Considerações sobre a Galáxia da Internet: uma revisão da obra de Manuel Castells frente ao panorama atual da Internet Maria Clara Aquino 1 O livro A Galáxia da Internet: reflexões sobre a Internet, os negócios e a sociedade foi originalmente publicado, em inglês, em 2001, tendo sido disponibilizado em português, em 2003. Em pouco tempo, do início da década até o presente ano, pode-se dizer que muito do que Castells expunha e tensionava no início dos anos 2000 e até mesmo antes, em sua renomada trilogia A Era da Informação (Castells, 2002; 2003) se alterou. Castells (2003) abre sua obra relembrando seis eventos que tiveram implicações diretas na criação da Rede: a cooperação característica do comportamento estabelecido entre pesquisadores, estudantes e profissionais da computação no fim da década de 60 e início da década de 70, que foi a base do que hoje permite a comunicação global, a qualquer tempo e em qualquer espaço; a combinação entre ciência, pesquisa militar e a cultura libertária da época; o desenvolvimento da inovação tecnológica nos campi universitários impulsionada pelo simples prazer do descobrimento; a arquitetura aberta dos protocolos de comunicação; a evolução autônoma da Rede a partir da produção e do uso das ferramentas não só por técnicos, mas pelos próprios usuários e, por fim, o governo da Internet, que não se deixou sucumbir ao governo americano nem a uma estrutura descentralizada, mas a uma estabilidade que a caracteriza, acima de tudo, como uma criação cultural. Essa criação cultural, na qual se constitui a Internet, resulta, de acordo com Castells (2003), da combinação das culturas tecnomeritocrática, hacker, comunitária virtual e empresarial, culturas que juntas contribuem para a configuração da ideologia da liberdade como o background da Rede. Como cultura tecnomeritocrática, entende-se a ligação entre a academia e a ciência, empenhadas na busca pelo progresso da humanidade que só é possível através do desenvolvimento científico e tecnológico como um bem comum. O trabalho das comunidades tecnologicamente competentes é a força motriz do avanço tecnológico que proporciona o bem comum para a sociedade. A cultura hacker é então o ambiente responsável pela disseminação do conhecimento produzido na cultura tecnomeritocrática, movido pela cooperação e pela ideologia da comunicação livre, do livre acesso às informações. A cultura comunitária virtual, da qual fala o autor, é a responsável pela modelagem do comportamento e da organização social na Internet, dos processos e dos usos dos fundamentos tecnológicos da Rede transmitidos pela cultura hacker. Por fim, a cultura empresarial demonstra a importância da Rede para o desenvolvimento da economia atual e o quanto a inovação empresarial, e não o capital, foi a principal força atuante no desenvolvimento da economia na Rede. Sobre a nova economia, Castells (2003) discorre sobre as mudanças que a Internet imprime nas empresas, como alterações na administração das empresas, nas relações entre empresas, fornecedores e compradores, nos processos de produção, na cooperação com 1 Jornalista pela Universidade Católica de Pelotas (2005) e Mestre em Comunicação e Informação pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2008). Atualmente, Doutoranda do mesmo programa e bolsista Capes.
outras firmas e no funcionamento e na avaliação das ações nos mercados financeiros. O uso da Rede pelas empresas altera o capital e o trabalho, que fazem parte do que Castells (2003) chama de empresa de rede, uma estrutura organizacional em torno de projetos empresariais oriundos da cooperação entre diferentes setores de diferentes firmas que se reúnem por um determinado período de tempo para a execução de um projeto. A empresa de rede não se trata de uma rede de empresas ou de uma organização intra-empresas, a rede é a própria empresa. Mas ainda que o modelo de empresa de rede tenha precedido a difusão da Internet, Castells (2003) aponta como contribuição desse meio tecnológico para um novo modelo de negócios a escalabilidade, a interatividade, a administração da flexibilidade, o uso da marca baseado no controle da inovação e do resultado final do produto e, finalmente, a customização. Além disso, Castells (2003) menciona as firmas de capital de risco que desempenharam um papel fundamental no crescimento de novas empresas inovadoras, as quais não teriam proporcionado o crescimento econômico financiado pela Internet. Por fim, o autor ressalta que a inovação torna-se uma função do trabalho especializado e o processo de inovação transforma-se na economia eletrônica, no momento em que os usos da Rede são fatores decisivos na maneira como a inovação é alcançada. O que caracterizou o nascimento das empresas de tecnologia continua impulsionando o desenvolvimento do setor econômico na era digital. O capital de risco tem cada vez mais importância no mercado globalizado, que cresce movido por novas idéias e conhecimentos de acadêmicos, pesquisadores e desenvolvedores financiados por investidores que apostam seus recursos na criação de novas ferramentas digitais. Essas ferramentas são hoje não apenas utilizadas, mas apropriadas e reapropriadas por internautas, modificando os propósitos originais de seus criadores. Os internautas possuem um papel decisivo nesse processo. O público final, através dos