprovada em dezenas de países através de centenas de avaliações. Isto também se confirmou no Brasil, e a Tabela 2-7 mostra os resultados na redução da prevalência de cárie em escolares de quatro cidades, em função do tempo decorrido após o início da agregação de flúor ao tratamento da água, e tendo como indicador o índice CPOD aos 12 anos de idade. Tabela 2-6 Concentração de flúor na placa dental (ppm) em função das condições de fluoretação da água de Piracicaba, SP. Condições da fluoretação da água Flúor na placa dental (ppm)* Fluoretada (0,80 ppm) 21,7 Paralisada (0,06 ppm F) 1,7 Refluoretada (0,70 ppm) 17,3 *µg F/g de peso seco de placa.

42 Odontologia Restauradora Fundamentos e Possibilidades Tabela 2-7 Prevalência de cárie dental (CPOD) 12 em crianças de 12 anos de idade em função do tempo após a fluoretação da água, em municípios brasileiros selecionados. Ano Cidades H 2 OF* 71 75 77 80 81 89 92 93 94 95 96 97 Curitiba, PR 1958 10,1 6,0 3,5 2,2 1,8 Piracicaba, SP 1971 8,6 7,4 6,2 3,5 2,2 Paulínia, SP 1980 8,2 3,0 2,1 Santos, SP 1983 8,9 5,1 3,5 1,7 Basting et al., 1998; *Inicio da agregação de flúor ao tratamento da água. Os dados da Tabela 2-7, e de muitos outros estudos, mostram que a prevalência de cárie dental no Brasil era muito alta antes da fluoretação da água, e decresceu atingindo índices moderados no início da década de 90. Isto mostra a força do método que isoladamente reduziu em 50% a prevalência de cárie. Por outro lado, é possível constatar que após 1990, a redução foi mais rápida atingindo em 1995 valores de CPOD 12 similares aos encontrados nos países desenvolvidos. Isto pode ser visto de uma maneira mais clara na Fig. 2-5. Os dados dessa figura podem ser interpretados à luz do conhecimento atual do mecanismo de ação do flúor no controle da cárie como doença. Assim, o uso isolado de flúor pela água, de 1970 a 1990, foi capaz de reduzir em 50% a manifestação da doença. Entretanto, após 1990 ela se reduziu mais ainda, e isto obviamente não aconteceu porque as crianças de Piracicaba, passaram a beber mais água. O fato comum, observado também em outras cidades, foi a implantação de programas para o controle da doença. A educação para a saúde bucal com escovação com dentifrício fluoretado foi uma conquista do Sistema Único de Saúde (SUS), e os Municípios que tornaram isto possível podem orgulhar-se de ter hoje uma população infantil com dentes mais saudáveis. De acordo com análise feita por Capel et al. (1999), a combinação de fluoretação da água + dentifrícios fluoretados + programas também explicaria a redução de cárie em termos de Brasil. Por outro lado, ao mesmo tempo em que a desorganização regular da placa dental se somaria ao efeito do flúor, e tendo em vista que atualmente todos os dentifrícios são fluoretados, o impacto da fluoretação da água pode não ser o mesmo de há 20 anos. Assim, enquanto para alguns países a fluoretação da água é considerada um método dispensável, para outros, ela ainda é importante medida em termos de saúde pública. Deste modo, quando no passado se agregava flúor ao tratamento da água, reduções da prevalência de cárie da ordem de aproximadamente 50% eram constatadas. Atualmente, o efeito da fluoretação da água tem sido diluído por outras medidas para o controle da doença, e o impacto se reduziu para valores de 20% com tendência à decrescer. É o que os sanitaristas denominam atenuação relativa da força do método. Na hipótese de remoção das variáveis que atuam concomitantemente, a força do método voltaria a ser observada por inteiro. Embora a relevância da fluoretação da água tenha Fig. 2-5 Prevalência de cárie dental em escolares de 10 anos de idade em função do tempo após a fluoretação da água de abastecimento público de Piracicaba, SP.

Uso do Flúor e Controle da Cárie como Doença 43 Tabela 2-8 Prevalência e redução de cárie no Brasil em 10 anos. Regiões H 2 OF 1986 1996 Diferença (%) Norte 7,50 3,52 53,1 Nordeste 6,90 3,13 54,6 Centro-Oeste +/- 8,53 2,82 66,9 Sudeste + 5,95 2,34 60,7 Sul + 6,31 2,41 61,8 Média nacional +/- 7,04 2,84 59,6 diminuído, o método continua sendo importante para vários países (por ex., EUA, Reino Unido), e dados preliminares mostram menor prevalência de cárie no Brasil onde a água é fluoretada (Tabela 2-8). Os resultados da Tabela 2-8 foram recentemente confirmados através de um levantamento de cárie feito no estado de São Paulo, o qual mostrou declínio de cárie independentemente de fluoretação da água (Narvai & Castellano, 1999). Porém, a condição de saúde bucal nas cidades onde esse método tem sido utilizado era melhor, registrando-se diferença de 1 dente a mais atacado por cárie, aos 12 anos, nos municípios sem água fluoretada. Deste modo, ratifica-se a importância da agregação de flúor ao tratamento da água no Brasil, em termos de saúde pública, nas décadas iniciais do século XXI. Um dos problemas mundiais para o sucesso da fluoretação da água é o controle da concentração adequada. Isto é uma prerrogativa das Secretarias de Saúde, e quando estas assumiram seu papel, houve solução. Um bom exemplo, pioneiro, é a cidade de São Paulo, que em 1990 implantou com êxito um Programa de Heterocontrole da Fluoretação da Água, decorrente do empenho da então Coordenação de Saúde Bucal. Isto tem servido de estímulo para outras cidades que procuraram garantir os benefícios da fluoretação da água para toda a população. A Tabela 2-9 mostra o exemplo de Santos, SP. Quando das dificuldades para agregar flúor ao tratamento da água, como método de saúde pública para reduzir a cárie dental quando indicado, métodos alternativos têm sido idealizados. Assim, a fluoretação do Tabela 2-9 Porcentagem de amostras de água com concentração ótima de flúor. % de amostras com concentração Ano ótima (0,6 0,8 ppm F) 1990 61 1991 68 1992 94 1993 100 1994 96 Fonte: Manfredini, 1995. sal de cozinha tem sido sugerida como o método ideal para países da América Latina, Central e