QUANDO SEGUIR REGRAS (NÃO) É PRODUZIR DISCURSO



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Anais do 6º Encontro Celsul - Círculo de Estudos Lingüísticos do Sul QUANDO SEGUIR REGRAS (NÃO) É PRODUZIR DISCURSO Irma HADLER COUDRY (IEL-UNICAMP) Fernanda Pereira FREIRE (PG-IEL/NIED-UNICAMP) ABSTRACT: This paper presents data from a single case study of a 12 years old boy (VV) who suffered, in 2001, a serious crane encephalic trauma (TCE) in left parietal and occipital regions. His language difficulties are related to the language rules in discursive situations. KEYWORDS: crane encephalic trauma; language difficulties; discursive competence; oral and writing; clinical practice. 0. Introdução: o caso de VV Este trabalho apresenta o estudo de caso de um pré -adolescente de 12 anos de idade que sofreu em 2001 um traumatismo crânio-encefálico (TCE) grave, causado por um atropelamento de jet-ski. Após o acidente, VV permaneceu na UTI durante dois meses em coma. O TCE acometeu a região parieto-occipital esquerda, deixando como seqüelas uma hemiplegia à direita e dificuldades relacionadas à linguagem, percepção e corpo. Em outubro de 2003 iniciamos o acomp anhamento individual de VV no Laboratório de Neurolingüística (LABONE) do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) 1. A prática clínica com a linguagem é teoricamente orientada para o discurso, o que significa que o foco do trabalho é a relação sujeito/ linguagem. A história de VV mostra que ele sempre foi bom-falante, bom-aluno, bom-menino. Embora os exames clínicos revelem uma extensa lesão parieto-occipital, a bibliografia especializada mostra que o TCE provoca uma resposta global do cérebro, podendo acarretar alterações orgânicas e psíquicas independentemente da área atingida, já que a organização neuronal funciona de forma harmônica entre seus vários sistemas (Damásio, 1996). Possivelmente devido a uma repercussão frontal e a um rebaixamento do tônus otimal do cérebro 2, foram observadas dificuldades com a manutenção do foco da atenção e com a seleção de temas relevantes para os propósitos da enunciação. Outros sinais neurológicos compõem um quadro clínico complexo: lentificação motora; baixa capacidade pneumofônica; alterações posturais (interferindo nas funções de respiração, deglutição, fonação e visão); propriocepção exagerada no ato da alimentação (podendo levar a engasgos); riso desmesurado; bocejos freqüentes e abundantes e uma suposta dificuldade de memória. Dada a severidade do quadro neurológico de VV, é surpreendente seu restabelecimento. De maneira geral, todos os sinais neurológicos mencionados ou deixaram de se manifestar ou se apresentam em menor freqüência, em 2004. A melhora de seu quadro se deve, por um lado, ao conjunto de atendimentos clínicos a que vem se submetendo nas áreas de fisioterapia, fonoaudiologia, psicopedagogia e neurolingüística e, por outro, à plasticidade de um sistema neuronal jovem 3, cujo potencial para fazer novas conexões contribui para a sua recuperação psico-orgânica. Atualmente cursa a 4ª série do ensino fundamental com bom aproveitamento escolar. 1 Este estudo está vinculado ao Projeto Integrado em Neurolingüística: Avaliação e Banco de Dados (CNPq - 521773/95-4). O acompanhamento longitudinal do caso é feito pelas autoras, identificadas ao longo do texto por Imc e Iff, respectivamente. 2 A manutenção do tônus cortical é imprescindível para a atividade cerebral seletiva e organizada. Na sua ausência ou instabilidade, os estímulos exteriores chegam ao SNC do sujeito com igual força, impedindo uma atividade consciente organizada, dando lugar a associações casuais ou secundárias (Luria, 1991). 3 A plasticidade neuronal refe re-se à capacidade que certos conjuntos de neurônios têm de substituírem outros incapacitados para a execução de determinadas atividades, em decorrência de lesões e/ou alterações funcionais.

