DO OUTRO LADO 1 José Cetra Filho 2 Como ser ao mesmo tempo livre e subvencionado? Eis o problema: somos limitados por toda uma organização teatral, por um sistema. Começar do zero se revela impossível. Entretanto, só a total liberdade ofereceria a possibilidade de crescer. Enfim, é preciso se adaptar, essa é a minha dor. (Victor Garcia) 1. Do outro lado da lei Um dos benefícios mais cobiçados pelos coletivos paulistanos é aquele que consta da lei municipal nº 13.279 de 8 de janeiro de 2002, que instituiu o Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo. Essa lei, popularmente conhecida como Lei do Fomento, beneficia até 30 projetos por ano, selecionados semestralmente por uma comissão julgadora e os valores envolvidos são bastante significativos (o total de recursos para o Edital da última - 21ª - edição do prêmio foi de R$ 2.810.100,05 e ao todo poderiam ser selecionados no máximo 13 grupos, além disso, os projetos apresentados deveriam ter um orçamento não superior a R$ 756.683,78) 3. Por estas razões, a concorrência é bastante grande. Segundo levantamento do Prof. Alexandre Mate realizado em abril de 2012 (incompleto, segundo ele), o município de São Paulo tem cerca de 90 coletivos passíveis de se candidatarem a esse prêmio, o que significa que, teoricamente, dois terços deles (67%) não vão se beneficiar do mesmo em um determinado ano. Nas oito últimas edições o número é maior (82%): levantamento realizado pelo autor a partir de dados fornecidos pelo Núcleo de Fomentos Culturais da Secretaria Municipal da Cultura revela que 1 Ensaio realizado a partir dos relatos de Mario Pazzini do Grupo Clariô e de Caio Martinez Pacheco da Trupe Olho da Rua em encontro realizado no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo em 20 de outubro de 2012, tendo como tema a gestão administrativa de seus projetos culturais e abordando tópicos como autossustentação, políticas públicas e movimentos culturais locais. O encontro foi mediado por Edson Martins Moraes. 2 Mestre em artes cênicas pela Unesp, pesquisador. 3 Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, acesso em novembro de 2012, disponível em <www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/fomentos/teatro/>.
nessas edições houve 656 projetos inscritos dos quais 120 (18%) foram selecionados. Toda esta introdução é para comentar que os grupos que fizeram seu relato no dia 20 de outubro de 2012 no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo não podem se beneficiar dessa lei por estarem do outro lado do município: o Grupo Clariô é de Taboão da Serra e a Trupe Olho da Rua é de Santos. Ambos dispõem de outros editais e/ou leis de incentivo como o Programa de Ação Cultural (ProAC), Prêmio Myrian Muniz, entre outros e de convites feitos por entidades como o Serviço Social do Comércio (Sesc), o Serviço Social da Indústria (Sesi), o Itaú Cultural, o Teatro da Universidade de São Paulo (Tusp) e a Caixa Cultural. Os grupos, representados por Mario Pazzini (Clariô) e Caio Martinez Pacheco (Trupe Olho da Rua), comentaram as vantagens da Lei do Fomento e lamentam-se de não poder concorrer aos benefícios da mesma. Ainda segundo eles, a verba recebida pelos grupos beneficiados é bastante significativa, mas é muito grande a quantidade daqueles que não são escolhidos, o que se confirma pelo levantamento apresentado acima. Mario Pazzini enfatizou que nos dias de hoje a distribuição do prêmio é mais justa e que nos primeiros anos havia certo favoritismo, fato refutado por Alexandre Mate no artigo Breve relato do exercício ético praticado em algumas comissões de seleção do Programa Municipal de Fomento, publicado no livro Teatro e Vida Pública O Fomento e os Coletivos Teatrais de São Paulo. Este livro, organizado por Flávio Desgranges e Maysa Lepique e publicado pela Hucitec Editora, faz uma ampla análise dos dez anos da lei do fomento. 2. Do outro lado da rua: Grupo Clariô Conforme Mario Pazzini o grupo surgiu em um município (Taboão da Serra) que não tinha a menor tradição cultural, e muito menos, teatral. A partir de dados retirados do seu blog 4, segue um breve histórico dos principais espetáculos do grupo: estreia em 2002 ainda com o nome de Grupo Lasca o Oco o espetáculo infanto-juvenil A Árvore dos Mamulengos de Vital Santos. Em 2005 passa a se chamar ETônoBoró. Estreia Foi Bom, Meu Bem? 4 http://www.espacoclario.blogspot.com
