Cartografia da resistência: A contribuição da mulher negra na construção do território a partir do trabalho e do sagrado.

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Transcrição:

Cartografia da resistência: A contribuição da mulher negra na construção do território a partir do trabalho e do sagrado. Caroline Silva Souza 1 Palavras-Chave: Cartografia, Resistência, Mulheres Negras. O presente artigo é um desdobramento da pesquisa de Iniciação Científica "Cartografias e narrativas da Presença Negra no final do século XIX e meados do XX, vinculada ao Grupo de Pesquisa Lugar Comum (FAUFBA), e toma como ponto de partida a narrativa contida no livro Cidade das Mulheres (1967), escrito pela antropóloga norte-americana Ruth Landes, que discorre sobre a participação da mulher negra na formação da cidade de Salvador, na Bahia. A obra destaca a relação destas mulheres com o Candomblé, e aborda a influência feminina que excedia os limites do terreiro e chegava à cidade, o que configurou reverberações ante a diáspora africana nas dinâmicas urbanas. Os escritos de Landes servem como gancho para realização deste e auxilia no entendimento da interlocução entre as dimensões do trabalho e do sagrado, no processo de cartografar a resistência da mulher negra. Metodologicamente o artigo se ancora na proposta da Cartografia de Resistência (ALVIM, RODRIGUES, 2016), e analisa emaranhados que historicamente envolveram mulheres negras - bem como reflete sobre como as relações de força, tensão e enfrentamento interferiram na construção da história desse grupo dentro do território soteropolitano. No Brasil, as pessoas negras estiveram presas sob o jugo da escravidão por mais de três séculos (1532 1888), vítimas de uma diáspora que espalhou um terço da população africana pelas américas. Durante a escravidão o estado da Bahia foi um dos que mais corroborou para a perpetuação do sistema ao receber muitas pessoas escravizadas para trabalhar nas lavouras de cana-de-açúcar, algodão e café - Em meados do século XIX, Salvador era uma cidade cuja formação contava com a presença 1 Bacharela em Artes pela Universidade Federal da Bahia. Graduanda em Arquitetura e Urbanismo pela mesma universidade. E-mail: 6carolinesouza@gmail.com

de 63% (sessenta e três) de população escravizada. Ao final do século XIX, especificamente 1888, no contexto da abolição da escravatura, negras e negros libertos, movimentavam-se pela cidade livres, porém, sem o suporte necessário para lidar com a nova realidade e sistema estabelecido. Neste artigo, esse sistema estabelecido é atrelado ao conceito de dispositivo teorizado por (ALVIM, RODRIGUES, 2016), entendido por eles como uma rede conectada por relações de poder. No entanto, a relação do povo negro com essas relações de poder - o dispositivo - é marcada pelo constante ato de contradispositivar, uma vez que sua história sempre fora atravessada pela necessidade de resistir [...] as resistências podem funcionar como contradispositivos na medida em que não cansam de inverter, recusar, reorganizar, perverter e recriar contra o funcionamento de suas relações de dominação (ALVIM, RODRIGUES, 2016). Dentro do contexto de resistência ante mazelas deixadas pelo horror da escravidão, não interessa, aqui, mapear o território soteropolitano em busca de regularidades dentro do sistema estabelecido, mas cartografar esse mesmo território em busca de movimentações às oposições pré-estabelecidas reações e formas de resistir, partindo do grupo recortado para análise: mulheres negras. Cartografar a resistência das mulheres negras é refletir sobre suas movimentações reativas e suas criações que vão de encontro às determinadas posições de subjugamento estabelecidas dentro de Salvador que, mesmo sendo majoritariamente negra, resguardou uma estrutura racista que restringiu o acesso dessas mulheres às condições de igualdade sobre sua existência no território. Na década de 1930, a antropóloga norte-americana Ruth Landes veio ao Brasil estudar as relações de raça e voltou seus estudos para as mulheres negras na cidade

