Eneida de Almeida. O construir no construído na produção contemporânea: relações entre teoria e prática

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1 Eneida de Almeida O construir no construído na produção contemporânea: relações entre teoria e prática São Paulo 2009

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3 Universidade de São Paulo Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo Área de Concentração: História e Fundamentos da Arquitetura e Urbanismo O construir no construído na produção contemporânea: relações entre teoria e prática Tese de Doutorado Eneida de Almeida Orientador: Prof. Dr. Luiz Américo de Souza Munari São Paulo, 2009

4 Para Marta e Paolo

5 Agradecimentos Esta pesquisa ganhou forma durante o exercício do ensino na Universidade São Judas Tadeu. A Luiz Augusto Contier, coordenador do Curso de Arquitetura e Urbanismo, agradeço a confiança e apoio no desenvolvimento dos estudos. A Kátia Azevedo Teixeira sou imensamente grata pela possibilidade de compartilhar estudos e discussões relativas ao ensino e pesquisa de arquitetura. A Marta Bogéa o diálogo fértil e instigante no convívio em sala de aula e no grupo de pesquisa. A Alessandro Castroviejo Ribeiro agradeço o incentivo e companheirismo durante o desenrolar dessa pesquisa. A Beatriz Mugayar Kühl e Luís Antônio Jorge a generosa contribuição para o aprimoramento deste trabalho. A Natália Roque agradeço a atenção e o cuidado no tratamente gráfico deste trabalho. Aos alunos o estímulo do aprendizado recíproco. Por fim, a Luiz Américo de Souza Munari, meu orientador, agradeço a possibilidade de uma rica interlocução.

6 Resumo A pesquisa busca avaliar possíveis relações entre o projeto arquitetônico e o restauro de bens culturais. Tendo em vista que esse leque de relações é bastante amplo, procurou-se delimitar o estudo à atuação de dois arquitetos contemporâneos que tenham optado pela aproximação dos critérios de projeto com a análise das preexistências e a observação da cidade histórica. Dentro desse universo foram escolhidos Aldo Rossi ( ) e Lina Bo Bardi ( ). Rossi, com sua obra A arquitetura da cidade (1966), desperta interesse pelo questionamento aos preceitos do movimento moderno e pela busca de estruturas essenciais permanentes presentes nas cidades em seu devir histórico. Lina Bardi chama atenção pela tentativa de superação da fratura histórica entre o antigo e o moderno e pela ativação de um pertinente exercício crítico aplicado na intervenção relacionada a preexistências de valor documental. O estudo procura explorar os vínculos que os dois arquitetos estabelecem com os respectivos contextos de formação e com a tradição crítica italiana de modo mais amplo. A investigação adota uma abordagem histórica a partir de um recorte temporal que privilegia três momentos específicos: traça inicialmente um panorama do século XIX e da origem das teorias e práticas de conservação dos bens culturais; analisa, a seguir, a década de 1930 como momento de tensão entre duas posturas antagônicas a conservação e a inovação mediante a análise dos seguintes documentos: Carta de Restauro de Atenas (1931) e Carta de Atenas CIAM (1933); por fim, enfoca o período do pós-guerra com ênfase nos anos 1960 como época de reconciliação entre memória e invenção, tendo como pano de fundo o ambiente cultural italiano, com atenção especial à revisão do movimento moderno no que se refere à relação com a história, bem como às discussões ligadas aos temas da conservação dos bens culturais e os desdobramentos desse debate na obra de Aldo Rossi e de Lina Bardi. Entre os objetos de estudo do campo do patrimônio arquitetônico, relacionados à produção de Lina Bardi, destacam-se: a Carta de Veneza (1964), as noções do restauro científico e restauro crítico, além da Teoria del Restauro de Cesare Brandi (1963). O enfoque dos debate recentes sobre a ampliação da noção de patrimônio e suas implicações na cidade contemporânea suscita questionamentos quanto às abordagens centradas em aspectos econômicos e turísticos que relegam a segundo plano as ações de cunho cultural. Palavras-chave: memória, patrimônio arquitetônico e urbano, restauro e intervenção arquitetônica. Abstract This study aims to evaluate possible relations between architectonic design and cultural heritage restoration. In the light of the wide range of relations, this study has been limited to the work of two contemporary architects who opted for approaching design criteria to both pre-existence analysis and historical city observation. Within such universe, Aldo Rossi ( ) and Lina Bo Bardi ( ) are the object of this study. Rossi, with his work The Architecture of the City (1966), ( L'architettura della Citta ) shows interest in both questioning the principles of modern movement and searching for permanent essential structures in the cities related to their historical future. Lina Bo Bardi stands out for her attempt to overcome the historical fracture between the old and the modern as well as, the activation of a pertinent critical exercise applied to the intervention related to the preexisting documental values. This study tries to explore the bounds that both architects establish with their respective upbringing contexts and with the Italian critical traditions in a broader manner. The investigation adopts a historical approach from a time period which privileges three specific moments: first delineates a panorama of 19 th century and the origin of theories and practices of cultural heritage preservation; then, it examines the 1930 s as a moment of tension between the two opposite approaches preservation and innovation upon the following documents analysis: Athens Charter (1931) and Charter of Athens CIAM (1933); and finally, it focuses the post-war period with emphasis on the 1960 s as a reconciliation time between memory and invention, having as background the Italian cultural environment, with special attention to the modern movement reviewing in addressing History as well as to the discussions related to cultural heritage preservation and the unfolding of such debate in the work of Aldo Rossi and Lina Bardi. Among the studied objects in the field of architectonic heritage, related to the production of Lina Bardi, stands out: the Venice Charter (1964), the notions in the scientific restoration and critical restoration, in addition to the Teoria del Restauro by Cesare Brandi (1963). The recent debates focus on the expansion in heritage notions and its implications in the contemporaneous city trigger questionings on the approaches focused on economical and tourism aspects which relegate to second plan the cultural character efforts. Key-words: memory, architectonic and urban heritage, restoration and architectonic intervencion.

7 Sumário Introdução 05 Parte I 1. Metrópole e memória: origem dos conceitos e das práticas de conservação do patrimônio arquitetônico 15 Um panorama geral. Passado e presente: dilema entre divisão e conexão. O interesse pela memória. Memória e coletânea. Memória, nomenclatura e significados. Memória, conservação e restauro. Uma concepção moderna de restauro. 2. Os anos 1930: as Cartas de Atenas e a contraposição entre conservação e inovação 42 Arquitetura, invenção e memória. Antecedentes: urbanismo versus conservacionismo. O panorama internacional: as diferentes posturas urbanísticas de Le Corbusier e de Gustavo Giovannoni. O panorama nacional: a peculiaridade da aproximação entre modernização e preservação. A Carta de Restauro de Atenas 1931 (Escritório Internacional dos Museus Sociedades das Nações). A Carta de Atenas 1933 (CIAM). O cotejo dos documentos. Desdobramentos nos debates recentes. Parte II 1. Os anos 1960: a Carta de Veneza e o anúncio da conciliação entre memória e invenção 74 A discussão da área específica: antecedentes e desdobramentos. As preexistências e a intervenção arquitetônica. Os novos motes da produção arquitetônica. As discussões urbanas. Alguns questionamentos ligados à prática do construir no construído. 2. Lina Bo Bardi: um olhar voltado ao patrimônio 91 Um primeiro olhar. Os caminhos trilhados. O Solar do Unhão, Salvador ( ). O SESC Pompéia, São Paulo ( ): os edifícios fabris preexistentes; o reconhecimento de valor; as operações realizadas; os critérios de intervenção; o significado renovado de uma fábrica. A Ladeira da Misericórdia (1987): o construir no construído ; a celebração do restabelecimento de um diálogo interrompido; a retomada do diálogo; um diálogo de tempos solidário às teorias de restauro; as escolhas transitam entre o restauro científico, o restauro crítico e a teoria de Brandi; o patrimônio urbano. Um balanço crítico. 3. Aldo Rossi: o projeto arquitetônico como tensão entre permanência e transformação 165 A Escola de Veneza e a arquitetura analógica : uma trajetória profissional entre o projeto e a pesquisa. A Arquitetura da Cidade: o tipo, a crítica ao funcionalismo ingênuo, o binômio transformação/permanência. O Cemitério de São Cataldo, Módena ( ). O Teatro del Mondo, Veneza ( ). A Escola E. De Amicis, Broni ( ). O Teatro La Fenice, Veneza ( ). Algumas observações. Conclusão 221 Bibliografia 231

8 Introdução Por muito tempo pode-se dizer, desde os primórdios da civilização ocidental perdura entre os homens a postura de lidar livremente com os legados do passado no sentido de adaptá-los às exigências do presente, sem impor qualquer limitação às alterações ou mesmo às demolições. Essa conduta, no entanto, altera-se a partir do momento em que se configura uma nítida separação entre passado e presente, e, concomitantemente, os legados do passado passam a ser objeto, não apenas de estudo sistemático, mas também de interesse de conservação. Isso ocorre a partir de meados do século XVIII e afirma-se concretamente durante o século XIX, quando tende a se constituir a autonomia disciplinar do restauro dos monumentos históricos. Este estudo pretende realizar uma investigação que relacione as reflexões produzidas no campo disciplinar da preservação e restauro do patrimônio arquitetônico, com aquelas elaboradas no âmbito mais geral do projeto de arquitetura. Indagar sobre as relações entre o projeto e o restauro, entre a criação do novo e a preservação do antigo, analisar a fronteira entre essas atuações e as possibilidades de conciliar os interesses de conservação com os anseios de criação são, portanto, os focos centrais dessa pesquisa. Considerando que esse leque de relações é bastante amplo, buscouse delimitar a pesquisa ao estudo da produção de dois arquitetos: Aldo Rossi na articulação que estabelece entre teoria e prática, especialmente no que diz respeito à atenção às questões da memória materializada na arquitetura da cidade. Lina Bo Bardi em sua produção que atenta para as preexistências de valor histórico, tendo como referência as noções elaboradas em seus escritos e o confronto com as teorias do campo disciplinar do restauro a que se refere nos seus memoriais de projeto. Um dos principais objetivos do estudo é percorrer os raciocínios que amparam as decisões de projeto, com o intuito de relacionar, sempre que oportuno, os critérios de intervenção adotados pelos arquitetos 5

9 mencionados acima, às discussões teóricas travadas no âmbito da conservação do patrimônio dos bens culturais. A pesquisa se estrutura a partir de três hipóteses básicas: 1. A hipótese inicial parte da constatação de que a intervenção de restauro, voltada ao monumento histórico, exige limites mais rigorosos em relação ao exercício de projeto de arquitetura. Isto se deve justamente em sinal de respeito ao valor figurativo e ao documento histórico contido no objeto de intervenção. A demarcação mais nítida dessas diferenças, como já mencionado, surge a partir da constituição do restauro como disciplina autônoma e se acentua à medida em que o projeto é reconhecido principalmente a partir da afirmação do movimento moderno como experiência de criação guiada essencialmente pelas exigências do presente e por um estatuto interno, racional 1. Assim sendo, as prerrogativas ditadas pelos interesses de conservação tendem a ser consideradas, pelos arquitetos não especialistas, imposições que ferem sua liberdade de criação. 2. a segunda hipótese formulada relaciona-se à convicção de que o pensamento produzido na esfera mais específica do conhecimento, não obstante as divergências mais imediatas, estabelece forçosamente relações com as idéias mais gerais dominantes no ambiente cultural dos momentos analisados. 3. a terceira parte do entendimento de que toda e qualquer ação de recuperar, rever e resignificar a memória do passado, dáse à luz da compreensão do presente, e deve, necessariamente, prever a continuidade do tempo que implica na legitimidade de se considerar a dimensão não só analítica, mas sobretudo propositiva contida na ação arquitetônica, o que necessariamente comporta, além da conservação do passado, a prospecção de futuro e de projetos futuros 1 HABERMAS, J. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 4. O autor, ao discorrer sobre a modernidade, cita Weber e sua descrição do racional como um processo de desencantamento ocorrido na Europa que, ao destruir as imagens religiosas do mundo, criou uma cultura profana. (...) as artes tornadas autônomas (...) formaram esferas culturais de valor que possibilitaram processos de aprendizado de problemas teóricos, estéticos, ou prático-morais, segundo suas respectivas legalidades internas. 6

10 conciliada com a preocupação de preservação. De fato, não teria o menor sentido aportar valor exclusivamente no passado, como se toda a criação humana relevante já tivesse sido realizada, ou como se não houvesse a possibilidade de compatibilizar a conservação com a continuidade histórica, ou seja, de se adicionar uma nova camada de tempo que se evidencia e dialoga criticamente com a preexistência conservada 2. Aliás, a discussão teórica acumulada, já não mais considera patrimônio unicamente o passado remoto, exemplar, grandioso, o monumento histórico no sentido empregado no século XIX, mas, nessa nova compreensão, incorpora um passado mais recente, produzido em etapas sucessivas de um devir histórico que aproxima passado e presente, em síntese, o bem cultural entendido como produto da atividade humana, sem fazer distinção entre a obra de arte e as outras formas derivadas do fazer humano 3. É justamente a afirmação do projeto do presente, em concomitância com a conservação do passado, que sugere a necessidade de extrapolar os limites da investigação no campo específico do restauro, para relacioná-la com a compreensão da produção arquitetônica contemporânea naqueles pontos de tangência e de convergência entre esses dois níveis de abordagem. Convém considerar que os debates sobre os temas do patrimônio cultural e seus desdobramentos na prática profissional tendem, na atualidade, a se tornar cada vez mais relevantes, uma vez que a reciclagem, a revitalização, a requalificação, apresentam-se como ações que extrapolam os limites da discussão de especialistas, para tornarem-se problemas cotidianos da agenda do arquiteto contemporâneo. 2 Essa posição encontra afinidade com a postura defendida por Marco Dezzi- Bardeschi, um dos teóricos da atualidade que contribui para enriquecer os debates recentes nessa área, mediante a proposição da conservação integral. Para aprofundar essa abordagem, consultar KÜHL, B. Preservação o patrimônio arquitetônico da industrialização. Problemas teóricos de restauro. Cotia, S.P., 2008 e CARBONARA, G. Avvicinamento al restauro. Teoria, storia, monumenti. Nápoles: Liguori, Beatriz Mugayar Kühl, op. cit., p. 82, aborda a conotação atual do termo monumento e justifica o uso da expressão restauro de monumento em uma acepção atualizada em relação ao emprego na origem da formulação teórica, em que o termo patrimônio correspondia a um sentido mais restrito. As mesmas considerações são tecidas por Giovanni Carbonara, op. cit., p

11 Essa condição está ligada diretamente à ampliação da noção de patrimônio, ocorrida a partir do pós-guerra, e ao crescente interesse pelo tema no contexto contemporâneo. O destaque dirigido às questões da conservação pode ser compreendido como uma espécie de reação à condição de aceleração das transformações, que tendem muitas vezes a cancelar e substituir rapidamente os traços materiais e os valores adquiridos do passado. Nessa perspectiva, a importância da preservação da memória coloca-se como meio de garantir não só a própria identidade do indivíduo, mas também a sua ligação a uma coletividade atual e histórica, bem como a noção de pertença 4 que configura o enraizamento não apenas no tempo, mas também no espaço. A conservação corresponde então à resistência ao esquecimento dos registros do passado, assim como ao cancelamento das idéias e princípios que acompanharam a sua criação e desenvolvimento. Entende-se, portanto, que se verifica na cultura contemporânea, como decorrência da constatação de que é impossível preservar absolutamente todos os elementos do passado 5 a afirmação de uma espécie de programa de esquecimento seletivo, metódico e fundamentado, em um contexto em que passado, presente e futuro tendem a se conciliar, sem primazia ou prejuízo de um ou de outro, como nunca se deu em outros tempos. No que concerne às divergências entre os especialistas em restauro e os arquitetos ligados ao projeto de arquitetura, é possível observar algumas questões recorrentes. Uma delas é a percepção de que prevalece entre os arquitetos envolvidos com a experiência de projeto, não só o descontentamento ao verem limitadas suas possibilidades de invenção, mas também a relutância em confrontar seus critérios de intervenção com as posições formuladas no âmbito da restauração. 4 Nos termos empregados por Ulpiano Bezerra de Menezes, conforme depoimento incluído em apêndice da Tese de Doutorado de Luís Antônio Jorge initulada O espaço seco. Imaginário e poéticas da arquitetura moderna na América. (FAUUSP, 1999). O termo corresponde ao vocábulo appartenenza do idioma italiano. 5 Entre outros autores, Paul Ricoeur na obra A memória, a história, o esquecimento. São Paulo: Unicamp, 2007 trata desse tema. 8

12 A saída entrevista para esse impasse é, portanto, explorar a possibilidade de estabelecer relações entre essas experiências conduzidas dentro de cada um desses campos de atuação. Por esse motivo, o estudo concentra-se na atuação de arquitetos contemporâneos que tenham optado pela mediação dos critérios de projeto com a análise das preexistências e da cidade histórica, procedimentos tidos como verdadeiros motes de criação. Certamente, não interessa aqui optar pela análise daquelas intervenções que permanecem no terreno do empirismo ou da arbitrariedade e que refutam qualquer diálogo com a reflexão o domínio do restauro. A pesquisa adota uma abordagem histórica e estabelece como recorte temporal o enfoque de três momentos distintos: o século XIX como período de formulação das teorias e práticas de restauração; os anos 1930 como momento em que se acentuam os contrastes entre a invenção do novo e a conservação do antigo; os anos 1960 como época em que se reconciliam as tendências de criação do projeto contemporâneo e a preservação do patrimônio construído. Os capítulos foram escritos de maneira que cada um se apresentasse, de certo modo, independente dos demais no que se refere às notas e referências conceituais. Essa orientação pode ter acarretado uma certa repetição na abordagem de certos assuntos, um risco a ser enfrentado, diante do intento de se propiciar autonomia a cada capítulo. Assim foi definida a estrutura e a abordagem dos capítulos: Parte I 1. Metrópole e memória: a formulação dos conceitos ligados à idéia e à prática da conservação. Capítulo em que se apresenta o processo de formação das metrópoles pósindustriais, típico dos séculos XVIII e XIX, como momento propício para uma nova compreensão da história. A atitude crítica do indivíduo frente ao seu passado cria uma nítida separação entre passado e presente, em substituição à noção de continuidade assegurada pela tradição. O fenômeno metropolitano, com seus novos modos de convívio 9

13 sociocultural, é analisado naqueles aspectos diretamente relacionados a novas formas de ativação da memória, reorganização e releitura dos legados do passado que acompanham o desenvolvimento dos conceitos e das práticas de conservação do patrimônio cultural. Busca-se situar as posturas de figuras-chave no contexto cultural desse período histórico. Entre os personagens de maior interesse para essa abordagem estão: 1) Viollet-le-Duc e John Ruskin como iniciadores do debate relacionado à legitimidade do restauro, a partir de diferentes posicionamentos frente aos testemunhos do passado; 2) Camillo Sitte e George-Eugène Haussmann como urbanistas do final do século XIX a suscitar a controvérsia urbanismo versus preservacionismo que se acentua nas primeiras décadas do século XX. 2. Os anos 1930: as Cartas de Atenas e a contraposição entre conservação e inovação. Capítulo que aborda a tensão entre duas posturas contrapostas: 1) a consolidação das prerrogativas da preservação do patrimônio arquitetônico por ação de especialistas, com destaque para a atuação de Gustavo Giovannoni; 2) a afirmação dos postulados do movimento moderno, tomando-se por referência a contribuição de Le Corbusier. Os dois documentos internacionais produzidos nessa época, conhecidos como Carta de Atenas, sinalizam essa polarização das discussões e a participação dos arquitetos acima citados, na condição de protagonistas dos debates e da elaboração final dos textos. O primeiro documento é a Carta de Restauro de Atenas, elaborada pelo I Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos de Monumentos Históricos, de O segundo é a Carta de Atenas do IV CIAM, Congresso de Arquitetura Moderna, de Pretende-se, além de cotejar o conteúdo desses documentos entre si, situá-los no contexto cultural do momento em que foram produzidos. Interessa ainda analisar, em linhas gerais, a especificidade com que se dá a discussão desses temas no panorama brasileiro, em relação ao cenário europeu. Nesse sentido, é pertinente assinalar a atuação de 10

14 Lucio Costa, pelo fato de representar a conciliação de posições até então tidas como inconciliáveis: a de conservação das heranças culturais do passado e a de modernização. Parte II 1. Os anos 1960: conciliação entre memória e invenção. Capítulo que trata do momento em que se reconciliam as tendências de criação do projeto contemporâneo e a preservação do patrimônio arquitetônico. Analisa-se aqui a ampliação do conceito de patrimônio e a maior aceitação acerca da legitimidade da preservação. A Carta de Veneza (1964) é o documento que sintetiza um novo entendimento das questões relativas à preservação do patrimônio ao selar o compromisso entre a arquitetura e o contexto urbano, entre a cidade histórica e a cidade contemporânea. Uma visão geral das noções debatidas entre os principais teóricos do restauro é confrontada com as discussões do panorama arquitetônico e urbano. 2. Lina Bo Bardi: um olhar voltado ao patrimônio. Capítulo que analisa as intervenções de Lina Bo Bardi voltadas a preexistências de interesse cultural, de modo a estabelecer um confronto entre as referências conceituais presentes em seus textos e os parâmetros contidos nas teorias do campo do restauro dos bens culturais e na Carta de Veneza. A produção de Lina Bo Bardi é aqui vista por sua relevância no panorama nacional e pela atuação que faz surgir o projeto do novo a partir de uma complexa urdidura entre erudição e cultura popular, entre presente e passado. 3. Aldo Rossi: o projeto arquitetônico como tensão entre a permanência e transformação. Capítulo que enfoca, fora do âmbito específico da conservação do patrimônio cultural, a atuação de Aldo Rossi ( ) como uma das relevantes investigações que atentam para as questões ligadas à memória evidenciadas na arquitetura da cidade. Nesse sentido, revela-se pertinente a abordagem acerca do arquiteto 11