outros, hoje denominados de economia de mercado não-estabilizada. Tendo em vista o episódio de uma tentativa de fluoretação do sal no Brasil, do qual há pouca documentação, seria oportuno usar este capítulo para alguns esclarecimentos. Fluoretação do sal de cozinha Este método tem sido enfaticamente sugerido pela Organização Pan-Americana de Saúde como ideal para os países das Américas, considerados de economia de mercado não-estabilizada. O sucesso da fluoretação do sal na Suíça e um estudo piloto feito na Colômbia têm sido a base para a sua recomendação, a qual deve ser vista com ceticismo. Assim, em 1990 houve uma tentativa de implementação desta estratégia de prevenção no Brasil, com a argumentação de que seria eficiente e mais abrangente nas regiões Norte Nordeste, as quais têm apresentado dificuldades históricas com a fluoretação da água. Como consultor da Coordenação de Saúde Bucal do Ministério da Saúde avaliei o programa proposto e acompanhei uma tentativa das empresas interessadas em fluoretar o sal do Rio Grande do Norte. As principais observações indicadas no relatório foram: Aproximadamente 50% do sal das regiões Norte Nordeste não poderia ser fluoretado para se atingir a concentração ótima estimada de 250 mg F/kg (+10%), pois não é refinado. Este sal é simplesmente moído e em condições técnicas que inviabilizam a agregação de flúor. Considerando que este sal é consumido pela população de menor poder aquisitivo, o método deixaria de ter seu principal atributo que seria o impacto social. Nas regiões Norte Nordeste já há flúor natural na água em concentração ótima (Cury, 1991), o que fatalmente levaria a uma sobredosagem de flúor sistêmico. Isto foi confirmado posteriormente (Sampaio, 1993). Seria adicionado fluoreto de potássio ao sal de cozinha, o qual seria vendido ao governo como uma

44 Odontologia Restauradora Fundamentos e Possibilidades solução a 20%. Este, seria subsidiado pelo governo e transportado de São Paulo, Rio de Janeiro e/ ou Santa Catarina para as regiões Norte Nordeste. A princípio seria inconcebível pagar para transportar 80% de água e para as mesmas firmas que já monopolizavam a venda de iodato para o governo federal. A concentração de flúor no sal deveria ser 250,0 mg F/kg, considerando o consumo nacional de 10-15 g de sal/dia. Tendo em vista que o Brasil é um país continental, poderia haver grande variabilidade de consumo em função dos hábitos regionais de alimentação. Esta possibilidade foi comprovada 4 anos antes (Simone Gil et al., 1989), quando a excreção urinária de íons flúor foi determinada em crianças de Piracicaba que ingeriam refeições preparadas com sal fluoretado ou bebiam água fluoretada. A excreção de íons flúor foi 20% menor no grupo de crianças que ingeriram sal fluoretado. Assim, a concentração de flúor no sal deveria ser 300,0 mg F/kg para manter o mesmo nível metabólico que a água fluoretada. Deste modo, estabelecer uma concentração ótima de flúor no sal para o país seria muito difícil. Em acréscimo, durante muito tempo os programas para determinado país têm sido decididos por outros. Entretanto, as mudanças políticas devido a conquista da democracia em países como o nosso, colocou em reflexão a imposição de decisões externas. Assim, além da restrição técnica (Cury, 1991) e de uma publicação científica (Silva, 1991), com relação às limitações do programa de fluoretação do sal no Brasil, houve também muitas manifestações políticas (Neder e Manfredini, 1991; Enatespo, 1992). Por outro lado, parece haver tanta convicção de que as soluções para um país podem ser decididas por outros, que uma publicação recente (Cirino e Scantlebury, 1998) relata que um programa de fluoretação do sal está sendo conduzido no Brasil. Entretanto, programas de fluoretação do sal vêm sendo implementados em alguns países. Resultados significativos de redução de cárie têm sido descritos na Costa Rica (Salas, 1995) embora seja interessante abordar dois aspectos: a) impacto do programa em termos sociais; b) prevalência de fluorose dental. Em acréscimo, enquanto na Costa Rica a concentração de flúor no sal produzido por três companhias está de acordo com o esperado (Gomes Salgado, 1991), no México está abaixo do valor estabelecido por lei (Maupomé Carvantes et al., 1995). Deve ser esclarecido que a fluoretação da água ou do sal são meios coletivos de usar flúor sistêmico. Assim, quando da inexistência destes, tem sido ainda discutida a indicação de suplementos de flúor para uso individual. Suplementos pré-natal A indicação de flúor pré-natal foi fundamentada no conceito de que seria indispensável fazer suplementação se a concentração na água não fosse ótima. Assim, medicamentos ainda têm sido indicados pelos médicos para gestantes; entretanto, esta indicação é totalmente empírica e não há razão de ser, uma vez que não há fundamentação quanto a: Mecanismo de ação do flúor. Não há necessidade de ingerir flúor para se ter redução de cárie. Particularmente, no caso de pré-natal, deve ser destacado que a placenta não funciona como uma barreira à passagem de flúor como se acreditava. Dose. Todos os medicamentos contêm 1,0 mg F, quantidade esta recomendada de forma empírica. Assim, se a ingestão de flúor fosse importante, deveria haver uma dose para se atingir o benefício, e não há. Em acréscimo, se o suplemento pré-natal é indispensável, uma gestante que vive em região de água não-fluoretada deveria receber uma dose de flúor igual da de uma gestante que ingere água fluoretada e alimentos preparados com ela. Este varia de 2 a 4 mg F/dia. Deste modo, além da quantidade ser empírica, os suplementos pré-natais são prescritos na forma de complexos. Como eles contêm cálcio, este complexo o flúor reduzindo sua absorção em 50%. Assim, mesmo se a ingestão de flúor fosse importante em termos de incorporação ao dente, a quantidade administrada seria deficiente. Benefícios. A literatura era carente de um estudo