de Salvador. A autora evidenciou como o papel feminino na religião, comércio e política fora muitas vezes determinante. Além de constatar diferenciações entre a vida de mulheres negras e brancas na cidade e o poder que o machismo exercia sobre a cidade de Salvador. Ao chegar à Bahia, Landes assustou-se com a maneira como as mulheres brancas possuíam dificuldade em locomover-se pela cidade sem uma companhia masculina; essa constatação se intensifica quando Landes admite a necessidade de ter um homem ao seu lado para então poder conhecer melhor o território estudado. [...] naquela terra, onde a tradição trancava as mulheres solteiras em casa ou as lançava à sarjeta, eu teria sido incapaz de me locomover, a menos que escoltada por um homem de boa reputação. E ali estava êle 2 (LANDES, 1967; 18). No entanto, em relação a situação das mulheres negras na cidade, Landes chega a conclusões diferentes, pois essas mulheres são vistas pela antropóloga nas ruas com frequência: [...] Por todos os cantos havia pretas de saias e torsos coloridos e blusas brancas que refletiam a luz do sol. Eram, em geral, mulheres velhas, na aparência robustas, confiantes em si mesmas, profundamente interessadas no trabalho do momento. Geriam açougues, quitandas, balcões de doces e frutas e as barracas onde se vendiam especiarias vindas da costa ocidental da África. O comércio com a África se fazia desde o carregamento do primeiro navio negreiro." (LANDES, 1967). [...] Afinal, tarde da noite, quando a maioria das famílias se preparava para dormir, algumas negras velhas vagueavam pelas ruas sombrias e, olhando o céu abaixo, entoavam cantos, de melodias claras e melancólicas de origem africana, e de 2 Ruth Landes se refere a Édison Carneiro, etnólogo baiano comprometido com estudos sobre a cultura afro-brasileira.

versos em parte africanos e em parte portugueses, mercando as guloseimas, comidas e bebidas, que tinham para vender." (LANDES, 1967, p. 20 e 21) A presença de mulheres negras inseridas em territórios comerciais faz parte de uma forma de resistir antiga, que data os tempos do pós-abolicionismo. Segundo a pesquisadora Consuelo Almeida Matos, naquele contexto pós-abolicionista, os negros libertos, habituados ao trabalho das lavouras, que migraram para a cidade encontravam muitas adversidades, uma vez que não estavam preparados para serviços citadinos; Emaranhadas em um dispositivo que as colocou no que Matos chamou de processo de competição desigual, sobretudo em comparação a mão de obra imigrante, negros libertos precisavam encontrar meios de sobreviver e subverter o dispositivo opressor. No caso das mulheres, houve a permanência no trabalho com o trabalho doméstico ou vendas nas ruas. Baseando-se nas crônicas escritas pela folcloricista Hildegardes Vianna, a respeito do serviço doméstico, Matos discorre sobre o contexto vivido por muitas negras domésticas; algumas dessas mulheres preferiam passar as noites em suas casas e retornar ao trabalho no período da manhã; outras não possuíam casa e dessa forma permaneciam no trabalho ao fim de um dia árduo se ajeitavam em uma tábua ou esteira forradas com retalhos de cobertores e xales velhos ou deitavam-se em camas que eram armadas na cozinha, na sala de jantar ou na entrada da porta da rua, para receber de manhã o pão, o leite e o mingau ; além disso, o sono dessas mulheres eram muitas vezes interrompidos a fim de atender as demandas dos seus patrões; a folclorista Hildegardes Vianna afirmou que as negras de sorte, conseguiam uma folga por semana e, essa folga era utilizada para outros serviços a fim de complementar a renda como lavadeiras ou se tornarem ganhadeira ou vendedeira ; outras mais afortunadas conseguiam um canto no porão ou um quartinho nos fundos da casa, para onde levavam

