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Transcrição:

Introdução Por muito tempo pode-se dizer, desde os primórdios da civilização ocidental perdura entre os homens a postura de lidar livremente com os legados do passado no sentido de adaptá-los às exigências do presente, sem impor qualquer limitação às alterações ou mesmo às demolições. Essa conduta, no entanto, altera-se a partir do momento em que se configura uma nítida separação entre passado e presente, e, concomitantemente, os legados do passado passam a ser objeto, não apenas de estudo sistemático, mas também de interesse de conservação. Isso ocorre a partir de meados do século XVIII e afirma-se concretamente durante o século XIX, quando tende a se constituir a autonomia disciplinar do restauro dos monumentos históricos. Este estudo pretende realizar uma investigação que relacione as reflexões produzidas no campo disciplinar da preservação e restauro do patrimônio arquitetônico, com aquelas elaboradas no âmbito mais geral do projeto de arquitetura. Indagar sobre as relações entre o projeto e o restauro, entre a criação do novo e a preservação do antigo, analisar a fronteira entre essas atuações e as possibilidades de conciliar os interesses de conservação com os anseios de criação são, portanto, os focos centrais dessa pesquisa. Considerando que esse leque de relações é bastante amplo, buscouse delimitar a pesquisa ao estudo da produção de dois arquitetos: Aldo Rossi na articulação que estabelece entre teoria e prática, especialmente no que diz respeito à atenção às questões da memória materializada na arquitetura da cidade. Lina Bo Bardi em sua produção que atenta para as preexistências de valor histórico, tendo como referência as noções elaboradas em seus escritos e o confronto com as teorias do campo disciplinar do restauro a que se refere nos seus memoriais de projeto. Um dos principais objetivos do estudo é percorrer os raciocínios que amparam as decisões de projeto, com o intuito de relacionar, sempre que oportuno, os critérios de intervenção adotados pelos arquitetos 5

mencionados acima, às discussões teóricas travadas no âmbito da conservação do patrimônio dos bens culturais. A pesquisa se estrutura a partir de três hipóteses básicas: 1. A hipótese inicial parte da constatação de que a intervenção de restauro, voltada ao monumento histórico, exige limites mais rigorosos em relação ao exercício de projeto de arquitetura. Isto se deve justamente em sinal de respeito ao valor figurativo e ao documento histórico contido no objeto de intervenção. A demarcação mais nítida dessas diferenças, como já mencionado, surge a partir da constituição do restauro como disciplina autônoma e se acentua à medida em que o projeto é reconhecido principalmente a partir da afirmação do movimento moderno como experiência de criação guiada essencialmente pelas exigências do presente e por um estatuto interno, racional 1. Assim sendo, as prerrogativas ditadas pelos interesses de conservação tendem a ser consideradas, pelos arquitetos não especialistas, imposições que ferem sua liberdade de criação. 2. a segunda hipótese formulada relaciona-se à convicção de que o pensamento produzido na esfera mais específica do conhecimento, não obstante as divergências mais imediatas, estabelece forçosamente relações com as idéias mais gerais dominantes no ambiente cultural dos momentos analisados. 3. a terceira parte do entendimento de que toda e qualquer ação de recuperar, rever e resignificar a memória do passado, dáse à luz da compreensão do presente, e deve, necessariamente, prever a continuidade do tempo que implica na legitimidade de se considerar a dimensão não só analítica, mas sobretudo propositiva contida na ação arquitetônica, o que necessariamente comporta, além da conservação do passado, a prospecção de futuro e de projetos futuros 1 HABERMAS, J. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 4. O autor, ao discorrer sobre a modernidade, cita Weber e sua descrição do racional como um processo de desencantamento ocorrido na Europa que, ao destruir as imagens religiosas do mundo, criou uma cultura profana. (...) as artes tornadas autônomas (...) formaram esferas culturais de valor que possibilitaram processos de aprendizado de problemas teóricos, estéticos, ou prático-morais, segundo suas respectivas legalidades internas. 6