15 pesquisador, alinhado ao neoracionalismo da Escola de Veneza, autor do livro Arquitetura da cidade (1966), que alcança grande repercussão, seja pela capacidade de revisão crítica das proposições do movimento moderno, seja pela relação teórica e operativa que estabelece entre a análise urbana e o projeto de arquitetura. Convém ressaltar que tanto as atuações de Lina Bo Bardi, quanto as de Aldo Rossi manifestam em comum firmes vínculos com a tradição crítica italiana iniciada por Benedetto Croce e continuada por Giulio Carlo Argan ( ) e, da mesma forma, dialogam com as contribuições de Cesare Brandi ( ). Quanto aos debates da atualidade, da mesma forma que ganha contornos de senso comum, em tempos recentes, a idéia de valorização do patrimônio cultural sofre um certo desgaste, em múltiplos aspectos: a ampliação excessiva de repertório e a apropriação inadequada de setores da indústria cultural e do turismo de massa, acabam por privilegiar as questões econômicas, as estratégias de marketing, relegando a plano secundário o rigor dos princípios elaborados pela reflexão teórica consolidada. Nesse sentido, o ambiente das cidades contemporâneas favorece uma ambigüidade de conceitos que deve ser reconhecida a fim de evitar a conseqüente confusão de significados e a própria deturpação dos termos: patrimônio vivo e espetáculo, materialidade autêntica e simulacro, objeto real e imagem. Essa imprecisão tende a banalizar as noções de patrimônio arquitetônico e urbano, assim como as práticas de intervenção. Desse modo, coloca-se aqui a necessidade de, não apenas rever conceitos e práticas, mas também indicar os aspectos discutíveis da ação patrimonial mais recente, à luz das contribuições de autores como Françoise Choay e Michel Sorkin. A reflexão presente em Ignasi de Solà Morales interessa pela tangência que estabelece entre os critérios de projeto arquitetônico e os da restauração. Convém notar que essas ressalvas indicadas acima se dirigem a uma ação de mais largo alcance que não tem relação direta com os preceitos amadurecidos e aceitos hoje pelos especialistas. 12

16 A partir dessas considerações, podem ser colocadas algumas questões. Quais os limites que separam a criatividade invocada pelo restauro crítico e a inserção do novo reivindicada pelo arquiteto contemporâneo? Se a restauração admite hoje a estratificação de diferentes temporalidades como camadas de um devir histórico, incorporando, conforme os preceitos da conservação integral 6, acontecimentos fortuitos, acidentais, como dados a serem considerados para efeito de conservação, por que não admitir então a continuidade do fluxo do tempo para os bens culturais mediante o aporte de ações comprometidas com a experiência crítica? Como avaliar a prática contemporânea do construir no construído? Em que termos essa ação pode ser tida como legítima? 6 As vertentes mais recentes são apresentadas em linhas gerais no capítulo 1, parte II. Para aprofundamento do tema consultar as obras mencionadas acima de Giovanni Carbonara e Beatriz M. Kühl. 13

17 Camillo Sitte. Página do original "L'art de bâtir les villes" publicado em Fonte: Acesso 26/10/09. " O homem anda em linha reta porque tem um objetivo." Le Corbusier. Fonte: falcon.jmu.edu/.../23.corbu.city.plan.jpg. Acesso 26/10/09. Foto aérea da Ópera de Paris. Fonte: Acesso 26/10/09.

18 Metrópole e memória: a origem das práticas de conservação O panorama geral A metrópole em sua formação configura um complexo quadro cultural que aproxima e potencializa fenômenos significativos para a definição das raízes da problemática moderna do restauro: a criação da estética como disciplina filosófica e específica, a história da arte como história do estilo, a difusão dos museus, o surgimento do urbanismo e da arqueologia como disciplinas autônomas, a iconoclastia dos sans culottes e a pronta reação das instituições republicanas francesas, enfim, a crença no progresso científico, junto à valorização romântica do passado. Este artigo trata das relações entre o ambiente cultural de formação das metrópoles e o surgimento das primeiras teorias voltadas à preservação dos bens culturais. O interesse do estudo é apresentar o fenômeno metropolitano, com seus novos modos de convívio sociocultural, como um dos elementos fundamentais a desencadear o processo de reorganização da memória que está implícito no pensamento do restauro moderno. O objetivo principal dessa abordagem é recuperar e contextualizar a origem da construção de idéias que contribuem para constituir o campo disciplinar do restauro, com base na compreensão de valores e práticas elaborados a partir do final do século XVIII e durante o XIX. Retomar esse momento histórico, detendo-se nas premissas que se apresentam para a formulação do problema da conservação e do restauro, propicia investigar tanto a semântica dos conceitos elaborados, quanto a maneira como esses temas ecoam na atualidade. Não se trata aqui de esgotar o tema, uma vez que já foi amplamente abordado em inúmeras publicações. Busca-se, isto sim, sintetizar os aspectos essenciais desse contexto cultural, aproximando as interpretações do campo específico do restauro daquelas do campo mais geral da historiografia da arquitetura. 15

19 A idéia de preservação é aqui reconhecida como fruto da modernidade, uma noção que nasce no mesmo momento em que o movimento da arte moderna arrisca seus primeiros passos. Memória e invenção, nesse contexto, são dados entrelaçados ainda que por vezes sejam considerados como opções incompatíveis entre si e a cidade é matriz de transformação. Como se sabe, as expressões do pensamento e as manifestações artísticas desse período histórico estão intimamente ligadas ao quadro de transformações profundas da ordem social, econômica e política que remonta à transição do feudalismo para o capitalismo. Nesse panorama, o despotismo esclarecido e o iluminismo 1 têm grande relevância: o primeiro por mudar a concepção do Estado, o segundo por propiciar o desenvolvimento das correntes racionalistas e empiristas que constituem a base teórica das revoluções política e industrial. Paris local onde habita a Razão 2, onde se prepara a Enciclopédia ( ) e a Revolução, cidade do Homem Universal é centro vital desse quadro e continuará a sê-lo na condição de capital das vanguardas modernistas, no início do século XX. A capital indiscutivelmente figura como símbolo do século das Luzes que, aliás, reúne condições privilegiadas tanto para a difusão do conhecimento, como para a criação de uma nova consciência histórica. Trata-se de uma nova mentalidade que privilegia formas dedutivas de conhecimento como meios adequados para a compreensão da realidade, em detrimento da intuição, misticismo, fé ou revelação religiosa, o que concorre de forma definitiva para o questionamento da tradição. É o que Marvin Perry 3 identifica como afirmação da razão e da liberdade, nascida no ambiente cosmopolita de Paris, capital do Iluminismo, e que se difunde às principais cidades da Europa ocidental e da América do Norte. Assim explica o autor: 1 Conforme Franco Venturi em Utopia e riforma nell illuminismo, Turim: Einaudi, 1970, p Essa expressão comparece em AZEVEDO, Ricardo M. de. Metrópole e abstração. São Paulo: Perspectiva, 2006, p.10, referindo-se ao discurso de Cloots na Assembléia de Paris. 3 Em: Civilização ocidental. Uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 1985, p

20 Newton descobrira leis universais que explicavam os fenômenos físicos. Os philosophes então indagavam: não haveria também regras gerais que se aplicassem ao comportamento humano e às instituições sociais? Seria possível criar uma ciência do homem que correspondesse à ciência da natureza de Newton? (...) Ao defenderem a metodologia científica, os philosophes afirmaram o respeito pela capacidade da mente e pela autonomia humana (...) rejeitando a intervenção do clero e da autoridade principesca, ela (a mente) conta com a sua própria habilidade de pensar e confia nas evidências de sua própria experiência. Em tempos mais distantes predomina a prática generalizada de se dispor das obras do passado para adaptá-las sem restrições às necessidades do presente. Contribui para esse comportamento usual, a ausência de uma demarcação mais evidente entre passado, presente e futuro. [1] [2] [1] O antigo teatro de Marcello transformado em Palazzo Orsini por Baldassare Peruzzi no séc. XVI. [2] A igreja de San Lorenzo in Miranda, inserida no pórtico remanescente de um antigo templo romano, projeto de Orazio Torriani, Fonte: Dell Orto, 1982, p. 52 e

21 Se até então persistia uma noção de continuidade no transcurso do tempo, o pensamento iluminista contribui efetivamente para contrapor-se a essa condição. Ao negar a autoridade incontestável da tradição e buscar a aplicação do método científico ao universo humano, propicia uma nítida separação entre passado e presente. É justamente a manifestação de uma atitude crítica do homem frente ao seu passado a configurar essa nítida separação. Passado e presente: dilema entre divisão e conexão Se, por um lado, a observação distanciada de sua vivência permitiu ao indivíduo uma condição mais objetiva de análise histórica, por outro, a continuidade entre seu passado e o presente, antes propiciada pela tradição, acaba por ser restabelecida de uma nova forma. Por isso a necessidade de se instaurar outra espécie de ponte entre o ontem e o devir, agora baseada no sentimento de que o passado continuava a viver através da nostalgia 4. Sob essa perspectiva, o sentimento romântico de apego ao passado, que concilia historicismo e nacionalismo e conduzirá aos diversos revivals estilísticos do século XIX corresponde a um meio de preencher o hiato criado entre passado e presente. É característica marcante dos tempos de mudanças não se encontrar uma congruência rigorosa de idéias: em meio às significativas transformações técnicas e sociais, observam-se também importantes focos de resistência às mudanças. Se há uma vertente racionalista que tende a cultivar o mito do desenvolvimento linear do progresso, mantendo sua atenção voltada a um futuro promissor para a humanidade, há, por outro lado, uma corrente romântica mais interessada em reatar os vínculos com o passado. A produção cultural dos séculos XVIII e XIX, portanto, traz em seu bojo essa oscilação entre o espírito racionalista, como expressão de um conhecimento universal, e o espírito romântico, enquanto manifestação de sentimentos nacionalistas e estímulos individuais. 4 Paul Philippot em artigo: Restauro: filosofia, criteri, linee guida. Em revista Strumenti 17, 1998, p

22 A propósito de contraposição de idéias, Giulio Carlo Argan 5, ao tratar das manifestações artísticas que antecedem a produção moderna do início do século XX, refere-se a dois termos recorrentes: clássico e romântico. Designam, segundo o autor, duas visões de mundo que estabelecem entre si uma relação dialética e estão presentes na origem da cultura artística moderna. O clássico, explica Argan, está ligado à arte do mundo antigo greco-romano, assim como à cultura humanística do século XV e XVI; o romântico associado à arte cristã da Idade Média, especialmente às manifestações românicas e góticas. Ao discorrer sobre essas diferentes concepções de arte, Argan retoma Wilhelm Wörringer ( ) 6, segundo o qual cada uma dessas visões está relacionada a uma condição cultural e geográfica que sintetiza a relação entre o homem e a natureza: a clássica reporta ao mundo mediterrâneo, onde essa relação é clara e positiva; enquanto a romântica alude ao mundo nórdico, onde a natureza é força misteriosa e muitas vezes hostil. Cada uma dessas posições vai ser investigada por outros autores, sob pontos de vista diversos, a partir da criação do campo disciplinar da estética. Esse é, sem dúvida, o momento de teorização da arte sob a forma de uma filosofia da arte, a estética, em substituição ao viés tratadista que vigorou desde o Renascimento. Como observa Argan 7 : Teorizar (sobre) períodos históricos significa transpô-los da ordem dos fatos àquela das idéias ou dos modelos: é de fato a partir da metade do século XVIII que aos tratados ou às preceptivas do Renascimento e do Barroco substitui-se, a um mais elevado nível teorético, uma filosofia da arte (estética). O autor esclarece que inicialmente o tratado da arte atendia ao pressuposto da arte universal, como norma a ser colocada em prática, um raciocínio pertinente ao pensamento clássico. Nos novos 5 Em: L Arte moderna. Florença: Sansoni, 1988, p Em obra intitulada Abstração e Natureza. 7 Op. cit., p.3. (tradução da autora) 19

23 tempos em que a arte não é mais considerada um meio de conhecimento da realidade, nem tampouco um meio de transcendência religiosa, mas sim um modo de ser do espírito humano, a investigação teórica toma novos rumos. Enquanto a noção de arte calcada no pensamento antigo pressupõe o dualismo entre o modelo e a imitação, recorrendo à mimesis, a concepção romântica invoca a poiesis, ou seja, o próprio fazer artístico, centrado agora na intencionalidade do artista, na criação propriamente dita. Aqui está, segundo Argan, a origem da autonomia da arte, própria do movimento moderno. Refere-se à compreensão da arte como uma experiência primária que não tem outra finalidade senão a própria criação. Ao discorrer sobre o pensamento romântico, há autores, entre os quais Azevedo, que fazem uso do plural romantismos a enfatizar a ausência de um programa coeso e unitário para as várias manifestações artísticas relacionadas a esse universo peculiar. De todo modo, a historiografia da arte em geral destaca a predominância de um sentimento que se evidencia na confluência de correntes que renegam as preceptivas artísticas da tradição clássica, em favor de uma valorização da capacidade ilimitada do gênio. O interesse pela memória A memória e sua prática interessam tanto aos românticos quanto aos racionalistas, se é que podem ser identificados em posições rigorosamente contrapostas. Para os românticos, a memória é motivo de encantamento. Conforme explica Le Goff, o romantismo reencontra, de um modo mais literário que dogmático, a sedução pela memória 8. Para exemplificar, recorre a Michelet que, na tradução da obra de Vico, De antiquissima italorum sapientia (1710), encontra a ligação entre memória e imaginação, memória e poesia. Fantasia e invenção são atributos indissociáveis da produção de Giovanni Battista Piranesi ( ), figura de destaque no cenário cultural da época. Célebre por suas gravuras, entre as quais as Vedute di Roma (Vistas de Roma), visões panorâmicas das ruínas 8 LE GOFF J. Memória-História. Enciclopédia Einaudi. Vol. I Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1984, p

24 romanas, estimulou a imaginação dos seus contemporâneos e inspirou com suas reconstruções fantásticas os adeptos das concepções neoclássicas e românticas. Os seus Carceri d invenzioni (Projetos de prisões imaginárias) [3] [4] prefiguram, segundo Scully 9, o fim do velho mundo humanista, centrado no homem, com seus valores fixos é o começo da era das massas da história moderna, com seus ambientes enormes e continuidades precipitadas. Imagens de espaços ameaçadores, continuam a ser fonte de inspiração de vários autores do século XX, entre os quais o cineasta Serge Eisenstein e o dramaturgo Peter Weiss 10. Para os racionalistas, a memória é importante instrumento de conscientização coletiva, não só de rememoração e comemoração, mas também de reordenação e reedição de situações e informações passadas. Nesse sentido, a função da memória não é exclusivamente de celebração, mas principalmente de releitura e reinterpretação dos acontecimentos. [3] [4] Projetos de Prisões Imaginárias, 1761, G. B. Piranesi. Fonte: Argan, 1988, p Em Arquitetura moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2002, p Em THOENES, C. Et al. Teoria da arquitectura. Do renascimento até nossos dias. Lisboa: Taschen, 2003, p. 164, comenta-se a respeito da evocação da obra de Piranesi presente em autores contemporâneos. 21

25 Por essa razão na França, após a Revolução, são criados os arquivos nacionais que reúnem os documentos da memória da nação. Criam-se também instituições responsáveis pela formação de especialistas aptos a organizar e fazer funcionar esses arquivos. O mesmo acontece com os museus, como se observa na análise a seguir. Ganha assim importância, no contexto das principais metrópoles, a ação de historiadores, colecionadores, antiquários, arqueólogos, além de literatos, pintores e arquitetos que se dedicam à investigação, apreciação e conservação de obras de arte, documentos e ruínas. São intelectuais estimulados pelo projeto de democratização do conhecimento que acompanha o iluminismo, empenhados em atividades de diversa natureza, mas que contribuem em conjunto para fortalecer a ligação entre memória e identidade e, por extensão, a noção de preservação. Memória e coletânea Nessa condição de difusão do saber, ou dos saberes, com o desenvolvimento de áreas específicas do conhecimento, a arqueologia afirma-se pouco a pouco como disciplina autônoma. Ciência que, a partir das evidências materiais criadas pelos homens, investiga os costumes e culturas dos antepassados, a arqueologia se estabelece como especialização do estudo da história. Sua consolidação requer a adoção de métodos sistemáticos de levantamento e classificação, além dos processos de coleta e escavação. O interesse pelos vestígios específicos da antigüidade clássica se intensifica após os trabalhos de escavação da cidade de Paestum (1746), na Magna Grécia, assim como das antigas cidades romanas: Pompéia (1748) e Herculano (1755). A descoberta desses sítios que permaneceram enterrados por muitos séculos além de causar grande comoção, foi um dos fatos decisivos para confirmar o sentido de separação entre passado e presente. Mostrava-se evidente a descontinuidade entre o momento do sepultamento e o da descoberta: Paestum vinha desbravada; Pompéia e Herculano voltavam, literalmente, à luz. 22

26 A propósito da arqueologia, convém destacar o papel do historiador e arqueólogo Johann Joachim Winckelmann ( ), por estabelecer em sua obra História da arte na Antigüidade (1764) as bases da história da arte como história do estilo, e exercer forte influência sobre o desenvolvimento da arquitetura neoclássica 11. São, portanto, inúmeros os fatores a mobilizar o interesse e a institucionalizar a conservação material sistemática dos bens culturais. A reflexão sobre a arte, as descobertas arqueológicas, a criação dos arquivos e dos museus 12 destinados ao grande público, são os agentes mais significativos a interferir nesse processo. O museu, importante instituição desse contexto cultural, como observa Françoise Choay 13, começa a aparecer na sua acepção atual, durante o século XVIII, seja pela ampliação e transformação dos espaços privados de coleção em espaços abertos à visitação pública, seja pela transferência de bens da Coroa e do Clero para a nação, em um procedimento de expropriação comum na França pósrevolucionária. Memória, nomenclatura e significados Museu e Encyclopédie têm em comum um propósito didático. Nas páginas de introdução do Dictionnaire raisonné des sciences, des arts e des métiers, conforme aponta Paolo Rossi, D Alembert enfatiza a importância de um trabalho continuamente iluminado pelo conhecimento dos princípios teóricos que lhe servem de base, e de uma pesquisa teórica capaz de ceder lugar a aplicações práticas e de se reconverter em obras (...). Observa-se que os enciclopedistas quando se voltavam aos artesãos da França, interrogando técnicos e operários e, a seguir, tentando definir com exatidão os termos, métodos e procedimentos próprios das várias artes, para inseri-los 11 Paul Phillipot em artigo: Storia e attualità del restauro. Em: Strumenti 17, 1998, p Idem, p. 89. Museus criados no séc. XVIII: British Museum, Museo Pio Clementino em Roma e Louvre em Paris. 13 Em Alegoria do patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade: UNESP, 2001, especialmente nas páginas.62 e 97, a autora tece considerações sobre a criação dos museus na França. 23

27 num corpus orgânico e sistemático de conhecimento 14, buscavam estabelecer um vínculo estreito entre teoria e prática. Confirmação dessa preocupação em promover os fatos da prática, relegados tradicionalmente a segundo plano, prossegue Rossi, é o próprio verbete Art da Encyclopédie, em que se critica a distinção tradicional entre artes liberais e artes mecânicas, por reforçar o preconceito de que a atenção aos objetos sensíveis e materiais constitui uma renúncia à dignidade do espírito humano. Diretamente ligada ao tema deste estudo, a ampliação da terminologia referente à análise histórica ocorre impulsionada justamente pela influência do espírito da Enciclopédia. Novos significados são incorporados ao vocabulário corrente: documento, monumento, patrimônio, preservação, restauro. São vocábulos cujo emprego freqüente remete aos novos métodos da memória coletiva e do estudo da história, um reflexo das preocupações do homem de manter contato vivo com as obras produzidas pela cultura do passado. Documento e monumento têm primazia entre os materiais da memória coletiva e da história 15. O vocábulo latino documentum, derivado de docere, ensinar, com o tempo adquire o sentido de prova documental e, a partir do século XIX, o de testemunho histórico. Já o termo monumento, do latim monumentum, derivado de monere, lembrar, rememorar, em origem indica aquilo que traz à lembrança acontecimentos, ritos, crenças. Logo, genericamente o monumentum é um ícone do passado, enquanto obra representativa construída para fins simbólicos e não para atender a usos específicos. Desde a antigüidade romana, o monumento tende a dividir-se em dois tipos: uma obra comemorativa ou um monumento funerário. Veyne 16 ressalta a usual manipulação da memória coletiva exercida pelos imperadores romanos e a conseqüente reação do senado contra a tirania imperial, ao criar um expediente que permite cancelar o nome do imperador defunto dos documentos de arquivo e das inscrições monumentais, a damnatio memoriae. Ao poder da 14 Em Os filósofos e as máquinas.são Paulo: Cia das Letras, 1989, p A respeito da importância e da variação de significados, consultar LE GOFF, op. cit., pp Apud LE GOFF, op. cit., p

