Felicidade: A Autenticidade do discurso perverso. * Amarílio Campos 1 Tudo permite a natureza, por suas leis assassinas: O incesto e o estupro, o furto e o parricídio. Todos os prazeres de Sodoma, os jogos lésbicos de Safo. Tudo aquilo que destrói e envia os homens para o túmulo.(sade, 1787) RESUMO A partir do impacto produzido pelo filme Felicidade, do diretor Todd Solondz, faz-se uma reflexão sobre a violência e as conseqüências do discurso proferido por um pai à seu filho (passagem do filme aonde os dois personagens dialogam). Mediante a esse discurso, é utilizando o referencial psicanalítico de Sigmund Freud e a extensão das idéias deste, promovidas por Joël Dor, Laplanche e Pontalis, destacando os vestígios aterradores deixados pela estrutura perversa. PALAVRAS-CHAVE Pulsão, Aberrações Sexuais, Discurso, Perverso, Pedofília, Autenticidade, Castração, Incesto, Ameaça. A impressão que fica, ao se assistir ao filme de Todd Solondz, "Felicidade" (Happiness, EUA, 1998), é a de "loucos em busca de uma chave". Pelo menos é essa imagem alegórica, impactante e escatológica que o filme passa ao espectador. O diretor evita, com inteligência, a atitude de palmatória do mundo diante dos personagens anormais. Não se trata de afirmar que os adultos se infantilizaram, que as crianças perderam a infância, ou que as famílias de hoje, artificiais como bonecos, perderam o script do que fazer ou dizer. Trata-se de mostrar o novo roteiro sócio-sexual do conceito de "felicidade-gozo, na confissão, e na a autenticidade do discurso do perverso. Em nome desta "autenticidade", que um perverso (personagem do filme) se sente autorizado a confessar tudo o que sente ou pensa, pouco importa o que decorra desta confissão. Assim, para entendermos melhor esse sujeito e sua confissão, partiremos dos conceitos de Freud quando este define a sexualidade humana como sendo: (...) no fundo perversa, na medida que nunca se desliga inteiramente das suas origens, que a fazem procurar sua satisfação não numa atividade 1 Psicólogo Clínico, Membro Consultor da Comissão de Bioética da OAB/MG,, pesquisador da UNIFESP/CEBRID. No inglês refere-se à roteiro cinematográfico 1
especifica, mas no ganho de prazer ligado a função ou atividade que dependem de outras pulsões (...) (FREUD,1905). A noção de pulsão 3 vai permitir a Freud definir especificamente o lugar das aberrações sexuais ; sejam elas como desvios relativos ao objeto da pulsão sexual, sejam como desvios relativos a seus objetivos. Neste caso, trataremos do desvio relativo ao objeto, relacionando o conceito freudiano ao discurso de um dos personagens do filme de Solondz, trazendo à tona a confissão e a autenticidade do perverso. Essa confissão é feita, de maneira mais explicita possível, quando, ao tomar conhecimento dos atos perversos do pai (Will), o filho (Billy), faz-lhe as seguintes perguntas: -Pai...Como foi? -Foi ótimo... -Faria isso de novo? -Faria... -Faria comigo? -Não, eu me masturbaria... Nesta breve confissão, Billy (o filho) torna-se testemunha auditiva das transgressões mais impressionantes realizadas pelo pai perverso. A medida em que este revela sua autenticidade e sua coragem, Billy identifica no pai a ameaça de um perigo iminente, mostrando-se medonho a seus próprios olhos. No caso da confissão ao filho, este se torna, do ponto de vista do pai (um suposto pedófilo), o próprio objeto sexual, o que causa o espanto para os dois envolvidos. A passagem efetiva do sujeito-filho para o objeto sexual do pai gera a dor da descoberta e afirma a autenticidade no discurso do perverso. Citando Freud, podemos entender mais claramente, que neste aspecto: (...)o prazer sexual não está apenas ligado à função dos genitais. A boca serve tanto para beijar como para comer e para falar; os olhos percebem não só as alterações no mundo externo, que são importantes a preservação da vida, como também as características dos objetos que os 3 Suscintamente, Laplanche e Pontalis, usando o referencial teórico de Freud, referem-se a pulsão como sendo um processo dinâmico que consiste numa pressão ou força (carga energética, fator de motricidade) que faz o organismo tender para um objetivo. Já Freud, diz que a pulsão tem sua fonte numa excitação corporal (estado de tensão); o seu objetivo ou meta é suprimir o estado de tensão que reina na fonte pulsional; é no objeto ou graças a ele, que a pulsão pode atingir sua meta. No filme do diretor Todd Solondz, Will, é um pacato psicanalista, tido pela esposa como um exemplo de pai, mas que esconde, à princípio, sua atração sexual por crianças. Um de seus hobbies é masturbar-se vendo revistas infantis e tentar seduzir seu fiho Billl em conversas de cunho sexual. Passa também a assediar o melhor amigo de seu filho (Bill), até conseguir dopá-lo e violentá-lo. Porém, Will deixa indícios de seu crime e passa então a ser ameaçado pelo pai da criança. Desvelando seu ato maior aos olhos da sociedade. O crime da pedofilia.
