Reflexões sobre o Conceito de Ressonância em Grupanálise 1



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Transcrição:

Reflexões sobre o Conceito de Ressonância em Grupanálise 1 João Carlos Melo* Resumo: Partindo do conceito de «Ressonância», formulado por S. H. Foulkes no contexto da fenomenologia da situação grupal, o autor reflecte sobre o mesmo, ilustrando-o com exemplos clínicos, pro p õ e hipóteses sobre os seus mecanismos subjacentes e articula-os com outros conceitos oriundos da teoria da técnica psicanalítica e grupanalítica. P a l a v r a s - c h a v e : Ressonância; Foulkes; Grupanálise. ABSTRACT: S. H. Foulkes concept, Ressonance, born from goupanalytical phenomenology is analysed by the author and illustrated with clinical examples. The author reflects about other related concepts from the psychoanalytical and groupanalytical theory. K e y - w o rd s : Ressonance; Foulkes; Gro u p - Analysis. A comunicação inconsciente entre dois indivíduos, que Freud percebeu na situação psicanalítica, foi constatada e descrita por Foulkes nos seus grupos de grupo-análise, embora aqui, com uma complexidade acrescida, em virtude de serem vários os indivíduos em interacção. Este autor assimilou o modo de comunicação referido ao seu conceito de «ressonância»: «O termo ressonância pretende significar que existe uma comunicação inconsciente entre os indivíduos e mais, que essa comunicação é altamente selectiva e específica», acrescentando que «por detrás do conceito de ressonância está a ideia de que, quando um indivíduo é posto na presença de outro indi- víduo e das suas comunicações, comportamentos e palavras, parece responder-lhes, instintiva e inconscientemente, no mesmo comprimento de onda, por assim dizer. Pode muito bem acontecer que a resposta esteja, por exemplo, numa formação reactiva ou numa defesa contra o impulso instintivo subjacente da outra pessoa, embora este não tenha sido conscientemente entendido nem expresso de uma forma manifesta» 1. Podemos explicitar estas ideias esquematizando-as da forma que se segue: quando dois indivíduos se encontram em interacção, há dois níveis de comunicação envolvidos, um manifesto e outro latente ou inconsciente. Vejamos o seguinte exemplo: o indivíduo A diz: «Eu não gosto de conduzir». O indivíduo B responde: «Eu, conduzir, propriamente, gosto. O que me faz confusão são as bocas de certos condutores». Este é o nível manifesto da comunicação. Para apreender o nível latente é necessário ter um conhecimento profundo dos indivíduos em questão, bem como o seu modo de funcionamento mental. No caso em apreço, poderíamos traduzir a comunicação latente do seguinte modo. O indivíduo A diz: «Eu tenho medo da minha agressividade, a qual se pode manifestar na condução». O indivíduo B capta de forma não consciente esta comunicação e, da sua resposta, o nível latente seria: «A minha dificuldade em lidar com a agressividade verifica-se é em situações em que alguém é agressivo comigo e eu não sei como responder». Na situação grupanalítica podemos considerar também um nível manifesto e um nível latente nas c o m u n i c a ç õ e s. No primeiro estão incluídos os níveis de comuni- 14 Revista do Serviço de Psiquiatria do Hospital Fernando Fonseca *Psiquiatra: Serviço de Psiquiatria do Hospital Fernando da Fonseca 1 Este trabalho é baseado numa comunicação apresentada no VI Encontro L u s o - - B r a s i l e i ro de Grupanálise e Psicoterapia Analítica de Grupo e IV Congresso Nacional da Sociedade Portuguesa de Grupanálise, que decorreu em Lisboa, em 2001.