usos e desvios que incorporam as tecnologias digitais, dita os rumos da economia do ciberespaço. Versando sobre os comportamentos e os usos sociais da Rede, Castells (2003) dedica um capítulo de sua obra às comunidades virtuais, afirmando-as como uma extensão da vida como ela é em todas as suas dimensões e modalidades, ao contrário de autores que apregoam o isolamento social e as trocas sociais sob identidades e representações falsas decorrentes do uso da Internet. O individualismo em rede é o que, para o autor, caracteriza o novo padrão de sociabilidade das sociedades atuais. Porém, explica que não se trata de um acúmulo de indivíduos isolados, mas de indivíduos que reconfiguram suas redes sociais online e offline baseados em interesses, valores, afinidades e projetos; conferindo à interação social um papel cada vez mais importante na organização social que se desenvolve pela flexibilidade e pelo poder de comunicação da Internet. Ainda que os custos para a sociedade, do que Castells (2003) chama de o triunfo do indivíduo, sejam obscuros, não se pode deixar de considerar a reconstrução dos padrões de interação social decorrente dos usos de novos aparatos tecnológicos que conduzem à formação do que ele chama de sociedade em rede. Dos processos sociais, Castells (2003) passa a expor suas considerações sobre os processos políticos na Rede, enfatizando o uso do ciberespaço como uma ágora eletrônica global pelos movimentos sociais do século XXI e ações coletivas que visam à transformação de valores e instituições sociais.
O autor aponta o mau uso da Internet pelos governos, o que, na época da publicação de sua obra, ainda era um argumento consistente, visto que a Rede ainda não era utilizada de forma a integrar o eleitorado nos processos políticos, tanto em épocas eleitorais como no desenrolar de mandatos de qualquer espécie. Enquanto que em casos, como, por exemplo, o das eleições brasileiras de 2008, o uso da Internet tenha sido vetado em determinados aspectos para fins de campanhas eleitorais. Por sua vez, o que se pôde visualizar nas eleições presidenciais americanas através do uso da Rede pelos candidatos dos Estados Unidos, principalmente pelo presidente eleito Barack Obama, foi um avanço extremo da atuação política via Rede. Questões como a falta de segurança e as formas de lidar com o vazamento de informações são apontadas pelo autor como uma dificuldade de uso da Internet para fins políticos. No entanto, é inegável o aprendizado sobre as utilidades que a Rede pode proporcionar na condução de campanhas eleitorais e na comunicação que possibilita entre o povo e os governantes, como se pôde observar durante a eleição presidencial dos Estados Unidos. A partir dessas considerações sobre processos políticos na Rede, Castells (2003) emenda em seu discurso uma abordagem sobre a privacidade e a liberdade no ciberespaço, apontando as práticas de vigilância e controle em, por exemplo, ambientes de trabalho, e a falta de privacidade decorrente dos dados expostos online. Ele conclui que a Internet poderia ser usada para o povo vigiar o seu governo, tornando-a um instrumento de controle, informação e participação e até mesmo de tomada de decisão de baixo para cima. Aos poucos suas hipóteses tomam forma, ainda que vagarosamente, frente a casos como o Projeto Substitutivo do Senador brasileiro Eduardo Azeredo ao projeto de Lei da Câmara 89/2003, e Projetos de Lei do Senado n. 137/2000 e n. 76/2000. O projeto defende, entre diversos outros exemplos, que é crime "obter ou transferir dado ou informação disponível em rede de computadores, dispositivo de comunicação ou sistema informatizado, sem autorização ou em desconformidade à autorização, do legítimo titular, quando exigida." Dessa forma, simplesmente acessar um site já seria um crime, pois quando acessado, uma cópia do site fica armazenada na memória RAM do computador. O projeto gerou tamanha contrariedade e discussão na Rede, que uma petição online foi criada por André Lemos, Sérgio Amadeu da Silveira e José Carlos Rebello Caribé, personalidades amplamente conhecidas e atuantes na Rede, para coletar assinaturas em protesto ao projeto do senador. No momento da redação desta resenha, em novembro de 2008, a petição já contava com quase 125 mil assinaturas. A petição foi disseminada pelos internautas que trataram de export na Rede, através de sites, blogs, fóruns e comunidades online, seu descontentamento com o projeto. Em poucos dias, após sua abertura, as assinaturas cresciam exponencialmente. Outras ações foram movidas não só na Internet contra o projeto do Senador Azeredo. Em novembro de 2008, durante o II Simpósio da Associação Nacional dos Pesquisadores em Cibercultura, foi realizado um flash mob 2 na Avenida Paulista, em São Paulo, como forma de protesto ao projeto. Assim, ao contrário do início da Rede, quando as ferramentas de comunicação online ainda eram menos utilizadas, hoje a repercussão das informações pela Rede se dissemina não só pelas mãos de grandes jornalistas empregados dos grandes conglomerados de comunicação. Os internautas hoje possuem espaços para exporem sua voz, uma voz que 2 Flash mobs são aglomerações instantâneas de pessoas em um local público que depois de fazerem uma determinada ação previamente combinada, dispersam-se tão rápido quanto se reuniram (Wikipédia).
