1 A FESTA DE CORPUS CHRISTI Lia Carolina Prado Alves Mariotto Essa cerimônia religiosa foi criada em 1264 por breve 1 do papa Urbano IV. Seu enredo era baseado em passagens bíblicas (Segundo Livro de Samuel e Primeiro Livro dos Reis) onde se comemorava alegremente a transferência da Arca Sagrada de Judá para Jerusalém. Tal como nas narrativas bíblicas essa mudança deveria ser feita por uma caminhada festiva e acompanhada de vários instrumentos musicais. Em Portugal ela teve início no século XVI, mais precisamente em 1318, data que marca o aparecimento das primeiras notícias sobre sua realização. Nesse período, no momento em que os trabalhadores urbanos se organizaram em Confrarias, tendo um Santo como patrono, se tornou costumeiro, na festa de Corpus Christi, o desfile dessas Confrarias, dando a ela uma implicação religiosa-política. Como consequência dessa conotação política a procissão do Corpo de Deus adquiriu uma áurea de ato oficial e, através dos regimentos que a organizava desde 1517, ninguém podia negar-se a participar da solenidade quando convocado; à Câmara cabia arcar com as despesas de material e pagamento de propinas 2 a certos figurantes e o poder real reservava-se o direito de fazer-se representar simbolicamente pela imagem de São Jorge em posição de destaque a partir de 1387 para lembrar sua ajuda nas vitórias das armas portuguesas sobre os castelhanos desde a batalha de Aljubarrota 3, quando El-rei, D. João I, invocou como grito de guerra o santo São Jorge. [Tinhorão, José Ramos As Festas no Brasil Colonial, pp. 70/71] A presença obrigatória de São Jorge, como representante da magnificência, autoridade e poderio da coroa portuguesa, acabou transformando a procissão de Corpus Christi em um ícone soleníssimo da identidade nacional de Portugal. 1 Breve - carta ou escrito papal que encerra comunicação de alguma decisão, concessão de indulgências, testemunho de apreço ou aprovação etc. 2 Propina - gratificação extra por serviço normal prestado a alguém; gorjeta, emolumento. 3 Batalha de Aljubarrota - foi uma das raras grandes batalhas campais da Idade Média entre dois exércitos régios e um dos acontecimentos mais decisivos da história de Portugal. Inovou a tática militar, permitindo que homens de armas apeados fossem capazes de vencer uma poderosa cavalaria. No campo diplomático, permitiu a aliança entre Portugal e a Inglaterra, que perdura até hoje. No aspeto político, resolveu a disputa que dividia o Reino de Portugal do Reino de Castela e Leão, permitindo a afirmação de Portugal como Reino Independente, abrindo caminho sob a Dinastia de Avis para uma das épocas mais marcantes da história de Portugal, a era dos Descobrimentos.
2 Com a permissão para encenar peças bíblicas, ao longo do cortejo processional, algumas Confrarias participantes organizavam autos (assim eram chamadas as encenações) profano-religiosos que agradavam a todos: os participantes dos autos e os espectadores. No Brasil a cerimônia de Corpus Christi começou na primeira metade do século XVI e isto é comprovado pela carta escrita pelo jesuíta Manoel da Nóbrega onde está o seguinte registro: Outra procissão se fez dia de Corpus Christi [20 de julho de 1519] muy solemne, em que jugou toda a artilharia que estava na cerca [proteção que marcava a o limite da cidade] as ruas muito bem enrramadas ouve danças e invenções à maneira de Portugal. (Tinhorão p. 77) Talvez esteje aí a origem do atual costume do povo brasileiro de enfeitar profusamente as ruas por onde passará a procissão, chegando ao clímax de provocar disputas entre os moradores das ruas assinaladas, procurando se suplantarem em decoração e originalidade de temas decorativos das vias públicas. Esse clímax de disputas de ruas enfeitadas é encontrado inclusive entre cidades vizinhas. Em Mariana, primeira cidade mineira fundada por um taubateano Salvador Fernandes Furtado de Mendonça as procissões de Corpus Christi eram soleníssimas, adquirindo, por vezes, um caráter quase folclórico, como, por exemplo, no ano de 1721, quando, segundo documento reproduzido pelo historiador Francisco Lopes (Os palácios de Vila Rica) foi registrado um pagamento a certo João Martins de doze oitavas de ouro por preparar e consertar os gigantes que vão à procissão de Corpus Christi, e mais seis oitavas aos negos que carregavam São Cristóvão e os gigantes.[minas Gerais Roteiro turístico-cultural das Cidades Históricas EMBRATUR] Na cidade de Ouro Preto, outra cidade mineira fundada por taubateanos, a imagem de São Jorge, feita por Aleijadinho está ligada a duas lendas. Por volta de 1798, chamado ao palácio pelo então governador Bernardo de Lorena, Antônio Francisco Lisboa para lá se dirigiu, possivelmente carregado por seus escravos. Ao ver entrar o escultor, já bastante deformado pela doença, certo João Romão, ajudante de ordens do Governador, teria exclamado em voz alta: Mas que criatura horrorosa! Magoado, o Aleijadinho respondeu-lhe asperamente e foi se entender com Bernardo de Lorena. O Governador chamara-o, a fim de lhe encomendar uma imagem de São Jorge,