A repercussão frontal do trauma na vida psíquica de VV configurou um outro padrão de atitudes frente à produção e uso da linguagem, com efeitos em suas ações e comportamentos socialmente estabelecidos: porta-se como um pequeno grande homem, cerimonioso, muito educado, com predileção pela norma padrão 4. O acompanhamento clínico tem mostrado que VV apresenta dificuldades em relação à competência discursiva (Maingueneau, 1984) 5 : a língua que usa é um sistema de regras desvinculado de seu uso social. VV tem se mostrado - no papel de interlocutor - um bom-intérprete da cultura e um bom-seguidor de regras da língua. No entanto, no papel de locutor, língua e cultura nem sempre se articulam no jogo social da linguagem. Observa-se, portanto, uma dificuldade na mudança de papel discursivo que o funcionamento da linguagem requer. Em 2004, no acompanhamento clínico, temos estabelecido práticas com a escrita, cuja natureza reflexiva, possibilita estabelecer e manter certos papéis discursivos (autor, leitor), deixando à mostra esse processo, tanto em relação à organização hierárquica do sistema, quanto em relação a seu uso discursivo. 1. A prática clínica O acompanhamento clínico de VV no LABONE, iniciado há um ano, tem como objetivo a articulação entre a língua e seu funcionamento discursivo, o que requer o uso da linguagem em diversos contextos verbais e não verbais, considerando as condições de produção do discurso e as imagens que se fazem entre si os protagonistas da interlocução, garantindo uma direção para os diferentes papéis enunciativos, submetidos a regras que moderam o uso da linguagem (Pêcheux, 1969). A título de exemplo e para se ter uma noção do modo como VV se apresentava no início do atendimento clínico, observe-se o comentário de VV, em 28 de outubro de 2003, a propósito de uma explicação da investigadora sobre o papel de observador que ele assumiria nas sessões extra-sala. VV deveria observar o modo como as pessoas participam das práticas sociais e como fazem uso de processos verbais e não verbais nas situações dialógicas. Em dado momento, Imc diz: você tem que observar os tipos humanos, o que leva VV a comentar: os humanos somos nós, e os animais, os cachorros, são irracionais, não é verdade?. A palavra humanos desencadeia uma relação semântica desvinculada dos propósitos da enunciação, cujo tema não focaliza a diferença entre animal e humano. Esse comentário soa como um clichê e ocupa o lugar de um turno sem exercer sua função pragmática. Em outras palavras, VV aplica uma regra que rompe a seqüência discursiva, dando a falsa impressão de que não entendeu o que lhe fora dito. É quando a aplicação da regra não significa a produção de um discurso. Ao contrário do que pode parecer, VV está apesar das dificuldades que apresenta acompanhando os conteúdos escolares. Em sessão realizada em 27 de setembro de 2004, Iff lhe pergunta quais as disciplinas do colégio e quais os conteúdos que está aprendendo em cada uma delas. Prontamente, VV passa a dizer seus nomes e os nomes dos professores. Iff vai tomando notas em uma folha à medida que VV dita. Começa a descrever os conteúdos a partir das aulas que teve naquele dia, pela manhã: fração em Matemática, acento agudo, circunflexo, exclamação, interrogação, três pontinhos, dois pontos, ponto final, ponto e vírgula em Português, corpo humano em Ciências. Iff pergunta o que significa fração e VV explica: metade, um quarto, um terço. Quando interrogado sobre o que, especificamente, estava aprendendo sobre o corpo humano, responde: o estômago, como digere os alimentos. Dando continuidade ao tema, Iff pergunta sobre os conteúdos de História. VV pára, fica pensativo e diz: agora você vai ter que esperar eu lembrar. Como qualquer pessoa, VV precisa de um tempo maior para estabelecer as associações que o façam relembrar um conteúdo que não foi visto naquele dia. Iff pergunta, então, se ele está aprendendo sobre a História do Brasil ou sobre a História de outros países, de outros tempos. VV diz: Isso! Sobre tudo isso! Eu estou aprendendo sobre o planeta Terra ; mas o que, exatamente, pergunta Iff: poluição das águas, do ar, queimadas, responde VV. Conversa análoga acontece sobre Geografia. VV diz que está aprendendo sobre o dinheiro dos países: dólar nos Estados Unidos, real no Brasil. As respostas de VV mostram que consegue relacionar e atualizar os diferentes conteúdos que aprende na escola. De fato, ele apre nde! Mais do que isso: VV participa, ativamente, dessa prática social; faz 4 Para maiores detalhes a respeito do histórico de VV ver o texto O pequeno grande VV, das autoras, apresentado no 52º GEL realizado em julho de 2004 na Unicamp. 5 Para esse autor (...) o que pode ser dito permite, justamente, dar melhor conta do que foi efetivamente dito (Maingueneau, 1984:47, tradução livre).