Reflexões sobre o Conceito de Ressonancia em Grupanálise cação conceptualizados por Cortesão: Experiência subjectiva individual, experiência subjectiva múltipla e comunicação associativa 2. O nível latente «engloba os processos e mecanismos fundamentalmente inconscientes» 1. De que modo interactuam estes dois níveis? E como poderão ser percebidos? Foulkes recorre a uma analogia: «Suponhamos que estamos a ouvir na telefonia o mesmo concerto em dois comprimentos de onda diferentes, e partamos do princípio que nos interessa analisar a sinfonia, discriminando o desempenho dos instrumentos de corda e de sopro. Para o conseguir teria sido necessário arranjar o receptor de tal forma que num dos comprimentos de onda ouvíssemos os instrumentos de corda, estando os de sopro unicamente assinalados, e que no outro tudo se passasse ao invés. Precisaríamos, então, de ouvir um dos comprimentos de onda, depois o outro, e finalmente, ambos» 1. Mas como se processa este mecanismo? Tentemos compreender melhor a questão, passando da analogia para um nível mais conceptual. Neste sentido, creio ser útil e interessante abordarmos o conceito de «clivagem terapeutica do Ego», introduzido por Richard Sterba a propósito da Aliança Terapêutica. Este autor 3 propôs que, no curso do trabalho analítico, existe uma «clivagem terapêutica necessária (e não patológica) dentro do Ego» entre a parte que experiencia e a parte observadora que analisa as associações livres no sentido de lhes atribuir um significado. Ralph Greenson refere-se ao mesmo fenómeno ao reflectir sobre o seu conceito de «Aliança de trabalho»: «Um pré-requisito para se fazer o trabalho analítico é a capacidade do paciente para oscilar entre a aliança de trabalho e as reacções transferenciais neuróticas. Tal capacidade é concomitante com a divisão do Ego do paciente entre um Ego racional, observador e analisador e um Ego irracional, subjectivo e vivenciador» 4. Moss Rawn por sua vez, sintetiza esta questão de f o rma clara e convincente: «Eu diria que os pacientes nos escutam com dois ouvidos, por assim dizer: o do conflito e o do não conflito, o da transferência e o da aliança terapêutica (...) se não a c reditássemos realmente nisso, não nos esforçaríamos tanto para oferecer interpretações correctas, oportunas, doseadas. Se tudo é transferência, as nossas interpretações são meramente e s t ímulos para mal-entendidos desencadeados por desejos, defesas e culpa inconsciente» 5. Esta clivagem terapêutica do Ego deve-se, segundo Etchegoyen, a uma identificação com o analista, designadamente com a sua atitude de observação e reflexão: «Identificado com essa atitude, o paciente adquire capacidade de observar e criticar o seu próprio funcionamento, clivando o seu Ego em duas partes» 6. Considero que em grupanálise ocorre um mecanismo similar, sendo aqui determinado pela interacção que se estabelece entre a Matriz e o Padrão. Vejamos o seguinte aspecto do Padrão: «Pela sua atitude analítica, abstendo-se de responder, perguntar ou dialogar numa situação de realidade costumária, mas oferecendo, em vez disso, a sua colaboração através da interpretação, o analista transmite no grupo um padrão específico que fomenta a re g ressão na matriz grupanalítica. Neste teor metapsicológico vai-se movimentar a motivação inconsciente e o processo primário transparece, Revista do Serviço de Psiquiatria do Hospital Fernando Fonseca 15

João Carlos Melo imbuído nas associações de ideias ou no conteúdo latente dos sonhos» 2. Atentemos agora, noutro aspecto. Ainda segundo o mesmo autor, a integração do Padrão pela Matriz estimula a evolução do processo grupanalítico, promovendo a elaboração terapêutica e a reconstrução. E determina, assim o entendo, o desenvolvimento, em cada indivíduo e no grupo, de uma capacidade analítica, ou utilizando a expressão de Bion, da «função psicanalítica da personalidade». Estes dois aspectos referidos constituem como vimos, diferentes funções do Padrão: indução da regressão por um lado, e estimulação duma função analítica da personalidade, por outro. Proponho então, que é esta dupla função, por assim dizer, do Padrão o que constitui o factor indutor, em grupanálise, dum mecanismo equivalente à clivagem terapêutica do Ego. Só que, em grupanálise, o mecanismo processa-se simultaneamente em cada um dos indivíduos e no grupo como