MODA E CULTURA VISUAL: A PESQUISA COM IMAGENS COMO CAMINHO PARA O ESTUDO DAS PRÁTICAS VESTIMENTARES



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Transcrição:

MODA E CULTURA VISUAL: A PESQUISA COM IMAGENS COMO CAMINHO PARA O ESTUDO DAS PRÁTICAS VESTIMENTARES Juscelina Bárbara Anjos Matos (mestranda FAV/UFG) Miriam Costa Manso M. Mendonça (Professora FAV/UFG) RESUMO: O presente artigo tem como objetivo analisar as contribuições/tensões que envolvem a pesquisa em Cultura Visual em suas conexões o estudo da moda. Neste sentido, as discussões aqui apresentadas configuram-se como uma tentativa de localizar as investigações sobre moda dentro do campo maior da Cultura Visual e de construir um percurso teórico-metodológico com a finalidade de nortear a pesquisa de mestrado que vem sendo desenvolvida sobre as práticas vestimentares femininas em Vitória da Conquista em meados do século XX, que elege a imagem fotográfica como principal fonte. Palavras-chave: Moda, Cultura Visual, Imagem Fotográfica ABSTRACT: The currently article intent to analyze the contributions/tensions which englobes the reseach in Visual Culture in it's conections with the fashion's studies. That way, the discutions here showed set themselves as a try to locate the investigations about fashion inside the major field of Visual Culture and to construct a theorical-methodological line with the purpose of to guide the masters research which has been developed about female costumes in Vitória da Conquista in the middle of the 20th century, which choose a photographic image as a most important font. Keywords: Fashion, Visual Culture, Photographic Image Introdução A pesquisadora de moda Gilda de Melo e Sousa, ainda nos anos de 1950 quando defendeu, na USP, a sua tese de doutoramento, que anos mais tarde foi publicada sob o titulo de O Espírito das Roupas: a moda no século dezenove (1987), já chamava a atenção para a dificuldade de abordagem do fenômeno da moda sob uma perspectiva acadêmica. Segundo a autora a nossa visão apresenta-se empobrecida ao encararmos de forma unilateral objeto tão complexo. Gilberto Freire, em Modos de Homem e Modas de Mulher compartilha a mesma opinião e 298

chama a atenção para o fato de a moda ser um assunto [...] antropológica, psicológica, sociológica, estética e eticamente complexo (2002, p.28). A moda enquanto foco de investigação de diferentes áreas de saber teve sua emergência a partir das décadas de 1970 e 1980, quando se multiplicaram nas ciências sociais e humanas os estudos que buscavam novos temas, problemas, métodos e fontes de pesquisa. Foi um momento de renovação em que os campos de estudo estabelecidos começaram a romper as fronteiras disciplinares com objetivo de buscar explicação para a dinâmica social, que se tornava cada vez mais complexa (PESAVENTO, 2004). Essa diluição das fronteiras entre as disciplinas constituídas gerou um alargamento dos campos conceituais onde, por exemplo, não era mais possível falar em Cultura como algo superior, mas, sim, em Culturas como conjunto de elementos característicos que representam um modo de vida (WILLIAMS, 1992). Impossível pensar, em Arte, como algo único, inatingível, devemos, sim, concebê-la enquanto Artes, como um campo maior conforme propõe Santaella (2005) ao tratar da convergência entre as artes e comunicações: Para muitos, a comunicação identifica-se exclusivamente com a comunicação de massas, enquanto as artes se restringem ao universo das belas artes. Se nos limitarmos a essas duas visões parciais tanto a comunicação quanto a arte [...] as possíveis convergências de ambas não faz sentido. [...] alimentar o separatismo conduz a severas perdas tanto para o lado da arte quanto para o da comunicação. Neste contexto, a interdisciplinaridade tornou-se o ponto chave dos Estudos Culturais. A partir da nova perspectiva adotada, a pesquisa em Cultura Visual vem ganhando espaço, por propor uma dilatação dos temas abordados nas artes visuais, alargamento esse no qual o estudo das visualidades busca privilegiar a experiência do cotidiano. Artes Visuais abragem a maior parte da cultura visual, que é tudo o que é humanamente formado e sentido através da visão ou visualização e molda o modo como vivemos (FREEDMAM apud LAMPERT, 2006-2007, s.p.). 299

