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Transcrição:

138 7- Conclusão A interioridade é uma noção que começa a se formular, em Agostinho, em sua busca pela verdade. Nessa busca ele se depara, após tantos esforços, com a idéia de que Deus é a verdade. Essa apreensão de Deus como a verdade, fruto de sua busca e do encontro dos neoplatônicos e do bispo Ambrósio, fará com que Agostinho opere uma reflexão retroativa a todos os seus erros e equívocos do passado. É da tensão entre esse encontro e a auto-crítica dos erros pretéritos que surge para ele, de modo evidente, a idéia de que a verdade, Deus, está dentro do homem: estava dentro dele e ele não a via. Esta idéia, duplamente inspirada _1) de fonte religiosa, paulina, mais especificamente e 2) de fonte filosófica, sobretudo a partir da concepção plotiniana de que a alma se conhece por dentro _, irá receber em Agostinho contornos tanto éticos, quanto epistemológicos e teológicos. Deus/verdade está dentro, está certo. Mas como fazer para chegar até ele, para conhecê-lo (na medida em que se possa conhecêlo)? É então que ele formula sua doutrina da iluminação, uma variante cristã da reminiscência platônica. É ela quem garante a possibilidade de se conhecer a verdade e isso só pode se dar no interior do homem, por meio de sua inteligência. Porque a iluminação, garantida pelo modelo de criação cristão, nos diz que todos nascemos com uma luz natural, o intelecto, capaz de nos fazer conhecer a verdade. Só que para isso, é necessário que entrem em ação a inteligência e o pensamento, dois instrumentos do homem interior, do homem que se pauta pelo inteligível e não pelo sensível. É nesse cenário intelectual e espiritual que se ergue a noção da interioridade que, como seu nome mesmo diz, só se desdobra internamente, na mente humana. Nada da ordem do exterior poderá nos trazer a verdade, portanto, se se quer conhecê-la, somente um caminho nos é franqueado, e esse passa pelo interior, pela mente, pelo pensamento. Desse modo, se a iluminação é a condição de possibilidade de conhecimento da verdade, a interioridade é o instrumento. Sem ela, ainda que tivéssemos sido criados com condições de conhecer a verdade, se não

139 percorrêssemos o percurso da interioridade não chegaríamos a conhecê-la. E a interioridade é um percurso, como vimos, que se dá no homem interior, pelo pensamento. É o percurso, portanto, de um filósofo. Não se está tratando aqui somente de questões teológicas referentes à fé, à salvação, à encarnação de Cristo. Embora esses temas sejam não só exaustivamente abordados por Agostinho, como também a matéria mesma que o move, a moldura em que se encaixam é a do olhar de um filósofo. É o filósofo Agostinho que elabora a noção da interioridade, ainda que seja o teólogo Agostinho que lhe dê as razões para o fazer. Daí a interseção permanente, o cruzamento sempre presente, do filósofo debruçando-se sobre a sua fé. Daí também porque a interioridade comece como uma noção mais propriamente filosófica, mas terminando seu percurso preenchida de conteúdos religiosos, como procurei mostrar. Da busca da verdade à restauração da natureza espiritual do homem, a interioridade sofre uma transformação. Não que deixe de ser uma noção eminentemente filosófica, já que, como procurei mostrar, tudo nela aponta e pressupõe o percurso filosófico do pensamento para poder vingar. Mas porque sua formulação em uma das últimas obras de Agostinho já revela o tom e o caráter acentuadamente teológico que passa a assumir. Sem se ter em mira sempre esse tensionamento da inserção de Agostinho no mundo do pensamento, perde-se a riqueza de suas elaborações. Se em seus primeiros diálogos percebe-se um acento mais nitidamente filosófico, mesmo assim sabe-se que já eram obras de um homem religioso, às voltas com sua fé e com questões sobre sua vida pregressa, questões já informadas por um olhar de um homem que buscava entender aquilo em que acreditava. E se em suas obras da maturidade ressalta a inserção religiosa, o tempo todo é um pensador que o faz. É importante mencionar ainda a contribuição de Agostinho àquilo que acredito seja um dos aspectos mais interessantes de seu pensamento. Refiro-me ao caráter simbólico que ele acaba por instituir em toda sua reflexão, inclusive no que concerne à interioridade. Vou tentar explicar. Agostinho trabalha com uma concepção de real ao molde platônico, em que o que é real é o que está na dimensão do inteligível, que Agostinho lê como espiritual. Essa dimensão inteligível é que constitui a realidade verdadeira. No entanto, o que a interioridade vem nos mostrar é que esta realidade autônoma e independente de

