RIVALIDADE E INTERDEPENDÊNCIA NA REFORMA DO FUTEBOL BRASILEIRO



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RIVALIDADE E INTERDEPENDÊNCIA NA REFORMA DO FUTEBOL BRASILEIRO Mateus Donato Amorim de Araujo Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) mateus.donato@gmail.com O presente trabalho faz parte de uma pesquisa de dissertação de mestrado, na qual pretendo abordar os processos internos de institucionalização e burocratização de práticas administrativas nos clubes de futebol profissional presentes especialmente na formação de profissionais específicos para a administração de clubes esportivos, nos campos denominados de gestão do esporte e marketing esportivo, ou em casos mais específicos na gestão do futebol. A integração dos princípios empresariais de gestão no esporte tem um caráter especialmente interessante quando se leva em conta a particularidade da relação dos clubes de futebol com seus torcedores, uma relação complexa de caráter informal que é fundamental para o papel que os clubes ocupam na sociedade, especialmente o caráter de interesse público que o futebol de clubes tem hoje. A transformação de uma prática elitista em um espetáculo popular passou por um amplo processo de institucionalização, e atrelou o futebol a um sistema capitalista global no qual o amadorismo desinteressado deu lugar à seriedade de uma atividade econômica. Essa transformação que aconteceu primeiramente dentro do campo de futebol passou para o campo político do esporte, onde em sua origem o clube esportivo era gerido por sócios que construíam uma carreira ligada a suas histórias particulares dentro dos clubes e através desta história conquistavam posições de comando. Hoje, em um processo referido como modernização do futebol, o poder de dirigentes tradicionais é passado a profissionais dotados de um conhecimento legitimado, cuja adequação e encaixe no modelo clubístico tradicional pode ser muitas vezes questionada. Este trabalho pretende discutir essa sobreposição de modelos de gestão nos clubes de futebol, tendo em vista especialmente a importância da relação entre clubes rivais na construção de um modelo

amplo do futebol. Para Hollanda (2004:199), a propagação da ideia de clube-empresa é a configuração de um novo tipo ideal de clube esportivo, para se juntar aos quatro tipos ideais da década de 1930 caracterizados por Mário Filho: o clube estrangeiro, o clube aristocrático, o clube operário e o clube nacional-popular. Estas categoria devem evidentemente ser pensadas como tipos ideais weberianos, não presentes em sua forma ideal na realidade. O interessante aqui é perceber como de fato as categorias se referem a laços comunitários ligados aos clubes, os laços identitários com um país estrangeiro, com uma camada social local (aristocracia ou operários) ou com a nação e a própria noção de popularidade, que vem a definir determinados clubes de futebol (na concepção de Mário Filho, estava ligada ao Flamengo). O tipo ideal clube-empresa vem representar o laço comunitário do clube como negócio, tanto como empregador que pode trazer oportunidades para uma cidade em desenvolvimento quanto como produtor de entretenimento para a comunidade. A importância do emprego e do entretenimento para o estabelecimento de identidades na contemporaneidade reforça a relevância do elemento empresa como característica do clube. E o pleno entendimento destes tipos ideais como misturados dentro do clube empírico deixa clara a situação atual do futebol brasileiro, de convivência dos elementos empresariais com os elementos comunitários tradicionais. A noção de modernização do futebol tem se apresentado como solução para diversas crises que se apresentam ao esporte, desde o momento em que foi adotado o profissionalismo, no início do século XX, até os problemas mais recentes enfrentados pelos clubes. A crise financeira dos clubes, relacionada ao desinteresse dos torcedores, e a violência nos estádios, que associa o futebol a um grave problema social, geraram mais um cenário de crise, para o qual se têm procurado soluções tanto por novos modelos de gestão do espetáculo esportivo quanto pela intervenção do Estado. É importante entendermos que esta noção de modernização, assim como as noções de crise e atraso, são ideias nativas construídas a partir de um contexto comparativo, e não conceitos objetivos e muito menos indicadores sociológicos. Os termos são empregados aqui como palavras cujos significados concretos são vagos, mas que são usadas frequentemente no universo empírico estudado. Por isso, não entra aqui em questão se os termos modernidade e tradição podem ser vistos como dicotômicos ou não, pois aqui

