CARTAS DO LEITOR: A CONSTRUÇÃO DO ETHOS COMO ESPELHO DA CIDADANIA Lygia Maria Gonçalves Trouche (UFF) lymt@terra.com.br



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Transcrição:

CARTAS DO LEITOR: A CONSTRUÇÃO DO ETHOS COMO ESPELHO DA CIDADANIA Lygia Maria Gonçalves Trouche (UFF) lymt@terra.com.br O texto não é para ser contemplado, ele é enunciação voltada para um co-enunciador que é necessário mobilizar para fazê-lo aderir fisicamente a um certo universo de sentido. (Maingueneau, 2005, p. 73) 1. Apresentação Este texto tem por objetivo discutir, sob o ponto de vista da encenação discursiva no gênero carta de leitor, os procedimentos linguístico-discursivos da construção enunciativa (Charaudeau, 2009) com apoio nos princípios da linguística da enunciação (Koch, 2003), relacionados às questões de construção do ethos imagem de si no discurso desenvolvidas por Maingueneau (2005, 2008). Assim, a análise do corpus permitirá uma reflexão consistente dos aspectos linguísticos e uma leitura do ethos de um recorte datado da opinião pública, como um espelho de questões relevantes da cidadania. Especificamente serão pesquisados os papéis discursivos do locutor e do interlocutor nas cartas publicadas. Os fatos de língua já descritos em nossas gramáticas e estudos sobre a modalização (sentido de língua) serão observados nos efeitos de sentido que produzem (sentido de discurso) na situação de comunicação em que se inserem. Analisaremos uma carta de leitor do jornal O Globo, publicada na seção fixa DOS LEITORES que apresenta o seguinte subtítulo: Pelo e-mail, pelo site do GLOBO, por celular e por carta, este é um espaço aberto para a expressão do leitor. O jornal, em um box destacado, informa que acolhe opiniões sobre todos os temas e que rejeita acusações insultuosas ou desacompanhadas de documentação. Avisa que devido às limitações de espaço será realizada uma seleção de cartas e que, quando não forem concisas, poderão ser publicados

693 trechos mais relevantes. Na mesma página, há um espaço separado denominado NO SITE E NO CELULAR que procura manter e incentivar uma interação com os leitores por meio da internet e da telefonia móvel. Logo, a seção DOS LEITORES destina-se inteiramente à comunicação com os leitores, reservando-lhes uma possibilidade de expressão de suas idéias. 2. Texto: produto da atividade discursiva Podemos conceituar texto como uma unidade construída por uma série de frases encadeadas sintática e semanticamente, sob a o- rientação de um tema, cumprindo uma finalidade comunicativa. Segundo Koch (2003, p. 6), o texto apresenta-se como Uma manifestação verbal constituída de elementos linguísticos selecionados e ordenados pelos coenunciadores, durante a atividade verbal, de modo a permitir-lhes, na interação, não apenas a depreensão de conteúdos semânticos, em decorrência da ativação de processos e estratégias de ordem cognitiva, como também a interação (ou atuação) de acordo com práticas socioculturais. Devemos, desde logo, levar em conta também que do ponto de vista dos interlocutores (eu comunicante/locutor e tu interpretante /leitor) interagem três fatores para que a comunicação se realize: o conhecimento linguístico, o conhecimento de mundo e o conhecimento interacional (KOCH, 2002, p. 32-33.). O conhecimento linguístico corresponde ao domínio da competência gramatical que diz respeito às regras da linguagem, como a formação de palavras e de frases, à pronúncia, à ortografia, à semântica. Esta competência se centra diretamente na habilidade e no conhecimento necessários para a expressão adequada, em primeira instância, do sentido literal. Segundo a concepção de Charaudeau (2008, p. 25), a produção dessas paráfrases estruturais permite que se efetue na linguagem um jogo de reconhecimento morfossemântico construtor de sentido, que remete à realidade que nos rodeia (atividade referencial), conceituando-a (atividade de simbolização) O conhecimento de mundo corresponde ao conhecimento do tipo declarativo (asserções a respeito dos fatos do mundo) e ao tipo episódico (modelos cognitivos adquiridos pela experiência na vida social). Com base nesses conhecimentos e em competências específicas, o falante pode formular hipóteses, estabe-

