Identidade e consumo étnico na classe média negra



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Transcrição:

1 Identidade e consumo étnico na classe média negra ALEX SANDRO MACEDO ALMEIDA 1 Doutorando em Ciências Sociais da UFBA lecomacedo@yahoo.com.br Resumo O texto é parte das reflexões que fazem parte da pesquisa de doutoramento que realizo no programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia, procura discutir o significado de um marcado de produtos étnicos, mais propriamente o que a mídia e as próprias empresas chamam de linha étnica com a produção voltada para a classe média negra emergente no Brasil. O trabalho procura fazer um levantamento do consumo de bens pela classe média negra, como as empresas voltadas para esse segmento trabalham as suas chamadas e quais produtos são produzidos exclusivamente com esse apelo identitário. De acordo com Hall (2000), podemos observar nos últimos tempos um grande volume da produção do discurso a respeito do conceito de identidade, a multidisciplinaridade das discussões apontam para uma idéia de que a identidade de maneira alguma seria integral e unificada. Segundo Hall (2000) a identidade seria um desses conceitos que operam sob rasura, ou seja, temos que incorporar novas concepções sobre o sujeito moderno ao mesmo tempo em que não podemos abrir mão de questões antigas que orientaram a discussão a respeito do problema da assunção da identidade. O que se identifica como questões antigas é então o reconhecimento de alguma ancestralidade comum ou de características partilhadas com grupos ou pessoas, ou ainda, um ideal. Assim, segundo Hall: é em cima dessa fundação que ocorre o natural fechamento que forma a base da solidariedade e da fidelidade do grupo em questão (HALL, 2000: 106). 1 *Professor de Sociologia do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia, agência financiadora: CAPES

2 Portanto, de acordo com Hall, o conceito de identidade, notadamente ambíguo e complexo, não é de maneira alguma algo essencialista, mas um conceito estratégico, relacional e posicional com uma determinada finalidade. Assim, partimos da perspectiva de Hall (2000) de que as identidades são pontos de apego isso nos leva a pensar as posições temporárias dos sujeitos que as práticas discursivas constroem e, são ainda, [...] o resultado de uma bem-sucedida articulação ou fixação do sujeito ao fluxo do discurso (HALL. 2000:112). Na pós-modernidade as referencias estão suspensas e a todo o momento em processos intensos de transformação, as identidades assim se transformam em algo fluídas, fragmentadas, compostas de uma multiplicidade de outras identidades, abertas a definições e redefinições, contraditórias, não resolvidas, influenciadas pelos processos de transformações estruturais que estão tomando conta do planeta. As identidades são agora para Hall uma celebração móvel, ou seja, formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais as representadas e interpretadas nos sistemas culturais que nos rodeiam (Hall, 1987). Por fim, para Hall a pós-modernidade trouxe a noção de que a identidade unificada, completa, garantidora de segurança e estabilidade é uma fantasia, ao contrário, o que temos então são sistemas de significações e representações culturais que se multiplicam, nos colocando defronte de uma ambivalência, de possibilidades de construções identitárias cambiante, ou naquilo que Bauman (1997) nos traz a idéia de identidades de palimpsestos, ou seja, identidades sempre prontas para receber novos significados uma vez que sua constituição ficou agora á cargo do mercado de consumo capitalista, e nesse sentido, um vir a ser de um consumismo que necessita de espaços para novos consumos num ciclo que não tem fim. No que diz respeito ao caráter da mudança na modernidade tardia, Hall argumenta de que as sociedades na pós-modernidade estão marcadas pela reflexividade da vida moderna, ou seja, naquilo que Giddens (1990) vai apontar como conseqüência da modernidade, as práticas sociais estão cada vez mais examinadas e refletidas no seu caráter à luz da imensa gama de informações expostas aos sujeitos no mundo moderno.