eles são tratados simplesmente como termos empregados nativamente para definir (e muitas vezes legitimar) determinadas posturas. Tanto a crise atual quanto a crise que levou ao profissionalismo dos atletas são associadas à dificuldade dos clubes em se manterem competitivos em relação aos clubes estrangeiros, sendo portanto uma crise característica da globalização na qual os clubes precisam buscar soluções baseadas em um ideal de modernização, para se livrarem do atraso e se igualarem aos clubes estrangeiros, vistos como modernos. 1 A institucionalização do esporte, tratada por Bourdieu (1983) e Elias (1992), foi fundamental para a expansão do esporte, a consolidação das regras e para que o esporte passasse a ocupar o lugar que ocupa hoje na sociedade. Essa institucionalização se deu inicialmente com a formação de clubes que se organizavam para competir entre si, mas é um processo ainda em curso, estando presente no futebol brasileiro hoje. Podemos dizer que, para além de uma institucionalização do esporte, o que vemos hoje é uma burocratização das relações esportivas, desde o profissionalismo aplicado aos atletas até a atual demanda pela profissionalização da gestão do futebol. Se de fato as relações internas dos clubes passam por uma burocratização no sentido weberiano (WEBER 1982), o que podemos dizer das relações entre clubes e torcedores, ou mesmo do torcedor com o futebol, neste contexto? Se por um lado a prática esportiva se torna progressivamente profissional e interessada, para aqueles que assistem o esporte parece preservar-se uma noção de amadorismo, pela manutenção da narrativa do que acontece em campo como sendo ligada predominantemente às regras e objetivos internos do jogo, resgatando o desinteresse característico do esporte amador. Quando algum elemento externo influi no jogo, como o atleta propositalmente piorar sua performance por não estar recebendo salário ou ter algum problema com os patrões, a atitude é vista como inadequada e excepcional, como se estas questões não tivessem lugar no esporte. O valor (remanescente do amadorismo) reconhecido na prática do esporte é o que mascara, segundo Bourdieu, o caráter de mercadoria de massa e show business que está presente no esporte contemporâneo; é esse valor, e a força que ele tem na relação dos adeptos, que impede que o esporte iguale-se a outras formas de negócio e 1 A questão das crises do futebol associadas à globalização foi tratada, em perspectivas diversas, por Alvito (2006) e Helal (2002).

espetáculo, mantendo-se como um campo especial. Portanto, esse é o valor que essencialmente diferencia a relação entre clubes e torcedores da relação de consumidores com qualquer tipo de negócio. Paradoxalmente, é exatamente a relação de consumidores que tem passado a orientar a forma do futebol se relacionar com seus torcedores. Segundo Aidar (2010), a solução para as crise do futebol brasileiro está em tratar o torcedor como cliente. Os estádios devem ter melhores condições, para que possam ser cobrados ingressos mais altos; as divisões de base devem ser melhor equipadas e exploradas tendo em vista o potencial de renda através de vendas de jogadores; e por fim, a gestão dos clubes deve ser profissionalizada, com diretores remunerados em lugar dos dirigentes amadores que são maioria no futebol brasileiro hoje. Esse tipo de transformação pode gerar não apenas a solução de problemas da burocracia do clube, mas trazer melhores resultados, segundo Celso Grellet. (2010) Estas são visões bem típicas da administração empresarial aplicadas ao futebol. No entanto, ainda segundo Grellet, o futebol não pode ser igualado à administração de empresas comuns, pois este simplesmente não é uma empresa em um ambiente capitalista, que busca o lucro, a maximização do valor para seus donos e, se possível, a conquista total do mercado, gerando um monopólio; um clube de futebol objetiva a vitória em competições, o que requer a existência de outras empresas, pois a competição está na base do seu negócio. A excelência de gestão, portanto, para Grellet, jamais seria atingida por um clube isoladamente, mas sim pelo conjunto de clubes em disputa. Além disso, ele chama a atenção para a imprevisibilidade dos resultados no futebol, o que impede a criação de modelos que levem a times vitoriosos. A falta de uma articulação clara entre a saúde financeira e o sucesso esportivo de um clube é um dos pontos que torna complexa a relação entre clubes e funcionários (incluindo atletas), por um lado, e clubes e torcedores pelo outro. Enquanto para os funcionários a saúde financeira pode ser o fundamental, para os torcedores pode ser uma questão secundária diante de um bom resultado em campo. Para ilustrar melhor este problema, podemos discutir também outra iniciativa de institucionalização das relações esportivas, voltada especialmente para a relação entre torcedores e o espetáculo esportivo, e imposta pelo Estado: o Estatuto de Defesa do Torcedor. Segundo Azevedo (2008), o Estatuto, fortemente inspirado pelo Código de