Cabe aqui, também, destacar o conceito de representação visual emitido por Martins, Representações visuais são formas culturais de apresentar, narrar ou referir, caracterizando ou nomeando grupos de indivíduos, sujeitos, conceitos, valores e identidades. As representações se efetivam através de sistemas visuais (fotografia, pintura, televisão, cinema, etc.) como um modo de mediar a compreensão e a construção de idéias, sentidos e processos simbólicos (MARTINS, 2008, s.p.). É por meio da representação que os sujeitos sociais dão sentido ao mundo, construindo imagens de si e organizando a realidade em que estão inseridos. Neste sentido, a moda - enquanto fenômeno cultural e forma de representação visual do sujeito - faz parte do campo de interesses da Cultura Visual, e do fazer das Artes. Barnard ao destacar o papel simbólico exercido pela moda afirma que a moda e a indumentária podem ser formas mais significativas pelas quais são construídas, experimentadas e compreendidas as relações sociais humanas (2003, p.24). As discussões aqui apresentadas configuram-se enquanto uma forma de localizá-las dentro do campo da Cultura Visual e uma tentativa de construir um percurso teórico-metodológico com a finalidade de nortear a pesquisa de mestrado que vem sendo desenvolvida sobre as práticas vestimentares femininas em Vitória da Conquista em meados do século XX. Apesar do estudo partir de um ponto de vista muito mais específico à sociologia e à história, não podemos descartar a contribuição do campo das artes, uma vez que as práticas vestimentares guardam em si importantes formas de representação. Ao se vestir ou adornar o sujeito busca comunicar-se, expressar formas de estar no mundo, o que não exclui, também, uma manifestação artística. Como a pesquisa tem como estratégia de ação o estudo das práticas vestimentares a partir da análise de imagens fotográficas achamos interessante levantar algumas questões sobre o seu uso investigatório, sobretudo, na indagação histórica sobre uma determinada época e lugar. 300

A imagem como testemunho da história Ao remontarmos a história das civilizações podemos perceber que as imagens sempre estiveram presentes, mediando a relação do homem com o mundo. Antes mesmo de desenvolver um código verbal o homem já se expressava por meio das imagens. O olhar, os gestos, constituem a primeira forma de comunicação humana. Através do estudo das imagens podemos chegar não só a conhecer visualidade de uma época, como a desvendar as práticas culturais de um determinado grupo social. Ver como uma época se retrata ou retrata o passado, ou ver, na imagem, quais os valores e os sentimentos que se busca transmitir, quais os sonhos e fantasias de um tempo dado, ou quais os valores e as expectativas do social com relação aos atores (PESAVENTO, 2004). As imagens revelam costumes, práticas, histórias de vida. Elas se confundem com a própria memória, evitando o esquecimento, garantindo a sua duração no tempo. Como diz Leite (2001), muitas vezes não nos recordamos dos fatos, mas das imagens produzidas naquele momento. As fotografias não nos contam apenas a história visível, mas também uma outra, que diz respeito ao campo dos sentidos, não menos importante. Ao folhear um álbum de família, podemos tentar reconstruir o percurso que levou à seleção daquelas fotos, aquilo que está ausente nas imagens, a posição dos sujeitos, o que querem contar e as entrelinhas escondem. Ela trás em si uma sobreposição de significações e o que direciona o olhar do historiador é a pergunta que tem a fazer a essa imagem, tomando-a como representação, como marca que se coloca no lugar do passado a que buscamos desvendar. Sobre a fotografia A fotografia é uma marca do real. Este é, sem dúvida, o primeiro conceito que devemos considerar quando nos propomos a investigar essa forma de expressão como meio de reconstruir o passado. Ela não é 301