conciliada com a preocupação de preservação. De fato, não teria o menor sentido aportar valor exclusivamente no passado, como se toda a criação humana relevante já tivesse sido realizada, ou como se não houvesse a possibilidade de compatibilizar a conservação com a continuidade histórica, ou seja, de se adicionar uma nova camada de tempo que se evidencia e dialoga criticamente com a preexistência conservada 2. Aliás, a discussão teórica acumulada, já não mais considera patrimônio unicamente o passado remoto, exemplar, grandioso, o monumento histórico no sentido empregado no século XIX, mas, nessa nova compreensão, incorpora um passado mais recente, produzido em etapas sucessivas de um devir histórico que aproxima passado e presente, em síntese, o bem cultural entendido como produto da atividade humana, sem fazer distinção entre a obra de arte e as outras formas derivadas do fazer humano 3. É justamente a afirmação do projeto do presente, em concomitância com a conservação do passado, que sugere a necessidade de extrapolar os limites da investigação no campo específico do restauro, para relacioná-la com a compreensão da produção arquitetônica contemporânea naqueles pontos de tangência e de convergência entre esses dois níveis de abordagem. Convém considerar que os debates sobre os temas do patrimônio cultural e seus desdobramentos na prática profissional tendem, na atualidade, a se tornar cada vez mais relevantes, uma vez que a reciclagem, a revitalização, a requalificação, apresentam-se como ações que extrapolam os limites da discussão de especialistas, para tornarem-se problemas cotidianos da agenda do arquiteto contemporâneo. 2 Essa posição encontra afinidade com a postura defendida por Marco Dezzi- Bardeschi, um dos teóricos da atualidade que contribui para enriquecer os debates recentes nessa área, mediante a proposição da conservação integral. Para aprofundar essa abordagem, consultar KÜHL, B. Preservação o patrimônio arquitetônico da industrialização. Problemas teóricos de restauro. Cotia, S.P., 2008 e CARBONARA, G. Avvicinamento al restauro. Teoria, storia, monumenti. Nápoles: Liguori, 1997. 3 Beatriz Mugayar Kühl, op. cit., p. 82, aborda a conotação atual do termo monumento e justifica o uso da expressão restauro de monumento em uma acepção atualizada em relação ao emprego na origem da formulação teórica, em que o termo patrimônio correspondia a um sentido mais restrito. As mesmas considerações são tecidas por Giovanni Carbonara, op. cit., p. 23. 7

Essa condição está ligada diretamente à ampliação da noção de patrimônio, ocorrida a partir do pós-guerra, e ao crescente interesse pelo tema no contexto contemporâneo. O destaque dirigido às questões da conservação pode ser compreendido como uma espécie de reação à condição de aceleração das transformações, que tendem muitas vezes a cancelar e substituir rapidamente os traços materiais e os valores adquiridos do passado. Nessa perspectiva, a importância da preservação da memória coloca-se como meio de garantir não só a própria identidade do indivíduo, mas também a sua ligação a uma coletividade atual e histórica, bem como a noção de pertença 4 que configura o enraizamento não apenas no tempo, mas também no espaço. A conservação corresponde então à resistência ao esquecimento dos registros do passado, assim como ao cancelamento das idéias e princípios que acompanharam a sua criação e desenvolvimento. Entende-se, portanto, que se verifica na cultura contemporânea, como decorrência da constatação de que é impossível preservar absolutamente todos os elementos do passado 5 a afirmação de uma espécie de programa de esquecimento seletivo, metódico e fundamentado, em um contexto em que passado, presente e futuro tendem a se conciliar, sem primazia ou prejuízo de um ou de outro, como nunca se deu em outros tempos. No que concerne às divergências entre os especialistas em restauro e os arquitetos ligados ao projeto de arquitetura, é possível observar algumas questões recorrentes. Uma delas é a percepção de que prevalece entre os arquitetos envolvidos com a experiência de projeto, não só o descontentamento ao verem limitadas suas possibilidades de invenção, mas também a relutância em confrontar seus critérios de intervenção com as posições formuladas no âmbito da restauração. 4 Nos termos empregados por Ulpiano Bezerra de Menezes, conforme depoimento incluído em apêndice da Tese de Doutorado de Luís Antônio Jorge initulada O espaço seco. Imaginário e poéticas da arquitetura moderna na América. (FAUUSP, 1999). O termo corresponde ao vocábulo appartenenza do idioma italiano. 5 Entre outros autores, Paul Ricoeur na obra A memória, a história, o esquecimento. São Paulo: Unicamp, 2007 trata desse tema. 8