28 memória contrapõe-se a destruição da memória, mecanismo empregado por diversas vezes, no século XX, em circunstâncias ligadas a regimes totalitários. Com o transcurso do tempo, o monumento não só consolida o sentido de obra grandiosa construída com o objetivo de contribuir para a perpetuação memorialística de uma pessoa ou acontecimento relevante na história de uma comunidade, mas incorpora também uma conotação estética. O monumento histórico do século XIX, contemporâneo à nomeação da Comissão dos Monumentos Históricos da França, em 1837, inclui três categorias de edifícios: os remanescentes da antigüidade, os edifícios religiosos medievais e alguns castelos. Trata-se de uma classificação formulada para fins de inventário e tutela de bens que constituíram alvos de ataques da população contra os símbolos do Ancien Régime. De início, o monumento associado a um passado remoto, ao status de raridade e suntuosidade, aos poucos vai adquirindo um sentido mais abrangente, equiparável à conotação de outro vocábulo também aplicado ao universo da conservação da memória: patrimônio. Etimologicamente o sentido do termo patrimônio 17, proveniente do latim patrimonium, corresponde ao conjunto de bens pertencente ao pai, o pater. O significado consolida-se como conjunto de bens transmitidos dos pais aos filhos por herança. Com o tempo, seu emprego não se limita às estruturas familiares, mas passa a ser aplicado às empresas e instituições públicas. Entre os séculos XVIII e XIX, o termo ganha uma nova compreensão: patrimônio histórico. Assim explica Choay: A expressão designa um bem destinado ao usufruto de uma comunidade que se ampliou a dimensões planetárias, constituído pela acumulação contínua de uma diversidade de objetos que se congregam por seu passado comum: obras e obras-primas das belas-artes e das artes-aplicadas, 17 COLONNA, B. Dizionario etimologico della lingua italiana. Gênova: Newton & Compton, 1997, p

29 trabalhos e produtos de todos os saberes e savoir-faire dos seres humanos. 18 Considerado suporte da memória, fonte da história dos homens, portador de significado, o patrimônio - para se constituir como tal - pressupõe o reconhecimento de valor, a adoção de critérios de seleção, e, implicitamente, a importância da conservação. Sob esse aspecto, só a preservação possibilitará o usufruto do legado recebido do passado e a sua conseqüente transmissão às gerações futuras. Memória, preservação e restauro Pode-se afirmar que antes da revolução, na França, a idéia de conservação nasce a partir da visão crítica da história. No período sucessivo, entre 1790 e 1820, no entanto, a preservação passa a ser uma ação necessária e imprescindível para evitar o cancelamento do passado. Trata-se de impedir a destruição provocada pela onda de vandalismo por parte da população perigosa, a turba 19, que atinge os monumentos considerados símbolos do antigo regime e de suas classes dominantes: o clero e a nobreza. Processos históricos emblemáticos, a Revolução Francesa e a Revolução Industrial, da mesma forma que apontam para o futuro, para transformações de ordem prática e conceitual, reconstroem o vínculo com o passado. Na Inglaterra, dois aspectos contribuem especialmente para despertar o interesse pela conservação: a indignação provocada pela lembrança do vandalismo religioso da Reforma; a reação às rápidas e radicais transformações causadas pela revolução industrial, seja na forma de produção artística, seja no ambiente urbano. França, Inglaterra e Itália, não por acaso, são palco dos primeiros debates e ações voltadas à preservação do patrimônio cultural. As condutas são diferenciadas pela própria condição de cada país: França e Inglaterra envolvidas com os respectivos processos 18 CHOAY, op. cit., p Expressão corrente com que se designa a multidão exaltada na época da Revolução. Cf. AZEVEDO, op. cit., p.7. 26

30 históricos revolucionários e a Itália diretamente relacionada à afirmação da arqueologia. As teorias formuladas pelos pioneiros o francês Eugène Viollet-le- Duc e o inglês John Ruskin apesar de assumirem posições antagônicas, têm uma origem comum: a correlação com o espírito nostálgico dominante no período. A posição dos italianos, por sua vez, reflete a conduta sistemática que acompanha os trabalhos já mencionados de escavação arqueológica. Viollet-le-Duc ( ), historiador, teórico e restaurador, atua num momento em que a ação do Estado francês faz-se necessária para impedir a continuidade da escalada de vandalismo que se desenvolve após a Revolução Francesa. Após integrar uma comissão que elaborou um levantamento criterioso das edificações de interesse patrimonial e das condições de conservação, passou a participar das primeiras iniciativas de restauração, entre as quais, as catedrais de Paris, Chartres e Amiens. Estabeleceu então uma conduta de intervenção, após dedicar-se atentamente ao estudo das técnicas construtivas, especialmente das catedrais góticas. [5] [6] Ao propor a recuperação dos edifícios, reporta-se ao conceito de estilo, entendido como uma realidade histórico-formal unitária e coerente circunscrita no tempo e bem definida nas suas características físicas. O estilo seria uma expressão direta de uma época, de um momento histórico, o que autorizaria a hipótese da reconstrução de partes não mais existentes. Com base nesse conceito, a posição de Viollet-le-Duc, que se torna conhecida como restauro estilístico, autoriza a restabelecer o estado primitivo unitário do edifício. Em outras palavras, legitima as livres experiências de reconstrução e de livre composição em nome da exaltação de uma hipotética unidade estilística. No Dictionnaire raisonné de l architecture française du XI au XVI siècle (editado entre 1854 e 1868), de Viollet-le-Duc, assim diz o verbete restauração 20 : restaurar um edifício não é mantê-lo, repará- 20 O verbete foi traduzido para o português por Beatriz M. Kühl e publicado em 2000, na coleção Artes&Ofícios da editora Ateliê Editorial, que têm reunido relevantes 27

31 lo ou refazê-lo, é restabelecê-lo em um estado completo que pode não ter existido nunca em um dado momento. 21 Giovanni Carbonara 22 comenta que a postura de Viollet-le-Duc parece mudar com a continuidade de suas ações. Passa de uma intervenção mais cautelosa, de caráter conservativo, para uma atuação mais livre e radical de recomposição e reconstrução. Como se fosse possível inferir a ocorrência de uma maior liberdade de ação, a partir da prática mais intensa. [5] A catedral ideal de Viollet-le-Duc. [6] Corte do coro da Catedral de Beauvais. Desenho de Viollet-le-Duc interessado em investigar as razões do desmoronamento em Fonte: Thoenes et. al., 2003, p. 347 e 348. contribuições de autores estrangeiros, importantes alicerces das teorias da conservação. 21 Em KÜHL, B. M. Apresentação e tradução.restauração. E. E. Viollet-le-Duc. Cotia: Ateliê Editorial, 2000, p Arquiteto e teórico italiano, autor de várias publicações sobre o tema da conservação, é atualmente diretor da Scuola di Specializzazione per lo Studio ed il 28

32 Enquanto, na França, Viollet-le-Duc defendia o restauro estilístico, Ruskin ( ), figura notável da Inglaterra vitoriana, posicionase contra aquela conduta. Sustenta o absoluto e religioso respeito ao monumento, traduzido por uma admiração contemplativa, como única forma possível de reverência aos objetos dos antepassados advindos ao presente. Voltado para uma posição que concilia a experiência estética e moral, Ruskin 23 concebe a exigência de preservação da produção humana a partir de uma visão bastante abrangente que coincide com a idéia de abnegação por amor da posteridade e que, ao mesmo tempo, renega a ação de restauro: Nem o público, nem aqueles a quem é confiada a tutela dos monumentos púbicos compreendem o verdadeiro significado da palavra restauro. Essa significa a mais total destruição a que um edifício possa submeter-se: uma destruição que ao final não permanece nem mesmo um resto autêntico a ser recolhido, uma destruição acompanhada da falsa descrição da coisa que destruímos (falso entendido aqui como paródia). Não enganemos a nós mesmos em uma questão tão importante; é impossível em arquitetura restaurar, como é impossível ressuscitar os mortos, por mais grandes e belos que tenham sido. 24 Tal concepção deriva da atitude literária que confere ao passado e às obras antigas, um valor exclusivo frente ao presente. Ao reconhecer a singularidade e a autenticidade (hinc et nunc) como valores fundamentais da preexistência de caráter monumental, Ruskin desautoriza não apenas a reconstrução nos moldes do restauro estilístico, mas toda e qualquer intervenção do homem. [7] Na Itália, por outro lado, as descobertas dos sítios arqueológicos anteriormente mencionados foram decisivas para o início de uma atuação prática criteriosa de conservação, reconstituição e Restauro dei Monumenti da Universidade La Sapienza de Roma. A afirmação comparece em Avvicinamento al restauro. Teoria, storia, monumenti,1997, p Em ensaio intitulado The seven Lampsof architecture (As sete lâmpadas da arquitetura) de As referências aqui mencionadas foram extraídas da publicação italiana da obra de Ruskin, Le sette lampade dell architettura. Milão: Jaca Book, 1997 (tradução da autora). 24 Idem, p

33 consolidação dos componentes redescobertos. O trabalho desenvolvido contribui para a conduta sistemática de inventário, coleção e classificação das peças. Além disso, realiza-se a anastilose e a recomposição das partes originais, desde que se diferenciem os elementos preexistentes das partes de recomposição. Esse procedimento, chamado restauro arqueológico, tem como principais protagonistas Raffaele Stern e Giuseppe Valadier. [8] [9] Na transição do século XIX para o XX, Camillo Boito 25 ( ) põe fim à aporia criada pelas posições de Viollet-le-Duc e Ruskin, ao colher contribuições de cada um deles, para compor uma síntese mais equilibrada. [7] Colunatas do claustro Catedral de Ferrara. Um dos quatorze desenhos presentes no livro As sete lâmpadas da arquitetura (4ª Ed. Londres, 1894), elaborados por Ruskin para ilustrar a riqueza formal da arquitetura por ele admirada. Fonte: Thoenes, et. al., 2003, p Arquiteto, crítico, professor e restaurador italiano. Formulou em linhas gerais o conceito de restauro científico posteriormente aprofundado por Gustavo Giovannoni. A esse respeito, consultar a obra Os restauradores. Conferência feita na Exposição de Turim de Trad. Beatriz M. Kühl. Cotia: Ateliê Editorial,

34 A partir de Ruskin, considera o reconhecimento e respeito à autenticidade e à materialidade de que é feita a obra, o que implica em dois procedimentos fundamentais: a diferenciação das partes recuperadas em relação às partes originais e a preservação dos acréscimos estratificados ao longo do tempo. Em relação à posição de Viollet-le-Duc, opõe-se à reconstrução de partes desaparecidas com base no conceito de estilo, por defender a singularidade de cada obra; por outro lado, acolhe sua conduta de valorizar o presente frente ao passado, legitimando o restauro, em oposição à postura anti-intervencionista de Ruskin. Uma concepção moderna de restauro Uma oposição de idéias de natureza diferente daquela observada entre Viollet-le-Duc e Ruskin pode ser identificada ao analisarem-se as posturas de dois urbanistas do século XIX: Camillo Sitte e George-Eugène Haussmann. [8] Arco de Tito no Fórum Romano em gravura de Piranesi que ilustra a condição precedente ao restauro. Fonte: Carbonara, 1997, ilustração n. 36. [9] Foto do Arco de Tito na configuração após os trabalhos de recomposição realizados por Valadier ( ). Um exemplo de diferenciação de materiais e formas simplificadas adotados nas extremidades, em comparação com os elementos originais situados na parte central. Fonte: Dell Orto, 1982, p

35 Essas posições delineiam um primeiro confronto entre as duas visões contrastantes que irão reermergir no contexto de consolidação do movimento moderno, a partir da década de 1930: de um lado, a observação atenta do patrimônio arquitetônico construído no passado, associada à apreciação estética da paisagem urbana; de outro, a necessidade de modernização urbana e, portanto, a exigência de transformação das cidades antigas, pré-industriais. O arquiteto e urbanista austríaco Camillo Sitte ( ) reflete uma visão culturalista ao criticar a rigidez e simetria dos projetos urbanísticos contemporâneos e destacar as qualidades das cidades antigas. No outro extremo, Georges-Eugène Haussmann ( ), responsável pelas propostas de remodelação do centro antigo de Paris, expressa o ideal de renovação do cenário urbano. O concomitante surgimento do urbanismo, como disciplina autônoma, fortalece a convicção de que é necessário elaborar um novo modelo de cidade mais eficiente e mais saudável, segundo parâmetros daquele momento histórico: um novo desenho e uma nova escala com condições satisfatórias de circulação do tráfego das mercadorias, do transporte público de massa e, ao mesmo tempo, a proposição de uma cidade dotada de equipamentos coletivos e de infra-estrutura adequada aos novos padrões sanitários. Como se sabe, Georges-Eugène Haussmann é conhecido como um dos mais emblemáticos e polêmicos protagonistas dessa tendência de renovação das cidades. Prefeito do Departamento do Senna em Paris, entre 1853 e 1870, é encarregado por Napoleão III de implantar as diretrizes de urbanismo fixadas por Henrique IV e desenvolvidas por Luís XIV, através do chamado Plano dos Artistas, criado em Os principais elementos desse plano urbanístico são os boulevards amplos e retilíneos que confluem para os round-points estelares. Dois aspectos principais orientam esse redesenho da malha urbana parisiense. Primeiramente aqueles ligados à ordem pública, ou seja, impedir a formação de barricadas, além de conter as revoltas 26 PEVSNER et. al. Dizionario di architettura. Turim: Einaudi, 1992, p

36 populares 27. Em segundo lugar os de natureza técnica, ditados pelas necessidades de melhorar as condições de higiene principalmente quanto à iluminação natural e ventilação dos edifícios e de circulação do tráfego nas áreas centrais. [10] [11] A postura de Haussmann pontua, portanto, um viés tecnicista e higienista que determina a destruição do tecido urbano histórico, para dar lugar à nova configuração espacial definida pelos largos e longos boulevards, ladeados por corpos de construção de gabarito homogêneo e fisionomia uniforme. Cria-se então um conjunto construído unitário, ao qual se relaciona, em posição de destaque, o monumento (ou edifício de caráter monumental) que desponta na perspectiva regular. [10] Planta do traçado e desapropriações para a abertura da avenida diante da Ópera de Paris, definida pelo plano de Haussmann, [11] Foto da avenida já realizada. Fonte: Gamarra (2008), em Acesso em 03/10/ As revoltas mencionadas referem-se aos eventos ligados à Revolução Francesa, às rebeliões da população exaltada, a turba, que assaltava as ruas e criava as barricadas, ou seja, obstáculos para a ação da polícia. 33

37 As rotatórias de circulação dão origem a pontos focais de conjunção de várias vias em disposição radial que favorecem a condição de isolamento e de destaque do monumento situado na ilha central. As gravuras do artista Charles Meyron retratam Paris nas vésperas das demolições promovidas por Haussmann. Essas imagens foram admiradas por Baudelaire 28 pelo cunho de documentação que contêm e pela capacidade de representar o caráter fugaz daqueles tempos de modernidade. Walter Benjamin 29 diz a respeito dessa produção que, ao realizar esses registros, o artista transforma casas comuns em monumentos. Observa-se aqui não só a compreensão de que indiscutivelmente as transformações comportam significativos cancelamentos, mas, sobretudo, a percepção do poder de evocação do passado contido na arquitetura do cotidiano. [12] [13] Camillo Sitte colabora para concretizar a compreensão da cidade como conjunto orgânico detentor de um forte caráter artístico, impossível de ser reduzido a episódios isolados. Diretor da Escola de Salisburg e posteriormente da de Viena, obtém notoriedade com a obra Der Städtebau nach seinen künstlerischen grundsätzen (A reforma urbana para sua valorização artística), 1889, um ensaio sobre a imagem e o desenho urbanos. Com a ajuda de vários diagramas, o autor analisa espaços urbanos abertos e destaca os efeitos positivos e atraentes obtidos pela irregularidade dos tecidos urbanos. Sitte observa a riqueza da composição mais livre e irregular dos traçados das cidades históricas. Reconhece, portanto, na cidade antiga, a dignidade de objeto histórico que de um lado inspira reverência, e de outro instiga a investigação. Daí a valorização da sua obra pelos teóricos da preservação e restauro, pois passa a ser referência importante e uma das bases para a elaboração do conceito de patrimônio que se amplia do edifício ao território urbano. 28 Apud GAMARRA, G. "Benjamín y Paris: de las ciudades a las barricadas ". Em bifurcaciones [online]. n. 7, Idem. Esse texto cita Benjamin ao discorrer sobre a relação entre o plano urbanístico de Haussmann e os mecanismos de controle ligados à repressão das revoltas populares. Sua obra inaugura uma rica abordagem sobre Paris do século XIX e a cultura cosmopolita das metrópoles, sobre os instrumentos de controle e os comportamentos de desvio às regras estabelecidas. 34

38 Colocar lado a lado as visões de Sitte e Haussmann permite identificar claramente os dois posicionamentos antagônicos contidos em suas propostas: um procedimento de análise e reconhecimento favorável à valorização de uma memória materializada nas formas e proporções das cidades pré-industriais; uma conduta de valorização de um novo modelo estético para a cidade pós-industrial, apoiado no tecnicismo e higienismo que concorrem, sobretudo, para a eficiente circulação do tráfego e a afirmação de novas normas sanitárias. Cabe aqui destacar que a posição de Sitte, como aponta Françoise Choay, reflete a plena consciência de que essas cidades do passado estão fadadas ao desaparecimento, e de conseqüência ao esquecimento, se não houver uma ação deliberada de resgate cultural. [12] Le Petit Pont, Charles Meyron, [13] Le Pont Neuf, Charles Meyron, Fonte: GAMARRA, Garikoitz. "Benjamín y Paris: de las ciudades a las barricadas ". Em bifurcaciones [online]. n. 7, < Acesso 03/10/08. 35

39 Haussmann, conforme relata Choay, refuta as críticas recebidas por ter destruído a velha Paris e desafia seus opositores a apontar um único monumento antigo digno de interesse, ou edifício de valor artístico, que tenha sido destruído em sua administração. Afirma, em favor de sua ação, ter demolido exclusivamente, em nome da saúde pública e do progresso, construções degradadas, ruelas insalubres. Relembra a autora: O próprio Victor Hugo, poeta da Paris medieval, que escarneceu cruelmente dos largos espaços haussmannianos e da monotonia das novas avenidas da capital, nunca critica em seus artigos ou em suas intervenções na Comissão dos Monumentos Históricos a transformação geral da malha das velhas cidades (...) ele limita-se, se for o caso, a propor algum desvio das vias projetadas, a fim de poupar não a continuidade do conjunto urbano, mas de um monumento (...) 30 A partir de Sitte, pode se desenvolver outra compreensão de patrimônio que incorpora o espaço urbano, superando a seleção exclusiva dos edifícios de caráter monumental de reconhecido valor artístico, para considerar a própria morfologia da cidade, o conjunto construído, suas relações espaciais, seu gabarito, sua fisionomia, seu traçado. Uma concepção moderna de restauro Sabe-se que em tempos remotos os homens intervieram em obras construídas pelos seus antecessores para adaptá-las à vida e aos usos do seu tempo. Era o presente que contava e não a preexistência, raros foram os casos em que as intervenções se voltavam à conservação de edifícios de épocas precedentes. Os séculos XV e XVI trouxeram algumas mudanças, dado o interesse e respeito pela cultura antiga, no entanto, as ações de conservação ainda eram parciais e esporádicas. [14] [15] 30 CHOAY, op. cit. p

40 O restauro arquitetônico afirma-se, de fato, como uma concepção moderna que consiste em um modo novo de considerar e de intervir sobre os bens do passado. O austríaco Alois Riegl ( ) representa, no início do século XX, uma original contribuição para a recondução das primeiras iniciativas na formulação do conceito de restauro. Uma posição que se sobrepõe à revisão de Camillo Boito e que assinala, no momento em que nasce a arte moderna, a transitoriedade dos critérios de valoração de um objeto material. Diz não haver o valor perene da obra de arte em si, ao contrário, declara existir, isto sim, um valor relativo, um valor contemporâneo, de natureza subjetiva conferido pelo observador moderno. [14] Interior. Alterações nas decorações dos muros internos foram realizadas por Vanvitelli, em [15] Planta com destaque para os recintos do tepidario das Termas de Diocleciano, transformados na igreja de Santa Maria degli Angeli ( ), após intervenção sutil de Michelangelo. Fonte: Boner, 2002, p.72 e p

41 Historiador e crítico de arte de formação jurídica é encarregado de elaborar uma reforma técnica e político-administrativa de salvaguarda dos edifícios históricos. Sua experiência pessoal na institucionalização da história da arte como disciplina autônoma, em relação à história geral, o credencia para ocupar-se dessa tarefa. Estabelece como prioridade a definição de uma nova competência, a tutela dos monumentos, com base em um valor do antigo, fundado em uma percepção intuitiva, própria da cultura de massa. Como destaca Sandro Scarrocchia 31, Riegl distingue diferentes atribuições de valores calcadas em apreensões psicológicas, sensoriais. Com isso quer sinalizar que o cidadão da metrópole, apesar de ignorar o conhecimento aprofundado dos especialistas, não deixa de manifestar atenção e interesse pelos artefatos produzidos pelo homem em outros tempos. Entre as categorias de valor definidas estão: valor de antiguidade, valor de historicidade, e valor de novidade (resultante da Kunstwollen, vontade artística 32 ). Vale ressaltar que, na visão de Riegl, essas atribuições de valor não dizem respeito tão somente ao indivíduo singular, nem exclusivamente aos meios eruditos, mas sim a uma coletividade, e relaciona-se diretamente com a fruição da produção artística, em um contexto de cultura de massa. O valor de antiguidade refere-se, portanto, a uma satisfação psicológica emanada por uma identificação de qualidade dos edifícios mais antigos, associada à capacidade de sobreviver à ação do tempo e à erosão da história. Desse modo, indica uma nova apreensão, ditada não apenas pela observação da forma, do estilo do passado, mas especialmente por uma apreciação da aparência consumada da produção humana. O valor de historicidade ou valor histórico consiste no fato de representar um estágio particular do desenvolvimento criativo da atividade humana. 31 Em artigo intitulado L autonomia della conservazione in forma di colloquio con Alois Riegl na revista Casabella n.584, p Também traduzido por volição da arte em nota de esclarecimento sobre o conceito em Kühl, 2008, p