aquilo que os outros alunos (supostamente) também fazem: presta atenção às aulas, compreende a metalinguagem usada para se referir a diferentes sistemas de referência (Franchi, 1977/92), faz as lições, provas e sabe o que está, de fato, acontecendo na escola. Sua demora em acessar certos conteúdos não se deve, pois, a uma suposta dificuldade de memória, tampouco, a dificuldades de aprendizagem. A lentificação provocada pela alteração da neurodinâmica cerebral também é observada nas associações que faz tanto para seu registro quanto para o acesso a essa rede associativa. Esses dois momentos do acompanhamento longitudinal mostram a evolução do caso clínico. Em 2003 observa-se que os níveis lingüísticos estão preservados, mas não integrados pragmaticamente. Já, em 2004, VV considera seu interlocutor o que exige uma mudança na posição discursiva, ao antecipar sua dificuldade de modo que o diálogo prossiga ( agora você vai ter que esperar eu lembrar ) -, mantém e expande o tema em pauta, mostrando sua competência discursiva. Nota-se ainda uma desarticulação entre os níveis lingüísticos, sobretudo na interface sintaxe -semântica. VV, ao responder a Iff, seleciona bem os itens lexicais compatíveis com a organização dos conteúdos escolares sem, no entanto, combiná-los com outros recursos da língua que compõem a organização sintática. Por essa razão, tomamos a escrita como lugar de explicitação das relações entre os eixos sintagmático e paradigmático (nos termos Jakobson, 1955/72) e como lugar de articulação entre sistema e uso da linguagem. 2. Os dados Selecionamos, para este texto, dois dados que se referem a um conteúdo em aquisição (pontuação) e que mostram características próprias da escrita, como seu ritmo (Chacon, 1998) e, um terceiro, que mostra o cruzamento entre a seleção e a combinação em contexto oral de enunciação. Há várias razões para a escolha dos dados de escrita. Em primeiro lugar, há, implícito na aprendizagem em curso, uma questão de regra e uso. VV está aprendendo, na escola, os sinais de pontuação. Maneja bem essa metalinguagem e é capaz de dizer quando devem ser usados. Parte da organização oral para escrever. Trata-se, portanto, de enunciados que podem ser creditados a práticas sociais de enunciação oral. O ritmo da escrita ainda não é marcado pelos sinais de pontuação que o caracterizam. No entanto, faz uma leitura semanticamente orientada de seus textos: lê aos blocos, mantendo o sentido. O fato de VV estar aprendendo um novo conteúdo escolar também é interessante do ponto de vista neurolingüístico, pois permite entrever as estratégias que lança mão na tentativa de compreender e usar um determinado conhecimento. Isso é relevante, sobretudo quando se trata de um sujeito com o histórico de VV: a plasticidade neuronal tem um importante papel nesse processo. As atividades com a escrita contextualizam-se em função das práticas sociais do sujeito: o que faz em casa e na escola, na companhia de amigos e familiares; as notícias que lê e ouve a respeito de fatos ocorridos na cidade e no cenário nacional; as leituras que faz; as histórias que ouve e conta; os casos que relata, enfim, a linguagem se dá em meio a práticas sociais variadas. Geralmente, os textos escritos são produzidos depois do relato ou da leitura de algum episódio. VV escreve uma primeira versão do texto e, em seguida, relê para nós, em voz alta. Em alguns momentos, interrompe a leitura para fazer correções, ajustando seu querer-dizer. Outras vezes, sugerimos a inserção de outros modos de dizer visando o esclarecimento de uma determinada passagem ou introduzimos a convenção ortográfica para a escrita de algumas palavras. Os textos são, assim, dialogicamente elaborados durante os encontros. É importante notar que essa dinâmica de trabalho pode estar interferindo no estilo usado por VV. À medida que narra oralmente algum acontecimento, a enunciação oral migra para a escrita. Veja -se, por exemplo, o Dado 1 de 12 de novembro de 2003, um dos primeiros textos de VV. Nesse encontro VV leu em voz alta uma reportagem a respeito da extinção do mico leão dourado. A leitura foi entremeada por comentários de todos nós. Em seguida, VV escreveu o texto 6. Há, nele, repetição de certos recursos expressivos (ELES, PAÍS ), como estratégia de referenciação para manter a coesão do texto (Koch, 2002), bem como a utilização do título para introduzir o tema em pauta (MICO LEÃO DOURADO. ESSA ESPÉCIE), estratégia que pode ser creditada a topicalização que ocorre em textos orais. Chama a atenção o 6 É preciso levar em consideração o fato de VV estar, naquele momento, aprendendo a usar o teclado e o mouse do computador, apesar da hemiparesia que o impede de usar a mão direita. O manejo do computador tem se revelado um interessante exercício neurolingüístico: escolher as teclas apropriadas ordená-las em função da escrita de uma palavra, usar teclas para inserir, apagar, manter o espaçamento. Todas essas ações requerem um alto grau de atenção seletiva e organizada, contextualizada em função do ato de escrever, especialmente relevante em função da repercussão frontal do caso clínico de VV.