A saída entrevista para esse impasse é, portanto, explorar a possibilidade de estabelecer relações entre essas experiências conduzidas dentro de cada um desses campos de atuação. Por esse motivo, o estudo concentra-se na atuação de arquitetos contemporâneos que tenham optado pela mediação dos critérios de projeto com a análise das preexistências e da cidade histórica, procedimentos tidos como verdadeiros motes de criação. Certamente, não interessa aqui optar pela análise daquelas intervenções que permanecem no terreno do empirismo ou da arbitrariedade e que refutam qualquer diálogo com a reflexão o domínio do restauro. A pesquisa adota uma abordagem histórica e estabelece como recorte temporal o enfoque de três momentos distintos: o século XIX como período de formulação das teorias e práticas de restauração; os anos 1930 como momento em que se acentuam os contrastes entre a invenção do novo e a conservação do antigo; os anos 1960 como época em que se reconciliam as tendências de criação do projeto contemporâneo e a preservação do patrimônio construído. Os capítulos foram escritos de maneira que cada um se apresentasse, de certo modo, independente dos demais no que se refere às notas e referências conceituais. Essa orientação pode ter acarretado uma certa repetição na abordagem de certos assuntos, um risco a ser enfrentado, diante do intento de se propiciar autonomia a cada capítulo. Assim foi definida a estrutura e a abordagem dos capítulos: Parte I 1. Metrópole e memória: a formulação dos conceitos ligados à idéia e à prática da conservação. Capítulo em que se apresenta o processo de formação das metrópoles pósindustriais, típico dos séculos XVIII e XIX, como momento propício para uma nova compreensão da história. A atitude crítica do indivíduo frente ao seu passado cria uma nítida separação entre passado e presente, em substituição à noção de continuidade assegurada pela tradição. O fenômeno metropolitano, com seus novos modos de convívio 9

sociocultural, é analisado naqueles aspectos diretamente relacionados a novas formas de ativação da memória, reorganização e releitura dos legados do passado que acompanham o desenvolvimento dos conceitos e das práticas de conservação do patrimônio cultural. Busca-se situar as posturas de figuras-chave no contexto cultural desse período histórico. Entre os personagens de maior interesse para essa abordagem estão: 1) Viollet-le-Duc e John Ruskin como iniciadores do debate relacionado à legitimidade do restauro, a partir de diferentes posicionamentos frente aos testemunhos do passado; 2) Camillo Sitte e George-Eugène Haussmann como urbanistas do final do século XIX a suscitar a controvérsia urbanismo versus preservacionismo que se acentua nas primeiras décadas do século XX. 2. Os anos 1930: as Cartas de Atenas e a contraposição entre conservação e inovação. Capítulo que aborda a tensão entre duas posturas contrapostas: 1) a consolidação das prerrogativas da preservação do patrimônio arquitetônico por ação de especialistas, com destaque para a atuação de Gustavo Giovannoni; 2) a afirmação dos postulados do movimento moderno, tomando-se por referência a contribuição de Le Corbusier. Os dois documentos internacionais produzidos nessa época, conhecidos como Carta de Atenas, sinalizam essa polarização das discussões e a participação dos arquitetos acima citados, na condição de protagonistas dos debates e da elaboração final dos textos. O primeiro documento é a Carta de Restauro de Atenas, elaborada pelo I Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos de Monumentos Históricos, de 1931. O segundo é a Carta de Atenas do IV CIAM, Congresso de Arquitetura Moderna, de 1933. Pretende-se, além de cotejar o conteúdo desses documentos entre si, situá-los no contexto cultural do momento em que foram produzidos. Interessa ainda analisar, em linhas gerais, a especificidade com que se dá a discussão desses temas no panorama brasileiro, em relação ao cenário europeu. Nesse sentido, é pertinente assinalar a atuação de 10