Defesa do Consumidor, centraliza o problema do torcedor de futebol como uma relação de consumo. Aqui, por mais que apresente-se como uma defesa do outro lado da relação entre clube e torcedor, o produto é o mesmo: o torcedor é igualado ao consumidor, assim como para os reformadores da gestão de clubes o torcedor deve ser igualado ao cliente. Podemos ver em todas estas propostas uma aparente concordância, buscando uma lógica de burocratização do esporte; no entanto, podemos afirmar que nesta reforma institucional a relação amadora característica do pertencimento clubístico não fica contemplada. A simples transposição de uma lógica de consumo não parece dar conta do problema, dada a complexidade da relação. Para ilustrar essa complexidade, é pensarmos na dinâmica entre o campo econômico e o campo esportivo que marca o futebol, e onde o torcedor se encaixa nisso. Segundo Arlei Damo (2001), o espetáculo esportivo é um evento único no qual a dinâmica entre forças oponentes não abre possibilidade para síntese: você se opõe ao outro, e é a vitória ou derrota do seu time que importa, definindo boa parte dos juízos estéticos sobre o que foi assistido. Para ele, o jogo é um ritual disjuntivo, uma espécie de fissura no tempo, com códigos próprios. No entanto, os eventos esportivos podem reverberar nos outros universos, assim como os outros universos reverberam nos eventos esportivos. A escolha do clube do coração faz parte da construção do indivíduo como pessoa. Uma vez escolhido o clube, o torcedor arca com um ônus, não podendo trocar de clube, pois seria falta gravíssima. Talvez seja este o ponto que melhor diferencia a adesão do torcedor a um clube da adesão do consumidor a uma marca de um produto qualquer. Ao descrever o processo de escolha do clube de coração, Damo ressalta que, apesar de poder ser influenciada pela performance do time, essa escolha é principalmente dependente das relações do indivíduo com aqueles à sua volta (familiares e vizinhos, por exemplo). Feita a escolha, o pertencimento clubístico passa a ser uma máscara social, entre as tantas existentes nas sociedades complexas. Ao adotar a máscara do clubismo o indivíduo está adotando uma série de elementos particulares do clube, entre os quais está a exclusão do pertencimento a outros clubes, e uma nova forma de relação com os torcedores pertencentes aos clubes rivais. Ao analisar a circulação de dons e as relações de reciprocidade entre torcedores, clubes e jogadores, Damo (2008) mostrou que a escolha de um clube e o engajamento