42 Ao valor de antigüidade contrapõe-se o valor de novidade, decorrente de uma nova sensibilidade do século XX, o Kunstwollen, vontade artística, que se estabelece em contraposição às noções de desenvolvimento linear da produção artística calcada na sucessão ou evolução de estilos. Importante destacar que Riegl realiza uma rigorosa análise das razões da conservação, embora não chegue a criar uma nova normativa para as ações práticas. Sua importância deve-se essencialmente ao fato de acenar à complexidade do tema e sugerir inúmeras possibilidades de intervenção, de pertinência relativa, mas devidamente amparadas por critérios de valores. Conforme assinala Renato Bonelli 33 em uma análise retrospectiva: o princípio fundamental do restauro, mantido constantemente nas bases das doutrinas que se sucederam no curso do século XIX, é aquele de restituir a obra arquitetônica ao seu mundo historicamente determinado, recolocando-a idealmente no ambiente onde surgiu e considerando as relações com a cultura e o gosto do seu tempo; e contemporaneamente aquele de operar sobre essa (obra) para torná-la viva e atual, qual parte válida e integrante do mundo moderno. Estão implícitos nessa reflexão dois aspectos essenciais: o primeiro é o entendimento de que a atribuição de valor artístico se estabelece a partir da compreensão das relações entre a obra e a cultura do seu tempo; o segundo é a consciência de que o restauro é uma ação do presente, condicionada pela interpretação e releitura da própria obra a ser submetida a essa intervenção. A aproximação entre metrópole e memória permite, em síntese, identificar uma associação entre as transformações do mundo moderno e a necessidade de se conservar, ordenar, rever e atualizar experiências passadas e conhecimentos adquiridos. 33 Renato Bonelli, arquiteto e teórico italiano que, junto com Roberto Pane e Agnoldomenico Pica, desenvolve nos anos o conceito de restauro crítico, superando o enfoque positivista do chamado restauro científico. Em verbete restauro architettonico da Enciclopedia Universale dell Arte, v. XI, 1983, p (Tradução da autora). Essa vertente é analisada no capítulo referente à atuação de Lina Bo Bardi. 39

43 A ativação da memória, implícita nos movimentos preservacionistas, nestes tempos de transformações e de aceleração da História, diante da perspectiva da perda, do esquecimento, configura-se como uma necessidade premente de reconstrução da própria identidade do indivíduo no seio da nascente sociedade de massa. A idéia de patrimônio desponta como elemento de cultura associado ao seu contexto de produção, através do qual o homem afirma sua identidade, articula a noção de si mesmo, e, ao mesmo tempo, organiza sua prática social e a representação de sua linguagem simbólica. O tema do patrimônio construído envolve, portanto, uma consciência coletiva de apropriação do passado pelo presente e, necessariamente, a perspectiva de transmissão ao futuro, garantida pela idéia de preservação. 40

44 Casa paroquial de Sommariva (Cuneo - Itália), aspecto de "colcha de retalhos" resultante da sobreposição de camadas de tempo. Fonte: Revista Strumenti n. 14, Roma, O museu do crescimento ilimitado, Le Corbusier, Fonte:. acesso em 29/10/09.

45 As Cartas de Atenas Arquitetura, invenção e memória Na verdade, os ambientes construídos pelos homens guardam, através da sua materialidade, a memória tanto das idéias referentes ao grupo social, como do sistema de representações ao nível do indivíduo. Em outros termos é através da matéria, nas suas diversas formas, que os indivíduos, pertencentes a grupos sociais, expressam sua visão de mundo, suas expectativas, sentimentos e experiências. É na materialização, e através dela, que as idéias se concretizam, colocando o indivíduo frente a seu tempo histórico, ou melhor, é através da representação que o indivíduo comunica socialmente. 1 Um dos objetivos centrais da ação conservacionista é garantir a compreensão da memória social impregnada na materialidade das coisas produzidas pelos homens e a um só tempo afirmar a noção de identidade e pertencimento dos indivíduos, através da preservação daquilo que for considerado significativo dentro do vasto repertório de elementos componentes do patrimônio cultural. Os temas memória e patrimônio cultural relacionados entre si configuram uma consciência coletiva de apropriação do passado pelo presente e necessariamente uma perspectiva de transmissão ao futuro, garantida pela idéia de preservação. Como observa Cesare Brandi ( ) 2, em seu livro Teoria da restauração, o indivíduo que frui da revelação do bem cultural de interesse patrimonial impõe a si próprio o imperativo categórico da conservação, que se desdobra em diferentes ações, que vão desde o simples respeito, até a intervenção mais radical, o restauro. O 1 MILET, Vera. A teimosia das pedras. Olinda: Prefeitura de Olinda, 1988, p Crítico de arte e teórico da restauração, foi diretor do Istituto Centrale del Restauro di Roma entre os anos de 1939 e 1961, professor de História da Arte da Universidade de Palermo e da Universidade de Roma, autor da Teoria del restauro (1963). 42

46 problema da preservação dos bens culturais relaciona-se, portanto, a um reconhecimento de valor. É este reconhecimento que condiciona e legitima a ação de conservação. Entre as obras produzidas pelo homem, selecionam-se aquelas entendidas como portadoras de valor cultural, de significado artístico, histórico e documental, e das quais, conseqüentemente, tem-se o interesse de lembrar, manter, transmitir às próximas gerações. Disso decorre a importância da reflexão que aproxima as preceptivas artísticas às noções de patrimônio e conservação cultural. A indagação sobre os critérios de discernimento do que é arte e não-arte, sobre a formulação, a transformação e a dissolução dos preceitos que orientam a produção e a crítica, é pressuposto necessário para a investigação no campo da restauração. Este capítulo analisa os documentos internacionais conhecidos como Carta de Atenas, escritos na década de Essa denominação indica pelo menos dois escritos distintos, produzidos por instâncias diferentes: o primeiro é a Carta de Atenas elaborada pelo 1º Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos de Monumentos Históricos em ; o segundo é aquele redigido no âmbito do CIAM Congresso Internacional de Arquitetura Moderna a bordo do navio Patris II em Desse segundo documento, conhecem-se várias versões 4. A primeira corresponde à ata do IV CIAM, publicada nos Anais Técnicos da Câmara Técnica de Atenas. A segunda versão foi publicada por Le Corbusier em 1941, sob o título de A Carta de Atenas, em que o autor acrescenta tópicos e ênfases particulares ao conteúdo do documento dos Anais. A terceira, de autoria de José-Luis Sert, foi publicada nos Estados Unidos em 1942, como parte da obra: Can Our Cities Survive?. Há referência ainda a uma quarta versão publicada em holandês, cujo conteúdo confronta o texto de Le Corbusier com o da ata do IV Congresso. Entre as várias versões, este estudo considera o texto produzido por Le Corbusier. 3 Constitui um primeiro documento internacional a reunir deliberações de consenso entre vários países, referentes aos temas do patrimônio e restauro. 4 A menção a essas várias versões relativas às resoluções do IV CIAM é encontrada na apresentação da tradução da Carta de Atenas de Le Corbusier para o português, publicada pela HUCITEC/edusp, s/d. 43

47 Interessa a esta análise não apenas repercorrer as linhas de raciocínio de cada uma das Cartas referidas acima, mas também cotejar os seus conteúdos entre si e relacioná-los, em linhas gerais, ao pensamento arquitetônico dominante no momento em que os documentos foram produzidos. O foco principal do estudo é confrontar as abordagens particulares de dois segmentos distintos do ambiente arquitetônico atuantes naquele contexto: de um lado, os arquitetos voltados especificamente à ação de conservação do patrimônio arquitetônico e urbano e, de outro, os setores engajados com as propostas de inovação do chamado Movimento Moderno, tanto no âmbito da arquitetura como no urbanismo. Além de estabelecer relações entre as idéias contidas nos documentos e o contexto cultural do qual são partes indissociáveis a produção e a crítica arquitetônica, pretende-se apresentar, de modo sintético, como se situa o ambiente cultural do Brasil, face às discussões e experiências internacionais daquele momento. Antecedentes da década de 1930: urbanismo versus preservacionismo Como já tratado no capítulo anterior, o século XIX apresenta-se como marco inicial de um primeiro confronto entre duas posições contrastantes que irão reermergir justamente no contexto de produção dos documentos aqui analisados: de um lado a atenção à qualidade da paisagem da cidade pré-industrial que constitui a base para a formulação do conceito de patrimônio urbano; de outro, a necessidade de modernização urbana e, portanto, a exigência de transformação das cidades antigas, sinalizando a prioridade da construção da nova cidade moderna em relação à possibilidade de preservação do legado do passado. Cabe aqui relembrar a postura de duas figuras-chave a conduzir as discussões e propostas urbanísticas desenvolvidas nesse período e que, portanto, sintetizam as duas posições acima mencionadas: 44

48 Camillo Sitte, crítico da rigidez e simetria dos projetos urbanísticos contemporâneos, reflete uma visão culturalista que destaca as qualidades das cidades antigas; e Georges-Eugène Haussmann, responsável pelas propostas de remodelação do centro antigo de Paris. Conforme relato do primeiro capítulo, sabe-se que em meados do século XIX, assistiu-se ainda à formulação da noção do patrimônio histórico e à condução de ações sistemáticas ligadas à conservação dos testemunhos do passado. Convém observar que mesmo no interior da cultura preservacionista presencia-se um debate entre duas posições conflitantes: a do restauro estilístico do francês E. Viollet-le-Duc e a anti-intervencionista do inglês J. Ruskin 5. Convém, entretanto, assinalar que a aquisição de uma consciência do devir histórico que marca a constituição do conceito de patrimônio, nesse momento, limita-se ao patrimônio arquitetônico, isto é, ao edifício. Não há, até esse momento, uma clara compreensão da noção do patrimônio urbano, ou seja, a percepção de continuidade do conjunto urbano como valor a se preservar nos termos hoje concebidos, como se pretende abordar mais adiante. A necessidade de afrontar a complexidade das transformações já ocorridas, de planejar novos modelos urbanos compatíveis como essa nova escala de cidade, faz surgir uma disciplina específica, o urbanismo, que irá se ocupar da nova organização das cidades, das propostas de reformulação dos padrões vigentes, dos grandes temas sociais e urbanos da modernidade. Na realidade, os postulados elaborados pelo Movimento Moderno, no século XX, nascem para solucionar os problemas concretamente vividos ao longo século XIX. O antigo modo de vida da sociedade européia calcado em séculos de feudalização, produção agrícola e baixo adensamento urbano mostram-se superados pela urgência das transformações. As precárias condições de habitabilidade, os problemas sociais decorrentes dessa nova condição de vida, a necessidade de atender a exigências de trabalho e lazer, em resumo, a busca de uma melhor 5 As primeiras formulações do conceito de patrimônio histórico e as posturas iniciais de atuação no campo do restauro são tratadas em várias publicações, entre as quais destacam-se CHOAY (2001) e KÜHL (1998) 45

49 qualidade de vida urbana é questão fundamental a ser enfrentada nesse momento. As atuações de Haussmann e Sitte constituem referências emblemáticas da especialização do conhecimento ocorrida nesse momento. Mostra-se fundamental a delimitação de campos distintos para enfrentar e aprofundar diferentes naturezas de investigação que envolvem o território urbano: de um lado, a atenção à memória materializada no patrimônio construído e, de outro, a urgência de reformulação dos padrões e modelos das cidades existentes. Aproximar o pensamento de Sitte e de Haussmann possibilita identificar com clareza os dois posicionamentos antagônicos contidos em suas proposições que, de certo modo, se reapresentam no período em que se elaboram dos documentos aqui analisados: uma atenção à pesquisa morfológica e, conseqüentemente, ao valor documental da cidade antiga, o que contribui para afirmar a valorização da cidade em sua perspectiva histórica por contraste à nova cidade do presente; uma preocupação relativa em relação às marcas e testemunhos cotidianos do passado, para valorizar monumentos históricos de excepcional valor destacados como pontos focais isolados, em meio ao conjunto uniforme redefinido por novos padrões técnicos e formais. A esse propósito, Françoise Choay, ao tratar da invenção do patrimônio urbano 6, comenta sobre o posicionamento de intelectuais contemporâneos de Haussmann, entre os quais Balzac e Victor Hugo, que concordam com a necessidade de modernização radical da malha urbana antiga. Esclarece que os ilustres escritores manifestam apenas leve discordância em relação à monotonia das novas avenidas e à situação de isolamento de algum monumento, mas não chegam a se colocar como críticos ferrenhos dessa ação de renovação urbana que impõe extensas áreas de demolições. Isso ocorre justamente por não haver, até aquele momento, a percepção comum de que a continuidade do conjunto urbano constitui valor a se 6 Em A alegoria do patrimônio, p

50 preservar. Prevalece, portanto, a exigência de renovação urbana, frente à idéia de conservação. Nesse sentido, o plano de modernização de Haussmann para Paris, de meados do século XIX, ao privilegiar os requisitos técnicos de mobilidade e higiene; adotar uma visão estética que identifica a qualidade em parâmetros mais rígidos como simetria, regularidade e uniformidade da paisagem urbana; além de dirigir atenção especial aos monumentos, preterindo o conjunto urbano em sua continuidade, pode ser entendido como uma antecipação do urbanismo funcionalista, um dos principais temas de discussão levantados pela Carta de Atenas do CIAM. Para Choay, a invenção do patrimônio urbano nasce da dialética entre história e historicidade, perceptível através de três diferentes abordagens da cidade antiga, identificadas com as três figuras a seguir: a figura memorial reconhecida na reflexão de John Ruskin ( ) a figura histórica identificada com a posição de Camillo Sitte ( ) a figura historial associada à contribuição de Gustavo Giovannoni ( ) A figura memorial, para Choay, refere-se à compreensão de Ruskin de que, mesmo sem as pessoas perceberem, as cidades desempenham um papel memorial, ou seja, têm o poder de enraizar seus habitantes no tempo e no espaço. Por considerá-las investidas de valor de reverência, Ruskin não admite que as cidades possam sofrer transformações. Por esse prisma, observa Choay, Ruskin pretende viver a cidade histórica no presente e acaba por encerrá-la no passado e assim perde de vista a cidade historial, a que está engajada no devir da historicidade. A figura histórica na obra de Sitte, conforme assinala Choay, assume um viés propedêutico, isto é, destaca os requisitos da cidade do passado como referência paradigmática para o desenho da cidade do futuro. Indaga sobre as possibilidades de se preparar o advento 47

51 de uma arte urbana ajustada ao devir da sociedade industrial. Quer extrair lições das cidades antigas, do seu estudo morfológico. Indica entre os aspectos relevantes: a diversidade de configurações, a irregularidade, a sinuosidade de traçados, a assimetria. A autora estabelece relação entre a pesquisa de Sitte para o território urbano e a pesquisa de Viollet-le-Duc para o campo da arquitetura explicitada em sua obra, Entretiens sur l architecture ( ). Essa é uma aproximação ignorada pelo conjunto dos historiadores, constata Choay. Ambos os estudos tem seus objetos organizados pela oposição entre passado (consumado) e presente (em gestação). Ambos os autores estabelecem antinomia entre razão e arte. Procuram saídas para uma postura racional, um método heurístico. 7 Se Viollet-le-Duc contribui com um aporte significativo à construção da figura histórica, Sitte fica na incerteza. Para Sitte, o papel das cidades do passado acabou, sua beleza plástica permanece. Sua lógica de preservação inscreve-se na atitude semelhante à conservação dos objetos de um museu. Sitte não militou pela preservação dos centros antigos. Outros o fizeram, divulgando sua obra. O papel desempenhado por Giovannoni será analisado a seguir em comparação com a conduta preponderante do urbanismo racionalista. A década de 1930: o panorama internacional O período entre as duas Guerras Mundiais, especialmente as décadas de , corresponde a um momento de grande prestígio do Movimento Moderno. Um prestígio que se reflete na autoconfiança dos arquitetos de explorar o potencial dos novos materiais, tecnologias e de afrontar as necessidades da população em geral. Acredita-se que a carência habitacional e outros problemas sociais das metrópoles industriais podem ser solucionados com os baixos custos obtidos com o emprego de formas mais simples, superfícies lisas, estruturas racionais e a industrialização dos diversos componentes da construção. 7 Choay, op. cit. p

52 A esse respeito, assim discorre Diane Ghirardo 8 : Embora marcadas por ênfases diferentes de um lado, o determinismo tecnológico e, de outro, a idéia de autoexpressão estética as idéias de muitos arquitetos modernistas mantiveram, como constante básica, a crença no poder da forma para transformar o mundo, ainda que geralmente vinculada a alguns objetivos amplos e vagos de reforma social. (...) Esses pressupostos constituíam o embasamento ideológico dos projetos urbanos de Le Corbusier para Paris, Marselha, e norte da África, mas também de seus projetos menores de residências particulares, como a Villa Savoye. A autora observa ainda que, em meados da década de 1930, a doutrina do Movimento Moderno é reinterpretada como classicismo monumental, especialmente com o patrocínio dos regimes totalitários, tais como: a Rússia soviética, a Alemanha nazista e a Itália fascista. Contemporaneamente, grandes expoentes do modernismo europeu, dissidentes dos governos autoritários, exilamse nos Estados Unidos e ganham o incentivo de importantes críticos como: Giedion, Pevsner, Zevi e Hitchcock, entre outros. Essa produção adquire, portanto, um significado mítico muito maior que suas realizações concretas. Ricardo Marques de Azevedo, em seu livro Metrópole: abstração, refere-se a essa vertente da crítica como historiografia apologética. Assinala que esses autores condicionam de modo direto a afirmação do modernismo às transformações da ordem social e econômica, assim como às inovações operativas trazidas pela revolução industrial. Pondera que, embora seja incontestável a ligação dos procedimentos modernos nas artes com as circunstâncias relacionadas à industrialização, as origens das propostas estão relacionadas às correntes do pensamento iluminista. As vanguardas artísticas e positivas corresponderiam, portanto, a um modo de 8 Em Arquitetura Contemporânea, uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p

53 elaboração conceitual que teria seu raciocínio herdado do Século das Luzes. Oportuno mencionar as colocações de William Curtis 9, a respeito da interpretação dos primeiros historiadores da arquitetura moderna que, segundo o autor, tendiam a isolar seu objeto de estudo, a simplificá-lo, a ressaltar sua singularidade, buscando mostrar como a nova criatura era diferente de suas antecessoras (produtos da continuidade das Beaux Arts de herança clássica, representantes dos estilos históricos e do ecletismo). Trata-se, conforme Curtis, de um mito cultivado por esses críticos a noção de que as formas modernas emergiam imaculadas de tais precedentes, uma visão que combina com o conceito progressista de história e que sugere um recomeço do zero. O autor observa que os arquitetos mais conscientes não rejeitam exatamente a influência da tradição, mas sua reutilização superficial. Destaca também que nesse período a própria arquitetura moderna passa a lançar as bases para uma nova tradição com seus próprios temas, formas e motivos. É importante para esse estudo considerar, além dos postulados de projeto atinentes ao edifício, as noções básicas que acompanham a inovação funcional da cidade pós-industrial, pela radical reformulação dos problemas de projeto e desenho urbano que implicam a criação lógica da metrópole moderna e, por contraposição, a negação da cidade histórica. São questões intimamente ligadas ao conflito existente entre as posturas que aportam valor na reformulação do modelo de cidade, alinhadas com o movimento moderno, e aquelas identificadas com a preservação do patrimônio. Ao tratar dessa questão, o urbanista Benedetto Gravagnuolo identifica na quadrícula urbana a mais adequada metáfora do funcionalismo, uma das mais significativas linhas de pensamento que orientam o projeto urbanístico do século XX. Nessa imagem, destaca o autor, encontram-se condensados traços marcantes dessa atitude mental: (...) desde o gosto pela abstração, até a extrema essencialidade de um racionalismo exibido na sua pureza 9 Em Arquitetura moderna desde Porto Alegre, Bookman, 2008, p

54 esquemática; desde a exigência de uma ordem sintática e estrutural subjacente à composição até o princípio do elenco e da separação dos elementos como metodologia de projeto. 10 Sabe-se que na raiz do funcionalismo está o desejo explícito de uma inovação radical. O resultado é a adoção da tabula rasa cultural que conduz à absoluta rejeição da tradição, entendida como bagagem de experiências e normas transmitidas de geração à geração. Desse modo, assume-se uma postura de projeto equivalente à solução de um teorema abstrato a ser enfrentado pela primeira vez, um recomeçar desde o princípio. Essa conduta reflete uma compreensão, por parte dos arquitetos e urbanistas, de que as condições do presente são absolutamente inéditas em relação ao passado e que, portanto, os precedentes históricos não devem ser tidos em conta para afrontar as novas aspirações. O ideograma da cidade nova termina, neste sentido, por lançar também a hipótese de um homem novo absolutamente racional, livre de laços sentimentais com o passado e feliz de viver no novo universo do triunfo da mecanização e na nova era projetada em direção a uma harmonia tecnológica futura e a uma imaginária igualdade social. 11 No panorama internacional, Le Corbusier é um dos mais convictos da pertinência da propagação do ideal desse esprit nouveau, conforme Gravagnuolo. É com essa convicção que o arquiteto defende a produção de casas em série, a máquina de morar, como forma de erradicação dos modelos superados do passado, para adotar um ponto de vista crítico e objetivo da casa-instrumento, uma casa saudável (inclusive moralmente) e bela conforme a estética dos instrumentos de trabalho que acompanham a nossa existência. 12 O ideograma abstrato de cidade moderna, conforme observa Gravagnuolo, tende a permanecer restrito ao plano teórico da utopia, 10 Em Historia del urbanismo en Europa , Madri: Akal, 1998, p. 333 (tradução do autor). 11 Idem, p Em Por uma arquitetura. São Paulo: Perspectiva,

