A QUESTÃO DA HISTERIA MASCULINA: UM CASO CLÍNICO André Avelar



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Transcrição:

A QUESTÃO DA HISTERIA MASCULINA: UM CASO CLÍNICO André Avelar A questão da histeria masculina: A noção de diagnóstico em psicanálise funda-se pela transferência, ou seja, a partir do lugar ocupado pelo analista na fantasia do analisando. Os fenômenos ocorridos na esfera da transferência constituem-se como fatores de relevância no campo da psicanálise, que nos possibilitam problematizar sua prática de modo a torná-la um saber mais vigoroso e afinado com os acontecimentos vividos na prática clínica. O caso clínico em pauta parte da hipótese diagnóstica de histeria. Porém, ao contrário do que comumente ocorre na prática clínica, pretendo assinalar aqui a hipótese de histeria masculina. Tal hipótese não deixa, contudo de se configurar como uma espécie de exceção estatística na clínica psicanalítica: as diferentes trajetórias edípicas vividas por meninos e meninas vêm a corroborar este fenômeno clínico: enquanto o complexo de Édipo no menino chega ao seu fim a partir da ameaça de castração, na menina se inaugura a partir do confronto com a castração, já assinalava Freud.1. em 1925. Todavia fica no ar a questão: a teorização psicanalítica a respeito da histeria feminina pode vir a dificultar a percepção do funcionamento histérico no homem? Vamos inicialmente nos deter no caso clínico propriamente dito para em seguida articulá-lo com a teoria. O Caso R - Sabia que vou fazer um filme a meu respeito? 1

- É como é esse filme? - Não sei... Mas já sei o nome do título: Dominado pelo medo. Este diálogo, ocorrido em uma de suas últimas sessões sintetiza a problemática de R: uma grande insegurança frente ao mundo. Tal insegurança foi inicialmente expressa a partir de uma série de situaçõeslimite, sempre endereçadas para seu círculo familiar. R. é um rapaz muito bonito, tem 27 anos de idade. Relatou ser frequentador assíduo do A.A. Desde os 21 anos, intitulando-se como um 'adicto em recuperação', possuidor da doença chamada alcoolismo. R. já está limpo há um ano e meio, maior período desde o início de seu uso mais pesado a partir dos 19 anos. Neste meio tempo, já tivera duas internações em clínicas de reabilitação. Embora a decisão fora tomada por sua mãe, aceitara ambas sem questioná-la. A questão do álcool não é um fenômeno isolado em sua família. Ao contrário, tem uma importância central em sua dinâmica familiar. Sua mãe tivera três filhos: o mais velho, quando tinha cerca de sete anos, morrera ao escorregar na beira da piscina e bater com sua cabeça na borda. Sua mãe estava bebendo com os amigos bem perto do local, mas nada pôde fazer. R. não era nascido nesta época, apenas seu irmão mais velho. Este tinha cerca de cinco anos na época e presenciou toda a cena. A esse respeito comenta R: - A verdade é que minha mãe nunca se recuperou desse baque... Ela tem uma coisa meio melancólica... Por muitos anos ficava ouvindo Julio Iglesias e tomando 'cuba libre' isolada, num mundo só dela, chorando suas mágoas... Algo mudou neste cenário, contudo. Sua mãe largara o álcool em função das sucessivas reclamações de seu outro filho, irmão de R., que se queixava de sua mãe; acusava-a de ficar mergulhada numa espécie de transe, não dando nenhuma atenção a ele. Em contrapartida, sua mãe 2