apenas uma representação mimética da realidade, mas um indício de alguma coisa. È um fragmento, um recorte no espaço / tempo. A imagem fotográfica é uma inscrição, uma marca, uma pequena queimadura de luz sobre nitratos de prata; sempre o índice de um real, e que não existiria sem o seu referente. Posso tocar a imagem fotográfica, apalpá-la. Ela tem uma textura, um peso, uma materialidade, mesmo se ela é, também, achatada, bidimensional, corte e golpe no tempo e espaço (SAMAIN, 2001, p.54). O autor nos chama a atenção, também, para o fato de que a fotografia não é apenas uma imagem, ela é uma imagem onde se articulam técnica e simbolismo. A fotografia é a mediadora entre a realidade que se quer compreender e a imagem dessa realidade. Neste sentido, Leite (2001) afirma que a imagem deve ser considerada pelo historiador como outro documento qualquer, avaliando a complexidade das mensagens, para posteriormente, tentar decifrar o que está além dos aspectos visíveis. Kossoy alinha-se a esse pensamento quando diz que a imagem fotográfica tem múltiplas faces e realidades (2002, p.131). A primeira face é o visível, o que se vê impresso, imóvel no documento. A segunda realidade é o invisível, o que não podemos ver, mas podemos intuir. [...] Não mais a aparência imóvel ou a existência constatada mas, também, e principalmente a vida das situações e dos homens retratados, desaparecidos, a história do tema e da gênese da imagem no espaço e no tempo (KOSSOY, 2002, p. 132). O estudioso nos mostra, assim, que a reconstrução da história é um exercício de imaginação. É um mergulho na imagem para se chegar ao que não está aparente: o contexto em que a imagem foi produzida, e as histórias de vida dos sujeitos retratados. Mauad (2004) também sustenta a mesma opinião e propõe que a compreensão do documento fotográfico deve ser pautado por dois níveis de percepção: um interno e outro externo à superfície do texto visual. Cabe aqui a compreensão de que a imagem é um artefato cultural, que guarda marcas de práticas de um grupo social num determinado período da história. Sendo assim, como afirmam os autores acima citados, a sua interpretação vai além da observação dos elementos 302

aparentes; é necessário conhecer o contexto em que foi produzida para se chegar ao que não podemos ver. Os autores ainda concordam que para uma abordagem sociocultural é preciso lançar mão de outras fontes, como outros documentos textuais e orais. Do cruzamento das informações do documento fotográfico com outros complementares pode-se reconstruir as práticas sociais de um grupo. Leite (2001) destaca o papel da narrativa como forma de recompor o contexto do momento, de chegar ao imaginário dos sujeitos retratados. Como as fotografias não narram, mas captam aparências momentâneas, as fotografias [...] quando revistas pelos descendentes de uma das famílias retratadas deixaram bem claro que [...] colocavam-na num contexto, ou seja, num contínuo de passado e futuro, dos quais a fotografia fora destacada (LEITE, 2001, p. 104). A fotografia contém informações múltiplas da realidade selecionada, sendo que não é apenas o acontecimento em si que é a meta a ser recuperada. Interessa o pensamento que levou o homem à determinada ação. É o que buscamos quando mergulhamos na vida passada e retornamos aos documentos, mergulhando no passado e retornando à sua imagem/fragmento num movimento contínuo, buscando compreender as razões que deram origem aos acontecimentos. A significação de uma imagem permanece em grande parte tributária da experiência e do saber que a pessoa que a contempla adquiriu anteriormente. Neste tocante, a imagem visual não é uma simples representação da realidade, e sim um sistema simbólico (GOMBRICH apud SAMAIN, 2001, p.56). Aqui, o autor destaca outro ponto que não podemos perder de vista: é o caráter polissêmico da imagem. É o olhar do observador que organiza as informações e dá sentido à imagem. Esse sujeito que olha é guiado por seus interesses, vivências, seu conhecimento de mundo. Assim, a imagem pode gerar diferentes interpretações. No caso da pesquisa, o direcionamento do olhar é dado pelo objeto do pesquisador. Imagem e moda 303

