HIERÓGLIFOS: ENTRE O SIMBÓLICO E O MÁGICO 1



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HIERÓGLIFOS: ENTRE O SIMBÓLICO E O MÁGICO 1 Moacir Elias Santos 2 Introdução: Nos diversos museus que mantêm, em maior ou menor quantidade, artefatos do antigo Egito, é possível perceber que os hieróglifos estão praticamente em todos os tipos de objetos e suportes materiais. Podemos encontrá-los esculpidos em relevo numa estela de rocha, gravados na base de uma estátua de madeira, brilhantemente pintados sobre a tampa estucada de um ataúde ou desenhados sobre um fragmento de papiro. Ao longo do tempo, em diferentes épocas, aqueles que tiveram contato com tais artefatos e suas inscrições, seja em algum país na Europa, na América ou no próprio Egito, sabiam que eles deveriam conter algum significado. Muitas vezes os viajantes e os exploradores desde os primeiros séculos de nossa era, notadamente após o Renascimento, tentaram explicar algo que acreditavam estar certo, visto que os hieróglifos, ainda enigmáticos, transmitiam uma aura de mistério e que, inclusive, poderiam conter alguma espécie de conhecimento secreto. Mas todo o processo de decifração da escrita egípcia, que culminou com a publicação da obra de Jean François Champollion em 1822, e o conhecimento adquirido pelo trabalho de gerações de filólogos, comprovou que o significado dos hieróglifos está relacionado a um sistema de escrita que inclui signos com diferentes valores gramaticais. Cada sinal representa algo por meio de um desenho, com complexidade variada, que pode ser um simples esboço até uma forma detalhada, que são classificados em categorias. O egiptólogo Alan Gardiner foi um dos grandes responsáveis por esta organização. Ele classificou os hieróglifos da seguinte forma: o homem e suas ocupações; a mulher e suas ocupações; deuses; partes do corpo humano; mamíferos; partes de mamíferos; aves; parte de aves; répteis; peixes; insetos; plantas ou partes; sinais ligados ao céu ou à terra; edificações; barcos ou partes; mobiliário; oferendas e atributos divinos; coroas e demais atributos reais e divinos; armamentos; ferramentas; cordas e cestaria; vasilhames; pães; elementos relacionados à escrita; e sinais não identificados (GARDINER, 1988, p. 438-548). São justamente todas estas categorias que nos permitem afirmar que há uma clara interação entre um texto, uma pintura ou uma escultura, pois a escrita hieroglífica é essencialmente imagética.

Por meio de uma análise detalhada da forma dos sinais hieroglíficos nos registros, que na atualidade consideramos artísticos, é possível constatarmos diferentes tentativas de transmissão das idéias, das manifestações religiosas e da própria visão de mundo dos antigos egípcios. Assim, este artigo tem como objetivo verificar sob quais circunstâncias ocorre a interação entre imagem e texto, tomando como exemplo fontes de diferentes épocas e locais. Ao discorrermos sobre estas, aponta-se a necessidade dos pesquisadores interessados nos estudos sobre o Egito antigo conhecerem o sistema hieroglífico. Uma escrita simbólica: No antigo Egito a aproximação dos sinais com a arte aconteceu logo no princípio de sua criação, ainda durante o Pré-dinástico na fase de Naqada II (final do quarto milênio a.c.), época marcada por intensas modificações culturais e tecnológicas promovidas pela elite, quando foi empregada tanto para registrar as atividades de natureza ritual e cerimonial que eram conduzidas pelos primeiros governantes, quanto no uso administrativo para a marcação de bens (DAVIES, 1996, 138-139). Já no princípio do III Milênio a.c. determinados sinais foram associados à monarquia e a sua simples presença bastava para explicar que não se tratava puramente de uma imagem: aquilo representado referia-se diretamente ao rei. O mesmo aconteceu com os sinais utilizados para as divindades e assim permaneceram durante toda a história faraônica. A exemplo, o sinal hieroglífico do trono, que era empregado para escrever o nome da deusa Ísis, (em egípcio Aset) além de ser uma legenda para ela, era compreendido pelos egípcios como a personificação da própria divindade. Na parede sul da câmara funerária da tumba do Servidor do Lugar da Verdade Sennedjem, na necrópole Ocidental da vila de Deir el-medina, temos a pintura de um falcão representado com o hieróglifo do trono sobre a cabeça. Neste caso não é simplesmente um pássaro associado à deusa, é ela própria que assumira uma outra forma, algo comum para muitas divindades egípcias. A legenda que encontra-se atrás da figura não deixa dúvidas a este respeito: Palavras ditas por Ísis, a Grande Mãe do Deus, Senhora do Céu, Senhora de todos os Deuses.