passou a criticar abertamente seu irmão, pois ele passou a beber com frequência, a partir de sua entrada na adolescência. Em meio a este cenário turbulento, nasce R. Seu irmão já tinha 11 anos, quando ele surgira na família. Diferentemente de seu irmão, R. quase não teve contato com o pai. Sua origem é fruto de uma relação não muito sólida: seu pai também alcoolista conheceu sua mãe nos alcoólicos anônimos. Ela optou pelo rompimento da relação, quando descobriu que estava grávida. Atualmente com outra família, R. descreve-o como alguém despreparado para exercer a função de pai. Preocupa-se com o novo filho de seu pai. Diz que gostaria de fazer algo por este menino, teme pelo futuro dele. No entanto, ao longo de sua análise, R. tem entrado em contato com seu próprio desamparo. Ao longo de sua vida, criara uma série de situaçõeslimite, sendo percebidas pela mãe sempre tardiamente, quando isso ocorria. Relatou que, certa vez, ficou três meses fingindo ir à escola. Quando sua mãe percebera, lhe dera uma grande bronca, mas a esta altura, já estava reprovado. No ano seguinte, o mesmo ocorrera: cabulava as aulas e sua mãe tornara a não perceber, a não ser quando a situação já se tornara crítica. Tal situação o levou a repetir alguns anos na escola. Em outra situação, R. passou a acompanhar seu irmão em suas bebedeiras adolescentes, às vezes chegando até a beber junto com os amigos dele, porém seu irmão tinha 19 anos e R., apenas 8 anos. Este encarava com naturalidade tal comportamento; e sua mãe seguia alheia a tudo. Atualmente, R. é alguém extremamente preocupado com seu desempenho. Busca ser sempre o mais valorizado em seus grupos: no A.A., frente às mulheres, com seus colegas de faculdade... Sempre está buscando ter um comportamento impecável e se açoita demais quando algo foge ao seu controle. Está há dois anos em análise, e apenas agora está compreendendo a dimensão do desamparo em que vivera e podendo associar tais fatos com o seu nível desmedido de cobrança interna: 3

- Parece que eu estou tentando compensar alguma coisa que faltou... Me sinto como um passarinho que bicou um pedacinho do ovo para poder sair... Mas que ao olhar o mundo lá fora... Muito trânsito, carros passando... Resolve ficar lá dentro mesmo... - Não há ninho em torno deste ovo não é mesmo? Pergunto a ele. - É verdade... É assim que me sinto... Como se este ovo estivesse no meio da rua, sem que ninguém o tivesse chocado... Considerações mais recentes: Ultimamente, R. tem se mostrado extremamente impaciente e irritado comigo, principalmente no início das sessões: - Todo começo de sessão tem sido péssimo! Fico com raiva de você e nem sei direito por quê... Começo a achar que tudo que fazemos aqui é sem sentido... Que não vale a pena continuar... Em tais momentos, costumo pontuar que sua raiva pode se configurar como um fator positivo na análise: - Eu não vou interceder sobre suas decisões, porém não vou deixar de pensar sobre elas. Acredito que esta agressividade não pode aparecer em outros lugares... - Quando você fala sobre minha raiva, me sinto melhor... Sinto que estamos novamente na onda. Deixo de ter vontade de acabar com tudo... Mas de onde vem essa raiva? Você pensa em algo? 4

- Penso... Sua raiva aparece comigo, com seu padrinho 1... Nunca o compreendemos totalmente... Você me diz que não pode chorar aqui, pois não haverá ninguém lá fora com você quando sair... Mas porque este lado tão humano não pode aparecer? - Só me vem na cabeça a ideia de que tenho ser 'cascudo'! Fazer o máximo, porque na minha cabeça eu acredito que tem gente que é assim... Ainda não comprei sua ideia de que não há super-homens. - Acho que o homem por trás do super-homem está querendo aparecer... Um homem com limites... Como um pai... Que pode fazer para seu filho tudo dentro do possível... Dentro do possível... - Isso pra mim é ainda muito novo... Mas fico te ouvindo e vou ficando mais tranquilo... É isso. Algumas reflexões: Joel dor 2, a respeito da existência de um discurso histérico para além do gênero, aponta para questão da sedução como um ponto pacífico entre homens e mulheres. Assinala que o em ambos há uma preocupação em 'dar a ver', uma espécie de captura face ao olhar do outro. Neste sentido, comenta o autor: "Através deste 'dar a ver', o que é fundamentalmente trazido à baila é o desejo de aparecer, o desejo de agradar, no final das contas uma demanda de amor e de reconhecimento. Isto explica, na histeria masculina, esta tendência essencial à sedução. O homem 'se' mostra como tal mais do que mostra alguma coisa. Daí os inevitáveis comportamentos de ostentação. Para fazer isto são idênticos os meios no homem e na mulher: os artifícios são prioritários". (Idem, pg. 87). 1 Padrinho: é o responsável pelo acompanhamento individual daquele que procura os 'Alcoólicos Anônimos'. 2 Dor, J. Estruturas e clínica psicanalítica. (1991). Rio de Janeiro: Livraria Taurus-Timbre Editores. 5