fato de VV dialogar com o leitor (viu): ao que parece, a explicitação do lugar do outro funciona como uma forma de ocupar um lugar próprio. Vê -se, ainda, a sua identificação como autor (ESSE TEXTO FOI ESCRITO PELO VV). Dado 1 - Sessão de 12 de novembro de 2003 O MICO LEÃO DOURADO. ESSA ESPÉCIE ESTá EM ESTIMSÃO PORQUE OS CAÇADORES ESTÃO MATANDO A MAIORIA DELES,E ELES VIVEM NO PAÍS BRASIL QUE É O ÚNICO PAÍS QUE ELES COMSEGUEM VIVER VIU. ESSE TEXTO FOI ESCRITO PELO VV Como contraponto ao Dado 1, veja-se um texto mais recente de VV, de 24 de maio de 2004. Como o computador estava quebrado, foi proposto a VV que escrevesse o texto à mão. VV sugeriu que Iff assumisse o papel de escriba para que ele ditasse uma história para ser lida. Logo que Iff pegou uma folha em branco e escreveu o título que lhe fora ditado, VV, delicadamente, tomou-lhe a folha e fez um traço abaixo do título, do lado esquerdo (como indica a seta), devolvendo a folha para Iff 7. O texto foi escrito ao poucos. A cada bloco de sentido, Iff relia o que fora escrito e VV dava seqüência ao texto. O Dado 2 mostra a íntegra do texto 8. Observe-se que as partes pontilhadas foram negociadas pelos interlocutores visando a progressão do relato. Dado 2 - Sessão de 24 de maio de 2004 7 Após a leitura final do texto, esse traço foi apagado por VV com corretivo líquido. 8 No texto os nomes reais foram substituídos por nomes fictícios.

Pode-se notar que embora o texto tenha sido organizado oralmente, diferentemente do Dado 1, vê-se a seleção de recursos expressivos compatíveis com a enunciação escrita (o levou, ele permaneceu, se recuperar por completo, veio buscá-lo, enquanto todos dormiam) e uma boa organização textual (auxiliada, também, por sinais de pontuação, negociados com Iff). Terminada a última leitura, Iff pergunta a VV qual a razão de ele ter desenhado o tal traço na folha, logo no início da atividade. Prontamente, com certo desdém, VV diz: Ora, não era eu que ia dizer?. VV aplica diretamente a regra que rege o uso do travessão em textos escritos. Supõe que se se toma a palavra inclusive no papel daquele que dita alguma coisa essa posição enunciativa deve ser marcada pelo emprego do travessão. Observe-se como VV dialoga com um interlocutor ao ditar Advinha o que aconteceu? No entanto, dada a natureza da atividade, não se sabe se ele se refere a Iff ou a um leitor imaginário. A relação entre o uso do travessão e a autoria do texto fica ainda mais explícita quando VV, repetindo o gesto do início da atividade, pega a folha para escrever seu nome e a data do encontro 9. Dado 3 Sessão de 18 de outubro de 2004 Como já foi dito, em alguns encontros fazemos atividades extra -sala. Em frente ao LABONE, debaixo de um flamboyant, tem um pequeno jardim, com mesas e bancos, onde VV costuma tomar seu lanche. Nesse dia, combinamos de fazer um jogo. Cada um de nós deveria escolher uma palavra (relacionada ao ambiente) e usá-la em uma frase. Nosso interesse estava em observar como VV seleciona as palavras e como as combina em unidades maiores que requerem uma organização sintática, compatível com a seleção realizada. Para exemplificar, Imc começa fazendo uma brincadeira. Escolhe a palavra minhoca e diz: A minhoca e o minhoco estão namorando debaixo da terra. Riso geral. VV comenta com Iff: Ih, ela tá inventando!. Veja-se a seqüência dessa brincadeira: CADA FOLHA EM SEU GALHO Nº Interl. Palavra Enunciado Observações 1 VV gavião Um gavião estava procurando uma namorada. 2 Imc cigarra Eu gosto desse tempo porque as cigarras não ficam cantando. 3 Iff formiga Eu fico impressionada com o peso que a formiga é capaz de carregar. 4 VV grilo Eu fico muito impressionado com a altura que o grilo pode pular. 