140 nós, isso que verdadeiramente é real, só pode ser conhecido dentro de nós. Quer dizer, o acesso a essa realidade passa necessariamente pelo interior do homem. Nesse sentido, ao dizer que Deus está dentro, Agostinho está introduzindo uma dimensão simbólica da inserção do homem no mundo. O pensamento de Agostinho é escorado nessa percepção simbólica da relação entre o real e as criaturas: o criador de tudo está no homem sem estar nele contido. O homem é a única criatura que pode vir a conhecer Deus, mas para fazê-lo ele precisa, previamente, entrar em contato consigo mesmo. E é só a partir desse encontro consigo mesmo que se desfraldará o encontro com Deus, o qual está e não está no homem. Está, na medida em que, criados à Sua imagem e semelhança, somos os seres capazes de chegar até Deus, ainda que só plenamente depois da morte, do Juízo Final e da ressurreição dos mortos; não está, porque Deus não pode ser contido em nada. Daí o simbólico de seu pensamento, que aponta sempre o real para além deste mundo sensível e temporal, a realidade que, contudo, só pode ser conhecida em "enigma" e em "espelho". Em Platão, se as Idéias é que eram a realidade, a alma racional podia conhecê-las. Em Agostinho, esse conhecimento é imperfeito, o máximo a que se pode chegar é ao conhecimento de suas imagens. Mas se a realidade é intangível nesta vida, do ponto de vista de seu conhecimento, fica, no entanto, a postulação de que algo dela está em nós, parte dela está no homem. E o homem só adquire significado à luz dessa presença ausente ou dessa ausência presente, melhor dizendo. O homem vale pela distinção que lhe foi conferida em sua criação e pelo que vier a fazer de sua vida, segundo a graça de Deus. Toda sua concepção da relação Deus/homem inaugurou uma percepção de significação do homem fundada sobre o eixo ser/ não ser, estar/ não estar, em que os significados são dados à luz de um movimento perene entre um buscar e um achar, um achar e um voltar a buscar. A dialética do espírito é que passa a conferir significados ao homem, que passa a se ver como o ser significado tanto pelo que é quanto pelo que não é (criatura eleita de Deus/e o fato mesmo de não ser Deus, de Lhe ser profundamente inferior), o que está na base do pensamento cristão que Agostinho ajuda a consolidar. E esses significados erguem-se no lugar deixado vago pela realidade que, de longe, porque infinitamente superior ao homem,

141 mas também de perto, porque se dá a conhecer via o próprio homem, ilumina todos os homens e cada um particularmente. É importante apontar para o fato de que a inserção simbólica do pensamento de Agostinho promove um reconhecimento da interioridade de um modo bem diferente dos filósofos seus antecessores, em quem, sem dúvida, ele se inspirara. Porque se em Sêneca se tem tanto o movimento para dentro quanto o espaço interior, ambos constitutivos da interioridade, o fato é que o interior é visto e entendido como uma extensão da ordem cósmica, da physis, que se manifesta no interior. Ou seja, é uma reduplicação do mesmo, já que os princípios constitutivos da physis fundam também o homem. Também em Plotino se tem uma concepção de interioridade baseada numa identificação entre a Alma e a Mente Divina, ou Inteligência, pois ela, ao se voltar para dentro, acabará por ver em sua natureza o mesmo que a natureza da Mente Divina: ela verá sua característica divina. Ou seja, também se tem aí uma reduplicação do mesmo, ainda que segundo uma hierarquia distintiva dos valores ontológicos, já que a alma é ontologicamente inferior à Inteligência, justamente por poder desta se afastar e voltar-se para as coisas sensíveis. Por isso mesmo, como nos mostra Cary, não existe espaço interior da alma. Mas o que acontece em Santo Agostinho é profundamente novo: ele pensa a interioridade, comportando tanto o movimento para dentro quanto o espaço interior como o lugar de interseção de duas instâncias ontológicas totalmente distintas, onde se terá a alma ela mesma, não divina, criatura mutável ainda que seja o que, no homem, poderá se aproximar de Deus e Deus mesmo, por meio de seu Filho, Cristo, o Mestre interior. Quer dizer, a interioridade passa a ser pensada como o lugar do encontro de diferentes e não da reduplicação do mesmo. Na verdade, essa concepção só é possível dada a inserção do pensamento de Agostinho no simbólico, em que as coisas adquirem significado à luz de uma falta que virá a ser revestida, no caso dele, pela presença transcendente de Deus. A interioridade é parte dessa ampla elaboração simbólica do homem em sua relação com Deus: porque Deus está dentro, mas não é contido dentro.e o homem se significa à luz dessa presença divina que, porém, o ultrapassa. Porém, para que o percurso da interioridade pudesse ser instituído, foi necessário antes a encarnação de Cristo. Este é o fator decisivo no sentido de se