3 articulada e em tamanho natural, para desfilar montada a cavalo na próxima procissão de Corpus Christi. Aleijadinho aceitou a proposta e se pôs a trabalhar com entusiasmo e certo mistério. Chegando o dia de Corpus Christi, o povo de Vila Rica (atual Ouro Preto) encheu as ruas aguardando a procissão. Ao começar o desfile das figuras bíblicas, e ao surgir o cavalo de São Jorge montado, todo mundo desatou a rir às gargalhadas: a imagem era o retrato exato de João Romão! O Aleijadinho conseguira captar sua expressão boçal e aquela incontinência que o fazia andara atrás de qualquer mulher, por velha e feia que fosse...fora essa a vingança de Antônio Francisco Lisboa. São Jorge desfilava seguido por um menino também montado a cavalo, representando o anjo da guarda. A imagem saía da Casa de Câmara com sua guarda de honra e passava em revista as tropas, que lhe faziam continência. Depois, sempre a cavalo, chegava até a Matriz do Pilar e voltava pelo mesmo caminho, visitando a Matriz de Antônio Dias o fundador taubateano. Depois disso, recolhia-se novamente à Casa de Câmara, onde ficava até o ano seguinte, quando participava da mesma procissão. A segunda lenda conta que certa vez, em pleno desfile, ao tropeçar o animal no qual São Jorge estava montado, a imagem perdeu o equilíbrio, tombou para frente e matou o escravo que puxava o cavalo. Na queda, a lança que o santo tinha na mão terse-ia enfiado justamente nas costas do escravo. Segundo a lenda, São Jorge foi preso e trancafiado no escuro cubículo do pátio tendo ali permanecido durante algum tempo,
sendo finalmente absolvido! [Minas Gerais Roteiro turístico-cultural das Cidades Históricas EMBRATUR]. 4
5 Em Taubaté, as informações mais antigas encontradas sobre as procissões de Corpus Christi estão nas Atas da Câmara do período de 1780/1789: - vereança de 13/05/1780: os vereadores se reuniram para passar Edital para se alugarem as casas para a festa do Corpo de Deus; - vereança de 03/06/1780: se passou Mandado da despesa da festa de Corpo de Deus; - vereança de 18/05/1782: a Câmara passou Edital para a festa do Corpo de Deus convocando os moradores a caiarem as casas e limparem as ruas; - vereança de 21/06/1783: e se passou Mandado para se pagar a festa do Corpo de Deus; - vereança de 22/05/ 1784: determinaram (os Vereadores) ao Procurador do Concelho se prontificasse para a festa do corpo de deus com o que foi preciso na forma que assiste fazer os mais anos e depois, passar Mandado para se pagar a despesa; - vereança de 02/07/1785: e se passou Mandado para se pagar a festa de Corpo de Deus; - vereança de 22/06/1789: o Vereador Filipe Monteiro Silva requereu se passasse Edital para se fazer a festa do Corpo de Deus, domingo seguinte no que não convieram mais; - vereança de 11/06/1791: se passou Edital para caiarem as casas para o dia de Corpo de Deus; - vereança de 16/05/1796: foi mandado passar Edital para o asseio das ruas e ornato das casas para a procissão do dia de Corpo de Deus. Após a Independência do Brasil, a obrigação da Câmara em arcar com os festejos do dia de Corpus Christi permanece: - vereança de 25/05/1823: nela determinaram unanimemente celebrar a Função de Corpus Christi com as solenidades do costume, assistindo a Corporação desta Câmara à dita festividade mesmo sem estandarte, visto não chegar em tempo, o que mandaram vir da Corte do Rio de Janeiro, com as novas armas da Nação Bradileia e ourossim
6 determinaram se fizesse a Função com Senhor Exposto e Procissão ando cera a todos os Sacerdotes, Religiosos e mais pessoas da Governança dessa vila, iluminando competente o Trono na forma do costume. Na mesma determinaram ao Procurador do Concelho mandar ir carpir o pátio da Matriz desta vila, bem como se providenciasse a limpeza e caiamento de toda a Vila para a mesma função: e que também se oficiasse ao Capitão Mor para fazer aprontar carregadores para o Pálio dos Oficiais das Ordenanças para a função de Corpus Christi. Mudou o regime político: de Colônia o Brasil passou a ser Império, mas o feitio político dessa festividade de Corpus Christi continuou. - vereança de 13/03/1824: e ao mesmo se terminou mandasse vir do Rio de Janeiro e à custa desta Câmara a cera para a Procissão do Corpo de Deus e um Espaldar de damasco verde com seu galão e franja de ouro para debaixo dele se colocar o sobredito Retrato (de Sua Majestade Imperial D.Pedro I). - vereança de 25/06/1825: determinaram que se passasse Mandado para se pagar a conta da despesa da Festa de Corpo de Deus, da quantia de cento e vinte e um mil, novecentos e vinte reis, para se pagar para o Alferes Francisco Custódio de Albuquerque; - vereança de 10/06/1826: mandaram passar Mandado para o pagamento da função de Corpus Christi; - vereança de 31/03/1827: assentaram em que o Procurador mandasse vir a cera para a função de Corpus Christi e que esta se faria conforme o costume; - vereança de 17/05/1828: acordaram em não haver festa de Corpus Christi da obrigação do Senado a vista das despesas feitas e que se há de fazer no conserto da casa da Cadeia visto o estado dela, visto que para segurança dos presos se façam mister guardas e correntes tão oposto ao sistema atual. Neste momento percebe-se o início do desligamento da obrigação da Câmara em arcar com as despesas e organização dos festejos de Corpus Christi. Com o afastamento político as comemorações do Corpo de Deus vão se tornar exclusividade da Igreja Católica. E assim é até os dias atuais. *********