694 lecer e perceber a coesão lexical, realizar inferências com base em remissões a alguma coisa além do enunciado explícito, que se encontra antes e depois do ato de proferição da fala. (CHARAUDE- AU, 2008, p. 25) O conhecimento sociointeracional se refere ao domínio das ações verbais que permitem a interação pela linguagem. Falamos, pois, de competência sociolinguística que corresponde ao uso adequado de expressões linguísticas aos diferentes contextos, isto é, à situação dos participantes, propósitos da interação, normas e convenções da interação, adequação entre significado e forma, significado e função comunicativa. Os três fatores: o conhecimento linguístico, o conhecimento de mundo e o conhecimento interacional levam à competência discursiva que corresponde ao modo como se combinam formas gramaticais e significado para a significação da totalidade discursiva, veiculada por diversos gêneros em que se dão as relações sociais. Charaudeau (2008, p. 78) faz uma correspondência entre modos de discurso e gêneros textuais, mostrando que um gênero pode coincidir com um determinado modo de organização dominante ou apresentar uma combinação dos modos. 3. Gênero carta de leitor A carta de leitor é um gênero textual que se organiza em torno de um assunto que, geralmente, faz parte das pautas dos jornais e que, portanto, de alguma forma, representa um interesse despertado na sociedade. Caracteriza-se por um estilo de comunicação in absentia, em forma de paragrafação e limites de linha padronizados pelo jornal e por um conjunto de ideias e opiniões de locutores que interagem diretamente com o veículo de comunicação. Atualmente, a carta de leitor apresenta-se como um gênero bastante difundido e, até certo ponto, incentivado pelos meios de comunicação que buscam a interatividade com os leitores. Assim, A carta do leitor é uma carta aberta dirigida a destinatários desconhecidos. Ela é veiculada através dos meios de comunicação escrita, de circulação ampla ou restrita, tem caráter público, cumprindo importante função social na medida em que possibilita o intercâmbio de informações, ideias, opiniões entre diferentes pessoas de um determinado grupo. Nessas cartas, encontramos o português escrito no padrão formal, atual, da forma como é concebido pela comunidade usuária. (PASSOS, 2003, p. 81)

695 Dominar um gênero textual não se reduz a dominar determinadas formas de língua, mas sim a possibilidade de realizar, pela língua, objetivos específicos de comunicação, em situações sociais particulares. Logo, a adequada utilização dos gêneros textuais por parte dos falantes está firmemente estruturada na cultura, já que se trata de fenômenos sócio-históricos. Destacamos a concepção contemporânea de gêneros com enfoque em seu caráter de comunicação em atividades socialmente organizadas com base em Bronckart (1999, p. 103) para quem a apropriação dos gêneros é um mecanismo fundamental de socialização, de inserção prática nas atividades comunicativas humanas e em Bazerman (2006, p. 31) que define: Gêneros são o que nós acreditamos que eles sejam. Isto é, são fatos sociais sobre os tipos de atos de fala que as pessoas podem realizar e sobre modos como elas os realizam. Assim podemos entender que os gêneros resultam de processos sociais, vivenciados por pessoas que procuram, pela linguagem, compartilhar significados com propósitos práticos. Pode-se resumir o gênero carta de leitor como aquele em que o locutor, em sua condição de cidadão, transmite a interlocutores indeterminados e, presumivelmente, heterogêneos uma opinião, reflexão ou indignação sobre um fato social, julgado relevante, para evidenciar determinada situação, talvez mais como forma de catarse do que para buscar o comprometimento dos leitores com atitudes radicais de transformação social Trata-se de denúncias ou de juízos de valor que não possuem força suficiente para abalar o sistema. Todavia, constituem-se em excelentes subsídios para a identificação de um ideal de civilidade, ainda que apenas discursivamente idealizado. O espaço dos leitores seria, pois, um simulacro de atuação democrática, enraizado na cultura, para evidenciar o dever ser do lugar comum. Trata-se de uma situação comunicativa em que os parceiros não estão face a face, mas mantêm suas identidades psicológicas, sociais e de ethos. Segundo Charaudeau, esses parceiros estão envolvidos num contrato de comunicação que implica um ritual sociodiscursivo em que o eu-comunicante/locutor e o tu-interpretante/leitor devem conhecer seus papéis. Isso implica, ainda, que há um conjunto de liberdades e restrições, resultantes desse tipo de enunciação do ato