Figura 1 Parede sul da tumba de Sennedjem com a imagem de Ísis como um falcão, com o símbolo hieroglífico do trono sobre a cabeça, que pode também ser visto na inscrição que forma o nome da deusa. Referência da imagem maior: HODEL-HOENES, S. Life and death in ancient Egypt Scenes from private tombs in New Kingdom Thebes. Ithaca and London: Cornell University Press, 2000, p. 248. Referência da imagem em detalhe: BOVOT, J-L. A tumba de Sennedjem em Deir el-medina. In: FUNDAÇÃO ARMANDO ALVARES PENTEADO, São Paulo. A Tumba de Sennedjem em Deir el- Medina. São Paulo: FAAP, 2001, figura 25. Esta característica simbólica está diretamente relacionada à natureza divina da escrita. Os hieróglifos, ou literalmente palavra do deus se assim o traduzimos, foram inventados por Djehuty, ou Toth para os gregos, que detinha a sabedoria e era o patrono da escrita (ZIEGLER, 1982, 341). Originalmente associado à lua, Toth era representado sob duas formas zoomorfas, um íbis (Threskiornis aethiopicus) e um babuíno (Papio cynocephalus), e uma antropozoomorfa, um corpo humano com cabeça de um íbis. Neste último caso o encontramos frequentemente munido dos instrumentos de escrita (SALES, 2001, 830-832; WILKINSON, 2003, 215-217). Como os deuses foram responsáveis pela criação de muitas coisas, as palavras também continham uma essência divina. Se observarmos os monumentos e os artefatos deixados pelos egípcios é possível percebermos o grau de refinamento com que os hieróglifos eram produzidos. Inscrições com símbolos extremamente realistas não faltam nos relevos dos templos, nas pinturas das tumbas e nas peças incrustadas nos itens de joalheria. Outrossim, é possível em determinados

casos identificar espécies da fauna e da flora com exatidão. A exemplos das aves, a lista de Gardiner apresenta sessenta e três símbolos de pássaros ou partes, como o abutre egípcio (Neophron percnopterus), o flamingo (Phoenicopterus roseus) e o avestruz (Struthio camelus), entre outros (GARDINER,1988, p. 467-474). O fato dos egípcios transferirem elementos que integravam o seu ambiente para a escrita tornava esta, de certa forma, uma representação da realidade. No mundo egípcio, permeado pela magia, criar uma imagem era dota-la potencialmente de vida. Em algumas tumbas e também em objetos de natureza funerária, existem hieróglifos que, por representarem criaturas nocivas ou perigosas, como uma serpente ou um hipopótamo, foram literalmente cortados ao meio ou tiveram partes não representadas. Frequentemente as mutilações atingem as pernas dos pássaros, como se aqueles que os esculpiram ou pintaram quisessem impedi-los de andar, para que não alcançassem as oferendas que foram depositadas para o ocupante de determinada tumba, ou mesmo para que não o prejudicassem. Um exemplo desta prática ocorre nas inscrições que estão sobre o corpo de uma estatueta de um servidor funerário de um homem chamado Renseneb, datada de 1750 a.c., que pertence ao acervo do Museu Britânico (TAYLOR, 2001, p. 118). Os hieróglifos gravados na pedra calcária e pintados de azul que representam figuras animadas, como a coruja, a codorniz e aquelas que representam o homem e suas ocupações, estão todas sem as pernas. O egiptólogo Richard Wilkinson apontou em seus estudos diversos aspectos sobre a estreita interação que os hieróglifos possuem com as imagens. Cada hieróglifo possui um significado próprio, pois sua composição é feita de acordo com um elemento no qual ele é baseado. Na arte egípcia estes elementos ideográficos são frequentemente representados e, portanto, podem ser lidos como qualquer signo da escrita, estejam eles visíveis num dos dois níveis de associação No nível primário os signos são usados diretamente numa escrita normal. Assim, uma estátua ou uma pintura pode ser formada por vários hieróglifos sendo possível uma leitura semelhante à da escrita. Já no secundário, os objetos, pessoas ou mesmo gestos podem representar, a fim de sugerir, a forma dos hieróglifos e desta maneira trazer uma mensagem simbólica (WILKINSON, 1994, p.151-152).