adequadamente delineado para avaliar os suplementos pré-natais. Porém, estudo recentemente publicado mostrou que não houve redução de cárie nos dentes decíduos dos filhos de gestantes que ingeriram esses medicamentos. Em conclusão, não há razão para a prescrição de flúor pré-natal e, esses produtos deveriam ser retirados do mercado, porque além de não trazerem benefício, são deseducativos. A Odontologia deveria estar inserida numa equipe de saúde que preparasse a futura mãe para o controle da doença e não para acreditar em uma medicação inócua. Suplementos pós-natal Embora os suplementos de flúor pós-natal tenham sido usados no passado em programas escolares em termos de saúde coletiva, atualmente eles são basicamente de indicação individual. Assim, são oferecidos ao consumidor na forma de medicamentos na maioria das vezes contendo flúor associado a outras substâncias. Não há segurança para o uso destes suplementos, tendo em vista que:

Uso do Flúor e Controle da Cárie como Doença 45 Posologia. A dose de flúor prescrita leva em consideração a idade da criança e o teor de flúor na água de abastecimento público. Estas posologias foram estabelecidas empiricamente, pois não há uma dose de flúor sistêmico relacionada com efeito de benefício de redução de cárie. Assim, desde 1972 essas posologias têm sofrido contínuas mudanças para satisfazer risco/benefício. Atualmente, enquanto alguns países têm sugerido uma posologia mais conservadora, outros estão optando pela não indicação desses medicamentos contendo flúor. Isto tem sido decorrência de três fatores: a) declínio da cárie dental; b) aumento da prevalência de fluorose dental; c) mecanismo de ação do flúor. Entretanto, no Brasil ainda se segue uma posologia sugerida em 1979. A análise dos produtos do mercado brasileiro permitiu concluir que quem administra esses suplementos provocará: 1) uma sobredose em crianças de 0 a 3 anos de idade, em termos do risco de fluorose dental; 2) uma subdosagem em crianças com mais de 2 anos, considerando o benefício de redução de cárie. Produtos de livre mercado. A venda desses medicamentos não tem controle (lei da empurroterapia ) e há estímulo para o consumo. Propagandas nas farmácias, inclusive em cidades com água fluoretada, com o apelo tipo, Cálcio deixa o osso duro e flúor torna o dente forte induzem ao seu uso abusivo. Em acréscimo, considerando-se um profissional conscientizado da importância da fluoretação da água, e que prescreve porque a criança bebe água mineral, o risco é maior ainda. Análise em mais de 100 marcas de água mineral vendidas no Brasil mostrou concentrações significativas de flúor natural, em termos de risco/benefício. Deve ser enfatizado que muitas vezes isto era ou é omitido no rótulo. Prescrição empírica. Além das bulas deixarem a desejar em termos de orientação ao consumidor, o conhecimento de quem prescreve não está baseado em ciência. Assim, a Tabela 2-10 mostra a forma de prescrição de médicos pediatras a um dos suplementos mais vendidos no Brasil. Tabela 2-10 Porcentagem de médicos em relação ao modo de prescrição. Modo de prescrever % 0,3 ml/dia até 6 meses e 0,6 após 42 0,3 ml/dia 29 0,6 ml/dia 8 10 gotas/dia 8 2 gotas/dia 4 5 gotas/dia 4 1 gota/dia/kg 4 Fonte: Hanah et al., 1998. Merece destaque a falta de uniformidade na forma de prescrever. O medicamento é vendido na forma líquida, contendo um conta-gotas para a sua administração. Até pouco tempo o fabricante indicava 1 conta-gotas/dia independentemente da idade da criança. Atualmente, ele sugere encher o conta-gotas até a marca indicada pelo médico. Porém, só há uma marca! Assim, conclui-se que não há segurança para se prescrever suplementos de flúor pós-natal. Adicionalmente, trata-se de um dos métodos de uso individual de flúor de difícil controle, sendo comum a interrupção da sua atualização. Deste modo: a) não é indispensável ingerir flúor para o controle da cárie; b) flúor interfere com a progressão da cárie e não com os fatores responsáveis pela doença; c) por que não desorganizar regularmente a placa dental e, simultaneamente, usar flúor? FLÚOR TÓPICO MEIOS DE USAR E BENEFÍCIOS Generalidades Dos meios de usar flúor tópico, o que melhor se enquadra em termos do controle da cárie como doença é o dentifrício fluoretado. Assim, ao mesmo tempo que a placa dental é desorganizada periodicamente pelo ato da escovação, o flúor é usado de forma regular, constante. Por outro lado, existem outros meios de usar flúor tópico, cada um apresentando particularidades na sua indicação clínica, devendo ser analisados separadamente. A expressão flúor tópico é ainda hoje utilizada não para diferenciar o efeito do flúor no controle da cárie, mas simplesmente para indicar que ele não precisa ser ingerido para ter ação na cavidade bucal. Por outro lado, o entendimento de como o flúor tópico age no controle da cárie ainda gera dúvidas, porque é mais fácil relacionar flúor incorporado, dente perfeito e, conseqüentemente, resistência aos ácidos produzidos pelas bactérias da placa quando da ingestão de açúcar. O efeito de um método tópico ocorreria por dois mecanismos que tentam manter a constância de flúor no meio para o controle da cárie. O primeiro seria decorrente da manutenção da concentração de flúor na saliva pelo uso do método, e o segundo pela formação de produtos de reação no esmalte dentina. Assim, toda vez que os dentes são escovados com dentifrício fluoretado, a concentração de flúor na saliva aumenta, permanece elevada por um tempo de 30-40 minutos e volta ao normal. O mesmo ocorre após o uso de bochecho fluoretado ou aplicação tópica de flúor profissional. Por outro lado, esses meios são utilizados em diferentes freqüências. Deste modo, o efeito do dentifrício fluoretado poderia ser explicado pela freqüência diária de escovação. Entretanto, isto não explicaria o efeito da aplicação tópica de flúor profissional, tendo em vista a freqüência de retorno do paciente.