696 de linguagem: o espaço cedido pelo jornal, a possibilidade de interferência do editor no texto com cortes ou escolha de algum trecho para destaque, bem como as recomendações apresentadas no box de explicitação do que pode ou não ser dito. Entra, portanto, também em jogo a competência comunicativa que requer dos participantes da encenação (locutor e leitores), além do conhecimento de mundo partilhado (o conhecimento dos fatos relatados), a habilidade no uso da língua em registro adequado ao contexto (texto veiculado pela imprensa). Portanto, de grande importância, a situação social dos participantes, os propósitos da interação (comentários e críticas sobre a- contecimentos de domínio público), normas e convenções linguístico-discursivas do gênero textual. O texto do gênero carta de leitor deve apresentar os traços linguísticos que permitam identificar o remetente (enunciador) [o modo como se manifesta discursivamente como locutor] e o destinatário [o modo como se constrói discursivamente o destinatário]; o assunto; os efeitos de sentido construídos para a persuasão ou manipulação do destinatário (leitor) em direção a determinado ponto de vista; a predominância do tipo textual, a qualidade do ethos, isto é, a construção de uma identidade compatível com o mundo construído discursivamente. Embora o gênero carta (em sentido amplo) permita uma variedade de finalidades: pedido, apresentação, conselho, informações, críticas, comentários, agradecimento, notícias familiares entre tantas outras, a carta de leitor, geralmente, constitui-se em uma exposição crítica, quase sempre emotiva, sobre fato de conhecimento público. Essa seção do jornal, por ilustrar o espírito de uma época, lembra, de certo modo, as tiras da Mafalda e as charges que, com sua ironia cortante, comentam a realidade e, nos implícitos, nos mostram, em relação especular, muito de nossas próprias faces. 4. Modos de organização do discurso Comunicar, como se sabe, é uma tarefa complexa, já que não se trata apenas de se transmitir uma informação entre interlocutores, como se a linguagem fosse o reflexo do pensamento. A comunicação resulta de um processo de produção de linguagem, tanto do ponto de vista de sua concepção, como de sua compreensão.

697 Um discurso, para cumprir sua função social, se organiza em modos (CHARAUDEAU, 2008, p. 74) que consistem no emprego de determinada categoria de língua, ordenados em função das finalidades do ato de comunicação. Os modos de organização do discurso compreendem o enunciativo, o descritivo, o narrativo e o argumentativo. Cada um desses modos possui uma função de base e um princípio de organização que pressupõem, ao mesmo tempo, uma organização do mundo referencial e uma organização de sua encenação (descritiva, narrativa, argumentativa). Focalizaremos, nesse trabalho, o modo enunciativo, especificado no seguinte quadro (resumido): Charaudeau (2008, p. 750) O modo enunciativo dá conta da posição do locutor em relação ao interlocutor, a si mesmo e aos outros. Esse modo intervém na encenação de cada um dos outros descritivo, narrativo e argumentativo. O modo de organização enunciativo não se confunde com a situação de comunicação, pois o foco está centrado nos protagonistas, seres da fala, internos à linguagem; não se confunde também com a modalização que é uma categoria de língua que permite, por procedimentos linguísticos, tornar explícito o implícito no ponto de vista do locutor.

698 O modo enunciativo é uma categoria de discurso que constrói a maneira pela qual o sujeito falante (locutor) age na encenação 1 do ato de comunicação. Na perspectiva da semiolinguística, pode-se entender que todo ato de linguagem se compõe de um propósito referencial que se concretiza em ponto de vista enunciativo do sujeito falante, integrados a uma situação de comunicação. Sintetizando, Charaudeau (2008, p. 82) conceitua: No âmbito da análise do discurso, que é a nossa perspectiva, o verbo enuncia se refere ao fenômeno que consiste em organizar as categorias de língua, ordenando-as de forma que dêem conta da posição que o sujeito falante ocupa em relação ao interlocutor, em relação ao que ele diz e em relação ao que o outro diz. As três funções do modo enunciativo resumem-se nos seguintes comportamentos: a) alocutivo que estabelece uma relação de influência entre locutor e interlocutor (o locutor age sobre o interlocutor, impondo-lhe uma reação); b) elocutivo que revela o ponto de vista do locutor (o locutor enuncia seu ponto de vista, modalizando subjetivamente o enunciado); c) delocutivo que retoma a fala de um terceiro (o locutor se apaga no ato de comunicação e não implica o interlocutor, sua enunciação é aparentemente objetiva). 5. A construção do ethos na carta de leitor Tomamos ethos em seu viés pragmático como construção de imagens que se dão na interação verbal como troca simbólica regida por mecanismos sociais. Nesse estudo sobre a construção do ethos nas cartas de leitor como espelho da cidadania, destacamos que o locutor porta-voz e reflexo da opinião pública critica os acontecimentos e, implicitamente, busca a adesão dos leitores às opiniões expressas. O discurso da carta de leitor constrói a expectativa de que o público compartilhe com o locutor um conjunto de valores, de crenças e de evidências socialmente valorizadas. Ruth Amossy 1 Charaudeau denomina encenação (mise-en-scène) a interação entre os participantes de um ato de comunicação.