55 ou acaba por se enraizar no humus das cidades históricas e na vocação morfológica dos lugares, ou então, limita-se a configurar certos fragmentos da cidade, uma vez que corresponde a um modelo tido como superado pelas teorias urbanas contemporâneas. [1] O estudioso Alan Colquhoun representa uma nova leva de críticos que começa a atuar na cena inglesa a partir dos anos 1960 e procura reexaminar a cultura arquitetônica moderna sob um enfoque mais rigoroso e distanciado em relação aos críticos engajados na defesa dos princípios do movimento moderno, mencionados acima. [1] Plan Voisin para Paris ( ). À esquerda, o projeto em relação à estrutura urbana existente; à direita, o projeto situado no contexto do centro da cidade (Ilustração de Euvre complete, , p. 91). Fonte: Thoenes et. al., 2003, p

56 Nesse sentido, Colquhoun 13, discorrendo sobre a contribuição de Le Corbusier, destaca não só a ruptura em relação à tradição, mas alerta para a tensão que se instaura na tentativa de mediar entre passado e presente: O discurso de Le Corbusier tentava sintetizar, no que dizia respeito ao problema da arquitetura, as contraditórias visões de mundo que eram correntes na época de sua formação intelectual. Para compreender essas visões de mundo e suas decorrentes ideologias e contradições, deve se voltar ao discurso arquitetônico do século XVII, no momento em que a tradição de Vitrúvio foi desafiada pela primeira vez (...) Ao dividir a beleza arquitetônica em dois tipos, beleza certa e beleza arbitrária, Claude Perrault introduziu no discurso arquitetônico a distinção epistemológica entre o conhecimento a priori e o conhecimento empírico, entre o signo natural e o signo arbitrário, distinção que ocorreu paralelamente na filosofia contemporânea e na teoria lingüística. O método empírico, assinala o autor, põe em dúvida as antigas certezas estabelecidas a priori, configuradas pela continuidade da tradição, mas coloca outras certezas no lugar daquelas. Relembra que uma importante vertente do século XVIII criara a convicção de que o gosto e o juízo estético fundamentavam-se em princípios naturais. No entender de Colquhoun, no final do século XIX, porém, essa visão modifica-se. De um lado, o historicismo tenta conciliar a verdade absoluta com a mudança e a noção de progresso histórico, de outro, o positivismo afirma que o conhecimento encontra sua comprovação e significado na ação com o mundo material. A leitura do texto de Colquhoun oferece alguns indícios de aproximação entre a experiência de Le Corbusier e a de Lúcio Costa sob um enfoque talvez pouco explorado: a combinação dos elementos da tradição com a adoção de formas puras e abstratas, tão caras ao racionalismo modernista. 13 Em Modernidade e tradição. São Paulo: Cosac & Naify, 2004, p

57 Como observa o autor, especificamente em relação a Le Corbusier, a tradição a ser preservada e transformada não é propriamente um conjunto de preceitos morais, mas acima de tudo um conjunto de exemplos concretos. O desenho é o meio de comunicação e registro desse conhecimento. A influência de Le Corbusier na obra dos arquitetos modernistas brasileiros, especialmente na de Lúcio Costa, é notoriamente reconhecida pela aplicação dos materiais e técnicas modernas, pelo emprego dos princípios de racionalidade e pureza das formas dos edifícios, pela aplicação dos preceitos do urbanismo racionalista, entre os quais, o zoneamento dos usos, a implantação dos edifícios isolados em meio ao verde, o uso de pilotis que possibilitam liberar o solo para favorecer o livre trânsito ao rés-do-chão. No entanto, não é recorrente a aproximação das experiências de ambos arquitetos a partir do interesse pela tradição e sua apropriação no desenvolvimento dos projetos de arquitetura. Assim como Lúcio Costa, que viaja por Minas Gerais e outros estados brasileiros e se encanta com os exemplos mais simples e genuínos de uma arquitetura tradicional desde elementos característicos, como os muxarabis, os alpendres, até os princípios construtivos usados também Le Corbusier demonstra interesse de investigação que se traduz no registro das casas da Turquia, de Pompéia, dos mosteiros de Monte Athos, entre outros exemplos. [2] [3] Como destaca Colquhoun, não se trata unicamente de interesse por tipos históricos: Seu baú mental está cheio de objetos que estão prontos para serem utilizados em um bricolage objetos que parecem ter sido todos gravados em sua memória em um momento de epifania. 14 O interesse de Le Corbusier pela arquitetura brasileira e a sua contribuição para a definição do projeto da sede do Ministério da Educação e Saúde, enquadram-se, na compreensão de Colquhoun, em um momento da década de 1930 em que o arquiteto francês volta 14 Idem, p

58 sua atenção ao desenvolvimento de culturas regionais e periféricas, como as do Rio de Janeiro e de Argel. Destaca o autor que é possível observar uma singular abordagem nos seus planos de cidades, em que abandona a geometria mais rígida, em favor de um urbanismo mais orgânico e geográfico, no qual gigantescas mega-estruturas lineares seguem os contornos naturais de uma natureza primordial. Nesse contexto internacional, merece atenção a figura de Gustavo Giovannoni ( ) por estabelecer uma conduta de contraponto à preponderante visão modernista da primeira metade do século XX, através de sua relevante atuação no campo específico da restauração. Formado em Engenharia em Roma (1895), dedicase ao ensino de arquitetura após freqüentar o curso de História da Arte de Adolfo Venturi ( ). Mantém ao longo da carreira esse dúplice interesse voltado às questões do projeto e da história, que o faz desempenhar o exercício profissional tanto na produção do novo, quanto em obras de restauro. No entanto, é na reflexão teórica no âmbito da restauração que adquire maior projeção e reconhecimento. Foi diretor da Faculdade de Arquitetura de Roma de 1927 a 35, período em que introduz a disciplina Restauro dos Monumentos, novidade absoluta no ensino de graduação. [2] Lúcio Costa, desenhos do casario de São Luís (MA). Fonte: Costa, 1995, p [3] Le Corbusier, rua de Istambul, croqui de viagem. Fonte: Colquhoun, 2004, p

59 É amplamente comentada, entre os estudiosos da conservação do patrimônio, sua participação no congresso responsável pela elaboração da Carta de Atenas de Conhecido seguidor de Camillo Boito, dedica-se a aprofundar a definição do chamado restauro científico ou restauro filológico, conceito elaborado na passagem do século XIX para o XX, conforme será analisado mais adiante. Entre os teóricos que se dedicam a rever a sua contribuição, destacam-se Françoise Choay e Guido Zucconi. Ambos ressaltam que, até os anos 1970, a importância de Giovannoni foi subestimada devido a paixões ideológicas e políticas. Trata-se obviamente, mais do que uma questão de postura crítica, de um problema de aceitação, pois em função de sua presumida ligação com o regime fascista, foi tido como adversário da arquitetura moderna. Nos anos 1990, como prova do renovado interesse, uma de suas principais obras, Vecchie Città ed edilizia nuova, ganha reedições em italiano e francês coordenadas por Franco Ventura e Françoise Choay, possibilitando assim a ampliação do conhecimento sobre sua reflexão. Sob coordenação crítica de Zucconi, em 1997 é relançado Dal Capitello alla città. Nessa obra, Giovannoni manifesta a intenção de afrontar diversos campos de atuação sob uma visão metodológica única: os problemas do restauro, com enfoque na ótica urbana e, por outro lado, os problemas urbanos, vistos na perspectiva de valorização não apenas dos episódios isolados, mas sobretudo do ambiente construído. Choay refere-se à polêmica travada entre Giovannoni e Le Corbusier, destacando a importância de seu posicionamento frente à visão modernista mais ortodoxa. A autora enfatiza aspectos atuais de suas reflexões sobre o urbanismo que evidenciam a validade de seu pensamento. São estudos que ressaltam o papel inovador das novas técnicas de transporte e de comunicação, das redes de infraestrutura, do urbanismo territorial, da cidade difusa, não mais circunscrita no espaço, destacando o caráter contemporâneo da cidade em movimento, como um organismo cinético. 56

60 Segundo Choay, Giovannoni prevê planos e estudos menos redutivos que os de Le Corbusier e do urbanismo racionalista funcionalista, pois revela uma abordagem mais complexa das questões urbanas a serem enfrentadas. Sendo assim, questiona a rigidez das diretrizes do zoneamento, manifestando-se a favor da convivência entre movimento, mutação e estabilidade. Além disso, rejeita a cisão entre centro histórico e núcleos de modernização, mas passa a considerar fundamental a comunicação multipolar. No que se refere ao campo específico do patrimônio, Giovannoni distingue dois valores essenciais que constituem os conjuntos urbanos antigos: o valor de uso e o valor museal. Este último é concebido a partir da identificação da cidade como objeto raro, precioso, equivalente às obras conservadas em museus, adquirido em correlação com a perspectiva de desaparecimento. Enfatiza, no entanto, a necessidade de relacioná-los entre si, o que implica entender o patrimônio urbano, não como objeto autônomo de disciplina própria, mas como elemento e parte do campo urbanístico. [4] Reestruturação urbana prevista pelo plano de 1931 com a abertura da via della Concilazione nas imediações da praça São Pedro. Vista aérea de 1925, em que se vê a Spina di Borgo ainda intacta. Fonte: Gravagnuolo, 1998, p

61 É com essa argumentação que se posiciona contrariamente às demolições previstas no âmbito do programa de transformações para a cidade de Roma, dos anos 1930, em pleno regime totalitário, segundo o qual Roma deve converter-se em capital-símbolo do fascismo. Da mesma forma, opõe-se às destruições da spina del Borgo, nas imediações da praça São Pedro. [4] Confirmação de sua postura mediadora em meio à polarização de opiniões que divide progressistas e conservadores é sua proposta do diradamento para as iniciativas de transformação previstas nos planos de remodelação e reabilitação urbana que incidem em tecidos urbanos consolidados. O conceito de diradamento evoca a metáfora de um desbastamento de uma floresta. Corresponde a uma medida conciliatória de articulação, desobstrução e recomposição da malha urbana em pontos estratégicos em que se impõem reformas, contendo as modificações radicais e as conseqüentes destruições. A década de 1930: o panorama nacional Os anos 1920 são marcados por movimentos de contestação em praticamente todos os campos da vida nacional. No âmbito político, a política conservadora do governo central acaba por encorajar movimentos de oposição que, juntamente com a crise econômica mundial de 1929, desencadeiam a Revolução de 1930 e o fim da chamada República Velha. Cria-se, a partir de então, uma conjuntura favorável à mais completa renovação cultural, o que coloca o Rio de Janeiro, enquanto capital do país, na condição de palco privilegiado da gênese da arquitetura moderna no Brasil. Nota-se, particularmente nesse contexto, uma incomum combinação de tendências: ao mesmo tempo em que se verifica um significativo impulso ao Movimento Moderno, dá-se a criação de uma legislação de tutela do patrimônio cultural. Assim, o debate sobre a conservação, no cenário brasileiro, surge defasado em relação às primeiras manifestações européias a esse respeito. Além disso, aqui se desenvolve num contexto de conciliação de posições aparentemente incompatíveis: a de modernização e a de preservação das heranças culturais. 58

62 Como evidencia a análise das visões de Haussmann e de Sitte, de meados do século XIX, há um confronto de duas tendências: uma pela modernização e outra pela conservação. No Brasil, no início do século XX, sucede algo diferente: a emergência dos temas da preservação acontece paralelamente à afirmação da modernidade, ambas enunciadas pelos mesmos protagonistas, numa perspectiva de interação e não de contraposição de tendências, como havia se verificado anteriormente na Europa. Isto significa que o Movimento Moderno expressa, no Brasil, em consonância com o desenvolvimento das vanguardas européias, os anseios de inovação, de criação de uma nova linguagem estética. Essa aspiração ao novo, no entanto, convive com uma necessidade particular de reconfigurar a identidade nacional e de resgatar as raízes da cultura popular e com um sentido de continuidade e reelaboração da tradição. Confirmação dessa conduta é a trajetória de figuras centrais como Mário de Andrade e Lúcio Costa. O primeiro foi responsável pela elaboração do plano de proteção ao patrimônio cultural, juntamente com a criação do SPHAN (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Lúcio Costa, por sua vez, esteve à frente, ainda que por breve tempo, da modernização da Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro ( ) e liderou a equipe do projeto pioneiro do edifício do Ministério da Educação e Saúde em 1936, o mesmo ano em que foi chamado a assumir a direção da Divisão de Tombamento do SPHAN. O edifício emblemático da modernidade é também sede do Serviço do Patrimônio Artístico Nacional. Coube ao ministro Gustavo Capanema, titular do Ministério da Educação e Saúde, entre os anos de 1934 e 45, a tarefa de retomar as discussões relativas à preservação do patrimônio cultural, até então desenvolvidas de modo descontínuo e pouco conclusivo do ponto de vista da legislação e tutela efetiva. Dois ícones dessa condução que concilia conservação e modernidade são o Museu das Missões e o edifício do MES. [5] [6] 59

63 O desafio desse período inicial, conhecido como fase heróica 15, é enorme, ainda que de início, a atuação do IPHAN e o uso do expediente do tombamento, como instrumento necessário de proteção, tenha se voltado especialmente aos bens de interesse nacional representativos do período colonial. A elaboração dos inventários, seguida dos levantamentos e das propostas de tombamento, embora restritos às obras de valor excepcional, diante da vasta extensão do território nacional, por si só, configuram um volume muito grande de trabalho. A equipe recém constituída, não tendo experiência acumulada, conta acima de tudo com dedicação e entusiasmo 16. [5] Prédio do ministério da Educação e Saúde, R.J., Projeto de Lúcio Costa com Affonso Eduardo Reidy, Carlos Leão, Ernani Vasconcellos, Jorge M. Moreira e Oscar Niemeyer. [6] Museu das Missões, R.S., Projeto de Lúcio Costa com colaboração de Lucas Mayerhofer e Paulo Thedim Barreto. Fonte: G. Wisnik, Lúcio Costa. São Paulo: Cosac & Naify, A locução fase heróica é também empregada usualmente em referência ao desenvolvimento do modernismo em sua fase inicial, em que se reconhece, na ação dos arquitetos, uma espécie de militância em favor de causas inquestionáveis. 16 Vários estudos têm sido elaborados sobre a preservação no Brasil e o papel dos órgãos de tutela. Entre eles destaca-se Maria Cecília Londres Fonseca. O patrimônio em processo: trajetória política federal de preservação no Brasil. UFRG, Minc, IPHAN, 1997, que aborda as políticas da gestão do ministro Gustavo Capanema e o diálogo com intelectuais do movimento moderno. 60

64 Carta de Restauro de Atenas (1931) A recomendação da Conferência Internacional de Atenas reafirma as colocações já enunciadas por Camillo Boito 17 em 1884, como princípios fundamentais do restauro na acepção moderna do termo. Reflete a posição de destaque de Gustavo Giovannoni 18 seguidor de Boito e a sua capacidade de conduzir as discussões a uma posição consensual que resultaria mais tarde na formulação do chamado restauro científico. Este compreende a superação das visões românticas consubstanciadas nas duas distintas condutas que dominaram os debates da primeira metade do século XIX: a estilística de Viollet-le-Duc e a anti-intervencionista de John Ruskin. Um importante aspecto contido no documento é a preocupação com a legislação de cada país e com a necessidade de se estabelecer princípios comuns entre os signatários, ainda que adaptados às circunstâncias locais. Uma das questões mais controversas, nesse campo, corresponde à conciliação dos interesses públicos e particulares. Destaca-se ainda a necessidade de colaboração internacional no sentido de salvaguardar os monumentos de interesse histórico, artístico ou científico. Os principais tópicos da pauta do encontro são tratados conforme segue: valorização dos monumentos: recomenda-se o respeito ao caráter e à fisionomia das cidades, sobretudo nas vizinhanças dos monumentos antigos, no que se refere à construção de novos edifícios. 17 Camillo Boito ( ) é arquiteto italiano cuja formação e experiência situa-se na confluência de dois campos: o da arte do passado e o da técnica moderna. Formula diretrizes para a conservação de monumentos históricos, apresentadas em Congressos que consistem em uma síntese elaborada a partir da reflexão sobre as posturas dominantes na primeira metade do século XIX. Consultar: Os restauradores. Conferência feita na Exposição de Turim em 7 de junho de Trad. Paulo M. Kuhl e Beatriz M. Kuhl. Cotia: Ateliè Editorial, Gustavo Giovannoni ( ) arquiteto italiano cuja contribuição foi menosprezada por muito tempo, seja por motivos políticos (injusta acusação de participação no regime fascista), seja por ter polemizado com Le Corbusier, arquiteto de prestígio internacional. 61

65 materiais de restauração: aprova-se o uso de recursos técnicos e materiais modernos, especialmente o concreto armado, para os casos de consolidação estrutural. deterioração dos monumentos: constata-se a agressividade dos agentes atmosféricos, manifesta-se a dificuldade de se formular regras gerais e recomenda-se a troca de informações e publicação de trabalhos realizados nessas áreas. técnica da conservação: antes de se proceder à restauração, sugere-se analisar escrupulosamente a existência de patologias; para as ruínas destaca-se a tendência à recolocação dos elementos originais encontrados (anastilose), sempre que possível e, ao mesmo tempo, recomenda-se a diferenciação dos novos materiais de completamento. colaboração internacional: estima-se a importância de ações educativas de sensibilização e divulgação do interesse de preservação dos testemunhos de toda a civilização; afirma-se a necessidade de constituição de inventários devidamente documentados a serem realizados por instituições competentes; considera-se desejável que instituições qualificadas colaborem entre si e manifestem publicamente o interesse em favorecer a conservação dos monumentos de arte e de história; indica-se para esse fim, a Comissão Internacional de Cooperação Intelectual da Sociedade das Nações e o Escritório Internacional de Museus. Uma avaliação geral do conteúdo permite destacar o foco das principais preocupações enfrentadas naquele momento: os aspectos legais, os técnico-construtivos e os princípios norteadores da ação de conservação. O documento declara a necessidade de criação e fortalecimento de organizações nacionais e internacionais, de caráter operativo e consultivo, voltadas à preservação e restauro do patrimônio. Recomenda a criação de legislação normativa a nível nacional, que encontre respaldo e ressonância nos fóruns 62

66 internacionais. A importância da legislação é sobretudo para garantir a prevalência do direito coletivo sobre o individual e, ao mesmo tempo, mediar eventuais conflitos de interesses, de modo a encontrar a menor resistência possível aos sacrifícios impostos aos proprietários de bens tombados. A eleição dos objetos de interesse está subentendida nos termos empregados para nomear o patrimônio: monumentos, monumentos antigos, monumentos de arte e de história, estatuária e escultura monumentais, monumentos históricos, obras-primas da civilização, testemunhos de toda a civilização. O entendimento de patrimônio cultural é inegavelmente associado aos bens de valor excepcional, de caráter monumental. A referência ao conjunto arquitetônico, textualmente expressa nos termos da fisionomia das cidades antigas e das vizinhanças dos monumentos antigos, revela uma preocupação de manutenção de uma ambiência urbana característica, quando da inserção de elementos novos em uma paisagem antiga consolidada. O edifício novo a ser implantado no tecido urbano antigo, deveria, segundo recomendação formulada pelo documento, curvar-se à uniformidade do conjunto e respeitar seu caráter peculiar, suas perspectivas pitorescas. [7] Condena-se a remoção e deslocamento arbitrário de peças e obras dos seus lugares de origem. A mudança de local deve ser feita única e exclusivamente por motivo de conservação. Priorizam-se as ações de conservação e manutenção, observa-se uma tendência a abandonar as reconstituições integrais. Sendo assim, as resoluções do documento recomendam o respeito à autenticidade dos elementos originais e a diferenciação dos novos elementos introduzidos para completar partes ou lacunas. Aqui convém enfatizar que é justamente essa orientação o principal ponto de contraste com a conduta anteriormente aceita do restauro estilístico. Inúmeras experiências realizadas pelo próprio idealizador, Viollet-le-Duc, acabam por difundir a condução de obras de restauro como reconstituição de um estado hipotético original que valoriza a unidade de estilo. 63

67 A Carta de 1931, ao contrário, sugere o respeito às transformações ocorridas no decorrer do tempo e à autenticidade dos materiais originais. Exige, portanto, a distinção dos novos materiais aplicados à restauração e condena, de conseqüência, qualquer tentativa de reconstrução, falseamento ou imitação do aspecto primitivo. Importante notar, entretanto, que a exigência de respeito à autenticidade da matéria original e a decorrente diferenciação dos materiais e elementos novos a serem acrescentados nas intervenções de restauro, limita-se à arquitetura, não se aplicando, portanto, à intervenção urbana. Vale ressaltar que as deliberações que valorizam a continuidade do conjunto urbano, quando da construção de edifícios novos, podem condicionar a produção do simulacro, do cenário artificial, no lugar de um conjunto urbano autêntico, em que o novo se distingue e dialoga com o antigo. [7] Edifício do Hotel Danieli Excelsior, Veneza, Um exemplo de moderno ambientado. Fonte: Strumenti 6, 1993, p