Embora os artifícios sejam iguais para ambos, a tendência exibicionista masculina aponta para sua convicção de que há um outro seu rival capaz de se fazer valer de seu falo. Sua sedução, desta forma, teria o propósito de mantê-lo à altura deste outro. Sem vincular-se, estaria a salvo de ser desmascarado: "Para se certificar ser amado por todos, o histérico masculino oferece seu próprio amor sem se poupar. Trata-se, está claro, de um amor de fachada, na medida em que o homem histérico é incapaz de se engajar além da sedução. (Idem, p. 87). Portanto, apesar de guardar alguns pontos de similitude que apontam para um discurso histérico para além da questão do gênero, o homem histérico possui um diferencial: crê ser responsável pela sua incapacidade de se apropriar de seu estatuto fálico. Tal convicção leva o sujeito a ver-se como desprovido da moeda fundamental que o permitiria estar de igual para igual com o outro na dinâmica intersubjetiva. Assim, se a queixa da mulher histérica é comumente caracterizada pela 'lamentação do que não se tem', a queixa do homem histérico caracteriza-se pela impossibilidade de 'usufruir o que se tem'; sente-se incapacitado de utilizar os recursos fálicos inerentes à sua anatomia. Ao comentar sobre a expressão cunhada por Freud como 'a inveja do pênis', Khel 3 destaca o seguinte: "A inveja tomemos mais uma vez o caso da menina em relação à sua falta de pênis é a reação a um dano imaginário que impôs a falta de um objeto real. É quando a menina vê o órgão masculino e se compara com ele, que passa a se considerar prejudicada, mas para isso é preciso que o pênis tenha o sentido imaginário do falo". (p.64). Desta forma, podemos concluir que a inveja do pênis parte de um pressuposto básico: de que o órgão porte a significação fálica para o sujeito. Do contrário, o pênis seria um elemento da anatomia desprovido de seu valor simbólico. Esta é uma importante característica do discurso histérico masculino: o pênis não exerce sua função natural de falo; isto decorre 3 Khel, M. R. O Ressentimento. São Paulo: Casa do psicólogo, 2004. 6

grande parte em função da ausência de um testemunho parental que venha a corroborar a significação fálica do órgão. A esse respeito, comenta Silva 4 : "O que a idéia de uma histeria masculina vai reforçar é que o buraco, o oco, esse vazio no espírito não precisa de modo algum apoiar-se num vazio real ou num oco real do corpo. (...) a questão muda e se torna aquela de uma sensibilidade particular a uma falta, que não é a ausência real do pênis". (Silva apud Winter, p.206). Com isso, o pênis deixa de exercer sua função fálica, provocando no histérico um sentimento de impotência, pois crê ser desprovido daquilo que o outro necessita: (...) tudo se passa como se a relação desejante se fundasse na necessidade de se dever justificar ter o que a mulher demanda, isto é, o falo. O histérico masculino não se sentindo depositário deste objeto responde à mulher: não tenho o pênis, donde sua impotência. A confusão entre o desejo e a virilidade traduz, assim, uma confusão quanto à natureza do objeto, entre o órgão e o falo. Para o histérico masculino, ter o pênis implica logicamente, em sua economia desejante, possuir inevitavelmente o falo. (DOR, p.91). Portanto, se o pênis deixa de ser o suporte imaginário do falo, este passa a ser o testemunho de sua impotência. Sua problemática, no tocante ao vínculo, é motivada pela necessidade de ostentar aquilo que se crer, no fundo, não possuir. Ao buscar várias mulheres, o homem histérico se identifica com os verdadeiros homens, aqueles que seriam em sua convicção imaginária os reais detentores do falo. Evita, portanto, a vivência de um vínculo mais sólido, uma vez que tal encontro denunciaria ainda mais sua impotência, levando-o ao estado de profunda desvalorização e descrença em si mesmo. O histérico se mantém, assim, numa situação de aprisionamento, à sombra daquilo que poderia ter 4 SILVA, P.S. O desamparo do primeiro homem: Mascaras da histeria masculina. (2002). Rio de Janeiro: Cadernos de Psicanálise do CPRJ. Ano 24, n.15 7