699 (2005, p. 124), ao discutir as instâncias do orador, do auditório e das crenças compartilhadas, afirma: O orador apoia seus argumentos sobre a doxa que toma emprestada de seu público do mesmo modo que modela seu ethos com as representações coletivas que assumem, aos olhos dos interlocutores, um valor positivo e são suscetíveis de produzir neles a impressão apropriada às circunstâncias. Embora os locutores das cartas raramente sejam figuras socialmente reconhecidas (políticos, intelectuais, artistas etc.), seus discursos abordam a realidade com base em representações culturais preexistentes. Nesse gênero discursivo, o fiador 2 do ethos corresponde aos ideais cristalizados de moralidade e de comportamentos socialmente valorizados que o leitor identifica no locutor. A apresentação de si do locutor se constrói com base nos esquemas coletivos que ele identifica como cristalizados na cultura e em modalidades enunciativas que componham determinada imagem. O locutor ou eu comunicante pode adotar atitudes diferenciadas em relação ao seu dizer, isto é, pode apresentar-se em primeira pessoa do singular ou do plural, pode assumir uma atitude distanciada em um comentário centrado no assunto ou ainda dirigir-se ao leitor mesmo que indiretamente. Normalmente, os locutores das cartas de leitor revelam, pelos comentários e críticas que fazem, os ethé da moralidade, da temperança e da honestidade, implícitas na avaliação contundente do fazer das autoridades e dos comportamentos protagonizados por personalidades conhecidas na mídia ou que, eventualmente, se envolvam em acontecimentos destacados no noticiário do jornal e da TV. Analisaremos apenas uma carta de leitor (em função dos limites de extensão deste tipo de trabalho) de O Globo de 115/07/2010, no que se refere aos modos de organização do discurso e à construção dos ethé: 2 O fiador, para Maingueneau (2005, p. 72) é uma imagem construída pelo coenunciador com base em indícios textuais de diversas ordens.

Carta 700 O presidente Lula poderia ser menos destemperado. Ele se irrita com qualquer tipo de comentário. A FIFA tem razão em se preocupar com a infraestrutura para a Copa de 2014. Se não temos aeroportos, estádios, rodovias etc., o início está atrasado, sim. Caso contrário, teremos obras malfeitas, mal acabadas e um legado de sucata. Victor Alberto ferreira Corrêa Rio Nessa carta, observamos o ethos do locutor como alguém e- quilibrado com capacidade de avaliar o temperamento irritadiço do presidente Lula frente a uma crítica da FIFA, julgada pertinente. No texto em análise, o modo enunciativo apresenta, predominantemente, comportamento elocutivo ponto de vista da avaliação, por meio de opinião e apreciação do fato. Há aspectos de modalização que compõem a caracterização da subjetividade do locutor tais como: o auxiliar poder no futuro do pretérito, indicando uma possibilidade não concretizada; o uso do presente do indicativo com valor de asserções sobre fatos apresentados como reais. O emprego do presente do indicativo e do futuro como tempos do comentário (WEINRICH, apud KOCH & FÁVERO, 2008, p. 44,45), conduzem o leitor a uma atitude receptiva e atenta, intensificando a validade do relato. A condicional se, relacionada ao tempo presente, anula de certo modo a condição, que é apresentada como real não temos mesmo aeroportos: trata-se de argumento retórico para corroborar a afirmativa da FIFA sobre o atraso das obras para a Copa do Mundo de 2014, fato intensificado pelo uso do sim, que dialoga com uma voz fora do texto. Destaque-se a escolha de adjetivos e de locuções adjetivas de avaliação pessoal como: destemperado, malfeitas, mal acabadas, de sucata. Há, também, no texto da carta aspectos do comportamento delocutivo, pois o locutor diz como o mundo existe, apresentando fatos mencionados por outro locutor (a FIFA). A polifonia funciona como argumento para validar as críticas feitas e apontar a real situação em que nos encontramos (sem aeroportos, estádios, rodovias etc.). Nota-se que, apesar da aparente objetividade, o locutor se vale de exemplos que alertam o leitor para as prováveis consequências indesejadas, se não houver mudança de atitude das autoridades. Podemos inferir os ethé da falta de responsabilidade no cumprimento dos prazos para a realização das obras e da irresponsabilidade em re-

701 lação à infraestrutura necessária à realização de uma Copa do Mundo no Brasil.