nele é essencial na participação do futebol como espectador. Essa escolha, no entanto, como também já ficou evidente, não é feita de forma voluntária e racional pelo indivíduo, sendo pautada pelas relações daqueles que o cercam. Esse pertencimento clubístico pode passar então a se sobrepor a outras relações em certas situações, invertendo hierarquias na rotina de zombarias que o acompanha; o aluno pode zombar do professor, e o funcionário pode zombar de seu chefe, quando se trata de uma zombaria ligada a seus respectivos pertencimentos clubísticos. O que nos interessa aqui é o caráter recíproco de tais zombarias: Damo alerta que não é possível ora gostar de futebol, ora não, ora torcer por um clube, ora por outro. Essa atitude não permite a circulação das insinuações jocosas; o torcedor que zomba do outro no momento de triunfo deve estar disponível para a zombaria no momento de fracasso. A zombaria é um exemplo claro do compromisso assumido pelo torcedor em relação ao clube, denota um engajamento e um risco que o torcedor assume no momento da adesão. No entanto, as transformações que o futebol passou nas últimas décadas, desde a profissionalização dos jogadores, deixaram os torcedores como a única categoria de agentes amadores, depositando suas fichas em profissionais que os representam, mas tendo uma relação com o futebol na qual apenas o êxito esportivo importa, sem ter compensações financeiras ou de outra ordem como incentivos. Já os atletas estão envolvidos na atividade com outros elementos presentes, como a compensação financeira a ser recebida e as possibilidades futuras para a sua carreira ligadas ao seu desempenho. Os atletas podem circular entre os clubes, ao contrário dos torcedores. Isso gera uma desconfiança entre os torcedores: afinal, se o jogador recebe seu salário mesmo em caso de derrota, enquanto eles passam a sofrer com as jocosidades à que estão expostos, pode não haver um mesmo comprometimento entre ambas as partes. É estabelecida então uma relação recíproca entre torcedor e jogadores: o torcedor investe seu capital financeiro assistindo a partidas e comprando produtos, ao mesmo tempo em que investe um capital simbólico ao aderir ao clube como torcedor, arcando com risco associados a isso; já o jogador, receptor de dinheiro e do engajamento da torcida, deve retribuir compartilhando com eles seu dom e oferecendo o mesmo engajamento pela vitória do que o oferecido pela torcida. Podemos supor que a torcida espera que o jogador, portanto, não se guie pelo

interesse financeiro ligado ao recebimento de dinheiro em troca do empréstimo de seu dom a uma instituição, mas sim a uma reciprocidade mais complexa entre um carinho da torcida e uma identificação com o objetivo desta mesma torcida: o triunfo do clube. Por outro lado, essa pode ser uma simples consequência da compreensão correta do jogador de seu contrato para com o clube: tomando como relacionados dois conceitos opostos podemos dizer que o profissionalismo leva à garantia de uma relação legitimamente amadora, no sentido de estar em par com a relação mantida pelos torcedores. A complexidade de relações entre o torcedor e o clube, o clube e o jogador, o torcedor e o rival e o clube e seus rivais é evidente, e já pudemos identificá-la como marcada por reciprocidades e pela circulação de dádivas dos tipos mais diversos; igualmente, podemos ver que o que está em jogo não é apenas ganhar; perder faz parte da relação estabelecida. A vitória de um e a derrota do outro precisam estar presentes para a dinâmica entre os torcedores ser estabelecida. O compromisso do jogador com seu clube e a relação apropriada com seus torcedores não se evidencia na vitória, mas sim na derrota. Se temos problemas relativos ao profissionalismo dos atletas frente ao amadorismo dos torcedores, como fica essa relação com dirigentes profissionais? A rivalidade do torcedor em relação ao clube rival pode até ser compartilhada pelos jogadores profissionais no momento em que estão em campo, e em muitos casos será compartilhada pelo dirigente, mas na maior parte do tempo, os dirigentes estão participando de reuniões com os rivais, tratando conjuntamente do esporte como um todo, ou ao menos do campeonato como um todo. A relação entre dirigentes e rivais foi caracterizada por Burlamaqui (2010) como uma relação dadivosa baseada na palavra, em uma lealdade ligada a um sentimento de classe, uma identidade como dirigentes de futebol que vai além dos clubes. No entanto, o mesmo relata como a palavra muitas vezes é quebrada, e como isso é visto como uma traição pelo dirigente traído, o que reforça que, por mais que tenham uma lealdade própria entre si, os dirigentes tradicionais respondem a uma força interna do clube; são relações e identidades com as quais eles convivem simultaneamente: com o clube e com a classe de dirigentes. O tema das múltiplas identidades institucionais dos dirigentes também foi tratado por Godio (2010:117-118), tendo como base o caso argentino:

Os sujeitos dirigentes dos clubes no futebol são protagonistas empíricos de uma construção permanente de relações e negociações que têm como objeto em disputa a dramatização institucional do ganhar e perder da competição esportiva. Eles estão triplamente ligados a processos de identificação política locais, nacionais e globais e a tarefa que cumprem é a de administrar a espectacularização das mesmas adequando as expectativas dos emblemas futebolísticos aos institucionais. Todavia, transformam e experimentam os significados deste sistema cultural em que vivem através de um desejo de posicionamento em lugares de superioridade institucional e identitária, em cujo marco devem tentar colar sua experiência profissional, familiar e pública em continuidade com as demandas organizativas. Em um contexto institucional, a lógica do campeonato como a própria unidade de operação do futebol (e do clube como uma parte dela, e não uma unidade em si) nos leva a pensar no formato seguido pelas ligas esportivas dos Estados Unidos, onde a formatação como empresa não se dá na individualidade dos clubes, mas sim nas ligas como um todo; assim, os rivais são rivais dentro de campo mas são franquias de uma mesma organização maior. Algo parecido se dá em casos como a Premier League, principal campeonato de futebol da Inglaterra, onde os clubes são sócios de uma empresa que organiza os campeonatos. Ambos os casos estão distantes da realidade brasileira, em que as relações formais entre os clubes entendidos como empresas não existem. O problema se torna mais grave quando o fracasso do rival coloca em risco o sucesso financeiro do próprio clube, como acontece quando um time rival é rebaixado e o clube deixa de contar com um jogo de estádio cheio para a temporada seguinte. A situação me parece mais complexa quando falamos de gestores profissionais, que tomam funções dos dirigentes tradicionais nos clubes e passam a ter um poder de decisão que, se antes era ligado a noções emotivas e tradicionais, passam a se basear por novas lógicas, que no discurso aparecem como lógicas empresariais. Mas se, como já vimos, os próprios teóricos da gestão reconhecem a particularidade do futebol, como é possível lidar com a gestão do futebol como uma gestão de empresa capitalista, em busca do lucro e do monopólio? O que acontece quando o lucro não está devidamente ligado ao sucesso esportivo? Entre as várias dimensões pouco exploradas das transformações do futebol, deve-se considerar a importância que as questões financeiras ganham na visão do torcedor do esporte, que passa a discutir não apenas a performance dos jogadores mas se

a sua contratação valeu a pena tendo em vista quanto foi gasto; ou a importância de o clube se classificar para disputar um torneio continental não apenas pela chance de disputar mais um título, mas pela renda proveniente desta participação. Quando todos estes elementos começam a aparecer em discursos de torcedores, podemos começar a pensar se a comercialização do futebol não está na verdade atrelada também a um novo tipo de torcida; a crescente abertura do capital de clubes no exterior cria ainda a possibilidade dos torcedores serem acionistas do clube, o que fecharia um ciclo e tornaria toda essa discussão ainda mais complexa, já que a torcida passaria a estar ligada a um lucro pessoal, e o que para alguns pode parecer uma redução do esporte a uma atividade econômica pode ser vista para outros como um fascinante processo de ressignificação das relações já faladas e da economia como símbolo maior das sensações. Estas são, evidentemente, questões amplas demais para serem exploradas aqui, mas que permeiam este trabalho. A pesquisa em curso é focada nas respostas à particularidade do futebol encontradas na formação de gestores profissionais. As respostas encontradas até agora têm sido pouco concretas, o que denota um despreparo do moderno mercado capitalista para lidar com as tradicionais relações que permeiam o futebol brasileiro. Referências bibliográficas AIDAR, A. C. K.. O torcedor como cliente: uma solução para aumentar a receita dos clubes brasileiros. Cadernos FGV Projetos, ano 5, n. 13, p. 30-37, 2010. ALVITO, Marcos. A parte que te cabe neste latifúndio : o futebol brasileiro e a globalização. Análise Social (Lisboa), v. 41, p. 451-474, 2006. AZEVEDO, A. A.. O Direito de Torcer e como Torcer Direito: uma abordagem do Estatuto do Torcedor (Lei N. 10.671/03), na perspectiva da relação de consumo do espetáculo de futebol. In: AZEVEDO, A. A.. (Org.). Torcedores, Mídia e Políticas Públicas de Esporte e Lazer no Distrito Federal. 1 ed. Brasília - DF: Thesaurus Editora de Brasília LTDA, 2008, p. 13-43. BOURDIEU, Pierre. Como se pode ser esportivo? In: Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983. BURLAMAQUI, Luiz Guilherme. A outra razão: os dirigentes de futebol e o processo de transformação do futebol brasileiro (1982-1998). Monografia de graduação em

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