3 Hall está de acordo com Giddens (1990) quando este argumenta que á medida que o mundo moderno conecta áreas umas nas outras, ondas de transformações vão tomando conta do globo, um processo que Giddens define como desencaixe, ou seja, relações sociais deslocadas do seu lugar de origem, que ao serem transpostas para outros lugares do globo acabam por interconectar essas áreas e assim proporcionam transformações sociais amplas, uma vez que as instituições modernas se transportam para esses lugares, dando lugar a transformações antes impensadas. As transformações que estão associadas à modernidade estão diretamente ligadas ao que Hall acredita ser a dupla injunção de nascimento e morte do sujeito moderno, pois as transformações associadas à modernidade liberaram os sujeitos de seus apoios estáveis na tradição e na estrutura social. É nesse sentido que Hall aponta para um sujeito moderno que surge num momento particular e que também visualiza no horizonte a sua morte. A perspectiva de Hall nos sugere pensar que o pensamento moderno é uma espécie de mensageiro do tempo que trouxe no tempo as injunções que no seu conjunto proporcionarem a construção de um novo devir, sendo essas situações o protestantismo que vai liberar as consciências individuais da tirania religiosa, o humanismo renascentista que colocou o homem no centro de suas preocupações, as revoluções técnicas científicas que vai possibilitar as transformações do mundo material e o iluminismo que ambicionava libertar a humanidade de todas as opressões vividas no seu passado. Para Hall, alguns autores tiveram o mérito de colocar as questões que irrigaram o debate sobre as novas condições sociais vivenciadas pelos sujeitos, entre eles, Descartes foi quem colocou o sujeito individual, constituído das faculdades do pensamento sobre as possibilidades abertas pelo pensar e pelo raciocínio lógico e Locke que definiu o sujeito em termos de uma mesmidade de um ser racional, ou seja, uma identidade que permanece a mesmas e que era contínua com o sujeito. Para Castells (1999), a construção da identidade é permeada por um processo de construções de significados, baseados em um conjunto de atributos culturais que predominam sobre outras fontes de significados. Assim, podemos pensar que o fluxo da produção discursiva fixa as identidades e possibilita a abertura para experiências que vão sustentar uma

4 identidade auto-referida em símbolos considerados essenciais para coesão e pertença a um determinado grupo. Em Woodward (2000), encontramos a afirmação de que a identidade assume um caráter relacional, sua existência também está ligada ao que se encontra fora dela, de algo que ela não é, mas que, todavia, contribui para que ela exista, Nesse sentido, é possível pensar que na produção do fluxo discursivo, material e simbólico as práticas sociais vão sendo construídas de modo a incluir e excluir, portanto, por meio da diferenciação social as relações sociais ganham corpo e consolidam hábitos e costumes que refletem a natureza própria dessas relações de inclusão e exclusão. Assim, Woodward pontua que A representação, compreendida como um processo cultural estabelece identidades individuais e coletivas e os sistemas simbólicos nos quais ela se baseia (WOODWARD, 2000: 17). Nesse sentido, estamos de acordo com Castells (1999) quando pontua que a identidade, coletiva ou individual, pode compreender um conjunto de atributos, de tradições e costumes e também um projeto, para entre outras coisas, servir a um processo de exercício de cidadania. Esse projeto pode ter por base tornar-se algo, ou mais precisamente, de acordo com Neusa Souza (1983), tornar-se negro. A autora afirma que a identidade de um indivíduo depende em grande medida da relação com o passado, com a comunidade e da relação com o corpo. A imagem que temos de nós está associada à experiência da dor e do prazer que o corpo experimenta. A esse respeito, Souza pontua que tornar-se negro é uma necessidade de se impor, uma espontaneidade sempre auto-vigiada, estando sempre alerta, na verdade: Um sistema opaco de desconhecimento e reconhecimento, marcado por todas as ambigüidades provenientes de sua origem imaginária (SOUZA, 1983: 59). A despeito de considerar que não está claro que o corpo seja o lugar por para a observação histórica dos fluxos discursivos e das marcações simbólicas, pontuamos seu lugar