6. Reflexões finais 702 Aspectos como a polifonia, a intertextualidade, a ironia, a metáfora, entre outros, são igualmente importantes constituintes da produção de sentido do texto, no ato da comunicação que implica, necessariamente a interação entre os interlocutores. Segundo Charaudeau (2006, p. 67), A situação de comunicação constitui assim o quadro de referência ao qual se reportam os indivíduos de uma comunidade social quando iniciam uma comunicação. Como poderiam trocar palavras, influenciar-se, agredir-se, seduzir-se, se não existisse um quadro de referência? A análise de texto requer sempre um trabalho continuado ao longo da vida, já que todo ato de leitura põe, face a face, quase sempre em confronto, conhecimentos de mundo e experiências discursivas diferentes. Os textos das cartas de leitor permitem uma visão de aspectos relevantes de nossa cultura, pois apresentam avaliações e comentários de uma parcela da população sobre o cotidiano, servindo como um espelho da opinião geral. Observa-se nessas cartas, ainda que implicitamente, uma busca de concordância dos leitores em relação a juízos de valor sobre vários aspectos do comportamento social. Nesse sentido, a carta de leitor funciona como um termômetro da visão de mundo de uma parcela pequena, mas constante da população. Os ethé percebidos, com base nas críticas feitas, apontam, em uma relação especular, as características de nossa cidadania, ainda um projeto em construção. Como atividade pedagógica, a análise das cartas de leitor pode ser um eficiente meio de desenvolvimento do leitor crítico tanto em relação a fatos da língua, como a reflexões sobre comportamentos que nos identificam como pertencentes a uma cultura. Podem também levantar questões que induzam a uma autocrítica que produza, mesmo que a longo prazo, uma conscientização de nosso problemas.sociais. Um tratamento sistemático das questões de interpretação de texto deve considerar, portanto, a situação de comunicação, os tipos e gêneros textuais, o modo de organização do discurso, o registro de língua em sua adequação às finalidades do texto, os fatores de tex-

703 tualidade, o conhecimento de mundo. Assim, ficará evidente para o aluno que, para ler e interpretar um texto, há um instrumental teórico capaz de permitir-lhe uma abordagem adequada de análise. O gênero textual carta de leitor constitui um material importante e adequado à análise da orientação discursiva de um texto. Possui ainda a vantagem de tratar de assuntos do cotidiano e que dizem respeito à vida do cidadão. Os resultados desse tipo de análise poderão favorecer uma prática de ensino de língua portuguesa que procure apontar estratégias de leitura e de produção de texto, permitindo que o aluno se desenvolva como sujeito de sua linguagem e estabeleça um diálogo produtivo com os textos que circulam em nossa sociedade. Enfim que capte as entrelinhas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMOSSY, Ruth (Org.). Imagens de si no discurso. A construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2005. BAZERMAN, Charles. Gêneros textuais, tipificação e interação. Organizado por Ângela Paiva Dionísio & Judith Chambliss Hoffnagel. São Paulo: Cortez, 2003. BRONCKART, Jean-Paul. Atividade de linguagem, textos e discursos. São Paulo: EDUC/PUC-SP, 1999. CHARAUDEAU, Patrick.Grammaire du sens et de l expression. Paris: Hachette, 2002.. Discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2006. Linguagem e discurso. São Paulo: Contexto, 2008. KOCH, Ingedore. A inter-ação pela linguagem. São Paulo: Contexto, 2003.. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Contexto, 2003. KOCH, Ingedore; FÁVERO, Leonor Lopes. Linguística textual: introdução. São Paulo: Cortez, 2008.

704 MAINGUENEAU, Dominique. Ethos, cenografia, incorporação. In: AMOSSY, Ruth. A imagem de si no discurso. São Paulo: Contexto: 2005. PASSOS, Cleide Maria Teixeira Veloso dos. As cartas do leitor nas revistas Nova Escola e Educação. In: DIONÍSIO, Ângela Paiva & Beserra, Normanda da Silva. (Orgs.) Tecendo textos, construindo experiências. Rio de Janeiro: Lucerna, 2003.