46 Odontologia Restauradora Fundamentos e Possibilidades Entretanto, toda vez que o flúor tópico é utilizado, ocorre uma reação química com a estrutura mineralizada dos dentes, formando produtos que interferem com a posterior progressão da cárie. Destes produtos, o responsável pelo efeito do flúor tópico é um mineral tipo fluoreto de cálcio ( CaF 2 ), o qual funcionando como um reservatório, tentaria manter o flúor constante no meio para interferir com o desenvolvimento da cárie (Diagrama 2-4). A formação de CaF 2 depende de uma série de fatores que podem ter implicação clínica no efeito do flúor, dependendo de como o método é utilizado. A Tabela 2-11 relaciona fatores envolvidos com a formação de CaF 2 no dente. Os dados dessa tabela devem ser criteriosamente analisados em termos da sua repercussão clínica. Assim: 1) embora a concentração de CaF 2 seja proporcional à concentração de flúor no meio de aplicação, isto poderia levar à conclusão de que a aplicação tópica de flúor profissional seria mais eficiente que o uso de dentifrício fluoretado. De fato, ao se fazer uma aplicação de flúor em gel, 12.300 ppm F estariam reagindo com o dente, contra 1000 1100 ppm do dentifrício. Entretanto, embora pouco CaF 2 se forme quando de uma escovação, isto é compensado pela freqüência da escovação em relação à aplicação profissional. Outra implicação clínica é o risco previsível de acreditar em quanto maior melhor e fazer o uso indevido de flúor. Assim, produto contendo 145.000 ppm F foi usado para aplicação profissional, levando uma criança à intoxicação aguda letal. Isto será abordado em tópico oportuno deste capítulo, quanto aos riscos de uso de flúor; 2) com relação ao ph, forma-se mais CaF 2 em ph ácido (3,5) que em neutro (7,0). Assim, o fluorfosfato acidulado é mais reativo que o neutro, o que poderá ter repercussão clínica em função da freqüência com que são utilizados. Entretanto, tendo em vista que a princípio se forma mais CaF 2 quanto menor o ph, poderia-se pensar no uso de produto com ph 1-2. Tem-se comprovado que deve haver um limite, e nesses ph extremos não se forma mais CaF 2 que o convencional 3-4; 3) com relação ao tempo de aplicação, há a tendência de formar mais CaF 2 em função do tempo de aplicação. Entretanto, isto não tem qualquer repercussão clínica, porque dentro do intervalo de aplicação (1-4 minutos) não há diferença de efeito; 4) a dentina é mais reativa que o esmalte devido à fonte disponível de cálcio, na forma de apatita carbonatada e fosfato Diagrama 2-4 Reatividade do flúor tópico com esmalte dentina, formação de CaF 2 e sua interferência na dinâmica do desenvolvimento da cárie. Tabela 2-11 Fatores relacionados com a reação do flúor tópico com o dente. Fatores/Condições Formação de CaF 2 1. Concentração de flúor da aplicação Maior/diretamente proporcional 2. ph do meio durante a aplicação Menor/inversamente proporcional 3. Tempo de aplicação Maior/diretamente proporcional 4. Estrutura mineralizada Maior na dentina que no esmalte 5. Tempo de erupção dental Maior no dente recém-erupcionado 6. Condição dental Maior no dente com lesão de cárie que no íntegro 7. Detergente (LSS) Menor formação

Uso do Flúor e Controle da Cárie como Doença 47 de cálcio amorfo, os quais, ao serem solubilizados, reagem com o flúor e se reprecipitam como CaF 2. Isto pode ter repercussão clínica, que vai desde uma ação mecânica, reduzindo sensibilidade dentinária, até redução da progressão da cárie; 5) o dente recém-erupcionado é rico em minerais à base de carbonato, os quais são dissolvidos pelo flúor tópico com formação de CaF 2. Isto tem implicação clínica, tanto na importância da escovação diária com dentifrício fluoretado, desde a erupção dental, para o controle da cárie, como na indicação de aplicação tópica de flúor profissional em função de indicadores de risco ou atividade de cárie na criança. Por outro lado, isto não quer dizer que a aplicação tópica de flúor profissional só funcione em crianças. Quando indicado, o profissional deve aplicar flúor nos dentes de pacientes adultos; 6) forma-se mais CaF 2 quando da reação de qualquer tipo flúor tópico no esmalte com lesão de cárie do que no íntegro. Isto tem repercussão clínica, pois o CaF 2 formado dentro da lesão de cárie reduz a sua posterior progressão. Assim, quando das aplicações de flúor, o profissional intuitivamente estaria curando lesões de cárie; muitas delas ainda não clinicamente visíveis; 7) o detergente laurilsulfato de sódio (LSS) se adsorve na superfície dental podendo reduzir a reatividade do flúor. Isto é particularmente importante quando ele é usado em bochechos pré-escovação, pois reduz a formação de CaF 2 no esmalte quando do posterior tratamento com flúor. Assim, a reatividade do flúor de um dentifrício pode ser diminuída se um enxagüatório bucal contendo LSS for usado previamente. Por outro lado, o LSS está presente nos dentifrícios fluoretados, os quais são eficientes no controle da cárie. Isto seria explicável pelo fato de que quando ambos reagem ao mesmo tempo com a superfície dental, o flúor ganha a competição por ser mais reativo. Entretanto, existem vários meios de uso de flúor tópico, quer seja de competência do profissional ou de auto-uso pelo paciente. Em função das particularidades de cada um, esses meios serão revisados. Meios de usar flúor tópico Dentifrícios fluoretados A importância deste meio de usar flúor foi resgatada a partir da década de 80, quando surgiram os primeiros dados de redução da cárie dental, independente, de fluoretação da água, que era um método considerado indispensável. Simultaneamente, foi comprovado haver uma correlação entre o declínio da cárie dental, ocorrido em 16 países, e a agregação de flúor em mais de 90% dos dentifrícios comercializados. Assim, tem sido atribuído aos dentifrícios fluoretados a razão principal para o declínio da cárie dental constatado na maioria dos países desenvolvidos. Em termos de Brasil, mudanças qualitativas e quantitativas ocorreram com os dentifrícios a partir de setembro de 1988. Além de ser agregado flúor aos dentifrícios mais vendidos, passando os fluoretados a contribuir com 90% das vendas, a reforma sanitária ocorrida no Brasil e a implantação de programas de educação para a saúde nas escolas permitiram que um outro segmento da sociedade pudesse também ser beneficiado por este meio de usar flúor. Isto teve impacto na redução da cárie em escolares no Brasil, independentemente da fluoretação da água. Assim, a Fig. 2-6 mostra a diferença de prevalência de cárie entre escolares de Piracicaba, onde a água é fluoretada, e da cidade vizinha de Iracemápolis, que não tinha fluoretação da água. Em 1991, as crianças de Piracicaba tinham uma prevalência de cárie 50% menor, mas a diferença foi reduzindo-se chegando a 30% em 1997. Esta diferença po- Fig. 2-6 Redução da prevalência de cárie, em função do tempo, em escolares quando da presença (Piracicaba, SP) ou ausência (Iracemápolis, SP) de água de abastecimento público fluoretada.