toda família. Aquelas mulheres levavam seus filhos consigo para esses lugares e lá, os meninos trabalhavam levando recados ou comprando especiarias, já as meninas, chamadas de catarinas, ajudavam no trabalho ou eram encaminhadas para outras casas onde teriam o mesmo destino da mãe (MATOS, 2008). Algumas mulheres escolhiam o trabalho nas ruas e, mesmo que hostilizadas, ocuparam os espaços urbanos que socialmente pertenciam aos homens e neles vendiam temperos, cuscuz, cocadas, vísceras de animais, caldo de cana, bolos, carurus e outras comidas de origem africana Documentos do Arquivo Municipal de Salvador indicam que em 1631, pouco tempo após a fundação da cidade, as escravas de ganho já eram obrigadas a ter licença para poder vender nas ruas. Luís da Câmara Cascudo (2004) detecta a venda ambulante de alimentos desde 1584 e a formação do costume de apregoar doces em meados do século XVIII, sendo o primeiro registro pertencente a Salvador (MATOS, 2008). A rua, o mercado e a cidade, enquanto territórios de protagonismo feminino, são bastante evidenciados por Ruth Landes em seus escritos sobre a presença das mulheres negras em Salvador da Bahia. Porém, já na África, mulheres destacavam-se enquanto comerciantes e essa condição originou uma associação conhecida como Ialodê. Segundo a pesquisadora Jurema Pinto Werneck, Ialodê é a forma brasileira para a palavra Ìyálóòde ou Iyálóde em iorubá, língua comum trazida ao Brasil por povos africanos escravizados que aqui chegaram somente em fins do século XVIII, provenientes da zona do rio Níger. Segundo Werneck o iorubá é a principal língua falada nas esferas rituais de algumas comunidades religiosas de matriz africana, sobretudo o Candomblé e, segundo algumas

das tradições afro-brasileiras do Candomblé, Ialodê é um dos títulos dados as orixás Oxum e a Nanã. Ambas entidades conhecidas por serem afrontosas ante o poder masculino, representando igualdade e o poder das mulheres, sendo, por isso, chamadas Ialodês. Dessa forma, entende-se que o título vem de sua ação política em defesa da condição feminina enquanto detentora de poder e de capacidade de luta (Werneck,2007). Porém, segundo a cientista social Teresinha Bernardo, no Brasil, a chamada organização Ialodê parece ter passado por uma ressignificação, de forma que o cargo de Ialodê passou a ser usado como um título para mulheres importantes do Candomblé. Ou seja, o que era uma associação transformou-se em um título relacionado tanto com o comércio quanto com a religião (Bernardo, 2005). Percebe-se que as dimensões da espiritualidade e do trabalham se atravessam e coexistem, na vida de muitas mulheres negras, de maneira quase que indissociável. A relação de orixás com a subsistência dessas mulheres é ainda mais ampla. A história das baianas de acarajé 3, consideradas um bem cultural de natureza imaterial, inscrito no Livro dos Saberes em 2005, é extremamente ligada a espiritualidade. Na apresentação do livro A Arte Culinária na Bahia, Raul Lody fala sobre a existência de várias baianas que vivem em seus tabuleiros vendendo diversas iguarias, entre elas o acarajé, iguaria presente na festa de Oiá ou Iansã, que, segundo Lody, é a orixá que ensinou todas as mulheres a fazer acará, para que estas ganhassem reconhecimento, independência financeira e assim, pudessem criar seus filhos (QUERINO, 2011). O Instituto do 3 Alimento que compões que culinária afro-brasileira. É feito de massa de feijão fradinho que se deixa de molho até soltar a casca, depois é passado em pedra ou moinho, frito em azeite de dendê e cebola, até se tornar dourado. É servido com molho de pimenta, camarão seco, caruru e vatapá. A venda desse bolinho, que é uma comida ritual da orixá Iansã no Candomblé, supriu as necessidades financeiras de muitas famílias a partir do trabalho das mulheres negras em seus tabuleiros: as chamadas baianas de acarajé.

Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em seu site, também aborda o ofício das baianas, evidenciando sua relação com a religiosidade e a cidade: A atividade de produção e comércio é predominantemente feminina, e encontrase nos espaços públicos de Salvador, principalmente praças, ruas, feiras da cidade e orla marítima, como também nas festas de largo e outras celebrações que marcam a cultura da cidade. A indumentária das baianas, característica dos ritos do candomblé, constitui também um forte elemento de identificação desse ofício, sendo composta por turbantes, panos e colares de conta que simbolizam a intenção religiosa das baianas. (IPHAN). A presença do sagrado na vida de mulheres negras não se relaciona apenas ao trabalho. Ruth Landes narrou o candomblé e a sua importância na formação e manutenção da vida do povo negro, evidenciando o papel feminino na religião. Segundo Landes, no candomblé, as mulheres eram as grandes intermediárias entre as entidades e as pessoas. Além disso, as sacerdotisas ou mães-de-santo, eram muito respeitadas e requisitadas, enquanto mulheres sábias, para orientação não só espiritual, mas também política. Quando Ruth Landes chegou à Bahia na década de 30, foi apresentada a diversos intelectuais envolvidos com os terreiros de candomblé e os menciona em seus escritos. Os médicos Hosannah de Oliveira e Estácio de Lima, o poeta Artur Ramos, o jurista Nestor Duarte Guimarães e o próprio Édison Carneiro. A relação desses intelectuais com os terreiros aconteciam mediante a vontade das mães, e proporcionavam benefícios de ambos os lados por parte do terreiro porque recebia proteção dos intelectuais, uma vez que esta era uma religião perseguida, e por parte dos intelectuais que tinham o terreiro como campo de estudo e esconderijo, uma vez que, o Brasil da década de 30 viveu sob a ditadura Vargas e, alguns perseguidos buscavam os terreiros como esconderijo.

A relação do povo de santo com esses intelectuais criou linhas e afetos geradores de um contradispositivo que se movimentou contra às posições fixas estabelecidas que desfavoreciam o povo de santo. Isso ficou evidente quando Mãe de Santo Aninha, por intermédio de um intelectual filho de santo, o ministro Osvaldo Aranha, provocou a promulgação do Decreto Presidencial nº 1202, no primeiro governo de Getúlio Vargas, pondo fim à proibição aos cultos afro-brasileiros em 1934. CONSIDERAÇÕES FINAIS Aqui, cartografar a resistência das mulheres negras é entender a forte ligação que o trabalho e o sagrado possuem entre si, e como essa relação, sob a influência das mulheres, funcionou como um dispositivo que reorganizou a ordem pré-estabelecida em favor daqueles que pouco eram atendidos, contribuindo, dessa forma, para o desenvolvimento da cidade de Salvador politicamente, socialmente e economicamente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Bernardo, T. O Candomblé e o Poder feminino. Disponível em <https://www.pucsp.br/rever/rv2_2005/p_bernardo.pdf> Acesso em 20 de setembro de 2018 LANDES. R. A Cidade das Mulheres. Trad. de Maria Lúcia do Eirado Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. LANDES. R. A Cidade das Mulheres. Trad. de Maria Lúcia do Eirado Silva. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002. Mãe Aninha- Ialorixá do Ilê Axé Opó Afonjá. Disponível em https://www.geledes.org.br/mae-aninhaialorixa-do-ile-axe-opo-afonja/ Acesso em 20 de setembro de 2018 MATOS, C. A Bahia de hildegardes vianna: Um estudo sobre a representação de mulheres negras 2008. Disponível em <http://www.ppgel.uneb.br/wp/wp-content/uploads/2011/09/matos_consuelo_dissert.pdf> Acesso em 20 de setembro de 2018 QUERINO, M. A Arte Culinária na Bahia. 3º ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011. Werneck, Jurema Pinto. O samba segundo as Ialodês: Mulheres negras e a cultura midiática. Disponível em https://drive.google.com/file/d/1jevoc1g3odylw5wt1wlda0fuwyfpfxsd/view Acesso em 20 de setembro de 2018 Ofício das Baianas de Acarajé. Disponível em <http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/58> Acesso em 20 de setembro de 2018