5 Imc galho Cada macaco no seu galho. 6 Iff arcondicionado Eu não gosto de trabalhar em sala que tem ar condicionado porque eu fico resfriada. Imc chama a sua atenção para o fato de não ter gavião no jardim. VV contesta, dizendo Faz de conta. Do jardim, pode-se ver as janelas das salas de aula com aparelhos de ar-condicionado. 7 VV elevador Imc chama a sua atenção para o fato de não ter elevador nos arredores VV argumenta que Iff tinha escolhido ar condicionado. Nesse momento, cai uma folha nos cabelos de Imc, que se assusta. VV escolhe uma nova palavra. 8 VV folha Eu fico muito impressionado com uma folha porque ela ainda não nasceu, é um vegetal, tem árvores, coqueiros, ela nasce pititica... Imc interrompe VV para lembrar que a regra é dizer uma frase curta. Ele, então, refaz a frase e diz: Cada folha em seu galho. 9 Convém comparar esse dado com o relato do encontro de 27 de setembro de 2004, em que VV nem faz menção ao travessão para marcar sua posição enunciativa ao responder às questões postas por Iff.

9 Imc mosquito Eu detesto mosquito! Nesse momento, VV interrompe a brincadeira e pede para contar uma história sobre o irmã o quando ele era pequenino. E começa: Meu irmão estava aprendendo a falar e a minha mãe achou um mosquito e disse: olha, um mosquito, logo depois, meu irmão disse: olha, mãe, um funico! Todos riem! O comentário de VV Ih, ela tá inventando! mostra que: (i) sabe que a palavra minhoca não tem um correspondente masculino na língua portuguesa; (ii) sabe que a marcação de gênero, nesse caso, é dada pelo uso das palavras macho ou fêmea; (iii) percebe que Imc está inventando uma palavra. A rápida articulação desses fatores revela sua competência discursiva, ao flagrar toda a complexidade do sistema em uso. Aqui VV demonstra ser um bom intérprete da língua e um bom seguidor de regras do jogo da linguagem. VV se engaja na brincadeira. Segue a regra anunciada por Imc e seleciona um animal, mas um animal impróprio para o ambiente (gavião). Quando interpelado, ele justifica dizendo: Faz de conta.... Mais do que isso, VV mostra-se sensível ao tema do enunciado de Imc (o gavião estava procurando uma namorada). Seguindo o jogo, na sua vez, VV obedece à regra geral, selecionando a palavra grilo e aderindo ao tema e à estrutura usada por seu antecessor (Iff: eu fico impressionada com o peso que a formiga é capaz de carregar), ao dizer: eu fico muito impressionado com a altura que o grilo pode pular. Imc, ao selecionar a palavra galho, muda de campo semântico, mantendo a pertinência da escolha em função do ambiente. Iff segue Imc ao escolher ar condicionado. VV, colado ao enunciado de Iff, faz uma associação inapropriada para o jogo ao selecionar a palavra elevador. Isso mostra que VV faz uma associação imediata cujo efeito é o esquecimento da regra geral. Esse traço de imediatismo que VV apresenta ao fazer escolhas lexicais durante o jogo reafirma - se no momento mesmo em que cai uma folha nos cabelos de Imc. Prontamente, VV substitui então a palavra elevador por folha. Na produção da frase com a palavra folha, VV repete a sintaxe de Iff e expande demais a relação sintagmática e paradigmática, perdendo o fio da meada: eu fico muito impressionado com uma folha porque ela ainda não nasceu, é um vegetal, tem árvores, coqueiros, ela nasce pititica... Imc interrompe VV, relembrando que a regra é dizer uma frase, ao que ele prontamente, replica: cada folha em seu galho. 