68 Tanto é que as revisões do restauro científico conduzidas pelo restauro crítico 19 e sua mais recente atualização, a teoria de Brandi, já consideram superada a proposição de uma arquitetura neutra que desaparece como presença e individualidade para não comprometer a uniformidade da paisagem dos sítios históricos consolidados. Carta de Atenas - CIAM (1933) Como já dito, este documento corresponde às resoluções do IV CIAM, inicialmente programado para realizar-se em Moscou, em razão de a União Soviética constituir então território privilegiado para os programas da nova arquitetura. Precede a realização desse evento, sempre em Moscou, em 1931, o concurso para escolha do projeto do Palácio das Nações. A premiação de projetos alinhados com princípios acadêmicos, ao invés de prestigiar soluções inovadoras, comprometidas com as idéias modernistas, cria uma divisão entre a posição do júri e a dos arquitetos participantes 20. A relação entre os profissionais e o Estado Soviético sofre um significativo desgaste. Diante da impossibilidade de realização do congresso em Moscou, decidiu-se por um local insólito: o congresso aconteceria a bordo do navio Patris II, com o apoio do governo grego. O documento sintetiza a visão do Urbanismo Racionalista, também chamado Urbanismo Funcionalista. Reúne as contribuições de praticamente um século de reflexões, desde o socialismo utópico até a Bauhaus, incorporando as propostas de William Morris, Tony Garnier, Ebenezer Haward, entre outros Vertente do restauro elaborada por Renato Bonelli e Roberto Pane, desenvolvida nas décadas de 1940 e 50, a partir das transformações trazidas pela II Guerra Mundial. Consultar: Verbete restauro em Enciclopedia Universale dell Arte, v. XI. Novara: Istituto Geografico de Agostini, A análise dessa posição será enfrentada no capítulo seguinte, referente à atuação de Lina Bo Bardi. 20 Situação semelhante já tinha sido criada em Genebra, em 1927, em ocasião do Concurso internacional de arquitetura para o projeto do Palácio da Sociedade das Nações. 21 A esse respeito consultar: BENEVOLO, L. História da arquitetura moderna. Tradução de Ana M. Goldberger. São Paulo: Perspectiva,1974 e CHOAY, F. Tradução de Dafne N. Rodrigues. O urbanismo. Utopias e realidades. Uma antologia. São Paulo: Perspectiva,

69 Sabe-se que os tópicos relativos ao patrimônio histórico foram introduzidos por solicitação dos delegados italianos. Os principais aspectos discutidos na Carta, defendidos pela vertente funcionalista, eram: a necessidade de planejamento regional e intra-urbano a implantação do zoneamento, através da separação de usos em zonas distintas, de modo a evitar o conflito de usos incompatíveis a submissão da propriedade privada do solo urbano aos interesses coletivos a verticalização dos edifícios situados em amplas áreas verdes a industrialização dos componentes e a padronização das construções. O Estado e a administração pública, segundo a ótica do documento, são organismos neutros que, voltados à realização do bem comum, pautariam sua ação pela suposta racionalidade inerente ao conhecimento técnico e científico. O conteúdo específico referente às questões do patrimônio histórico das cidades é sintetizado como segue: destaca-se que a vida e a alma das cidades manifestam-se nas obras e nos traçados, constituindo testemunhos do passado respeitados por valores históricos, sentimentais e artísticos; os que os detêm são responsáveis pela proteção e transmissão dessa herança ao futuro assinala-se que nem tudo o que é passado, no entanto, tem por definição direito à perenidade; é necessário saber reconhecer e discriminar as obras que se mantêm vivas, distinguindo daquelas presenças que lesam os interesses da cidade considera-se importante conciliar a preservação com as decisões de renovação: em casos de construções repetidas podem ser conservados alguns exemplares a título de 66

70 exemplificação; em outros casos poderá ser isolada uma única parte como lembrança de um valor real (o restante modificado para atender a novos usos); em casos excepcionais, recomenda-se transplantar elementos incômodos à configuração de novos traçados afirma-se que o culto do pitoresco e da história não deve ter primazia sobre a salubridade da moradia diante da prioridade do redesenho urbano, aponta-se a seguinte ressalva: em casos específicos de grande interesse (verdadeiros valores arquitetônicos, históricos ou espirituais) deve-se modificar o projeto, adaptá-lo, mudando o curso das vias de circulação, ao invés de demolir antigas presenças marcantes defende-se a criação de superfícies verdes ao redor de monumentos históricos com a demolição de conjuntos de casas insalubres e cortiços que estejam ao redor; nesses casos, aceita-se como inevitável a destruição de ambiências seculares condena-se o emprego dos estilos históricos para as novas construções: copiar servilmente o passado é condenar-se à mentira, é erigir o falso como princípio ; tal procedimento, ao invés de garantir a pureza de estilo acaba por desacreditar os testemunhos autênticos. A análise da Carta de Atenas do CIAM possibilita identificar afinidades entre a conduta de Haussmann e as propostas do Urbanismo Racionalista. As idéias de Camillo Sitte, ao contrário, serão duramente criticadas por Le Corbusier, em nome dos CIAM, identificadas com um espírito passadista e retrógrado. A preservação da herança do passado, para o CIAM, é uma espécie de concessão que se faz à história. Reconhece-se que há testemunhos históricos que não devem ser desprezados, mas a avaliação é altamente seletiva e observa os mesmos critérios do 67

71 século XIX: a observância ao bem monumental isolado do contexto urbano em que se insere. A arquitetura de caráter ordinário e vernacular em mau estado de conservação, segundo esses parâmetros, é tida como precária e insalubre, inadequada aos novos padrões sanitários. Da mesma forma que ainda não se considera a relevância do tecido urbano, também não se aventa a possibilidade de recuperar áreas degradadas. Não sendo prevista a reabilitação urbana, a solução de saneamento proposta corresponde à demolição desses conjuntos. O cotejo dos documentos A principal distinção entre as duas Cartas de Atenas aqui analisadas diz respeito aos objetivos específicos de cada um dos documentos. A Carta de 1931 corresponde ao primeiro documento internacional redigido por especialistas da restauração, com o propósito de estabelecer diretrizes gerais de orientação. A Carta de 1933 (CIAM), por sua vez, corresponde às resoluções de um congresso reunido para discutir e promover os novos rumos para a cidade moderna. Nesses termos, estabelece como condição para a preservação dos testemunhos do passado a não contrariedade às novas posturas do urbanismo funcionalista. Reflete então uma tensão cultural que se traduz na valorização da aspiração ao novo para se sobrepor ao respeito do antigo. O avanço da Carta de 1933 (CIAM) em relação à de 1931, no que se refere à condenação ao emprego dos estilos históricos para a construção de novos edifícios em sítios históricos, é decorrência natural da afirmação dos modelos estéticos modernistas. Uma afirmação que se traduz em relativa indiferença à história e à tradição, a uma tentativa de dissolver e abandonar a crença nas preceptivas artísticas que vigoraram até então. A contraposição entre o novo e o antigo circunscreve-se nessa ordem de raciocínio. O novo é identificado com os valores assertivos dos tempos hodiernos de industrialização e modernidade. [8] Na atualidade entende-se que a posição da Carta de 1931, quanto à aceitação das ambientações e simplificações dos edifícios novos a serem implantados nos conjuntos antigos, tenha sido equivocada. 68

72 A defesa de uma pseudo neutralidade nas ações de reintegração do tecido urbano, em nada contribuiria para a qualidade da intervenção, ao contrário, poderia ter comprometido a autenticidade do conjunto a preservar. Da mesma forma que se critica hoje a supervalorização do novo sobre o antigo, segundo a visão dos modernistas, é passível também de crítica a preponderância intransigente do passado sobre o presente, conforme sugerem as recomendações da Carta de 1931, nesse item particularmente. Desdobramentos nas discussões atuais A criação do monumento histórico, no século XIX, não implicou a legitimação imediata do patrimônio urbano como extensão e continuidade do primeiro conceito. Com certeza, contribui para esse descompasso o fato de os estudos históricos privilegiarem a produção arquitetônica de caráter exemplar em relação aos estudos urbanos e à pesquisa morfológica, ou mesmo em relação à arquitetura do cotidiano e sua relação com o espaço urbano. Como destaca Choay 22, por muito tempo a cidade foi vista unicamente pelas suas instituições, carecendo inclusive de dados essenciais para a investigação e disponibilização de informações sobre o território urbano tais como cartografia e levantamentos cadastrais. O próprio desenvolvimento disciplinar do urbanismo, embora favoreça o estudo dos temas urbanos, privilegia o enfoque do planejamento das cidades novas e da renovação dos tecidos urbanos antigos. Exemplo patente dessa orientação é o plano de modernização de Haussmann para Paris, de meados do século XIX, que privilegia os requisitos técnicos de mobilidade, higiene e adota uma visão estética que identifica qualidade na uniformidade da paisagem urbana, associada ao destaque focal para monumentos de caráter excepcional. A ampliação da noção de patrimônio, ocorrida a partir dos debates da segunda metade do século XX a ser examinada no capítulo a seguir determina que se incluam nos elencos de bens a se preservar os edifícios mais modestos, a arquitetura vernacular, edifícios mais recentes, conjuntos urbanos e rurais, além do conjunto 22 CHOAY, op. cit. p

73 construído (compreendido em suas relações com os espaços abertos) e da paisagem natural, aspectos já enunciados por Gustavo Giovannoni. Com essa visão mais abrangente muda a compreensão da relação entre o bem cultural e o espaço físico em que este se insere. É estabelecido um vínculo indissociável entre o edifício de interesse histórico e estético e o ambiente em que se situa. Desloca-se o foco do monumento considerado isoladamente para a noção de conjunto urbano, sítio histórico. Consideram-se portanto as relações espaciais entre a construção e os espaços livres, os gabaritos dos edifícios construídos e os traçados urbanos. A Segunda Guerra Mundial apresenta-se como um dos fatores decisivos para a revisão das posturas rigorosas e inflexíveis do restauro científico sintetizado por Giovannoni: exige a reformulação da teoria e dos procedimentos práticos na área de preservação e restauro. A magnitude da destruição impõe a reavaliação da intervenção, seus critérios, sua duração, seus custos e métodos. A perda de referenciais insubstituíveis leva a uma maior valorização de aspectos simbólicos, afetivos, frente a avaliações mais objetivas de valor artístico e histórico. [8] Plan Voisin para o centro de Paris. Le Corbusier, Maquete da proposta. Fonte: Lopes et. al., 2006, p

74 A Carta de Veneza 23, como análise a seguir, será o documento a recolher e sintetizar essas novas contribuições e reflexões. Se a Carta de 1931 prioriza os aspectos ligados à história, ou seja, os aspectos documentais do bem cultural a ser conservado, a Carta de Veneza destaca em condição de igualdade os valores estéticos e históricos. Considera-se importante atentar à tendência manifestada em tempos mais recentes de diluir as separações entre as ações de preservação do antigo e a construção do novo. Entre os vários fatores que concorrem para essa visão destacam-se os seguintes: a ampliação do universo de ação e interesse do patrimônio cultural a necessidade de propor novos e diferentes usos para as construções antigas, em condição de abandono, que apresentem um programa de uso obsoleto a decisão de ampliar um edifício antigo de valor documental ou arquitetônico, em que a aproximação de elementos construtivos novos e antigos passa a ser inevitável. Hoje entende-se como patrimônio arquitetônico tudo aquilo que concerne à relação sinérgica entre o edifício, a sua história, o seu uso e o contexto urbano no qual se insere. A intervenção deve levar em conta as ligações entre todos estes elementos para que o objeto de interesse não seja considerado isoladamente, mas associado ao conjunto do qual faz parte. O arquiteto contemporâneo é chamado a posicionar-se como intérprete dos projetos que a sociedade do seu tempo formula e deseja. As noções de memória e patrimônio, articuladas entre si, afirmam-se como conceitos que emanam do coletivo, por outro lado, as exigências por transformações impõem-se em tempos cada vez mais breves. 23 Documento deliberado pelo II Congresso Internacional de Arquitetos e técnicos de Monumentos Históricos em 1964, reunido em Veneza, e referendado pelo ICOMOS Conselho Internacional de Museus no ano seguinte. Seu conteúdo será objeto de análise no capítulo referente à atuação de Lina Bo Bardi. 71

75 A fronteira entre os termos restauro e projeto (e relativas intervenções) tende a diluir-se, a dissolver-se. O restauro vem sendo chamado a intervir, deixando para trás seu caráter meramente conservativo, deve modificar, requalificar, para atender as exigências do presente, aproximando-se da ação de projeto. Da mesma forma, a intervenção de projeto vem sendo chamada a considerar as preexistências, a se contextualizar, a tirar partido da experiência histórica, a se ancorar nos valores do passado e a conviver e compartilhar o acúmulo de experiências, a avaliar cada demolição, cada destruição. Nesse sentido, é quase impraticável a página em branco, o território livre, o campo aberto à franca experimentação. O peso do passado, o consenso do seu valor, tendem a impor-se ao arquiteto desbravador de novos caminhos, obrigando-o a encarar sua ação como poética de construir no construído. Se a arquitetura é produto tanto da memória como da invenção, então as ações de preservar o antigo e construir o novo não podem ser consideradas antitéticas. É necessário, ao contrário, reconhecer que estratégias de preservação precisam estar absolutamente entrelaçadas com as dinâmicas de inovação. Improcedente, portanto, a defesa de posições extremadas, como se fosse possível preservar tudo, ou seu contrário, destruir tudo para construir o novo. 72

76 Bonnefantenmuseum em Mastrich (Holanda), Fonte: revista Domus 762, p. 12. Museu de Castelvecchio em Verona (Itália), Fonte: Los, 2002, p. 82.

77 Os anos 1960: o anúncio da conciliação entre memória e invenção A discussão da área específica: antecedentes e desdobramentos Os anos 1960 são aqui analisados principalmente nos aspectos ligados à ampliação e naturalização da noção de preservação, que supera a valorização do monumento histórico como era entendido no século XIX, para incorporar o valor documental da arquitetura ordinária e da própria morfologia das cidades: reflexão desenvolvida em concomitância à formulação da revisão crítica do movimento moderno. As discussões da atualidade concentram-se na tendência à conciliação entre restauro e invenção, fenômeno que ocorre a partir da própria ampliação do corpo constituído como patrimônio a se preservar. Um alargamento conceitual que acaba por não estabelecer diferenças significativas entre o bem cultural de valor inestimável e a comum preexistência. No domínio disciplinar da conservação dos bens culturais a Carta de Veneza (1964) reafirma as recomendações da Carta de Restauro de 1931 quanto à conservação das sobreposições das diversas épocas, desde que não deturpem ou descaracterizem o objeto de intervenção. Da mesma forma, ratifica a compreensão de que os elementos de recomposição de lacunas, ou acréscimos indispensáveis em uma ação de restauro arquitetônico, devem ser reconhecíveis e ter a linguagem do próprio tempo. Confirma-se a tendência de internacionalização das discussões, através da atuação de organismos internacionais, como a UNESCO, e a conseqüente difusão da consciência de conservação que extrapola os bens de caráter excepcional, para incluir a arquitetura do cotidiano, o traçado urbano, a fisionomia das cidades, além dos bens ambientais. Outra conseqüência importante da difusão desses temas é a ampliação do público interessado nesses debates. 74

78 As deliberações desse documento, efetivamente incorporam a releitura das posturas precedentes elaborada pelo restauro crítico, proposta por Roberto Pane e Renato Bonelli em meados dos anos 1940, assim como as atualizações representadas pela contribuição de Cesare Brandi e sua Teoria del restauro (1963). São essas credenciais que contribuem para que esse documento, ainda hoje, se situe em uma posição de destaque. Esses assuntos são tratados especialmente no capítulo que enfoca a atuação de Lina Bo Bardi. A respeito das posições mais recentes, pode ser conveniente distinguir, como observa Giovanni Carbonara 1, o que diferencia o restauro das intervenções de outra natureza. Assim se estabelece com maior clareza o que não é restauro: não é ato arbitrário realizado em detrimento de um bem, não é seguramente a pura e simples recuperação do aspecto visual e da funcionalidade da obra; não é o ato de refazer ou reconstruir; não é a manutenção, nem a prevenção ações importantíssimas, mas que se enquadram no ato de conservação não é a requalificação, ou ações equivalentes de reutilização ou reciclagem, tão em voga na atualidade, que comportam adaptações indiscriminadas no edifício preexistente. Essas podem constituir um meio a ser empregado com comedimento, mas fazendo uso do exercício crítico, cuja motivação é assegurar o reconhecimento dos valores figurativos e documentais do bem submetido à intervenção. Não podem, no entanto, constituir propriamente a finalidade da ação de preservação, mesmo porque não esgotam em si toda a problemática do restauro. Entre as definições modernas de restauro que permanecem atuais, de acordo com Carbonara 2, destacam-se, com indicação de data e autor, conceitos formulados antes e depois dos anos 1960: 1938, G. C. Argan: O restauro (...) é hoje usualmente considerado como atividade científica e precisamente como indagação filológica dirigida a reencontrar e recolocar em evidência o texto original da obra, eliminando alterações e 1 Em Avvicinamento al restauro...nápoles: Liguori, 1997, pp , dedica-se ao tema das definições atuais de restauro. Ao lado de importantes definições, elenca uma série de ações que não podem ser confundidas com o restauro, p Idem, pp As definições acima mencionadas correspondem a conceituações formuladas por importantes teóricos do ambiente cultural italiano. (Tradução da autora). 75

79 sobreposições de qualquer gênero até consentir que se obtenha, daquele texto, uma leitura clara e historicamente precisa. 1959, P. Philippot: O restauro, visto em espécie como problema de reintegração de lacunas, é um ato de interpretação crítica, destinado a restabelecer uma continuidade formal interrompida, (...) desde que reste latente na obra mutilada aquilo que perdeu. Tal interpretação crítica não se limita a um juízo verbal, mas se concretiza em ato (...) sem alteração do original. 1963, G. Urbani: No restauro têm parte preeminente as operações de caráter estritamente conservativo, voltadas a preservar da degradação, natural ou ocasional, os materiais que concorrem à construção física das obras de arte. 1963, R. Bonelli: O restauro entendido como avaliação crítica, se identifica com a história artística e arquitetônica. 1981, M. Dezzi-Bardeschi: (O restauro) deve operar com o único fim de assegurar a conservação da autenticidade da obra, que é constituída de todos os aportes relativos à matéria que lhe são estratificados no próprio corpo e que justamente representam (...) aquele insubstituível e irrepetível hic et nunc que caracteriza e distingue em modo específico aquele e não outro artefato: perdido ou comprometido, do qual é perdido ou comprometido o texto, o valor de testemunho e a própria credibilidade do objeto. O próprio Carbonara apresenta sua definição através do confronto entre restauro e conservação : (...) restauro entendido, em primeira definição, como intervenção voltada à obra e também como sua eventual modificação, conduzida sempre sob um rigoroso controle histórico-crítico; conservação, como obra de prevenção e salvaguarda, a ser atuada exatamente para evitar que se 76

80 deva intervir com o restauro, o qual constitui sempre um evento traumático. 3 O restauro não pode, portanto, ser reduzido à mera operação prática, mas corresponde obrigatoriamente a ato de cultura e especificamente de compreensão histórico-crítica, antes de ser visto como procedimento técnico. O autor justifica o uso atual do termo monumento e, por extensão, a expressão restauro dos monumentos, pelo fato de terem passado por um processo de renovação semântica e por uma equivalente atualização. Nesse sentido, Carbonara defende que o emprego da palavra monumento pode atender à ampliação da totalidade dos bens culturais e arquitetônicos hoje compreendidos como patrimônio desde obras mais modestas, exemplos da chamada arquitetura menor, até expressões áulicas e nobres de arquitetura maior. Com base nessas considerações, Carbonara endossa o restauro como ato decorrente do prévio reconhecimento de valor: (...) há uma série de objetos que possuem um valor particular, artístico ou documental, estético ou histórico, porque são considerados pela cultura atual como obras de arte, como testemunhos de história ou também como as duas coisas juntas. Em cada caso como objetos de ciência, ou em outras palavras, como objetos de cultura, testemunhos materiais com valor de civilização, bens culturais, conforme o termo mais difundido e consolidado. 4 Resta analisar, de modo geral, em que medida há solidariedade entre as reflexões do campo específico da preservação do patrimônio construído e a visão mais ampla da crítica arquitetônica, especialmente aquela interessada no diálogo com os temas da memória e da análise histórica. 3 CARBONARA, op. cit., p. 23 (tradução da autora). 4 Idem, pp (tradução da autora). 77

81 As preexistências e a intervenção contemporânea Solà-Morales é referência significativa da crítica contemporânea. Em seu livro Intervenciones associa o conceito de intervenção arquitetônica aos projetos de arquitetura que lidam com preexistências no contexto da atualidade. Uma das primeiras questões levantadas pelo autor é a de que a relação existente entre a nova proposta e a arquitetura preexistente depende dos valores culturais e dos significados atribuídos tanto ao antigo como ao novo 5. Toda intervenção cria relações inevitáveis com a obra existente, seja de ordem visual que espacial, além disso elabora uma interpretação do material histórico com que intervém. Adverte que seria um equívoco pensar em uma doutrina permanente, ou mesmo em uma definição científica para a intervenção arquitetônica. Até aqui suas colocações não estabelecem claro conflito com as posições dos especialistas acima assinaladas. Porém, quando Solà-Morales observa que diante da impossibilidade de se definir uma doutrina permanente, não resta outra possibilidade que atuar caso a caso, convém destacar uma sutil distinção entre sua posição e a de Carbonara, referência do campo do restauro. Para Carbonara, o exame do caso a caso está diretamente vinculado aos parâmetros dos postulados fundamentados no campo disciplinar e não ligado exclusivamente ao arbítrio do arquiteto projetista. Solà-Morales, ao comentar a tendência de se estabelecer uma relação de contraste entre o velho e o novo, faz menção aos projetos urbanos das décadas de 1920 como o projeto de Mies van der Rohe para a Alexaderplatz (1921), ou o Plan Voisin de Le Corbusier (1925) que se valem das técnicas de fotomontagem e de desenhos em perspectiva para acentuar os contrastes entre a antiga e a nova arquitetura. Associa esse procedimento à recusa em relação ao pastiche histórico que saturou a produção do século XIX e ao concomitante apoio ao Zeitgeist (espírito do tempo) de matriz 5 SOLÀ-MORALES, I. Intervenciones. Barcelona: Gustavo Gili, Em texto cujo título é Del contraste a la analogia. Transformaciones en la concepción de la intervención arquitectónica, pp