48 Odontologia Restauradora Fundamentos e Possibilidades deria ser ainda menor se a prevalência de cárie em Piracicaba não estivesse também em declínio. Estes dados confirmam outros levantamentos que apontam para uma redução da cárie dental no Brasil, e sugerem que dentifrícios os fluoretados de alguma forma têm tido participação nesta tendência. Embora hoje tenhamos aproximadamente 30 marcas de dentifrícios fluoretados no mercado, o assunto é ainda cercado de mitos e ceticismo. Todos os dentifrícios vêm sendo adequadamente fluoretados mas apenas cinco deles representam 90% das vendas. Por outro lado, todos esses dentifrícios são fabricados no estado de São Paulo, e havia dúvidas quanto a eventuais modificações em sua composição durante o transporte, de tal modo que nem todos os brasileiros teriam o mesmo benefício. A Tabela 2-12 mostra a concentração de flúor solúvel (ativo) total (NaF ou MFP) nos dentifrícios mais consumidos nas cinco regiões brasileiras (Revista da ABOPREV, 1999). Comprova-se que de norte a sul do Brasil quem escova os dentes está usando flúor para o controle do desenvolvimento da cárie dental. Deve ser enfatizado que as diferenças na concentração de 100-200 ppm F entre os produtos encontrados nas várias regiões não implicam efeito proporcional menor ou maior na redução da cárie. Isto é decorrente do fato de que o efeito do flúor não é diretamente proporcional à concentração. Assim, se um produto contém 1000 ppm F e o outro 800, isto não quer dizer que o primeiro será 25% mais eficiente na redução da cárie. Ao mesmo tempo que hoje podemos afirmar que no Brasil quem escova os dentes tem flúor em condições de controlar a progressão da cárie, isto pode ser comprovado através da atividade do mesmo no dentifrício. Assim é possível demonstrar que o flúor do dentifrício é capaz de reduzir a perda de mineral do esmalte do dente íntegro, ou ativar a reposição de mineral do dente com lesão de cárie. A Fig. 2-7 mostra blocos de esmalte dental humano submetidos ou não a um alto desafio cariogênico, e tratados ou não com dentifrício fluoretado. Esse modelo reproduz a situação clínica de um paciente que tem retenção de placa e ingere açúcar, apresentando depois de 30 dias lesões de cárie com aspecto de mancha branca. Os blocos dentais que não foram submetidos ao desafio cariogênico (CI) mostram um esmalte normal, translúcido; porém, os blocos submetidos ao desafio cariogênico e tratados com dentifrício não-fluoretado (CC) mostram uma grande perda de mineral clinicamente visível. Por outro lado, os blocos que foram tratados com dentifrício fluoretado (D) tiveram menor perda de mineral, constatada visualmente (mancha branca) e quantificada com aparelhos para medir perda de dureza. Este trabalho mostra que o flúor do dentifrício é extremamente eficiente para interferir na progressão da cárie reduzindo a quantidade de mineral perdido. Entretanto, ele não impediu o desenvolvimento da doença porque foi simulada uma condição de não-remoção da placa e alta freqüência de ingestão de açúcar (os blocos dentais ficaram diariamente 6 horas em ph 4,3). Utilizando um outro modelo laboratorial, foi possível demonstrar que o flúor do dentifrício aumenta em 2 vezes a capacidade da saliva em repor mineral na superfície do esmalte desmineralizado. Com este mesmo dentifrício, foi feito um estudo in situ. Blocos dentais com lesão de cárie foram colocados em placas palatinas (Fig. 2-8), as quais foram utilizadas por voluntários que usaram diariamente dentifrício sem flúor ou fluoretado. Este modelo de estudo é aceito internacionalmente para a aprovação de dentifrícios para o controle da cárie, e mostra que o dentifrício fluoretado é eficiente em repor mineral na lesão de cárie. A Tabela 2-13 resume os resultados desses dois estudos. Estes resultados mostram que o flúor do dentifrício é eficiente para ajudar a saliva a repor minerais perdidos pelo dente, entretanto, o efeito é parcial. Por outro lado, deve ser levado em consideração que se tentou remineralizar o esmalte que havia perdido uma grande quantidade de mineral e que a eficiência do flúor é maior quanto menor a quantidade de mineral a ser reposta. Deste modo, a eficiência do dentifrício fluoretado assenta-se na regularidade da escovação, uma vez que o flúor interfere na dinâmica do processo de cárie. Assim, ao mesmo tempo em que a placa dental é desorganizada periodicamente, diminuindo seu potencial patogênico, o flúor ajuda a saliva a repor as pequenas quantidades Tabela 2-12 Concentração (ppm F) de flúor solúvel total nos dentifrícios mais consumidos de acordo com as regiões brasileiras, e analizados assim que comprados, 1996. Dentifrícios Regiões Média Comprados Norte Nordeste C.Oeste Sudeste Sul Nacional Kolynos Super Branco* 968,8 938,4 987,9 1.014,1 1.050,9 995,3 (30)** Colgate MFP Ca 1.024,2 1.106,2 1.082,5 1.000,0 1.097,3 1.061,7 (30) Signal Original 1.331,3 1.255,4 1.446,4 1.381,3 1.361,8 1.365,4 (26) Close-Up 1.036,2 1.039,0 1.095,5 1.059,0 1.074,7 1.063,9 (28) Gessy Lever 1.256,8 1.146,7 1.377,6 1.272,2 1.284,8 1.259,4 (24) *Atualmente denominado Sorriso. **Número de amostras.