Um excelente exemplo do nível primário é uma famosa estátua de Ramsés II, que foi encontrada em Tânis e atualmente se encontra em exposição no Museu do Cairo. A peça apresenta o faraó como criança, sentado com o dedo na boca, coroado com o disco solar e tendo às mãos um caniço. Na parte posterior, um falcão representando o deus Hurun, de origem Cananita e identificado pela inscrição na base, protege a figura real. Um visitante que se encontrasse na galeria do museu perceberia as proporções da escultura de Ramsés criança e do falcão, mas dificilmente reconheceria que a própria estátua forma uma inscrição, além daquelas que são visíveis na base, como os cartuchos e títulos reais. Ao verificar os demais elementos presentes é possível reconhecer uma série de hieróglifos na composição. O disco solar sobre a cabeça do rei representa Ra, o rei na forma de uma criança sentada ms e o caniço que ele porta na mão esquerda su. Ao juntarmos os sinais temos o nome de nascimento de: Ra-ms-su, ou Ramsés II. Figura 2 Estátua de Ramsés II como criança sob a proteção do deus-falcão Hurun. O disco-solar, a imagem da criança e o caniço formam o nome do rei. Referência da imagem: BONGIOANNI, A. & CROCE, M. S. Los tesoros del antiguo Egipto. Madrid: Editorial Libsa, 2007, p. 197.

Este tipo de interação de figuras e palavras ocorre também em monumentos de grandes proporções, como na fachada do templo rupestre de Abu Simbel, onde se pode ler o outro nome de Ramsés, ligado à sua coroação. Na parte central da fachada há uma escultura antropozoomorfa do deus-sol Rahorakhty, a quem o templo foi dedicado. Mas se olharmos atentamente veremos três hieróglifos. Sobre a cabeça do deus está o hieróglifo Ra, na mão direita o cetro com cabeça de canídeo, que se lê user, e na mão esquerda uma imagem da deusa Maat. Assim, temos a inscrição User-Maat-Ra. Figura 3 Detalhe da fachada do templo de Abu Simbel, com a figura do deus sol Rahorakhty. O discosolar, o cetro com cabeça de canídeo e a imagem da deusa Maat formam o nome de trono de Ramsés II. Foto de Moacir Elias Santos. No nível secundário os hieróglifos nem sempre são reconhecíveis aos olhos dos observadores modernos, mas os antigos egípcios sabiam que seus contemporâneos letrados poderiam compreender o que eles, intencionalmente, quiseram representar simbolicamente. Um bom exemplo desta prática pode ser encontrado no piramidion de um obelisco caído, que foi construído por ordem da rainha-faraó Hatshepsut, que se exibe próximo ao lago do templo de

Karnak. Nesta parte do monólito, o deus Amon foi representado sentado em um trono com os braços levantados em direção à figura real, que se encontra ajoelhada a sua frente. A mão esquerda do deus direciona-se à coroa-kheperesh que a rainha porta em sua cabeça, enquanto que a direita toca o seu ombro. Se observarmos atentamente, os membros superiores de Amon foram intencionalmente dispostos para formar o hieróglifo ka - que representa dois braços em atitude de receber oferendas. Esta palavra pode ser traduzida como energia vital, pois está associada a um fator biológico simples: a manutenção do corpo físico por meio da alimentação. O ka, contudo, também é algo que está associado às gerações de uma mesma família, o que explicaria, nesta cena, o deus transmitindo o seu poder divino, já que Hatshepsut era filha de Amon. Figura 4 Parte superior do obelisco caído da rainha-faraó Hatshepsut, atualmente exposto no templo de Karnak. Amon aparece coroando o rei com ambos os braços, que foram o sinal hieroglífico ka, em direção à coroa azul e ao ombro de Maat-ka-re. Foto de Moacir Elias Santos. A flexibilidade existente no sistema de escrita hieroglífico permitiu aos egípcios expressarem as palavras de diversas maneiras. Elas poderiam ser escritas por meio dos sinais