A moda sempre traduziu em imagens, primeiro da pintura e depois da fotografia, como um meio para se ter acesso à visualidade de uma época, para ilustrar e contar o seu desenvolvimento ao longo da história. Imagens constituem um guia para mudanças de idéias [...] e são ainda mais importantes como evidência de padrões de beleza em mutação, ou da história da preocupação com a aparência tanto dos homens quanto das mulheres (BURKE, 2004, p. 11). A fotografia pode nos revelar o vestuário, penteado e acessórios que se usava num momento, mas não temos como saber se esses seriam itens de moda apenas pela observação das imagens. A fotografia impede, com sua concentração na aparência, indícios mais precisos sobre o material usado nas vestes, que diferencia as camadas sociais, como ainda sobre o momento (a data) em que aquela indumentária foi usada. Sabe-se, por exemplo, que as mulheres do Rio de Janeiro, no século XIX, copiavam a moda de Paris, mas sempre com atraso, e passavam suas roupas para as escravas da casa, depois de um ano de uso (LEITE, 2001, p. 104). A autora aponta aqui também a impossibilidade de se conhecer a classe social dos sujeitos retratados, uma vez que esses buscam se vestir com as suas roupas domingueiras para serem fotografados. Enquanto as fotografias de estúdio revelam pouco sobre a classe social dos indivíduos fotografados, já que a indumentária nunca é relacionada com o dia a dia de quem a usa, os instantâneos podem nos fornecer dados preciosos sobre a periodização histórica. Muito pode ser lido em uma fotografia instantânea. Ela é um texto que propicia uma análise aprofundada sobre um complexo emaranhado de sentidos. Em primeiro lugar, surge a realidade retratada, a verdade do momento, manifesta em linhas e contrastes de formas. Uma leitura superficial e imediata nos dará o relato da moda em vigor no segmento de tempo enfocado, já que o ser humano é uma criatura capaz de escolher livremente o aspecto que deseja dar ao seu corpo, para adequá-lo aos padrões de elegância e beleza vigentes. Logo a seguir, porém, é possível captar a subjetividade, a emoção que dirigiu o olhar do fotógrafo na organização dos elementos norteadores da composição. Nesse momento, as figuras imobilizadas na imagem compartilham a cena com esse ator oculto, que dirige, a seu 304

gosto, o foco da câmera. Ele pode nos contar mais sobre a posição social, política e econômica dos indivíduos presentes em uma cena, destacando de alguma maneira a atuação de alguns. Ao oferecer esse destaque, estará colocando em evidência o vestuário daqueles que compõem essa elite, em seu julgamento. Assim sendo, a partir de uma coleção expressiva de imagens fotográficas é possível fazer a reconstrução do passado, do instante imortalizado que, embora não possa voltar, faz-se para sempre presente. Nesse sentido, Leite chama a atenção para a necessidade de se ter um volume de imagens suficiente, para que seja organizado numa seqüência temporal e a partir daí possam ser percebidas as transformações na visualidade. As mudanças ou o prolongamento do mundo visível só podem ser obtidos pela justaposição de diversas imagens sobre a mesma questão, tomadas em momentos diferentes (2001, p.41). Outro ponto que a autora chama atenção, e que já tratamos anteriormente, diz respeito ao conhecimento do contexto investigado a partir do levantamento de outros documentos. A articulação com outros textos, orais e escritos, permite desdobrar as conotações para uma compreensão mais ampla dos temas investigados. Algumas considerações sobre o estágio da pesquisa O referido projeto de pesquisa vem sendo desenvolvido no programa de mestrado em Cultura Visual da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás UFG tendo como objetivo central a analise do comportamento de moda feminino, ou seja, a investigação de como as mulheres se relacionavam com a roupa e a moda em Vitória da Conquista Ba, em meados do século XX. A pesquisa está sendo alicerçada por dois passos principais e articulados. O primeiro consiste em estabelecer o suporte teórico necessário para a sustentação do trabalho empírico de análise das imagens fotográficas e depoimentos coletados. O segundo passo importa nessa coleta e análise de dados. 305