82 hegeliana. Como visto no capítulo referente à década de 1930, essa conduta prevaleceu naqueles anos. O autor enfatiza que atualmente esse contraste entre velho e novo, antes proposto como único princípio estético a ser adotado, é coisa do passado. Destaca que esse conceito passa por uma mudança relacionada à percepção pela qual a arquitetura estabelecida define sua importância dialética no contexto da cidade metropolitana. Observa que a partir dos anos 1960, passa a vigorar uma nova e mais complexa relação entre a sensibilidade contemporânea e a arquitetura do passado. Sinaliza que, de certo modo, essa nova percepção já tinha sido anunciada nas reflexões de Alois Riegl, no início do século XX, referentes à apreensão de uma natureza mais intuitiva dos critérios de valoração do bem cultural por parte do observador moderno 6. Um exemplo dessa postura mais recente, segundo Solà-Morales, é a atuação de Giorgio Grassi no Castelo de Abbiate Grasso (1970). O crítico menciona que o arquiteto cria uma base metodológica para a intervenção a partir da própria arquitetura do edifício existente, ou seja, a partir da interpretação de suas leis internas. Não há dúvidas de que a metodologia desenvolvida por Grassi, para as intervenções em preexistências, tem ligações com os princípios empregados por Rossi, pois ambos participam do mesmo ambiente, integram o grupo Tendenza, e condividem a defesa das mesmas teorias de análises tipológicas que inspiram os seus respectivos projetos de arquitetura. Sob esse ponto de vista, o projeto contemporâneo surge como compromisso entre os modos peculiares à tradição moderna, que se baseiam na independência da velha e da nova estrutura, e os conceitos tipológicos que criam uma correlação mútua capaz de dar certa unidade ao conjunto submetido à intervenção. Sincronia, similaridade, mas não identidade, ou eliminação completa da diferença entre o novo e o antigo. Esse mesmo método é empregado por Rafael Moneo, no sentido de seguir as pistas dadas pelo próprio edifício, percorrer sua lógica de composição e de organização espacial, para então estabelecer uma tênue analogia entre a preexistência e a nova estrutura. 6 A contribuição de Alois Riegl é abordada no capítulo I - parte I. 79

83 Como ressalta Solà-Morales, a crítica da linguagem de Wittgenstein desmonta a pretensão de generalidade e permanência contida nos processos culturais do modernismo em sua formação. Prevalece, segundo autor, uma divisão entre o reconhecimento do valor estético e material, a dimensão factual da obra concreta e o sistema infinito de referências que povoa o imaginário coletivo. Na atualidade se reconhece que o mecanismo de análise morfológica desenvolvido pela escola de Rossi não assegura necessariamente um patamar elevado para o projeto quanto à qualidade arquitetônica. No entanto, há de se convir que o abandono de critérios e de princípios orientadores da intervenção incorre em maior chance de conduzir à superficialidade e à casualidade dos procedimentos adotados. É comum observar alguns vícios de conduta em ações de intervenção em preexistências entre os quais o arbitrário descascamento do revestimento com o intuito de se evidenciar os materiais e as técnicas construtivas. Essa atitude permanece por algumas décadas como extensão de um gosto moderno, em lugar de se optar por uma diagnose crítica. Sobre a visão multifacetada do pensamento contemporâneo, autor observa que: El conocimiento histórico, al igual que las técnicas analíticas del proyecto, se mueve en la contradicción entre el sofisticado desarollo de sus áreas de conocimiento y la depauperación metodológica más absoluta. Microhistoria, historia antropológica o historia de las mentalidades son, en el fondo, las respuestas privadas, reduccionistas y fragmentarias que se producen ante la impossibilidad de sostener modelos interpretativos de más vasto alcance. 7 É possível, portanto, criar uma rede de significados cuja ativação só pode ser propiciada pela obra em si, como suporte dessa manipulação de significados, hoje exercida com ampla liberdade de interpretação, pela própria natureza da transformação do estudo da 7 Idem, p

84 história na atualidade, como assinala Solà-Morales. A questão mais polêmica gira entorno da margem de liberdade na interpretação de significados e na leitura crítica que se faz da obra preexistente como fundamento para a intervenção. Os significados que nos propõem as obras não são únicos, nem são únicas as interpretações, aliás, estas podem ser, no máximo, coerentes, convincentes e consistentes, mas dificilmente serão definidas categoricamente como verdadeiras ou falsas, como certas ou erradas. Segundo o autor, a intervenção como operação estética é: (...) la propuesta imaginativa, arbitraria y libre por la que se intenta no sólo reconocer las estructuras significativas del material histórico existente, sino también utilizarlas como pauta analógica del nuevo artefacto edificado. 8 Solà-Morales aceita como dado irrefutável a arbitrariedade e aleatoriedade da intervenção: el sistema particular definido por el objeto existente es el fundamento de toda analogia, y sobre esta analogia se constuye todo significado possible y aleatorio. Essa é justamente a controvérsia que se cria com as posições do campo do restauro que não admitem a arbitrariedade. Basta citar as observações de Phillipot 9 sobre o quanto são raros os arquitetos que dispõem de uma formação histórica suficiente a permitir que reconheçam os valores a salvaguardar. Ao contrário, sinaliza o autor, o arquiteto normalmente quer permanecer criador em todas suas intervenções. Raramente tem a modéstia de se submeter às exigências ditadas pelo respeito dos valores históricos e estéticos da obra preexistente. Vale destacar, entretanto, o quão é significativa a revisão de critérios e métodos de projeto realizada por arquitetos da segunda e terceira geração do movimento moderno, no que se refere à reflexão e interpretação a respeito da herança cultural do passado. 8 Idem, p. 50.(O grifo é nosso). 9 PHILLIPOT, P. Em Strumenti 17, Saggi, sul restauro e dintorni. Antologia. Roma: Bonsignori, Artigo: Restauro: filosofia, criteri, linee di guida, p

85 Os novos motes da produção arquitetônica Os arquitetos que atingem a maturidade nos anos 1960 têm alguns traços comuns: nasceram entre 1915 e 1930, logo, seus primeiros anos de vida foram marcados pela segunda guerra mundial; seus vocabulários se estabelecem tendo como pano de fundo o declínio do Estilo Internacional; têm como referência o trabalho dos mestres não apenas no início da carreira, mas em momentos posteriores em que é mais evidente a busca de uma expressão pessoal. Essas considerações podem ser aplicadas à análise das afinidades entre a obra de Lina Bo Bardi e Aldo Rossi. Ainda que Lina Bo Bardi respeite alguns princípios da arquitetura moderna, não defende a certamente a ortodoxia servil, capta à distância as discussões do panorama europeu. Sua posição é marcada pela tensão entre a fidelidade aos mestres fundadores e a necessidade de atentar para uma nova situação que reclama a auto-expressão e que reata os vínculos com a história. Rossi, mais jovem e atuante no próprio ambiente cultural onde ocorrem os debates, participa mais intensamente da revisão crítica do modernismo. Sigfried Giedion, conforme informa William Curtis 10, identifica a presença de uma terceira geração a reconhecer a continuidade de um espírito interno do projeto moderno transmitido de uma geração à outra. Indiscutivelmente os anos 1950 e 60 sinalizam a complexidade do período pós-guerra no que tange às exigências de reorganização e reconstrução das cidades, bem como à tendência de vulgarização e reducionismo de certos modelos seminais da arquitetura moderna. Nota-se a difusão de uma versão simplista dos projetos modernos, encampados de modo superficial por setores do mercado imobiliário, envolvidos com a tarefa de solucionar com agilidade os problemas urbanos daquele momento. Os arquitetos dessa geração devem distinguir o bom do mau exemplo e se vêem incertos diante das possibilidades de prosseguir no aprofundamento e ampliação dos princípios arquitetônicos modernos ou optar pela busca constante de inovação de valores e tecnologias. 10 CURTIS, W. Arquitetura moderna desde Porto Alegre: Bookman, 2008, p

86 A arquitetura moderna, em suas mais diversas manifestações, continua a oferecer a promessa de transformação social ou, ao menos, a fornecer inspiração formal para os anseios de mudança. Os anos 1960 não mostram, entretanto, uma linha única de pensamento, ao contrário, evidenciam abordagens pluralistas em meio a um contexto em que prosperam os questionamentos e, mais do que as certezas, destacam-se as controvérsias e debates. Alguns dos dilemas desses anos têm origem na discussão sobre os problemas urbanos, no rápido desenvolvimento econômico e tecnológico e na nova visão da história. Curtis observa que: tanto dos discursos críticos do período se referem à necessidade de se criar uma esfera pública viável, de combinar o novo com modelos preexistentes de ruas e praças, de se valer das camadas e memória e hábitos sociais inerentes a lugares específicos. 11 Reyner Banham 12 ( ) agrupa importantes obras do fim dos anos 1950 e início dos anos 1960 sob a identificação de uma nova tendência, o neobrutalismo, segundo o qual a arquitetura apresenta uma maior contundência estrutural, combinada com o uso de materiais brutos, sem decoração e tratamento, deixando à vista as instalações dos edifícios. Lina Bo Bardi vem freqüentemente associada a essa concepção de projeto. A esse respeito, Curtis manifesta uma percepção, não propriamente uma certeza, de que há uma sensibilidade compartilhada, no período, pela expressão dos materiais, da coisa em si, como denota a recorrência às superfícies de concreto aparente propositadamente marcadas pelos sinais das formas de madeira. Na Itália, apesar da retórica demolidora do futurismo das primeiras décadas do século XX, a tradição nunca foi completamente banida. O discurso mais ortodoxo do movimento moderno tem, nesse país, diversos opositores entre os quais se destacam: Bruno Zevi e sua 11 CURTIS, op. cit. p Em El brutalismo en arquitectura (1966). 83

87 defesa da arquitetura orgânica; Paolo Portoghesi e sua proposta formalista de linhagem neobarroca; as vertentes críticas esquerdistas de diversas matizes representadas por Leonardo Benevolo, Manfredo Tafuri, entre outros. Convém ressaltar a presença de uma corrente neoracionalista caracterizada pela fusão de princípios abstratos da vanguarda racionalista com a tradição clássica sempre presente na cultura italiana. Um dos principais representantes dessa vertente é Ernesto Nathan Rogers que, aliás, exerce grande influência no ambiente milanês dos anos 1950 e 60, através de sua atividade editorial, à frente da revista Casabella. A influência de Rogers pode ser colhida seja na obra de Lina Bo Bardi que na de Aldo Rossi, como será exposto a seguir. De modo equivalente, ecoam nas reflexões de ambos os arquitetos as proposições de Benedetto Croce sobre a arte e a história, bem como as idéias de Giulio Carlo Argan sobre os vínculos entre a arquitetura e o contexto da cidade. Aldo Rossi segue uma via alternativa frente às vertentes que defendem o avanço e sofisticação da tecnologia, como também em relação às tendências que apontam para a fragmentação e a ruptura mais incisiva dos princípios fundadores do movimento moderno. Sua reflexão e aplicação prática estão preocupadas com noções como memória, monumento, tipologia e lugar, vinculadas às cidades tradicionais e, ao mesmo tempo, inspiradoras da arquitetura do presente, são abordadas a seguir. Lina Bo Bardi, apesar de deixar a Itália, traz na bagagem preciosas referências culturais. Enfrenta o desafio de lidar com as preexistências de interesse histórico em um território em que as discussões sobre o patrimônio ainda são incipientes. Não afronta apenas o edifício isoladamente, mas atua em intervenções de caráter urbano. Assim, a análise de sua atuação permite confrontar seus critérios com aqueles do campo específico do restauro do edifício, além de abordar as motivações culturais de um rigoroso trabalho de recuperação urbana. 84

88 As discussões urbanas O Team X, atuando no próprio interior do espaço de discussões dos CIAMs (Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna), constitui um dos grupos mais ativos no enfrentamento do que considera ser um excesso de racionalismo e funcionalismo do urbanismo esboçado pelo movimento moderno. No pós-guerra, a tão propalada tabula rasa torna-se uma dura realidade a ser enfrentada. Além disso, a enorme demanda habitacional acaba por favorecer a massificação os conjuntos habitacionais. A urgência da reconstrução das cidades européias põe em cheque a Carta de Atenas como doutrina a ser seguida. Nos primeiros CIAMs do pós-guerra, a tônica das discussões é a reorganização do movimento que havia se desestruturado na década anterior. Um primeiro questionamento começa a surgir na ação do arquiteto holandês Aldo Van Eyck ( ) que, em 1947, diz: o CIAM sabe que a tirania do consenso cartesiano chegou à sua última fase. 13 O evento de 1949, realizado em Bérgamo, cidade histórica italiana, influencia a escolha do próprio tema do colóquio seguinte (CIAM VIII), The heart of the city, organizado pelos ingleses em 1951, e que marca uma nova fase. Esse congresso, ao eleger como tema os centros das cidades (em grande parte destruídos pela ação da guerra), impõe o questionamento sobre como atuar diante das ruínas e sobre como lidar com as preexistências, temas pouco comuns nesses encontros até então. Começa também a ganhar ênfase a preocupação com o usuário real das cidades, em contraposição a uma visão generalista que situava as discussões no plano mais abstrato do homem ideal. A partir do momento em que se intensifica o enfoque das questões ligadas à singularidade e diversidade, as doutrinas genéricas e internacionalmente aceitas, como a Carta de Atenas e a própria 13 Em MUMFORD, E. The Ciam discourse on urbanism, Cambridge Mass., MIT, apud JACQUES, Paola Berenstein. Apologia da deriva. Escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da palavra, 2003, p. 26. Van Eyck demonstra grande interesse pelo que é considerado arquitetura vernacular ou popular. È uma das referências de Lina Bo Bardi. 85

89 instituição do CIAM 14, passam a ser tidas como inadequadas para afrontar a questão urbana sob novos pontos de vista. Entre os grupos envolvidos nos debates dos anos 1960 convém incluir os Situacionistas. Apesar dos métodos distintos, é possível identificar afinidades entre esse grupo e o TEAM X. Entre os pontos comuns podem ser destacados: a opção pela diversidade e mistura de usos contra a ortodoxia da separação das funções; a atenção às singularidades, sobretudo das pessoas comuns e reais das cidades existentes, à busca de identidade em substituição à impessoalidade simbolizada na figura do Modulor de Le Corbusier; uma volta à pequena escala, à escala humana e à participação dos habitantes. Se hoje as duas figuras representativas das correntes hegemônicas do pensamento urbano contemporâneo, como identifica Paola Berenstein Jacques 15, são a cidade-museu e a cidade genérica a primeira propensa ao congelamento; a segunda à difusão e urbanização generalizada, ambas unidas pelo fenômeno da espetacularização talvez seja de fato pertinente retomar as iniciativas dos Situacionistas em relação à cidade. Nesse sentido, é oportuno citar a apresentação de Jacques que pontua os moventes dessa ação. A Internacional Situacionista (IS) grupo de artistas, pensadores e ativistas lutava contra o espetáculo, a cultura espetacular e a espetacularização em geral, ou seja, contra a não-participação, a alienação e a passividade da sociedade. O principal antídoto contra o espetáculo seria o seu oposto: a participação ativa dos indivíduos em todos os campos da vida social, principalmente no da cultura. O interesse dos situacionistas pelas questões urbanas foi uma conseqüência da importância dada por estes ao meio urbano como terreno da ação, de produção de novas 14 O último encontro ocorre em 1959, na Holanda, quando os membros decidem encerrar suas atividades. 15 JACQUES, op. cit. 86

90 formas de intervenção e de luta contra a monotonia, ou ausência de paixão, da vida cotidiana moderna. 16 Assim como se nota no terreno da arquitetura o surgimento de correntes pós-modernas interessadas em recuperar os modelos históricos das culturas preexistentes, através do emprego de motivos reconhecíveis como espécies de citações compositivas, também é possível reconhecer no plano urbano uma tendência à museificação e patrimonialização que oscila entre a petrificação do espaço e o pastiche histórico, privilegiando a visão cenográfica da cidade. Essas duas abordagens são comentadas respectivamente em linhas gerais nos capítulos a seguir que tratam das atuações de Aldo Rossi e Lina Bo Bardi, vistas como alternativas mais consistentes a essas ações acima descritas. Alguns questionamentos ligados à prática do construir no construído Como já observado, na situação contemporânea os temas da conservação e restauro ganham maior repercussão e consenso na sociedade, superando, portanto, os limites do campo de estudo especializado, para tornar-se matéria de ampla discussão interdisciplinar. Na mesma medida em que ganham destaque, os temas da preservação cultural sofrem certo desgaste pela maneira como são encampados por abordagens ligadas a aspectos econômicos e turísticos que envolvem o planejamento e a gestão das cidades contemporâneas, distanciando-se, por conseqüência, da orientação mais rigorosa de cunho conceitual estético e filológico. Essa preocupação comparece em autores importantes, na análise das cidades atuais tendo em vista seu devir histórico. As abordagens envolvem seja a atenção específica do tema do patrimônio, como o faz Françoise Choay, seja o estudo das questões mais gerais relacionadas às cidades contemporâneas, entre as quais se situa o convívio com as preexistências, como em Michel Sorkin. Esses autores são citados na análise das intervenções de Lina Bo Bardi. 16 Idem, p

91 Pode-se dizer que persiste na atualidade uma dupla interrogação sobre a relação que o presente instaura com o passado. Por que hoje se fala tanto em memória, conservação, resgate? Como pode ser encarada a pesquisa histórica em tempos de pós-modernidade, quando se considera superada a noção de que a tarefa dos historiadores deve estabelecer a verdade dos fatos ocorridos no passado? Uma terceira questão se coloca especificamente ligada ao patrimônio construído. Como distinguir os bens culturais das genéricas preexistências, quando o campo da ação patrimonial se amplia, incorporando as noções da micro-história, da antropologia? Sabe-se que a intervenção de restauro, entendida na acepção moderna, é a ação diretamente ligada à pesquisa histórica e, de conseqüência, distinta das demais operações manutenção, reforma, recuperação e reuso (também denominado reutilização, requalificação ou reciclagem) e, portanto, não pode ser equiparada tampouco às práticas, tão comuns no passado, de reconstrução e reconfiguração livres e arbitrárias. Logo, é necessário identificar essas operações discutíveis que ignoram os princípios e as contribuições acumuladas no campo disciplinar do restauro e que, por isso, lidam de modo descompromissado com a arquitetura tida como bem cultural. Ao contrário, observam-se intervenções dignas de nota e de estudo exatamente por surgirem de uma aproximação crítica rigorosa em relação às preexistências de interesse cultural e, conseqüentemente, têm em conta e respeitam essas preexistências em seus valores plásticos e construtivos, sem, no entanto, encará-las como um ciclo fechado, mas reinserindo-as no presente. Não há como negar também que certa arquitetura pode ter seu uso adaptado para novas funções, na medida em que o abandono é um importante inimigo da preservação. Não se trata, contudo, de aceitar toda e qualquer adaptação que implique descaracterização e perda de valor para o objeto de intervenção. Tudo se inscreve na questão dos valores e do metódico reconhecimento desenvolvido através do estudo atento do bem 88

92 cultural de sua natureza, de sua qualidade considerado em relação aos interesses da cultura hodierna e tendo em vista as exigências de tutela desse bem enquanto testemunho do passado e não certamente por fetichismo, nem tampouco por razões econômicas, mas sim por motivos culturais mais profundos. A partir dessas considerações, não seria legítimo avaliar a afinidade de princípios e métodos do campo disciplinar do restauro com a metodologia de Lina Bo Bardi, cuja ação de projeto desenvolve-se em diálogo com a história e comprometida com a experiência crítica? Não seria pertinente considerar, nesses casos, o rigor de método e a paciente pesquisa que antecede a intervenção, em favor do interesse histórico e figurativo da preexistência sobre a qual se atua? A restauração hoje admite a estratificação de diferentes temporalidades, incorporando inclusive acontecimentos fortuitos, acidentes, desastres e catástrofes, como dados a serem considerados para fins de conservação. Por que então não considerar a continuidade do fluxo do tempo histórico para os bens culturais? O que dizer de ampliações necessárias realizadas em obras de interesse cultural? 89

93 Ilustração da revista Grazia, 1941 / Comunicação visual do restaurante do SESC Pompéia dedicada a Torres Garcia / Ilustração da revista norte-americana Interiors / Comunicação visual do SESC Pompéia executada pelo pedreiro Paulista / Objetos utilitários artesanais / Projeto de um dodecaedro. Fonte: FERRAZ, 1996, p. 28, 228, 77, 228, 236, 260.