pode ser ouvida por milhões de pessoas, em questões de minutos, em conseqüência da variedade de ferramentas de publicação e do fácil manuseio das mesmas, do pouco tempo que se leva para publicar um conteúdo na Rede e da ausência de limites geográficos para a circulação de uma mensagem. Entrando em aspectos mais técnicos sobre a Internet, Castells (2003) aborda os mecanismos de convergência entre a Internet e a multimídia, afirmando que, pelo menos até o momento em que escrevia suas argumentações, a convergência existente ainda não possibilitava a interatividade que seria, para ele, a característica-chave da concepção de multimídia. O autor atribui os limites da interatividade à insuficiência da largura de banda da época e afirma que a convergência só poderia se estabelecer com a desintegração da visão esclerosada da indústria da mídia tradicional. Seus argumentos, nesse sentido, não são de todo infundados, porém, atualmente, o cenário se constitui de outro modo. Em seguida, Castells (2003) menciona que o hipertexto e a promessa de multimídia seriam os responsáveis pela transformação cultural na era da informação. No entanto, para ele, naquela época um hipertexto eletrônico numa escala global, oriundo da convergência entre a mídia e a Internet ainda não havia se concretizado. Hoje, como se disse há pouco, o cenário é outro, a convergência deu um salto em seu desenvolvimento e o que se tem visto é cada vez mais uma atuação paralela da mídia tradicional no ciberespaço, além do constante crescimento dos níveis de participação da audiência, que de simples receptora, passa também a emitir informação (Lemos, 2002) a qualquer tempo e de qualquer espaço; não é à toa que hoje já se fala na era da mobilidade. Sobre a questão do espaço, Castells (2003) aborda a geografia da Internet dividindo-a em geografia técnica, geografia dos usuários e geografia econômica da produção da Internet. A geografia técnica configura-se como a infraestrutura das telecomunicações da Internet; a geografia dos usuários refere-se à distribuição do acesso, que é otimizada pelo autor que, mesmo reconhecendo os níveis de exclusão digital, aponta o crescimento acelerado da Internet em termos de usuários e, por fim, a geografia econômica da produção referente ao conteúdo veiculado na Rede, que como já foi aqui apontado tem se disseminado através dos provedores de conteúdo, mas também crescido entre os próprios usuários da Rede que hoje inserem conteúdos na web em quantidade nunca antes visualizada. Em uma perspectiva global, Castells finaliza sua obra lembrando que a Internet, como um meio de liberdade, produtividade e comunicação também produz uma divisão digital gerada por uma desigualdade decorrente das dificuldades no acompanhamento dos usos, do acesso a banda, e das disparidades de conhecimento de sua utilização. Esse argumento ainda é plenamente válido no cenário atual, ainda que os níveis de acesso não parem de crescer. Ao longo dos últimos anos, as obras de Castells não perdem a utilidade e a relevância, pois traçam, com excelência e clareza, um amplo panorama evolutivo sobre a Internet e seu impacto inicial sobre as sociedades contemporâneas e a nova economia mundial. No entanto, muitos aspectos do cenário digital se reconfiguraram e, em um curto espaço de tempo, frente aos processos comunicacionais produzidos através das outras tecnologias de comunicação. A Galáxia da Internet (2003) faz um apanhado abrangente e elucidativo sobre a história da Rede e o papel da tecnologia nas relações políticas, econômicas e sociais de um mundo cada vez mais globalizado e estruturado através de redes digitais. O
livro é indispensável não só para aqueles que iniciam seus estudos acadêmicos e científicos sobre a Rede, mas para qualquer indivíduo que queira entender os processos comunicacionais, econômicos e políticos do século XXI. Referências CASTELLS, Manuel. A era da informação: economia, sociedade e cultura. 1 - A sociedade em rede; 2 - O poder da identidade; 3 - O fim do milénio. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002-2003. FLASH MOBS. Wikipédia. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/flash_mob LEMOS, André. A arte da vida: diários pessoais e webcams na Internet. In: ANAIS DO CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 25, 2002. Salvador, 2002. II SIMPOSIO da Associação Nacional dos Pesquisadores em Cibercultura. Disponível em: http://abciber.org/