um todo e, neste caso, porque os elementos do grupo constituem uma Matriz. Na situação presente, estou a entender a Matriz com o enfoque que lhe atribuiu César Diniz, isto é, como o resultado do imbrincamento da «rede pragmática actual do grupo» com o conjunto das matrizes «inter-relacional interna» 7, estas activadas pela regressão, enquanto que aquela seria assim formada: «Embora em regressão, o Ego e o Self, pelo menos nas estruturas neuróticas, conservam uma porção intacta constituindo o que Karl Konig designou por split terapêutico que continua a ser capaz predominantemente de gerir o princípio da realidade e estabelecer estratégias relacionais no grupo de análise de acordo com interesses, afinidades e escolhas em parte conscientes e pragmáticas, formando-se assim, uma nova rede relacional compósita, a «rede pragmática actual de grupo» 8. Esta clivagem terapêutica, no Ego de cada indivíduo e no grupo como um todo, permite que na matriz do grupo se verifiquem os dois níveis de comunicação atrás referidos, o manifesto e o latente ou inconsciente. Estes, por sua vez, podem ser captados pelo grupanalista também em dois níveis. Com efeito, Wallerstein considera que o conceito de clivagem terapêutica do Ego, de Sterba, pode ser entendido como incluindo, ainda que de forma implícita, a ideia de uma clivagem equivalente no Ego do analista, «de modo que ambas as partes se possam unir compartilhando empaticamente a experiência, ao mesmo tempo que tomam distância, compreendem calmamente e chegam ao entendimento por meio das interpretações proferidas pelo analista. A distinção entre paciente e analista, é claro e disso depende a progressão satisfatória da análise que, no caso do paciente, a parte que experiencia é a maior das duas, enquanto no caso do analista acontece o oposto» 9. Esta reflexão é curiosa e contém virtualidades para a compreensão do fenómeno Tr a n s f e r ê n c i a - Contratransferência. Este tema sai porém, do âmbito do presente trabalho, pelo que voltarei às questões anteriores. Consideremos, então uma questão já referida. Como vimos, a situação grupanalítica induz uma regressão na matriz. Mas acontece que, estando vários indivíduos em interacção, verificar-se-á que em dado momento, cada um se encontra a funcionar num nível regressivo próprio e diferente dos demais, sendo pois, natural que este aspecto se manifeste perante o que vai acontecendo no grupo. 16 Revista do Serviço de Psiquiatria do Hospital Fernando Fonseca

Reflexões sobre o Conceito de Ressonancia em Grupanálise Foi esta constatação que levou Foulkes a considerar este aspecto como fazendo parte do seu conceito de «ressonância»: «cada membro do grupo mostrará uma tendência distinta para reverberar a qualquer acontecimento do grupo, de acordo com o nível em que se encontra a funcionar» 10. Guilherme Ferreira clarificou esta definição ao referir que «no processo grupanalítico, a existência de mecanismos de regressão vai levar o indivíduo a repetir experiências passadas e a funcionar a níveis muito arcaicos», especificando que «na matriz do grupo pode verificar-se o funcionamento em níveis de regressão diferentes, em relação a um fenómeno idêntico» 11. I l u s t remos este conceito com um caso clínico. A comunica a B: «foi mais fácil fazeres essa pro j e c ç ã o para os teus pais porque eles sempre te trataram de f o rma que tu tomasses conta deles...». C acrescenta: «É isso mesmo... e os pro t e g e s s e s». D continua: «Se calhar, tinhas pena deles». A interpretação de A suscitou intervenções de C e de D, as quais, num nível consciente e pragmático, visavam completá-la ou aprofundá-la. Neste sentido, estes elementos do grupo estão a operar num nível de comunicação associativa, de acordo com a conceptualização de Cortesão. Mas, noutro sentido, podemos considerar que a interpretação de A reverberou em C e em D conforme o nível regressivo de cada um fazendo-os comunicar, de forma não consciente e utilizando neste caso um mecanismo projectivo, os conflitos que cada um, nas respectivas relações de objecto, tinha com os pais: era C que quando criança, protegia e continha as angústias e os episódios de descontrole do pai, e era D que em formação reactiva, respondia às atitudes controladoras da mãe, não se revoltando como faz agora, mas tendo pena da solidão em que ela vivia. De modo sintético e