sido e não foi o verdadeiro homem base de seu fantasma, conforme salienta o autor: Encontram-se nesses homens construções fantasmáticas significativas: os verdadeiros homens viris. Esses homens a quem basta penetrar as mulheres para que elas gozem instantaneamente; ou mesmo o fantasma do super-homem que acerta as contas com qualquer frigidez feminina (...) (Idem, p. 93). Porém, fica ainda a questão: que tipo de circunstância foi essa que levou o sujeito à não poder exercer sua potência, porque sua anatomia deixou de exercer sua função de falo? Um ponto central neste discurso alude a uma determinada posição de desamparo, agravada por uma dificuldade na identificação com a figura paterna. A esse respeito comenta Silva: (...) a constituição da identidade masculina se daria através da exclusiva via feminina de fabricação. Concretamente falando o pai é morto, ausente, negligente, violento, etc., ou seja, não se apresenta como imagem identificatória consistente. (...) A operação dessa função desencarnada vai produzir, quase que necessariamente, questões no processo de identificação. Algo falta, mas não se trata como no caso feminino de uma falta com apoio numa ausência de uma parte do corpo percebida no confronto entre os sexos. (SILVA, p. 206). O homem histérico é, portanto, marcado por uma castração primária. Contudo, esta não veio a partir de uma falta anatômica e de suas consequências imaginárias, mas, ao contrário, decorre de uma circunstância específica de menos-valia. Desta forma, as encenações viris do histérico masculino são defesas frente a uma dificuldade relacionada à questão identificatória: Se o corpo intensamente malhado, a motocicleta pesada, a gesticulação e postura arrogantes, por exemplo, não despertam uma resposta, se falta o olhar que confirma e diz: sim, você é! O histérico 8

se vê ameaçado e pode ter a sensação de desmontar, correndo o risco de sentir sua identidade pulverizada. (Idem, p. 208). O histérico masculino não pôde viver a dita ilusão do amparo, como ocorre na problemática obsessiva. Ao contrário, tal sujeito é marcado por uma profunda vivência de desamparo: Claro que desamparados somos todos, mas o que defendo é uma maior exposição à condição traumática desse descontínuo no caso do histérico masculino, já que nesses casos abandono e desamparo se superpõem. (Idem, p. 209). A natureza desta modalidade discursiva nos leva, então, a pensar numa prática clínica capaz de criar condições para a restauração desta ferida narcísica. Para tal, é fundamental que se construa no campo transferencial um lugar paterno ligado ao humano, e não ao sobre-humano. O que está em jogo é, sobretudo, a construção do pai do ideal do ego do amor e não do superego da destrutividade. Referências bibliográficas: 1FREUD, S. (1925) "Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos". Em: Obras completas, vol. XIX. Rio de janeiro: Imago, 1977. 2DÖR, J. (1991) "Estruturas e clínica psicanalítica". Rio de janeiro: Livraria Taurus-Timbre Editores. 3KHEL, M. R. (2004) "O ressentimento". São Paulo: Casa do Psicólogo. 9

4SILVA, P.S.L. "O Desamparo do Primeiro homem: Máscaras da histeria Masculina (2002). Em: Cadernos de psicanálise, CPRJ, Ano 24, n.15. A responsabilidade dos artigos assinados é dos seus autores. 1 0