Uso do Flúor e Controle da Cárie como Doença 49 Fig. 2-7 Blocos de esmalte dental não submetidos (CI) a desafio cariogênico em relação aos submetidos, mas tratados com dentifrício não-fluoretado (CC) ou fluoretado (D). Fig. 2-8 Placa palatina com blocos de esmalte dental apresentando lesão de cárie. Tabela 2-13 Remineralização do esmalte dental por dentifrício fluoretado. Remineralização Tratamentos (%) In vitro* In situ** Dentifrício não-fluoretado 15 42 Dentifrício fluoretado*** 36 73 *Maia, Souza & Cury, 1997. **Nobre dos Santos, Koo & Cury, 1998. ***1100 ppmf (NaF). de minerais perdidas pelo dente. A presença de flúor nos dentifrícios, em termos de controle da doença cárie, tem sido considerada tão relevante que foi feita a seguinte comparação: A importância da adição de flúor aos dentifrícios deve ser entendida como semelhante à suplementação de vitaminas ao leite, à manteiga e ao pão O flúor dos dentifrícios, à semelhança de qualquer forma de uso de flúor, é importante tanto para crianças como para adultos e age tanto no esmalte como na dentina. Estudo com voluntários de mais de 50 anos de idade constatou menos 41% de cárie em esmalte e menos 67% de cárie em dentina radicular quando os dentes foram escovados com dentifrício fluoretado em relação à escovação com pasta não-fluoretada. Por outro lado, a maioria dos estudos tem sido feita em termos do efeito do flúor de dentifrícios interferir com a cárie primária. A cárie secundária é ainda um dos grandes desafios da clínica, e tem levado à tentativa de desenvolvimento de materiais que possam reduzir o seu desenvolvimento. Para avaliar o efeito do flúor de dentifrícios neste tipo de lesão, blocos de esmalte dental humano foram restaurados com resina composta para um estudo in situ. Esses blocos foram colocados em placas palatinas, semelhantes à Fig. 2-8, com a diferença de que ficaram a 1,0 mm da superfície do acrílico para permitir o acúmulo de placa dental, por 28 dias. Durante esse período, os voluntários gotejaram, 8 vezes por dia, açúcar sobre os blocos de esmalte e aplicaram, 3 vezes por dia, dentifrício com ou sem flúor. Após 28 dias de alto desafio cariogênico, representado pela não-desorganização da placa dental e alta freqüência de uso de sacarose, os blocos foram removidos dos aparelhos, limpados e avaliados quanto à manifestação da doença cárie. Como pode ser visto na Fig. 2-9, nos blocos superiores há perda de mineral clinicamente visível (mancha branca) em volta das restaurações. Por outro lado, os blocos inferiores estão aparentemente íntegros do ponto de vista clínico. Todos foram submetidos ao mesmo desafio cariogênico e utilizados pelo mesmo voluntário, com a diferença de que dentifrício fluoretado foi usado nos blocos inferiores e não-fluoretado nos superiores. Por outro lado, ao seccionar longitudinalmente os blocos, passando pelo centro da restauração, foi possível ver e quantificar a extensão da lesão. Isto é visto nas Figs. 2-9 e 2-10. A Fig. 2-10 corresponde a um dos blocos superiores da Fig. 2-8. É possível visualizar a extensão da lesão com perda de mineral da ordem de 60%. Considerando que os voluntários estavam utilizando água fluoretada, percebe-se a limitação do efeito do uso isolado de flúor frente a não-desorganização da

50 Odontologia Restauradora Fundamentos e Possibilidades Fig. 2-9 Fig. 2-10 Fig. 2-11 Fig. 2-9 Blocos de esmalte restaurados com resina e submetidos in situ a alto desafio cariogênico, e tratado com dentifrício não-fluoretado (em cima) ou fluoretado (embaixo). Fig. 2-10 Lesão de cárie (L) em esmalte (E) ao redor da restauração (R), quando tratado com dentifrício não-fluoretado. Fig. 2-11 Lesão superficial de cárie (L) em esmalte (E) de bloco dental restaurado com resina (R), mas tratado com dentifrício fluoretado. placa e alta freqüência de exposição ao açúcar. Entretanto, embora nos dentes inferiores da Fig. 2-8 não houvesse manifestação clínica da doença cárie, no corte desses dentes, visto na Fig. 2-11, é possível detectar uma lesão subsuperficial com perda de 10% de mineral. Estes dados permitem uma série de reflexões em termos de implicação clínica. Em primeiro lugar, mostram a importância de medidas para o controle da doença, enfatizando a remoção e/ou desorganização periódica de placa dental para aperfeiçoar o efeito isolado do flúor. Em segundo lugar, mostram que recidivas de cárie podem também ser evitadas sem a necessidade de material liberador de flúor. Se o profissional paciente estiverem comprometidos com o controle da doença, até a cárie secundária pode ser evitada com benefício da estética. Em se tratando de estética, a presença de um sistema abrasivo em um dentifrício é fundamental para garantir a limpeza e o polimento dental. Por outro lado, entre os mitos sobre dentifrícios, os clínicos associam o desgaste dental ao abrasivo dos dentifrícios. Entretanto, o material abrasivo é fundamental para remover do esmalte a película adquirida e reduzir o manchamento dental. Pesquisas mostraram que 81% dos voluntários que estavam escovando os dentes com dentifrício sem abrasivo abandonaram o estudo 3 meses após, devido ao manchamento dental. Por outro lado, a abrasividade de um dentifrício não deve superar um limite de desgaste da dentina e, ao mesmo tempo, deve ter potencial de limpeza polimento. A Tabela 2-14 mostra a relação entre abrasividade de dentina (RDA) e potencial de limpeza dos dentifrícios do mercado brasileiro. Esse estudo mostrou uma grande variabilidade do índice de abrasividade entre os dentifrícios: variando de 15 a 233; entretanto, nenhum deles superou o máximo permitido que é 250. Estes dados têm duas repercussões clínicas: a primeira, é que nenhum dentifrício pode ser responsabilizado pelo desgaste dental. Assim, o profissional deveria indicá-los de acordo com o grau de manchamento dental dos pacientes. Por outro lado, o grau de abrasividade não é anunciado pelo fabricante devido, talvez, ao