esquemático, podemos dizer q u e : A comunica uma experiência, ou neste caso, faz uma i n t e r p re t a ç ã o. C e D fazem comunicações em dois níveis: nível manifesto comentam ou dão contributos ao que disse A. nível latente comunicam algo (não consciente), estimulados pela comunicação de A, de acordo com o nível re g ressivo de cada um. Se abord a rmos a questão numa perspectiva metapsicológica e, mais concretamente, tópica, constatamos que aquele «algo» comunicado por C e por D é não consciente. Provavelmente é (ou está) pré-consc i e n t e. E para se tornar consciente deverá ser interpre t a d o. Também para a questão da interpretação se torn a p e rtinente o fenómeno da ressonância, como poderemos ver. É relevante para a técnica (e também para a teoria) g rupanalítica a forma como se interpre t a. I n t e r p retar o grupo como um todo ou fazer interp retações a cada elemento, considerando-o no contexto do grupo, são procedimentos diferentes e com implicações técnicas e terapêuticas também difere n t e s. A este propósito, Didier Anzieu alerta-nos para que «a interpretação centrada sobre o grupo não atinge todos os participantes no seu inconsciente individual, mas apenas aqueles de entre eles cujos fantasmas, angústias e conflitos se acordem mais com a tensão comum: a noção de ressonância inconsciente (Foulkes, 1948) é neste caso essencial» 1 2. Revista do Serviço de Psiquiatria do Hospital Fernando Fonseca 17

João Carlos Melo E é essencial para perc e b e rmos que uma interpretação dirigida a um membro do grupo pode afectar todos os outros, embora reverberando em cada um c o n f o rme o nível de re g ressão em que se encontre. Ainda que em muitas alturas se possa identificar uma tensão ou uma fantasia comum, pode acontecer que nem todos os elementos estejam a vivenciá-la da mesma forma. Interpretar que o grupo está angustiado pelas férias que se avizinham, por exemplo, pode corresponder ao ambiente geral que está a ser vivido, mas não faz juz à experiência pessoal, íntima e particular de cada um. As férias do grupo podem desencadear fantasias, emoções, apreensões diferentes em cada um, conf o rme uma grande variedade de factores: a duração da sua grupanálise, a fase que está a viver no momento, a forma como sente e lida com as separações, o nível de angústia que estas fazem emerg i r, o seu momento re g re s s i v o. A interpretação do analista dirigida a um membro do g rupo, mas tendo em conta o contexto grupal, re v e r- berá em cada um de forma diferente, podendo fazer e m e rgir fantasias que estavam latentes e perm i t i n d o p e rceber como uma mesma situação pode afectar cada um de forma part i c u l a r. P e rmite além disso, corresponder ao anseio mais p rofundo que cada indivíduo procura satisfazer na sua relação com os outros, na vida e na análise: ser único, ser especial e ser reconhecido na sua especificidade. Ainda que num contexto grupal, é esse anseio que prevalece em cada um ao longo da a n á l i s e. Na minha opinião, o grupanalista deverá tê-lo semp re em mente, até porque, quem um dia o pro c u ro u não foi o grupo, mas cada uma das pessoas que o c o n s t i t u i. B i b l i o g r a f i a 1. Foulkes SH (1964). Grupo-análise terapêutica. Ed. E u ropa-américa, Mem Martins, 1970. 2. Cortesão EL (1989). Grupanálise teoria e técnica. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1989. 3. Sterba, R. (1934), cit. In Wallerstein (1995). 4. Greenson R (1967). A técnica e a prática da psicanálise. Imago Editora, Rio de Janeiro, 1981. 5. Rawn M. (1991), cit. In Wallerstein (1995). 6. Etchegoyen RH. Fundamentos da técnica psicanalítica. 2ª Ed. Artes Médicas, Porto Alegre, 1989. 7. Leal MRM (1968). Grupanálise um percurso 1963-1993. Ed. S. P. G., Lisboa, 1994. 8. Dinis C. Algumas reflexões a propósito da neurose de transferência em grupanálise. Revista Portuguesa de grupanálise 1994; 5: 7-18. 9. Wallerstein RS (1995). A cura pela fala. As psicanáli-ses e as psicoterapias. Artmed, Porto Alegre, 1998. 10. Foulkes SH, Anthony EJ (1957). Group psychotherapy the psychoanalytical approach. Penguin Books, 1957. 11. Ferreira AG. Matriz grupanalítica. Revista P o rtuguesa de Grupanálise 1992; 3: 45-46. 12. Anzieu D (1975). O trabalho psicanalítico nos gru p o s. Moraes Editores, Lisboa, 1978. 18 Revista do Serviço de Psiquiatria do Hospital Fernando Fonseca