fazem ser escolhidos como objetos de amor; seus encantos (...) (FREUD, 1910). Com isso surge o desejo pelo objeto, que se torna algo já desvelado. Não mais da maneira silenciosa, saindo da norma da interdição que é inscrita na sociedade como lei do incesto, mas dá a identidade ao perverso através da fala, de seu discurso. Se considerarmos que existe realmente uma norma, para Freud, segundo Laplanche e Pontalis esta: (...) não é procurada no consenso social, assim como a perversão não é reduzida a um desvio em relação à tendência predominante do grupo social (...). No momento em que se deflagra o discurso do pai perverso, Billy é imediatamente inserido também na dimensão de cúmplice dos atos do pai. Como diz Joël Dor: (...) o terceiro encontra-se desta maneira, preso entre dois termos de uma alternativa insustentável; ou calar sobre o segredo, e sentir-se culpado por ser depositário de uma verdade sobre o outro que não pode revelar-lhe; ou trair o segredo e se culpar tanto mais, em relação ao outro, por ser agente de uma ameaça sobre o qual o perverso advertira-o (...) ( DOR, 1991). A "autenticidade" dos sentimentos expressos no discurso tem mais valor do que o sofrimento e a perplexidade do filho criança. É na verdade, a confirmação clara do ato perverso, do crime, do próprio incesto. Forma de afirmar toda a potencialidade deste sujeito transgressor. Ao inaugurar essa nova visão pelo discurso, ocorre para Billy a morte súbita do pai ideal. Ao proferir a palavra, Will -- o pai -- cala, castra, choca, mas, ao mesmo tempo, autentica sua função paterna. Vemos que, neste caso, o pai perverso dita a regra de sua própria condenação. Defere sua própria sentença. Define sua morte dando ao filho o sabor de uma vitória "aparente". Como diz Freud: (...) Você queria matar seu pai, a fim de ser você mesmo o pai. Agora, você é seu pai, mas um pai morto (...). Neste momento, Billy encontra a chave que o liberta da casa do pai idealizado. Mas encontra também, através do discurso deste pai, a ameaça do incesto, a autenticidade e a catástrofe da fala do perverso e a própria castração. É por essa perspectiva que o filme se mostra válido, ao meu ver, pois se percebe as responsabilidades do sujeito ao efetuar seu crime, as degenerescências dos ideais e 3
todas as conseqüências do gozo no sujeito perverso e naqueles que o cercam e testemunham seus feitos. Referências Bibliográficas 1-SADE, Marquês. [1787] -- A Verdade. Rio de Janeiro: Imaginarium, 199. P.88. -FREUD, Sigmund. [1905] -- Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Volume VII Rio de Janeiro: Imago 1976, p.76. 3-. [1910] -- A concepção psicanalítica da perturbação psicogênica da visão, Volume VII.Rio de Janeiro: Imago 1976, p.01. -. [197] -- Dostoiévski e o parricídio. Volume XXII. Rio de Janeiro: Imago 1976, p.15. 5-J. Laplanche e J.-B. Pontalis -- Vocabulário da Psicanálise, São Paulo, Martins Fontes199. P.33. 6-DOR, Joël -- Estrutura e perversões. Porto Alegre: Artes Médica 1991, p.75.
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