de Luís Alberto de Abreu em 2006. Em 2007 após uma reformulação adota o nome de Grupo Clariô e monta em 2008 Hospital da Gente de Marcelino Freire. Em 2011 estreia Urubu Come Carniça e Voa com dramaturgia coletiva. Voltando ao relato de Mario, o grupo inicialmente ensaiava em uma praça e pela necessidade de uma sede foi alugada uma casa em 2005 em uma região pobre do centro da cidade. Atualmente o grupo tem seis integrantes, sendo que cinco deles são cidadãos de Taboão. Os primeiros espetáculos do grupo tiveram circulação restrita e foi com Hospital da Gente que o grupo conheceu maior visibilidade. O local de apresentação do espetáculo tinha capacidade para abrigar 25 pessoas. Na primeira semana os parentes e amigos encarregaram-se de lotar o teatro, a seguir o público foi rareando até haver algumas apresentações suspensas por falta de público. Por meio do boca a boca o público foi crescendo, a peça ganhou prêmios e acabou ficando em cartaz por três anos, sendo que ainda faz parte do repertório da companhia. O espaço foi reformado e foi construído um galpão que tem capacidade para 80 pessoas. O local não tem autorização legal e não consegue nem aprovação, nem isenção da prefeitura. O único contato da prefeitura com o grupo é o envio do carnê do IPTU que neste ano tem o valor de R$ 4.800,00. Mario Pazzini não poupa críticas à política pública do seu município que segundo ele tem um descaso total pela cultura. Para manter o espaço os integrantes do grupo optaram por não receber cachê sobrevivendo do trabalho em outras atividades. Ele é enfático ao afirmar que o Clariô é um grupo de teatro e não foi criado para fazer serviço social, mesmo assim muitas pessoas da cidade procuram alguém do grupo para solicitar ajuda na resolução de problemas da região. Existe um salão no espaço do grupo que é aberto para a comunidade com a realização de oficinas de teatro. Atualmente, as oficinas são frequentadas por cerca de 50 pessoas e servem também como importante ferramenta de formação de público. Se o grupo mudasse para uma rua acima estaria no município de São Paulo e poderia concorrer aos benefícios da Lei do Fomento, mas a militância e a crença de estar fazendo algo em benefício de sua cidade fazem com que eles permaneçam em Taboão da Serra. Fato não reconhecido pelas autoridades locais que nunca reconheceu não só o trabalho desse grupo, mas de outros tantos que desapareceram por falta de incentivo público; um exemplo desse
descaso é o Liceu de Artes que pertence ao município e tem atividades irregulares sem um projeto de continuidade. Pazzini é muito crítico em relação à lei Rouanet. O grupo teve um projeto aprovado e em seguida necessitava de um patrocinador. Ele pergunta: qual empresa vai associar o seu nome ao Grupo Clariô, se pode fazê-lo patrocinando o Cirque du Soleil? Outra questão levantada pelo palestrante é a confecção e administração de projetos, atividades que requerem um conhecimento administrativo e envolvem uma burocracia alheia ao espírito dos artistas. A gestão cultural é de alguma maneira incompatível com o espírito e a formação do artista criador, principalmente daquele que não vê o resultado de seu trabalho como uma mercadoria que será vendida para obter lucro. Mario encerrou a sua fala comentando que em função do seu discurso às vezes é chamado de coitadinho, mas a história é verdadeira e considera que o artista recebe as migalhas que sobram e concluiu: a pessoa ligada à cultura é marginalizada. 3. Do outro lado da serra: Trupe Olho da Rua Segundo relato de Caio Martinez Pacheco, a Trupe Olho da Rua é de Santos, município ao mesmo tempo perto e longe de São Paulo, pois uma serra separa as duas cidades. Completa dez anos em 2012 e tem em seu currículo nove espetáculos e diversas intervenções em lugares públicos. A cidade de Santos tem uma tradição teatral significativa por meio da iniciativa, entre outros, de Plínio Marcos (1935-1999), Pagu (1910-1962) e Paschoal Carlos Magno (1906-1980), que criaram em 1958 o Festival de Santos, cuja 55ª edição será realizada em 2013. Os movimentos em prol da cultura surgem aí e dão muitos frutos como a construção do teatro Municipal na década de 1960, quando os teatros antigos tinham sido demolidos ou estavam em franca decadência (caso do Coliseu e do Guarany). A Trupe Olho da Rua surge em 2002 sem maiores pretensões fazendo um tipo de teatro de variedades na rua e experimentando várias linguagens como a farsa, o épico e o circo, mas sempre com o objetivo de buscar um novo público, ausente das salas de teatro. A relação com os espaços começou pelas praças santistas, sendo que algumas que foram mais usadas e tiveram