142 encontrar a razão de ser da experiência humana sobre a terra, porque se o homem estava morto devido à queda, precisava ser salvo, criatura distinguida que era desde a criação. E se foram a encarnação de Cristo e a instauração do batismo os dois eventos fundamentais para que o homem pudesse reviver, sendo-lhe restaurada sua natureza espiritual, é o homem interior o espaço que se erige como adequado a que essas transformações aconteçam. Porque toda a palavra do Senhor, no Novo Testamento, não se dá por meio do temor e da lei, senão que pelo amor. E o amor é um sentimento que necessita ser vivenciado, experimentado, quer dizer, o Verbo amoroso do Filho de Deus encontra no coração do homem o campo próprio à semeadura. As transformações que os Evangelhos propõem têm seu ponto de partida não nas ações exteriores, mas interiores. Pois Cristo diz: "...Onde está teu tesouro, lá também está teu coração."(mt, 6, 21) As ações são resultado de transformações ocorridas na alma: não é possível haver ação justa sem que antes tenha havido um consentimento interno à sua consecução. Portanto, as transformações propostas pelos Evangelhos miram não somente as ações exteriores mas também as mudanças internas, operadas pelo homem interior. O lugar decisivo para a salvação é o interior, em que se tem gravada a imagem trinitária de Deus. E a interioridade é o percurso que pode nos dar a conhecer tanto a verdade quanto essa imagem trinitária interior. Não que um simples crente, um homem a quem foi dado o dom da fé sem maiores indagações, um homem que, de modo natural, reconheça a verdade de Deus em seu coração não percorra esse caminho. Mas é que esse homem já sente e pensa assim, porque já existiu, previamente dada, a idéia de que Deus está dentro de si, e esta idéia lhe foi legada, pela tradição cristã, fundada no pensamento de Santo Agostinho. E, nele, esse caminho é curto, bastante abreviado. Aos corações mansos a interioridade se revela quase que de uma vez por todas, não é objeto de construção. A interioridade é, portanto, uma noção que se desenvolveu sob o crivo de indagações filosóficas e religiosas, voltadas tanto para as questões relativas ao conhecimento quanto para as voltadas para a reflexão ética. Mas foi no DT que ela adquiriu seus contornos teológicos definitivos, sendo o instrumento não só de conhecimento da verdade: nesta obra a interioridade é o instrumento capaz de nos levar à formulação da restauração da natureza espiritual do homem,

143 possível ao homem interior que se busca e indaga sobre si e, ao fazê-lo, é-lhe desvendada o conhecimento de sua verdadeira natureza, significada em sua relação com Deus, seu criador e causa de sua existência. E é no percurso da interioridade que esse conhecimento se dá; a interioridade é um caminho para Agostinho entender sua fé, ancorar sua crença em seu entendimento, para a partir dela alavancar seu projeto de salvação. Ela é o instrumento daqueles a quem a fé é, não faculdade de apaziguamento, mas antes uma deflagradora de questões. Por isso ela caracteriza um percurso filosófico, um percurso em que vai sendo permanentemente repensada e formulada e revestida de novos conteúdos, todos engajados, porém, em nos franquear o caminho capaz de nos levar a reencontrar Deus. Nesse sentido, a interioridade, em Agostinho, manifesta-se extremamente preenchida de traços e conteúdos religiosos e teológicos, não se voltando, portanto, para nada da ordem do individual. No entanto, ela irá sendo, paulatinamente, despida destes traços e, inserindo-se num contexto mais secular, irá adquirindo os contornos que levarão à idéia não religiosa de um eu interior mais verdadeiro que o exterior. Essa idéia, ainda que completamente divorciada dos objetivos de Agostinho quanto à interioridade, irá sendo depois formulada e desenvolvida, ajudando a compor, dentro da história humana, a história do ser que veio a ser conhecido, no Ocidente, primeiro como indivíduo e depois como sujeito. Nessa história, e ainda que involuntariamente, Agostinho teve uma participação decisiva.