5 enquanto local onde a construção identitária se registra e adere, e, portanto, em torno e sobre ele podemos fazer alguma observação relevante para a construção do olhar analítico. Esse processo de desconstrução da supremacia branca na sociedade brasileira passa necessariamente pela construção da representação positiva dos símbolos da cultura negra, afirmação identitária, consumo, e também na produção de usos e sentidos que lhe dão forma social nas quais se inscrevem disposições provenientes de várias competências culturais, incluso ai, a mercantilização inscrito na modernidade. Em Sansone (1999) encontramos a contribuição para a discussão a respeito da identidade a partir dos objetos de consumo e mercantilização que caracterizariam alguns símbolos da identidade negra. Para o autor o consumo é também um marcador de etnicidade bem como uma forma de oposição à opressão, pois de maneira geral pode representar uma forma de negros e não brancos resistirem ao processo de hegemonia branca no Brasil, fazendo assim, com que sejam vistos e ouvidos. Assim, para Sansone, [...] historicamente o consumo tem sido uma forma poderosa de expressão da própria cidadania e vem adquirindo cada vez mais importância na determinação do status entre os negros no Novo Mundo (SANSONE, 1999: 04). A esse respeito o autor irá dizer que a sociedade brasileira nas últimas duas décadas tem diminuído as hierarquias em termos de classe, gênero e cor, sendo esses os efeitos de um maior fluxo de democratização das relações sociais em função da elevação dos níveis de educação bem como pela veiculação de mensagens positivas pelos meios de comunicação de massa. A esse respeito, estamos aqui nos referindo a um conjunto de imagens as quais os negros são agora também identificados com símbolos positivos e de posições vantajosas no gradiente do que podemos chamar de campo simbólico da produção imagética. Por tudo isso, para Sansone (1999), no Brasil de hoje, finalmente um seguimento da população negra está se tornando visível, e esse mesmo grupo tem atuado de modo a modificar as associações tradicionais por onde se percebe a marcação simbólica da identidade negra. Desta forma, verifica-se que uma nova geração de negros no Brasil tem reivindicado uma nova estética do uso simbólico da cultura negra, ao mesmo tempo em que demanda

novas formas de mercantilização desta mesma cultura e de objetos inseridos no fluxo global da produção de bens e serviços. É importante ressaltar que a diversidade de objetos da cultura negra não tem ampla cobertura por esse movimento de mercantilização dos objetos da identidade negra, já que não beneficia a todos, sendo predominantemente circunscrito a classe média negra. Tal fato tem gerado contradições e descontentamentos por parte de alguns que denunciam até mesmo nesse processo um ardil de construção artificial da identidade negra no Brasil. Todavia, esse processo de mercantilização e consumo de símbolos da cultura negra nos parece parte essencial do conjunto maior de estratégias de inclusão simbólica no campo da produção discursiva das representações sociais. Por isso, esse processo nos sugere pensar que há implicações sociológicas relevantes para a construção da identidade, em especial da identidade negra, qual seja, que a construção da identidade por meio da mercantilização de objetos da cultura negra tem colaborado para a fixação de um porto de partida ao qual qualquer construção identitária tem necessariamente que partir. Corroborando com essa inquietação Sansone pontua que: A mercantilização significa também fazer um artefato crescentemente acessível no mundo inteiro. Assim, a mercantilização requer uma seleção entre objetos e artefatos negros, uma vez que nem todos podem ser globalizados, mas também confere status e promove aqueles que estão sendo selecionados. (SANSONE, 1999: 82). Pesquisas indicam que a classe média negra no Brasil é ainda pequena, mas já se apresenta como um contingente que tem mostrado sua relevância e seu potencial de consumo. Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada-Ipea 2, o contingente de indivíduos desse segmento seria algo em torno de 8 milhões e movimentam em torno de 50 bilhões de reais por ano. Ressalta, porém que, este número ainda está longe de representar o verdadeiro potencial da chamada classe média negra no Brasil. Na imprensa, por meio das inúmeras matérias de jornais e revistas, tem-se registrado o surgimento de produtos específicos para negros, linha étnica, como gosta de rotular a própria indústria. Embora, aparentemente a maioria dos produtos esteja voltada para o 6 2 Ipea, indicadores de ascensão social do negro no Brasil, Fundação Seade, 1998.