fonéticos, quando cada um representa um som, dos pictográficos e também dos ideográficos, nas vezes em que tais signos são, respectivamente, um objeto ou alguma idéia (WILKINSON, 1994, p.155). Tal composição gramatical tornou possível a utilização dos sinais de formas variadas, não só nos textos, mas também nos trabalhos que consideramos atualmente como obras de arte. Por exemplo, numa frase o nome do deus Anúbis era escrito foneticamente Inpu, sendo formado por quatro sinais uniliterais que representam o junco i, a linha d água n, o banco p, a codorniz u e por um determinativo que representa o deus sentado. Já em sua representação ideográfica o deus Anúbis poderia ser mostrado pelo sinal antropozoomorfo, com corpo humano e uma cabeça de canídeo, pelo canídeo deitado, ou pelo canídeo sobre um pavilhão. Em todos estes casos, as imagens de Anúbis podem ser facilmente reconhecidas na escrita, sendo usadas como determinativos, isto é, quando se referem principalmente à assimilação de um sentido para a palavra, ou nas cenas em que aparece sozinho ou acompanhado por deuses ou mortos. Figura 5 Diferentes formas para o nome de Anúbis: fonético, pictográfico antropozoomorfo, pictográfico zoomorfo e também sobre o pavilhão. Esta última representação é idêntica tanto na escrita, como um

determinativo, quanto na cena, em um tamanho maior. Imagens deste tipo poderiam ou não, estar diretamente relacionadas a uma inscrição. Templo de Seti I, em Abydos. Foto de Moacir Elias Santos. Nas esculturas, relevos e pinturas que os egípcios produziram também encontramos uma relação direta entre as imagens que estão representadas e as inscrições circundantes. Conforme já apontamos anteriormente, a forma com que uma determinada figura foi concebida pode seguir exatamente a de um hieróglifo. Assim, na leitura de uma inscrição, a imagem presente poderia ser compreendida como parte integrante do texto. Tal afirmativa se verifica quando encontramos, por vezes, imagens de deuses ou dos mortos, cujos nomes podem omitir o sinal determinativo, já que sua representação, mesmo em tamanho maior, conserva a função do hieróglifo (WILKINSON, 1994, p.155). A escrita associada à magia: Nas capelas das tumbas e nos cenotáfios, alguns artefatos dispostos em lugares estratégicos, como estelas, portas-falsas e mesas de oferendas, conservam inscrições completas ou sinais hieroglíficos que, por meio da magia, poderiam auxiliar os mortos em suas necessidades. Estas variavam desde a proteção do sepulcro, com a utilização de inscrições ameaçadoras, até a garantia da provisão de oferendas. A origem das célebres maldições presentes em algumas tumbas, estelas e estátuas, está relacionada a uma tentativa de coibir a ação de possíveis invasores que, desde o estabelecimento do Estado egípcio, apoderavam-se dos bens destinados aos mortos, fossem eles preciosos, como itens de joalheira, ou não, a exemplo de um simples pão. As maldições, em geral, são constituídas pela descrição de um ato que não agradaria o seu autor, e pela narração das consequências para aquele que efetuasse a transgressão, que seriam de responsabilidade de um deus ou mesmo de um animal. Há poucos anos uma tumba da IV Dinastia, pertencente a um homem chamado Petety e à sua esposa foi encontrada em Gizé na área destinada aos trabalhadores e aos supervisores da construção das pirâmides. Na entrada da tumba lê-se uma maldição: E para qualquer pessoa, qualquer sacerdote de Háthor, qualquer músico que bater (?). Quem vier a entrar nesta (tumba) e fizer qualquer ação negativa dentro, é o deus que irá proteger-me dele porque eu sou honrado por meu senhor