Até o momento foram reunidas aproximadamente 200 imagens entre arquivos públicos e privados; foram, também, realizadas até o momento 6 entrevistas em profundidade, além de conversas informais com outros atores sociais que viveram no período e com pesquisadores que têm se dedicado a recompor a memória da cidade. Foram feitas visitas ao Museu Regional e Arquivo Público Municipal da cidade onde pudemos colher informações de jornais da época (Jornal O Conquistense e O Combate). A seleção e confronto dos dados constituirá a segunda etapa da pesquisa que ainda está em andamento. Referências Bibliográficas: BARNARD, Malcolm. Moda e comunicação. Tradução: Lúcia Olinto. Rio de Janeiro: Rocco, 2003. BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. São Paulo: Editora Edusc, 2004. FREIRE, Gilberto. Modos de homem e modas de mulher. 4.ed. Rio de Janeiro: Record, 2002. LAMPERT, Jociele. A imagem da moda muito além da sociedade do espetáculo: cultura visual e a formação docente em artes visuais. Revista da Pesquisa em Artes, Florianópolis, v. 2, n.2, ago. 2006 jul. 2007. Disponível em: http://www.ceart.udesc.br/revista_dapesquisa/volume2/numero2/plasticas/jociele _lampert.pd.acesso em: 20/04/ 2008. LEITE, Miriam Moreira. Retratos de Família: leitura da fotografia histórica. São Paulo: Ed. Da Universidade de São Paulo, 2001. (Texto e Arte; 9) KOSSOY, Boris. Realidades e ficções na trama fotográfica. 2.ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000. MARTINS, Raimundo. Cultura visual: imagens, subjetividade e cotidiano. Disponível em:ttp://www.cust.educ.ubc.ca/wsites/dias/unb/vis/gradua%c3%a7%c3%a3o/d ISCIPLINAS/STCHA%204/TRANS%20textos/RaimundoMartins.pdf. Acesso em: 20/04/2008. MAUAD, Ana Maria. Fotografia e História possibilidades de analise. In: CIAVATTA, Maria e ALVES, Nilda (orgs.). A leitura de imagens na pesquisa social História, Comunicação e Educação. São Paulo: Cortez, 2004. PESAVENTO, Sandra J. História e História Cultural. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. 306

SAMAIN, Etienne. Questões heurísticas em torno do uso das imagens nas ciências sociais. In: FELDMAN-BIANCO, Bela e LEITE, Miriam Moreira. Desafios da imagem: fotografia, iconografia e vídeo nas ciências sociais. SANTAELLA, Lucia. Por que as comunicações e as artes estão convergindo? São Paulo: Paulus, 2005. SOUSA, Gilda de M. S. O espírito das roupas: a moda no século dezenove. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. WILLIAMS, Raymond. Cultura. São Paulo: Paz e Terra, 1992. Juscelina Bárbara Anjos Matos é jornalista, especialista em Memória, História e Historiografia pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB e mestranda do programa em Cultura Visual da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás FAV/UFG. Bolsista do CNPq Brasil. Miriam Costa Manso M. Mendonça é doutora em Ciências Sociais PUC/São Paulo; Mestre em Ciências da Comunicação ECA-USP. Professora dos cursos de Graduação em Design de Moda e Mestrado em Cultura Visual da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás; Vice-Diretora de FAV/UFG. 307