mercado de beleza e estética, há dois destaques, a Revista Raça Brasil e O Guia do Círculo Negro 3, que começam a se consubstanciar e fazer parte da realidade brasileira. Segundo Roberto Melo, jornalista responsável pela implementação da Revista Raça, o segmento étnico derrubou três dogmas do mercado editorial: As vendas de Raça Brasil contrariaram três dogmas do mercado editorial no Brasil: o de que negros não tem poder de compra para produtos supérfluos, revistas que trazem negros na capa não vendem e de que o negro brasileiro não se orgulha de sua raça. (JORNAL A TARDE : 13/06/1996). A chamada linha étnica tem priorizado essencialmente a produção de consumo para estética e beleza, sendo hoje o cabelo o seu maior filão, ele é tido como o símbolo que demarca o lugar na escala social, mas, também é um marcador de diferença e de auto afirmação, além de ser muitas vezes uma mensagem e um ato de resistência cultural. É importante ressaltar que o cabelo, embora, ainda pouco estudado pelas ciências sociais no Brasil, tem implicações sociológicas relevantes á medida que interfere no sistema de classificação quanto a cor e a própria filiação étnica ou racial no Brasil*. Segundo Guimarães (1999), a cor no Brasil é uma construção racialista, é tomada como categoria empírica substituindo a categoria raça e tem sua denominação calcada a partir de uma denominação ambígua e subjetiva. Cor no Brasil significa mais que uma simples percepção cromática, é levado em conta traços físicos, a gradação da pigmentação da pele e também a textura do cabelo. A cor da pele, bem como o cabelo acaba por influenciar e definir a classificação dos indivíduos, isso faz com que no Brasil tenhamos catalogados 135 classificações de cores 4. É desta forma que morena é a pessoa mestiça de cabelo liso, mulato é mestiço de cabelo crespo, sarará é branco de cabelo crespo e cabo verde é preto de cabelo liso, esta última, uma denominação muito comum na Bahia. 7 3 O guia do círculo negro, criando em São Paulo em 1997, procura oferecer serviços de profissionais negros para a população negra. 4 Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de domicílio feita em 1976. * A esse respeito ressaltamos o trabalho Angela Figueiredo(1984) Beleza pura: símbolos e economia ao redor do cabelo negro. Monografia para conclusão do curso de Ciências Sociais. Universidade Federal da Bahia.

8 O cabelo é também apropriado pelo Movimento Negro como um símbolo, por excelência, de afirmação identitária. Segundo Barriel (1988) no processo de construção de uma identidade étnica são selecionados e acionados um conjunto de características que são utilizados como suporte revestido de significados, permitindo expressar e formular interesses diversificados onde o corpo parece ser local do self, o cabelo aparece como atributo significativo, uma expressão a um só tempo de emancipação, auto afirmação e resistência, além de um pólo de irradiação do orgulho de seu pertencimento étnico. O cabelo aparece aqui como relevante, mas acreditamos ser apenas a ponta de um iceberg, há ainda muito a ser revelado, compreendido e que pode nos oferecer pistas importantes na orientação de um olhar sociológico e entendimento do alcance das mudanças vigentes no Brasil no que toca a essa questão. Portanto, partimos da perspectiva que na modernidade, no processo de construção das identidades, em especial da identidade negra no Brasil, encontra-se elementos antes inexistentes, e agora significativos. A mercantilização de símbolos da cultura negra, bem como a combinação de uma ampla discussão sobre a questão racial, políticas de ação afirmativa e uma maior democratização das relações sociais no país nos desperta para a necessidade de compreensão sociológica dos fenômenos que lhe estão subjacentes. As construções da identidade podem ser potencializadas pela produção do fluxo discursivo nos espaços sociais, bem como pela resignificação a partir do consumo cultural. A produção cultural dos usos e sentidos - deduzidos dos contextos ao qual ocorrem as representações sociais - confere sentido às marcações identitária definidas no espaço social, quer seja um lugar geográfico ou simbólico. Portanto, as práticas discursivas bem como o consumo de bens materiais e simbólicos são fundamentais para o sistema de reconhecimento e diferenciação de um grupo étnico. Segundo Woodward (2000) a representação é um processo no qual estão inseridas as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos. Os significados gerados pelas representações permitem que o sujeito se posicione em relação a sua experiência e aquilo que ele é. A representação, compreendida como um