e eu nunca fiz uma má ação contra qualquer homem. Se ele fizer alguma coisa contra mim na minha tumba, então o crocodilo, o hipopótamo e o leão irão devorá-lo (HAWASS, 2004, p. 30). Tais palavras, para os egípcios, tinham um grande poder e a sua força garantiria a proteção necessária que era ativada por meio da magia. Podemos entender melhor a maldição antiga se a relacionarmos à forma de pensamento dos antigos egípcios. Para eles tudo o que existia estava interligado, (a religião, a cultura, a filosofia, etc.) num conceito de ordem que era personificado por uma deusa, chamada Maat. A ética era parte da ordem/ medida/ equilíbrio e todos deveriam segui-la. Se um indivíduo agisse contra a ordem estaria confrontando a ordem divina. Portanto, a inscrição hieroglífica que trazia a maldição servia como advertência para um indivíduo e salientava sua responsabilidade com Maat. Já o uso de fórmulas mágicas destinadas ao sustento do ka do morto no outro mundo são muito mais frequentes do que as referidas maldições. Para assegurar que os alimentos e víveres não faltariam, caso os responsáveis pela realização do culto funerário falhassem em sua atividade, as inscrições de dois tipos de fórmulas, uma de caráter oficial e a outra pessoal, solucionariam o problema (COLLIER & MANLEY, 2008, p.35). A primeira é a fórmula Hetep-di-nesu, ou literalmente uma oferenda que o rei faz. De origem muito antiga esta fórmula oficial se manteve em todos os períodos da história egípcia, conservando a tradição de que o rei era o provedor das oferendas, embora isto somente tenha acontecido durante uma parte do Terceiro Milênio a.c.. Esta fórmula deveria ser considerada importante pelos egípcios, dada a sua presença frequente nos objetos de natureza funerária. No ataúde da cantora de Amon, Shaamonemsu, do acervo do Museu Nacional, a invocação aparece inscrita sete vezes, destinada aos deuses Osíris, Ptah-Sokar-Osíris, Rahorakhty e Uapuauat. A tradução que realizamos, como exemplo, é do texto que se encontra no pé do ataúde, disposto em quatro colunas que se lêem da direita para a esquerda; contudo, os hieróglifos das três últimas colunas foram escritos no interior da coluna da esquerda para direita (SANTOS, 2002, p.73-74). [1] 7(/!# t!<h

Htp di nsw n wsir Uma oferenda que o rei faz a Osíris, [2] 9!! 3 4 }>]! q k Q imntt(y) ntr aa nb AbDw o Ocidental, Grande Deus, senhor de Abydos, [3] ] h#d! X! 536Yn di.f prt-xrw (m) t Hnqt kaw Apdw sntr qbhw (para que) ele conceda invocação de oferendas (em) pão, cerveja, gado, aves, incenso e libações, [4] ex<\ t1 ṫ (! $ P 7"K Hst Xnw n imn SA-imn-m-sw para a cantora do santuário de Amon, Sha-amon-em-su. Figura 6 A formula de oferendas situada ao pé do ataúde da cantora de Amon, Shaamonemsu. XIII Dinastia, c. 750 a.c. Tebas Ocidental, Museu Nacional/UFRJ. Foto de Moacir Elias Santos. O segundo tipo de fórmula é a Invocação aos Vivos. Esta pode ser descrita como uma petição de caráter pessoal colocada em uma área visível, como a entrada da capela, direcionada às pessoas que conhecessem o sistema de escrita e viessem a passar pelo local. Esperava-se que ao ler a inscrição, as palavras, dotadas de poderes mágicos, pudessem garantir as oferendas para o ocupante da tumba. O exemplo apresentado na sequência, cuja transliteração e tradução foi realizada pelo Prof. Dr. Ciro Flamarion Cardoso da Universidade Federal Fluminense, encontra-

se na estela de Userur. O artefato, pertencente ao Museu Britânico, data da XII Dinastia, séc. XX ou XIX a.c. 1:jK!6(K a h4 < p! e t 5 : 4 1\b!!! t1 M M - t 5 i anxw tpyw ta swa.t(y).sn Hr mahat tn mrr(w).tn Ó vivos (que estais) sobre a terra, que passeis por esta tumba e queirais (que) <X B B - t 5 333 - t 5 if - t 5, "`, D X, & c, /!# ;ih! M!n l 4 <!H Hss Tn ntrw.tn Dd.Tn xa t xa kaw Apdw xa Ss mnxt xa Htp Df(Aw) prt (m-)bah wsir vossos deuses vos louvem (ou: favoreçam)! Vós direis: Mil (unidades de) pão e cerveja, mil (de) gado e aves, mil (de) [vasos de] alabastro e tecidos, mil (de) oferendas e alimentos (na qualidade d)aquilo que sai diante de Osíris. Figura 7 A formula de invocação aos vivos proveniente da estela de Userur em destaque. XII Dinastia, séc. XX ou XIX a.c., Museu Britânico. Referência da imagem: RUSSMANN, E. [et. al.] Eternal Egypt: masterworks of ancient art from the British Museum. London: British Museum Press, 2001, p. 99. Por fim, se as inscrições não fossem levadas em consideração, os egípcios também inventaram outra forma de manter a provisão de víveres para os mortos. A mesa de oferendas, idêntica ao sinal hieroglífico hetep, que ficava frente a uma porta-falsa pela qual o morto tinha acesso ao outro mundo, servia de base para a deposição de tudo aquilo que era necessário para o