receio da reação do profissional não muito bem informado. Assim, as empresas têm preferido destacar nos apelos publicitários quando o grau de abrasividade não é alto; em acréscimo, não há regulamentação sobre o assunto. A outra repercussão clínica é que se o desgaste dental não pode ser atribuído aos dentifrícios, o clínico deve pesquisar outras causas; por ex., os ácidos não originados da placa dental provocam erosão dental. O mineral perdido é parcialmente revertido pela saliva em 40%; entretanto, se for removido mecanicamente, o resultado será uma abrasão dental. Deste modo, o profissional deve avaliar não só o modo de escovar do paciente, como a dureza da escova, hábitos dietéticos e uso de exaguatórios bucais ácidos. Pode parecer estranho discutir limpeza e polimento dental neste tópico de dentifrício fluoretado, mas, se estamos, neste capítulo, descrevendo o uso de flúor no controle da cárie como doença isto faz sentido. Assim, em termos de escovação feita habitualmente pela população, o indivíduo que escova o dente com dentifrício remove mais placa dental do que aquele que não usa dentifrício. Isto pode ser uma simples conseqüência de hábito cultural, em que a pessoa usando dentifrício teria mais prazer e escovaria os dentes por mais tempo. Por outro lado, comparando-se a quantidade de placa dental formada 12 horas após os indivíduos terem escovado os dentes com ou sem dentifrício, aqueles que usaram tiveram índice de neoformação de placa 45% menor. Isto pode ser conseqüência do agente abrasivo presente nos dentifrícios, os quais removeriam não só as microcolônias bacterianas da superfície dental (as quais seriam verdadeiros inóculos para o neocrescimento de placa) como removeriam a película adquiri-

Uso do Flúor e Controle da Cárie como Doença 51 Tabela 2-14 Abrasividade (RDA) e potencial de limpeza de dentifrícios do mercado brasileiro. RDA Potencial de limpeza % de dentifrícios do mercado < 50 Baixo 31 >50 <100 Médio 49 >100 Alto 20 Dados gentilmente cedidos pela Dra. Saiki, do IPEN CNEN, SP. da e, por conseqüência, enzimas bacterianas (glicosiltransferases) responsáveis pela aderência bacteriana. A importância do esquema controle da placa + uso de flúor, fazendo com que escovação com dentifrício fluoretado seja considerada a forma mais racional de usar flúor, pode ser assim resumida: Má higiene bucal + Flúor = Proteção parcial. Isto pode ser explicado pelo fato de uma placa espessa ser mais cariogênica e limitar o efeito remineralizante da saliva. Por outro lado: Higiene bucal regular + Flúor = Proteção total. Isto implica dizer que mesmo o indivíduo não consiga uma escovação perfeita, o fato de desorganizar a placa periodicamente já diminui seu potencial patogênico e aperfeiçoa o efeito do flúor. Em contrapartida, se o indivíduo fosse perfeito no controle absoluto da placa, não seria necessário o uso de flúor. Por outro lado, isto é muito difícil de ser conseguido em termos populacionais e, assim, é enfatizada a importância de escovar os dentes usando flúor. Finalizando esta discussão sobre dentifrícios fluoretados, seria pertinente fazer algumas recomendações: Dentifrício fluoretado é importante não só para crianças como para adultos. Em acréscimo, ele é fundamental para controlar tanto a cárie de esmalte como de dentina. Considerando-se que crianças menores que 6 anos de idade ingerem involuntariamente dentifrício quando escovam os dentes, medidas devem ser tomadas para a sua redução, o que será abordado no tópico deste capítulo relativo à toxicidade do flúor. A concentração de flúor de um dentifrício deve estar entre 1000-1100 ppm, pois, em termos de eficiência, há pouca justificativa para um concentrado maior; assim como não existem dados, até o momento, que justifiquem uma menor concentração. Neste aspecto, deve ser esclarecido por que existem no Brasil dentifrícios com 1500 ppm F. Em primeiro lugar, isto está de acordo com as normas brasileiras em termos da concentração máxima de flúor em dentifrícios (0,15% de F). Por outro lado, isto é fundamental para garantir que os dentifrícios mais vendidos no Brasil (Colgate Anticárie, Gessy, Signal e Sorriso) mantenham suas concen- trações de flúor ativo durante o prazo de validade; pois esses dentifrícios contêm carbonato de cálcio como abrasivo, o qual reage com o flúor diminuindo a quantidade ativa no produto. Por outro lado, como esses dentifrícios contêm MFP (monofluorfosfato de sódio), isto garante maior quantidade de flúor ativo no produto, como pode ser visto na Tabela 2-11. As principais formas de flúor usado nos dentifrícios são o NaF e o MFP. Ambos são considerados eficientes no controle da cárie, tendo em vista dezenas de estudos clínicos. Dentifrícios com SnF 2 ou fluoreto de amina podem ser encontrados. Entretanto, poucos estudos existem até o momento sobre sua eficácia no controle da cárie. O MFP é fundamental para o Brasil, considerando que os dentifrícios populares contêm cálcio que inativaria grande parte do flúor do dentifrício se este tivesse NaF. Usar uma grande quantidade de água para lavar a boca após a escovação com dentifrício fluoretado reduz seu benefício no controle da cárie. Duas sugestões são feitas: a) usar pequena quantidade de água; b) em pacientes com alto risco ou atividade de cárie, usar o bochecho de NaF a 0,05% para lavar a boca. Isto poderia ser feito pelo menos uma vez ao dia, de preferência antes de dormir, quando estiver indicada a associação dentifrício + bochecho fluoretado. Embora tenha sido considerado que bastaria escovar os dentes uma vez por dia para o controle da cárie, investigações epidemiológicas mostram que as crianças que escovam os dentes mais de uma vez por dia com dentifrício fluoretado têm melhor redução de cárie do que quem escova menos. Por outro lado, escovar os dentes com dentifrício fluoretado antes de dormir garantiria concentração de flúor na saliva por um período maior, propiciando melhor efeito no controle da cárie. Alguns dentifrícios contêm flúor associado a substâncias antibacterianas (triclosan+gantrez ou zinco) para o controle de placa dental. Estas substâncias estão mais associadas ao controle da placa gengivite que a um efeito somatório do flúor no controle de cárie. Embora não haja consenso na literatura a respeito do melhor desses dentifrícios no controle de cárie, dados preliminares sugerem que em pacientes com maior risco de cárie (aparelho ortodôntico),