9 processo cultural estabelece identidades individuais e coletivas e também os sistemas simbólicos nos quais ela se baseia. Nesse sentido, a produção de uma linha étnica no Brasil tem valor simbólico e ocupa um espaço geográfico: produz consumidores, fomenta práticas, ajuda afixar identificações e projeta a construção identitária. Selecionamos algumas matérias publicadas nos principais jornais do país que nos informam o início da percepção dos meios de comunicação de massa sobre a existência e do potencial de uma classe média negra no Brasil como 5 : 1- Classe média negra impulsiona a venda de produtos étnicos (Diário do Comércio, São Paulo, 15/11/2000); 2- A cor do dinheiro: As empresas estão investindo nos consumidores negros (Carta Capital, 26/11/ 1997); 3- Empresas descobrem que faturamento não tem cor: começam a ser lançados produtos e campanhas específicos para os negros (O Globo 11/09/1996); 4- O negro é um consumidor voraz (Jornal da Tarde 13/10/96); 5- A indústria que aposta na cor de pele (Correio Braziliense 17/11/96); 6- Visivelmente negros, a tradição e a juventude concordam: o consumo e o modismo servem à causa (O Globo, 01/02/1997); 7- Publicidade brasileira ganha mais cor como crescimento do consumo entre negros, Bradesco, Parmalat e Boticário segmentam anúncio para tingir público maior (O Globo, 25/02/1997). 8- A classe média negra: advogados, professores, médicos, vendedores, empresários. Já são 8 milhões e movimentam 50 bilhões de reais por ano (Veja 18/08/1999); 9- Classe média negra: a força de quem subiu na vida sem perder as raízes (Raça Brasil 01/2000). Portanto, creio que estamos diante de um problema novo no Brasil, e como toda novidade traz o desconhecido, as imprecisões e as indagações que somente com o amadurecimento teórico e o empenho de uma pesquisa poderemos compreender os fatos. Ao que tudo indica, historicamente não há maiores registros no país de que no passado existisse um mercado etnicamente segmentado. Ao contrário, o apelo étnico, cada vez mais comum no 5 A maior parte das citações nesse texto com relação às matérias da grande imprensa foram retiradas do texto de Ângela Figueiredo (2002) a quem muito agradeço.

Brasil nos parece que tem recebido acolhida no público negro e começa uma nova fase, no qual a visibilidade do negro passa a ganhar contornos novos e positivos. 10 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AULLAX, Elisa L. Cor e mobilidade no Brasil. Estudos Afro-Asiáticos, n.26, 1994; BARRIEL, Maria Maia de Oliveira. A identidade fragmentada: as muitas formas de ser negro. Tese de doutorado apresentada na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1988. CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra, 1999. FERREIRA, Ricardo Franklin. Afrodescendente uma identidade em construção. Rio de Janeiro: Editora Pallas, 2000. FIGUEIREDO, A. A nova elite de cor. Dissertação de Mestrado defendida na universidade federal da Bahia, 1998. GUIMARÃES, A. S. "Cor, classes e status nos estudos de Pierson, Azevedo e Harria na Bahia (1940-1960)", in: Marcos Chor e Santos, Ricardo Ventura (org.). Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz/CCBB, 1996. HALL, Stuart. Quem precisa da identidade? In Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000. SANSONE, Lívio. "Cor, classe e modernidade em duas áreas da Bahia (algumas primeiras impressões)". In: Estudos Afro-Asiáticos, n.23. Rio de Janeiro: Cândido Mendes, 1992. SANSONE, Lívio. Os objetos da identidade negra: consumo, mercantilização, globalização e a criação de culturas negras no Brasil. Rio de Janeiro, 2000. Capturado em agosto de 2009. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/mana/v6n1/1972.pdf.

11 SOUZA, N. S. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. 2º edição. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1983. WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000.