sustento do ka. Assim, pães, cerveja, carnes, bolos, frutas, entre outros itens ficavam à disposição daquele que receberia as oferendas. Caso faltassem, não haveria dificuldades, pois a superfície da mesa também continha os víveres esculpidos ou gravados, que substituíam os itens reais. Tais imagens, representadas por meio de hieróglifos, e circundadas ou não pela fórmula de oferendas, garantiriam magicamente a provisão eterna. Considerações Finais: Na atualidade, visitantes que percorrem as ruínas da antiga terra dos faraós ou as galerias de museus com antiguidades egípcias em todo o mundo tem a possibilidade de admirar e reconhecer, com certa facilidade, a presença marcante da escrita hieroglífica. Por séculos, inúmeras foram as tentativas de compreendê-la, até o advento de sua decifração na primeira metade do século XIX. Por se tratar de um sistema pictográfico-fonético que se valia da representação de elementos comuns aos egípcios, como o desenho de uma boca, de um deus ou de uma cesta, nota-se uma clara interação entre tais imagens com a escrita. Desde o princípio da história egípcia, os hieróglifos foram utilizados para perpetuar ideias relacionadas às atividades de cunho religioso ou profano. Não é de se estranhar, então, que os egípcios atribuíam sua origem a uma invenção do deus Toth; outrossim, a própria escrita possuía uma essência divina. Os egípcios acreditavam que, por meio da magia, a escrita e seus símbolos poderiam ganhar vida, tornando-se uma ameaça que poderia ser detida com a simples supressão de uma de suas partes. Mas o mais importante é o fato de encontrarmos, frequentemente, na arte dos egípcios a presença de elementos ideográficos que nos permitem efetuar a leitura dos mesmos. Tal característica aparece em dois níveis de associação: o primário, onde tudo está organizado como na escrita, e o secundário, onde a disposição das representações forma hieróglifos que contem uma mensagem simbólica. O sistema de escrita empregado pelos egípcios permitiu, conforme o desejo de seus autores, utilizar a iconografia de uma maneira peculiar, pois uma figura poderia ser utilizada como parte integrante de um texto. Os hieróglifos também tinham um papel importante para assegurar o bem estar dos mortos, pois funcionariam de acordo com a necessidade de proteção, a exemplo do uso de inscrições de imprecação ou de manutenção do indivíduo no outro mundo por meio do sustento do ka. Nesse último caso, as inscrições das fórmulas de invocação de oferendas e de invocação

aos vivos, além das representações de víveres presentes nas mesas de oferendas das capelas funerárias, contavam tanto com o intermédio do rei quando dos indivíduos comuns. Salienta-se aqui a importância de conhecermos o funcionamento da escrita egípcia, pois esta é uma das formas mais interessantes não só para conhecer a antiga cultura do povo que habitou o vale do Nilo por mais de três mil anos, mas também para desvendá-la a partir de suas próprias palavras. Referências Bibliográficas: BONGIOANNI, A. & CROCE, M. S. Los tesoros del antiguo Egipto. Madrid: Editorial Libsa, 2007. BOVOT, J-L. A tumba de Sennedjem em Deir el-medina. In: FUNDAÇÃO ARMANDO ALVARES PENTEADO, São Paulo. A Tumba de Sennedjem em Deir el-medina. São Paulo: FAAP, 2001. COLLIER, M. & MANLEY, B. How to read Egyptian hieroglyphs: a step-by-step guide to teach yourself. London: British Museum Press, 2008. DAVIES, W. V. Os hieróglifos egípcios. In: Lendo o Passado: do cuneiforme ao alfabeto. A história da escrita antiga. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/ Melhoramentos, 1996. GARDINER, A. Egyptian Grammar: being an introduction to the study of hieroglyphs. Oxford: Griffith Institute, 1988. HAWASS, Z. The Tombs of the Pyramid Builders: the tomb of the artisan Petety and his curse. In: KNOPPERS, G. N. & HIRSCH, A. Egypt, Israel, and the ancient Mediterranean world: studies in honor of Donald B. Redford. Leiden: Brill, 2004. HODEL-HOENES, S. Life and Death in ancient Egypt Scenes from private tombs in New Kingdom Thebes. Ithaca and London: Cornell University Press, 2000. RUSSMANN, E. [et. al.] Eternal Egypt: masterworks of ancient art from the British Museum. London: British Museum Press, 2001. SALES, J. C. Tot. In: ARAÚJO, L. M. (Dir.) Dicionário do Antigo Egipto. Lisboa: Editorial Caminho, 2001.

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