52 Odontologia Restauradora Fundamentos e Possibilidades a associação flúor + substâncias antibacterianas pode ser mais eficaz que o uso só de flúor. Por outro lado, em muitas situações clínicas o uso isolado de dentifrício fluoretado não permite o controle da cárie dental. Assim, a associação com outros meios de usar flúor, e/ou controle químico de placa dental, tem sido recomendada. Bochechos com flúor Trata-se de um meio de usar flúor que foi extremamente relevante até pouco tempo, antes do impacto do uso do dentifrício no controle da cárie. Sua indicação no presente é muito mais individual, em termos de risco ou atividade de cárie. Também pode, ainda, ser importante em termos coletivos, considerando a prevalência de cárie dental da população, ou de grupos desta, epidemiologicamente vulneráveis, dependendo da análise de cada situação concreta. Em termos coletivos, quando indicado, o uso semanal de bochecho de NaF a 0,2% tem sido a recomendação. Por outro lado, em termos individuais, a indicação tem sido o bochecho diário de NaF a 0,05%. Este pode ser prescrito pelo dentista para ser preparado em farmácias de manipulação, assim como existem produtos comerciais vendidos como enxaguatórios bucais. Esses enxaguatórios contêm agentes flavorizantes, conservantes, e muitos deles associam ao flúor substâncias antibacterianas que podem ter implicação clínica. Assim, o uso de bochecho diário de NaF a 0,05% associado à escovação com dentifrício fluoretado tem sido considerado importante para controlar a cárie dental em pacientes com braquetes ortodônticos; por tratar-se de uma condição clínica de alto risco de cárie devido à dificuldade de desorganização da placa dental e de limitação do efeito da saliva. Em condições de risco ainda maior de cárie, como por exemplo em pacientes com xerostomia, foi possível controlar a cárie dental usando-se dois bochechos/dia, associados a escovação com dentifrício fluoretado. Por outro lado, em condições de alto risco de cárie, se poderia pensar no uso de enxaguatórios contendo flúor e substâncias antibacterianas. Isto seria recomendado tendo em vista que o flúor isoladamente só reduz o risco de cárie, e para evitá-la, deveríamos associar seu uso com o controle químico de placa, quando o controle mecânico por alguma razão nem mesmo desorganiza a placa dental. Este seria o caso de pacientes com bandas ortodônticas quando o acesso mecânico da escovação é inoperante. No passado, quando da retirada dos aparelhos, esses pacientes geralmente apresentavam manifestação de cárie, como cavidade. No presente, devido ao uso abrangente de flúor, a progressão da cárie foi reduzida expressivamente; assim, em muitas situações clínicas ela fica num estágio subclínico. Entretanto, em outras, ela progride se estabilizando como uma mancha branca de cárie inativa. Esta não preocupa do ponto de vista de saúde, mas pode representar um problema estético dependendo do dente atingido. Assim, nessas condições de alto risco de cárie, quando flúor está sendo usado, mas o controle mecânico da placa não funciona, tem sido preconizada a associação de bochecho de clorexidina e flúor (NaF). São recomendados dois bochechos ao dia, um de manhã e outro antes de dormir. Deve ser ressaltado que a clorexidina é uma substância altamente reativa e pode ser inativada por detergente (laurilsulfato de sódio LSS), por adoçante (sacarina) e pelo flúor na forma de MFP. Assim, cuidados devem ser tomados quanto ao uso de clorexidina pelo menos 30 minutos após a escovação e na prescrição de bochechos preparados por farmácias de manipulação. Dependendo da concentração, a sacarina pode inativar a clorexidina. Por outro lado, existem várias outras associações de flúor com diferentes substâncias antibacterianas nos enxaguatórios. Embora algumas delas tenham mostrado efeito de redução de placa gengivite, nenhuma comprovou que associada ao flúor potencializa seu efeito no controle da cárie como doença. Por enquanto, isto só foi comprovado com a clorexidina. Entretanto, o uso de enxagüatório depende totalmente do grau de cooperação do paciente. Em adição, o uso de bochechos não faz parte da cultura de muitos indivíduos, e é necessário instituir um novo hábito no paciente, o que exige habilidade profissional. Ao mesmo tempo, existem meios de usar flúor ou substâncias antibacterianas de competência do profissional. Aplicação tópica de flúor profissional (ATFP) Trata-se de uma alternativa do profissional para tentar compensar o não auto-uso de flúor, ou deficiência de medidas preventivas, pelo paciente. Neste contexto, ela é extremamente apropriada em termos de atenção de acordo com as necessidades. Isto seria aplicável do ponto de vista do indivíduo em termos de indicadores de risco ou atividade de cárie, ou no campo coletivo quando a prevalência de cárie da população foi reduzida mas grupos ainda continuam apresentando alta atividade de cárie. Para que com o uso da ATFP se possa conseguir o mesmo sucesso do uso constante de flúor pelo paciente, vários produtos têm sido idealizados e feitas várias recomendações clínicas na sua utilização. O grande desafio é compensar o uso regular de flúor pelo paciente, que seria o mais apropriado em termos dos conceitos atuais de efeito do flúor no controle da cárie dental. Assim, uma única ATFP é muito pouco eficiente para controlar a progressão de cáries quando há alto risco, por ex., logo após a colocação de aparelhos ortodônti-