3. Considerações finais: de seguidor a jogador O que mostra a linha 8 desse último dado de VV? Por um lado, adere às escolhas paradigmáticas e à organização sintática de seu interlocutor e, por outro, faz um uso criativo da língua. Aproveita-se da solidez da construção proverbial (cada macaco no seu galho), inovando seu uso com outro sentido possível e mantendo-se no jogo da linguagem (cada folha no seu galho), o que mostra todo o trabalho lingüístico-cognitivo que produz. Como vimos, no episódio do minhoco, algumas vezes, ser um bom seguidor de regras é crucial para ser um bom intérprete da língua; no episódio do cada folha no seu galho, por sua vez, VV é capaz de produzir efeitos de sentido, marcados pelo interdiscurso, com senso de humor e de forma inusitada, como qualquer bom falante, como quem joga com o sistema e seus diferentes usos. Na linha 9, VV não volta a jogar. A palavra mosquito desencadeia a lembrança de uma história familiar: Meu irmão estava aprendendo a falar e a minha mãe achou um mosquito e disse: olha, um mosquito, logo depois, meu irmão disse: olha, mãe, um funico! Em geral, as palavras ditas pelo outro provocam em todos nós lembranças que nem sempre são ditas em função de uma série de fatores pragmáticos (manutenção do tema, imagens recíprocas entre os interlocutores, critérios de relevância, etc.): não é o que VV faz. Questionado sobre isso, VV esclarece que não consegue conter seu dizer. Há duas interpretações para uma situação como esta: a primeira delas é que ele transgride, de fato, uma regra pragmática, o que é compatível com a repercussão frontal de seu quadro, cujo imediatismo - em função de um rebaixamento da atividade reflexiva do sujeito tem sido apontado pela literatura como uma de suas características. Uma segunda possibilidade é considerar esse imediatismo como próprio da idade de VV: crianças habitualmente não se contêm quando querem dizer algo.

Na linha 9, identifica-se, ao mesmo tempo, uma transgressão de regras pragmáticas e uma memória em funcionamento. Para o acompanhamento clínico essas duas possibilidades são relevantes: uma por revelar o cruzamento entre a memória pessoal e a discursiva e outra por indicar os ajustes pragmáticos (dizer e não dizer) que esse cruzamento requer. Seguir regras, embora fu ndamental para a produção do discurso, não é condição suficiente. O acompanhamento clínico estabelece uma margem de jogo entre o domínio de uma competência discursiva e aquilo que é vivido pelos enunciadores (Maingueneau, 1984:51). RESUMO: Este trabalho apresenta dados de enunciação oral e escrita de um menino de 12 anos (VV) que sofreu, em 2001, um grave traumatismo crânio-encefálico (TCE) na região parieto-occipital esquerda. Quanto à linguagem, apresenta dificuldades relacionadas ao uso da língua em diferentes situações discursivas. PALAVRAS-CHAVE: traumatismo crânio-encefálico; dificuldades de linguagem; competência discursiva; oral e escrito; prática clínica. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CHACON, Lourenço. Ritmo da Escrita - uma organização do heterogêneo da linguagem. São Paulo: Martins Fontes. 1998. COUDRY, Irma Hadler; FREIRE, Fernanda Pereira. O pequeno grande VV. (apresentado no 52º Seminário do GEL). Campinas, SP. 2004. DAMÁSIO, António. O Erro de Descartes: emoção, razão e cérebro humano. 10 ed. Lisboa: Publicações Europa-América, 1996. FRANCHI, Carlos. Linguagem Atividade Constitutiva. In: Cadernos de Estudos Lingüísticos. Campinas, SP: nº 22, p. 9-39. 1977/92. JAKOBSON, Roman. A afasia como problema lingüístico. In: Coelho, M.; Lemle, M.; Leite Y. (Orgs.) Novas Perspectivas Lingüísticas. Petrópolis: Vozes, 43-54. 1955/1972. KOCH, Ingedor Villaça. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2002. LURIA, Alexander Romanovich. Curso de Psicologia Geral. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 1991. Vol. III. MAINGUENEAU, Dominique. Genèses du discours. Bruxelas: Mardaga, 1984. PÊCHEUX, Michel. Analyse automatique du discours. Paris: Dunod, 1969.