Lucio Costa, pelo fato de representar a conciliação de posições até então tidas como inconciliáveis: a de conservação das heranças culturais do passado e a de modernização. Parte II 1. Os anos 1960: conciliação entre memória e invenção. Capítulo que trata do momento em que se reconciliam as tendências de criação do projeto contemporâneo e a preservação do patrimônio arquitetônico. Analisa-se aqui a ampliação do conceito de patrimônio e a maior aceitação acerca da legitimidade da preservação. A Carta de Veneza (1964) é o documento que sintetiza um novo entendimento das questões relativas à preservação do patrimônio ao selar o compromisso entre a arquitetura e o contexto urbano, entre a cidade histórica e a cidade contemporânea. Uma visão geral das noções debatidas entre os principais teóricos do restauro é confrontada com as discussões do panorama arquitetônico e urbano. 2. Lina Bo Bardi: um olhar voltado ao patrimônio. Capítulo que analisa as intervenções de Lina Bo Bardi voltadas a preexistências de interesse cultural, de modo a estabelecer um confronto entre as referências conceituais presentes em seus textos e os parâmetros contidos nas teorias do campo do restauro dos bens culturais e na Carta de Veneza. A produção de Lina Bo Bardi é aqui vista por sua relevância no panorama nacional e pela atuação que faz surgir o projeto do novo a partir de uma complexa urdidura entre erudição e cultura popular, entre presente e passado. 3. Aldo Rossi: o projeto arquitetônico como tensão entre a permanência e transformação. Capítulo que enfoca, fora do âmbito específico da conservação do patrimônio cultural, a atuação de Aldo Rossi (1931-1997) como uma das relevantes investigações que atentam para as questões ligadas à memória evidenciadas na arquitetura da cidade. Nesse sentido, revela-se pertinente a abordagem acerca do arquiteto 11

pesquisador, alinhado ao neoracionalismo da Escola de Veneza, autor do livro Arquitetura da cidade (1966), que alcança grande repercussão, seja pela capacidade de revisão crítica das proposições do movimento moderno, seja pela relação teórica e operativa que estabelece entre a análise urbana e o projeto de arquitetura. Convém ressaltar que tanto as atuações de Lina Bo Bardi, quanto as de Aldo Rossi manifestam em comum firmes vínculos com a tradição crítica italiana iniciada por Benedetto Croce e continuada por Giulio Carlo Argan (1909-1992) e, da mesma forma, dialogam com as contribuições de Cesare Brandi (1906-1988). Quanto aos debates da atualidade, da mesma forma que ganha contornos de senso comum, em tempos recentes, a idéia de valorização do patrimônio cultural sofre um certo desgaste, em múltiplos aspectos: a ampliação excessiva de repertório e a apropriação inadequada de setores da indústria cultural e do turismo de massa, acabam por privilegiar as questões econômicas, as estratégias de marketing, relegando a plano secundário o rigor dos princípios elaborados pela reflexão teórica consolidada. Nesse sentido, o ambiente das cidades contemporâneas favorece uma ambigüidade de conceitos que deve ser reconhecida a fim de evitar a conseqüente confusão de significados e a própria deturpação dos termos: patrimônio vivo e espetáculo, materialidade autêntica e simulacro, objeto real e imagem. Essa imprecisão tende a banalizar as noções de patrimônio arquitetônico e urbano, assim como as práticas de intervenção. Desse modo, coloca-se aqui a necessidade de, não apenas rever conceitos e práticas, mas também indicar os aspectos discutíveis da ação patrimonial mais recente, à luz das contribuições de autores como Françoise Choay e Michel Sorkin. A reflexão presente em Ignasi de Solà Morales interessa pela tangência que estabelece entre os critérios de projeto arquitetônico e os da restauração. Convém notar que essas ressalvas indicadas acima se dirigem a uma ação de mais largo alcance que não tem relação direta com os preceitos amadurecidos e aceitos hoje pelos especialistas. 12

A partir dessas considerações, podem ser colocadas algumas questões. Quais os limites que separam a criatividade invocada pelo restauro crítico e a inserção do novo reivindicada pelo arquiteto contemporâneo? Se a restauração admite hoje a estratificação de diferentes temporalidades como camadas de um devir histórico, incorporando, conforme os preceitos da conservação integral 6, acontecimentos fortuitos, acidentais, como dados a serem considerados para efeito de conservação, por que não admitir então a continuidade do fluxo do tempo para os bens culturais mediante o aporte de ações comprometidas com a experiência crítica? Como avaliar a prática contemporânea do construir no construído? Em que termos essa ação pode ser tida como legítima? 6 As vertentes mais recentes são apresentadas em linhas gerais no capítulo 1, parte II. Para aprofundamento do tema consultar as obras mencionadas acima de Giovanni Carbonara e Beatriz M. Kühl. 13