continuidade de apresentações passam a ser consideradas como espaços passíveis de cultura e começam a ser usadas por outros grupos de teatro de rua que surgem na cidade. A Praça Mauá que sedia a prefeitura da cidade é um desses espaços e lá são realizados contatos com os políticos e vários movimentos de militância por melhores condições para a cultura. Depois de três anos os grupos santistas conseguiram aprovar uma lei que regulariza o fundo municipal de cultura por meio de edital público (não havia lei de incentivo em Santos) e dois teatros antigos foram reformados (os já citados Coliseu e Guarany) e estão em plena atividade. Em Santos, dentre as áreas artísticas, o movimento teatral é o melhor organizado. Apesar de realizar seus espetáculos basicamente na rua e de se propor uma itinerância muito intensa (a trupe dispõe de uma perua Kombi que transporta elenco e material), o grupo precisava de um espaço para guardar o material cênico, ensaiar e promover encontros. Durante algum tempo ocupou de maneira provisória um local no subterrâneo do clube Sírio Libanês e há um ano e meio iniciou junto com outros coletivos santistas a busca de um espaço público ocioso na cidade de Santos. Houve uma luta para conseguir o espaço, atualmente ocupado por quatro grupos. Situa-se na centenária Praça dos Andradas (a mesma que abriga o Teatro Guarany) e foi batizado de Vila do Teatro. Esse local já foi rancharia do Barão de Mauá (1813-1889), abate de cachorros (cerca de 600 por semana), abrigo de menores, albergue noturno e depois disso ficou fechado por dez anos. Apesar desse passado o local tem energia muito positiva e ali são desenvolvidas muitas atividades pelos grupos que têm áreas de atuação diferentes: são dois grupos de teatro de rua (Trupe Olho da Rua e Quarteto Trio los Dos, um de teatro dança (Oficina do Imaginário) e um de teatro popular que se apresenta em teatros convencionais (Casa Três). A gestão do espaço é coletiva, e a regra é que cada um faça o que melhor sabe fazer. São feitas reuniões semanais para discutir problemas e perspectivas do local. Todos são responsáveis, inclusive os participantes das oficinas que trazem café, ajudam na limpeza e manutenção do local. Os participantes das oficinas são dos mais variados níveis. Caio enfatiza que naquele espaço público se faz arte pública e ironiza arte privada? Privada do quê?. São nove salas com uma rua no meio em uma área de 40m X 20m,
sendo que uma das salas é reservada para o movimento de teatro de Santos. Além do espaço os grupos também realizam atividades na praça. Os festivais de teatro, disseminados em todo Brasil por Paschoal Carlos Magno e administrados no estado de São Paulo pela Confederação de Teatro Amador do Estado de São Paulo (Cotaesp), eram fonte de pesquisa e local de encontro e troca para vários grupos santistas. Na década de 1990 a Confederação se desfaz, muitos festivais desaparecem e os grupos necessitam buscar novos caminhos sendo a pesquisa continuada o mais eficiente deles. A Trupe Olho da Rua tem seis integrantes, sendo que 32 pessoas por ela passaram nos seus dez anos de vida. Essa rotatividade acontece também em outros coletivos, permanecendo juntas aquelas pessoas que têm interesses e ideologias semelhantes. 4. Do mesmo lado... Caio compartilha de muitos pontos levantados por Pazzini, mas tem visão mais otimista da situação e inspira-se no geógrafo Milton Santos (1926-2001) ao dizer que as mudanças virão dos que não têm vez!. Vê como muito positiva a solidariedade existente entre os coletivos de São Paulo e acredita que os grupos não contemplados com a Lei do Fomento, de alguma maneira beneficiam-se indiretamente da mesma, por meio da troca de experiência e participação em atividades realizadas pelos selecionados. Em comum os palestrantes comentam a dificuldade em conciliar a criação artística e a burocracia da gestão cultural (escrever projetos, preencher formulários, contabilizar despesas, fazer prestação de contas, como lidar com as características de cada instituição). Caio ainda ressaltou que a gestão cultural depende da referência do gestor. Haverá grande diferença entre a visão de um produtor cultural formado em uma instituição como a Fundação Getúlio Vargas e aquele que é um integrante de um coletivo teatral, mas mesmo para este último é muito difícil escapar da questão mercadológica. Outro ponto comum é o fato de que os dois grupos poderiam ter certas vantagens em se fixar na capital paulista, mas as militâncias em suas cidades de origem os fazem lá permanecer. Movimentos como a Arte Contra a Barbárie muito fizeram pelo teatro que não se aceita como mercadoria, mas ainda há um longo caminho a percorrer e
isso depende da luta continuada dos coletivos que têm como lema a militância por melhores dias não só para o teatro, mas, principalmente, para a sociedade.