94 Lina Bo Bardi: um olhar voltado ao patrimônio (...) o que reputamos necessário, hoje em dia, é um justo meio, é pois nem o dogmatismo nem o impressionismo, mas uma espécie de medida, naturalmente crítica que, levando em consideração a história como herança e continuidade, abra as mais amplas liberdades às possibilidades do arquiteto, hoje mais do que nunca mediador responsável pelo modo de viver dos homens. 1 Um primeiro olhar Definitivamente uma trajetória singular. Não somente pela condição livre de profissional que decide migrar, mas também pelo prazer da descoberta, pela inquietude, um dos traços marcantes do caráter de Lina Bo Bardi, sempre pronta a captar a riqueza das situações mais corriqueiras a que um nativo nem sequer daria atenção. Lina Bo Bardi é uma exploradora dos tempos modernos, aliás, os Bardi juntos atuaram como exploradores de tempos recentes. Valendo-se da condição de intelectuais europeus que são recebidos de portas abertas, através dos vínculos mantidos lá fora, estabelecem um circuito de relações internacionais e encontram no Brasil um território aberto a pesquisas e experimentações. Aproveitam essas oportunidades e esse circuito privilegiado de amizades para realizar um trabalho de grande relevância cultural. O olhar estrangeiro concede-lhe a capacidade de enxergar a peculiaridade e a vitalidade da cultura popular sem confundi-la com folclore, com as sacramentadas interpretações oficiais. Nada em comum com a visão estereotipada do forasteiro frente às diferenças culturais, sua percepção aguda possibilita o reconhecimento de valores como autenticidade e singeleza, muito distante da ideia 1 Lina Bo Bardi em Contribuição propedêutica ao ensino da teoria da arquitetura. São Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 2002, p.51. O escrito corresponde à tese apresentada ao Concurso da disciplina de Teoria de Arquitetura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, em (O texto tinha sido publicado em tiragem limitada, em italiano, em 1992). 91

95 banalizada sobre a produção artesanal brasileira. Ao contrário do lugar-comum, sua avaliação é surpreendente, acurada e profícua, identificando qualidade nas soluções inventivas com os meios mais escassos e nelas colhendo inspiração. Uma sólida formação humanística permite-lhe dominar as mais diversas situações: afere com atenção as possibilidades a explorar, os eventuais entraves a superar, para então estabelecer um diagnóstico preciso e traçar um projeto não só possível, mas concretamente criativo. O conhecimento técnico e construtivo conduz sua disposição em contornar dificuldades e transformar as limitações em estratégias particulares, dispondo dos recursos disponíveis e apropriando-se das habilidades dos construtores, dos colaboradores em geral, de seus conhecimentos, de sua experiência pessoal. Até mesmo a consciência do despreparo da mão-de-obra, decorrente das não raras condições precárias de instrução e formação profissional, não a faz subestimar nem depreciar as potencialidades naturais e as possibilidades reais de aprendizado dos trabalhadores. Lina Bo Bardi capta o vigor da miscigenação cultural, a força criativa das soluções sincréticas autóctones. Coleta, coleciona, mapeia, musealiza e reinventa não só o monumental, mas sobretudo o cotidiano. Não por acaso é identificada como caso híbrido por Eduardo Subirats 2, para quem o hibridismo é a palavra de ordem das culturas divididas entre a vitalidade local e as influências dos grandes centros corporativos de produção de tecnologia e informação. Uma obra que une a extrema fantasia à sobriedade extrema, nas palavras do autor. De início, pouco explorada, a produção de Lina Bo Bardi, repentinamente nos anos 1990 e, mais intensamente, a partir dos anos 2000, desperta interesse renovado seja no Brasil que na Europa. Surgem a partir desse período vários ensaios críticos, pesquisas acadêmicas 3 e exposições de divulgação do seu trabalho. 2 GALLO, A. (org.) Lina Bo Bardi architetto. Venezia: Marsílio, O livro foi publicado por ocasião da 9ª Bienal de Arquitetura de Veneza e conta com a participação de vários autores, entre os quais Eduardo Subirats, filósofo e poeta, amigo de Lina Bo Bardi, que assina o texto: Lina Bo: Un epoca nuova e già cominciata, pp Entre as pesquisas concluídas em tempos mais recentes, que abordam sua atuação, destacam-se: OLIVEIRA (Dissertação de Mestrado, FAUUSP, 2008); 92

96 É de certo modo repelida pelos ambientes acadêmicos, especialmente pela USP, quando se candidata a ocupar uma vaga como professora do curso de arquitetura em Conforme relata Marcelo Ferraz 5, um de seus diletos colaboradores, Lina Bo Bardi é submetida a uma espécie de ostracismo, vítima não só do regime militar, mas também das vistas grossas da arquitetura oficial. Isso ocorre, certamente, por ela não se alinhar ao pensamento dominante, aos grupos e suas lideranças, por manter-se fiel às suas convicções pessoais e à sua formação consistente e autônoma. Manifesta-se sempre com franqueza, sem hipocrisias nem sectarismos, não somente sobre os temas da sua profissão. Avessa aos reducionismos, não teme o debate, ambiciona a transformação, a prática da cidadania, e com absoluta propriedade combina utopia e realidade, rigor e liberdade. A este estudo interessa analisar a atuação de Lina Bo Bardi sob um enfoque mais diretamente ligado às questões discutidas no âmbito da conservação do patrimônio cultural. Para tanto, inicia-se com o enfoque de sua formação e prossegue-se com a análise de três intervenções específicas selecionadas como objeto de estudo: o SESC Pompéia ( ) em São Paulo, o Solar do Unhão (1962) e a Ladeira da Misericórdia (1987), ambos em Salvador, Bahia. Os dois últimos projetos constituem parte de um ambicioso plano de recuperação do centro histórico de Salvador executado em duas etapas distintas. É a própria atividade do arquiteto que acaba por constituir o interesse central do estudo, na medida em que se estabelecem relações entre as intervenções analisadas. Nesse sentido, pretende-se repercorrer a lógica de elaboração dos projetos, reconstituir a poética contida ROSSETTI (Dissertação de mestrado, UFBA, 2002; Tese de Doutorado, FAUUSP, 2007); RUBINO (Tese de Doutorado, UNICAMP, 2002). Entre os livros publicados: OLIVEIRA, O. Lina Bo Bardi, sutis substâncias da arquitetura. São Paulo: Romano Guerra: Barcelona: Gustavo Gili, 2006; GALLO, A. (org.) Lina Bo Bardi architetto. Veneza: DPA: Marsílio, Lina Bardi, em debate que segue sua conferência intitulada: Aula de arquitetura, publicada pela Revista Projeto n. 133, 1990, ao falar sobre a impossibilidade de afrontar um tema complexo em exíguo intervalo de tempo, diz textualmente: Para isso, eu precisaria ainda dar aula na FAU. Mas me jogaram fora, não me quiseram mais lá, na rua Maranhão. Não foi o corpo discente, mas as pessoas importantes. 5 Em texto intitulado Numa velha fábrica de tambores..., publicado no portal < seção: Minha cidade. Acesso em 20/04/

97 nesses processos de trabalho, confrontar e cotejar os critérios de intervenção. A escolha dos projetos a serem analisados foi pautada essencialmente pela importância e pioneirismo devidos, entre outros motivos, à antecipação de condutas e à discussão de conceitos propiciada a partir da elaboração de escritos que acompanham o desenvolvimento dos projetos. Trata-se da ação de um arquiteto não especialista na área da conservação, com uma postura que surpreende não só os técnicos dos serviços de tutela do patrimônio cultural, mas os arquitetos em geral. Lina Bardi demonstra ter um preparo teórico sólido e amplo em sua formação européia: em seus textos menciona Gustavo Giovannoni, o restauro científico, o restauro crítico e a Carta de Veneza 6, temas sobre os quais este estudo pretende deter-se. A esta pesquisa interessa, sobretudo, a discussão sobre as vertentes mencionadas por Lina Bo Bardi ao discorrer sobre os princípios que norteiam suas intervenções especialmente o restauro científico e o crítico além de uma análise comparativa entre os procedimentos por ela adotados e as deliberações da Carta de Veneza. Outro aspecto a ser investigado é a aproximação entre sua conduta e a reflexão de Cesare Brandi ( ) 7. Todas essas referências teóricas são muito pouco divulgadas no Brasil na época em que Lina Bardi desenvolve os projetos mencionados. Nesses trabalhos, ela faz questão de adaptar esse conhecimento não só às circunstâncias específicas de cada situação, mas principalmente à sua convicção e interpretação pessoal. Não se deixa levar por uma concepção superficial que confunde respeito histórico com timidez de ação, nem cai no equívoco de repetir uma prática corrente que funde as operações de recuperação e reconstrução de elementos preexistentes, sem distingui-las entre 6 A Carta de Veneza reúne as deliberações do Congresso Internacional de Arquitetos e técnicos de Monumentos Históricos realizado em 1964 e foi adotada pelo ICOMOS (Conselho Internacional dos Monumentos e Sítios da UNESCO) em Autor do livro Teoria del Restauro (1963), é um dos intelectuais italianos mais expressivos do século XX, no campo da crítica da arte. Dirigiu o Istituto Centrale del Restauro de Roma entre 1939 e Sua reflexão teórica acerca do restauro, não obstante ter mais de quarenta anos completos, continua essencial e ainda atual. Seu livro foi traduzido para o português com o título Teoria da restauração por Beatriz M. Kühl e publicado em

98 si, sem diferenciá-las dos novos componentes introduzidos. Reafirma sua posição contrária a uma conduta que impera até hoje, o conceito de matriz violletiana de volta a um estado original 8. Reflete e expõe seus pontos de vista em confronto com as referências teóricas acumuladas, na forma de memoriais explicativos, abrindo assim a possibilidade de discussão e debate sobre suas condutas de intervenção. Os caminhos trilhados Seu modo de ser independente e irreverente pode dar a entender, a princípio, que Lina Bo Bardi não se importa com a cultura oficial consolidada. Engano pensar que ela desconheça ou ignore a produção teórica dos seus conterrâneos, ou pensar que seus projetos sejam fruto de pura e simples intuição. Um denso preparo teórico e técnico ampara suas decisões. Convém, portanto, ressaltar os aspectos ligados à sua formação e à experiência profissional que possam iluminar a compreensão de seu trabalho relacionado aos temas da memória e da intervenção voltada à arquitetura preexistente. Lina Bo Bardi nasceu em Roma em 1915 e morreu em São Paulo em Formou-se em 1939 pela Faculdade de Arquitetura de Roma cuja tradição de ensino centrava-se nas disciplinas históricoarquitetônicas, reflexo da própria condição da cidade enquanto estratificação de tempos históricos, conforme seu relato pessoal 9 : O fato de Roma ser um dos centros da cultura clássica, fazia com que os alunos aplicassem a maior parte do tempo de seu estudo à observação dos monumentos antigos. A formação ligada à escola romana, sob influência de Gustavo Giovannoni, explica o apreço pelo sentido histórico do ofício do arquiteto 10. No entanto, a jovem arquiteta não se deixa acomodar: a 8 A persistência do conceito violletiano de restauração é analisada por Antônio Luiz Dias de Andrade em sua Tese de Doutorado, cujo título é: Um estado completo que pode jamais ter existido, FAUUSP, Conforme relato da própria Lina Bo em seu Curriculum Literário, em FERRAZ (org.). Lina Bo Bardi. São Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 1993, p OLIVEIRA, Olívia de. I mondi immaginari e i modi reali, em GALLO, op. cit., p

99 atmosfera de Roma, capital do fascismo, a presença sufocante de sua história e de suas ruínas faz Lina Bardi procurar um ambiente mais dinâmico, mais propenso a acolher as propostas inovadoras do movimento moderno, diferente daquele racionalismo monumental das obras de Marcello Piacentini. Muda-se então para Milão, para adquirir prática. Colabora Gio Ponti, o último dos humanistas 11, diretor das Trienais de Milão e da revista Domus. Essa atividade rendeu-lhe uma rica e variada experiência: desde o design de mobiliário, passando pela moda, até projetos urbanísticos. A guerra, no entanto, paralisa a produção arquitetônica, o que faz com que se concentre na atividade de pesquisa (especialmente sobre artesanato e Desenho Industrial) e de ilustração, colaborando com diversas revistas e jornais, alguns deles de relativa importância. Essa circunstância específica da guerra, que paralisa a atividade de projeto, não a imobiliza: ainda muito jovem, com a impossibilidade de projetar, Lina Bardi dedica-se a intenso trabalho na área editorial. Seleciona temas, recolhe material, documenta, edita e publica. Cultiva, assim, a prática da escrita que não será abandonada quando terá a chance de voltar à atividade de projeto. Ao contrário, concilia o pensar e o fazer arquitetura pela mediação do texto escrito, explicitando critérios, motivações, raciocínios que orientam a prática. A duríssima prova da guerra impõe um claro posicionamento político: Em tempo de guerra, um ano corresponde a cinqüenta anos, e o julgamento dos homens é o julgamento dos pósteros. Entre bombas e metralhadoras fiz um ponto da situação: importante era sobreviver, de preferência incólume, mas como? Senti que o mundo podia ser salvo, mudado para melhor, que esta era a única tarefa digna de ser vivida, o ponto de partida para sobreviver. Entrei na Resistência, com o Partido Comunista clandestino. Só via o mundo em volta de mim, como realidade imediata, e não como exercitação literária abstrata Assim se definia o arquiteto, conforme declara a própria Lina Bardi. 12 FERRAZ, M. C. (org.) Lina Bo Bardi. São Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, Fragmento de seu Curriculum Literário, p

100 Ao exercício da escrita agrega-se o da ilustração [1], possibilitando o desenvolvimento de uma forma especial de expressão que caracteriza seus projetos, como assinala Luís Antônio Jorge, ao definir seus croquis: (...) narrativa literária, onde Lina dialoga com seus distintos interlocutores, através de inumeráveis anotações, evocando idéias, imagens, referências, montando uma espécie de story-board, voltado muito mais à demonstração dos fundamentos do projeto, dos conceitos da proposta, do que à sua melhor representação. A ênfase nas idéias e a coerência entre elas e as imagens geratrizes do projeto, ao mesmo tempo em que evitam a retórica do desenho pelo desenho, desmistificam o ato criador em prol de uma pedagogia poética. 13 [1] Ilustração Revista Illustrazione Italiana, Fonte: FERRAZ, 1993, p JORGE, Luís Antônio. Tese de Doutorado intitulada: O espaço seco. Imaginário e poéticas da arquitetura moderna na América. FAUUSP, 1999, p

101 Sugestiva e precisa a observação sobre a singularidade do seu desenho: Desenho que pretende ser minucioso sem perder o despojamento quase irreverente de quem vê e cria. Desenho criador. Retrato criativo. Por isso, feliz. Felicidade que, como afirma Bachelard, provém da vontade e da imaginação criativa e não do conteúdo, do que se quer retratar. 14 Com Bruno Zevi, Lina Bo Bardi funda a revista semanal La cultura della Vita, editada em Milão pelo mesmo editor de Domus, antes de vir para o Brasil, em 1946, já casada com o jornalista e crítico de arte, Pietro Maria Bardi. Aqui, no país inimaginável onde tudo era possível, encontrou território adequado para viver e realizar sua atividade inventiva. Com a revista Habitat 15 passa a ocupar um espaço no mundo editorial brasileiro. Entre os vários autores que se dedicam à análise de sua obra destacam-se aqui Montaner (1997) e Oliveira (2006). Josep Maria Montaner a situa junto a Louis Khan, Jorn Utzon, Aldo van Eyck, Luis Barragán e Fernando Távora, representantes de uma terceira geração do movimento moderno que rechazan el formalismo y el manierismo del estilo internacional y reclaman mirar de nuevo hacia los monumentos, la storia, la realidad y el usuario, hacia la arquitectura vernacular 16 Lina Bardi, para o crítico, representa uma das experiências mais originais e significativas entre os arquitetos dessa terceira geração. Assim sintetiza a essência de sua obra: (...)consiguió superar los límites del mismo arte moderno, sin romper con sus principios básicos. Si la arquitectura moderna era antihistórica, ella consiguió hacer obras en las que modernidad y tradición no eran antagónicas. Si el arte moderno era intelectual, internacional y reacio 14 Idem, p Lina Bardi participa do corpo editorial da revista Habitat, revista do MASP, publicada de 1950 a Em MONTANER, J. M. La modernidad superada. Arquitectura, arte y pensamiento del siglo XX. Barcelona: Gustavo Gili, 1997, p

102 al gusto establecido y a las convenciones, en Brasil han sido possibles una arquitectura y un arte modernos enraizados en la experiencia del arte popular, negro e indígena, rigurosamente distintos del folclorismo, el populismo y la nostalgia. Si la arquitectura racionalista se basaba en la simplificación, la repetición y los prototipos, Lina Bo Bardi supo introducir sobre un soporte estrictamente racional y funcional, ingredientes poéticos, irracionales, exuberantes e irrepetibles. Concilió funcionalidad con poesía, modernidad con mímesis. 17 Destaca ainda que sua arquitetura mantém os valores básicos da arquitetura do movimento moderno: humanismo, projeto social, vontade de renovação formal, construção utilitária, funcionalista, mas com uma característica fundamental: a marca da expressão do trabalho artesanal. Conforme lembra Montaner, Bruno Zevi havia defendido uma necessária liberação dos limites e rigores da arquitetura moderna racionalista, em favor da peculiaridade da arquitetura orgânica. Ernesto Nathan Rogers havia afirmado que o único modo de ser moderno na condição contemporânea era fazer presente o sentido vivo da história, evitando os automatismos e vícios da experiência passada. Olívia de Oliveira, assim como Montaner, observa no trabalho de Lina Bardi a superação do esquematismo abstrato da linguagem moderna. Dessa forma explica o compromisso do architetto 18 com a reconsideração da relação com a história, a atenção à tradição popular e ao ambiente preexistente, seja natural, seja construído. Traços essenciais de seu trabalho que guardam afinidade com as idéias postuladas por Rogers. Como bem coloca a autora, essa aproximação com os elementos artesanais e o uso dos materiais recorrentes na arquitetura popular, 17 Idem, p Era assim que Lina Bo gostava de ser chamada, architetto, no masculino como se diria no idioma italiano, em que a maioria das profissões não possui denominação feminina. 99

103 no entanto, nada têm a ver com o ideal romântico de Ruskin e Morris. Não se trata de mitificar o artesanato, mas sim privilegiar a simplicidade das soluções, o uso de recursos disponíveis e de baixo custo combinados à valorização da criatividade. O Solar do Unhão ( ) A principal publicação do Instituto Lina Bo e P. M. Bardi que reúne as memórias de seu trabalho traz uma documentação parcial da obra e um texto que descreve sucintamente as suas operações técnicas e as decisões conceituais que envolvem o projeto 19. Destaca o importante conjunto arquitetônico do século XVI, modificado no século XVII e que no século XIX recebe a instalação de uma das primeiras manufaturas do Brasil. Informa que o conjunto foi objeto de tombamento pelo SPHAN em 1940 e comenta a pretensão em incorporar as intervenções significativas que o conjunto sofreu durante sua história: todos os aspectos dramáticos do ambiente foram respeitados 20. As operações de conservação realizadas no solar são voltadas a recuperar e sublinhar a belíssima estrutura interna de madeira de lei (pilares, piso superior assoalhado e estrutura de sustentação da cobertura de telhas de barro tipo capa e canal). Mantém-se o montacarga existente, substitui-se a velha escada pela nova com pilar central e detalhe de encaixe dos pisos com as traves laterais emprestado dos carros de boi. Um projeto que, como o descreve Subirats, enfrenta o problema tecnológico não do ponto de vista da tecnologia avançada, mas essencialmente do domínio e transformação das tecnologias arcaicas. Elementos funcionais e escultóricos, as escadas são exploradas em sua engenhosidade, na peculiaridade dos materiais e na forma de articulação dos diferentes níveis e, especialmente, na plasticidade desses elementos que se destacam como presenças marcantes no conjunto de sua arquitetura. [2] 19 FERRAZ, op. cit., pp Em seminário promovido pelo Programa de Pós-Graduação da USJT sobre o tema: Cidade e indústria: ações contemporâneas, realizado em 13/10/09, Silvana Rubino menciona a desmontagem da fábrica de rapé que funcionava nesse local. Assinala a atitude seletiva de Lina Bardi que considera pouco relevante a atividade e, portanto, não digna de manutenção. 100

104 [2] Escadas: Escada-flor do Centro de Convivência Vera Cruz, escada-rampa do MASP e escada de acesso da casa de vidro. Fonte: FERRAZ, 1993, p. 371, 108 e

105 As ilustrações reunidas no livro mostram alguns desenhos de projeto e fotos que documentam, entre outros aspectos: o solene solar recuperado com as paredes brancas caiadas e as janelas de madeira pintadas de vermelho; os operários recuperando os azulejos holandeses dos guarda-corpos que ladeiam o acesso principal [3]; a velha e acanhada escada ao lado da nova [5]; o terreiro antes e depois da liberação do espaço aberto para possibilitar o desenvolvimento de manifestações tradicionais, como cheganças, ranchos, sambas de roda e capoeira (conforme assinala a legenda da imagem) [4]; um velho guindaste deixado como monumento no espaço recém liberado do terreiro; os rústicos pavilhões industriais também recuperados. [3] Solar do Unhão e recuperação dos azulejos do guarda-corpo junto à entrada. Fonte: FERRAZ, 1993, p [4] Pátio lateral antes e depois da liberação. Fonte: FERRAZ, 1993, p. 152 e

106 Alguns poucos elementos novos introduzidos no conjunto como intervenções mínimas reaparecerão no projeto do SESC Pompéia, entre os quais, o piso cimentado salpicado com seixos rolados e as divisórias de treliças de madeira. Importante enfatizar a operação de liberação do terraço debruçado sobre o mar, disposto em um dos lados do solar. Se uma das imagens mais características desse projeto é a escada que, de modo criativo, reinventa o encaixe dos carros de boi, provavelmente a ação mais contundente é justamente a demolição dos edifícios acrescidos de forma aleatória que determinavam a obstrução da continuidade daquele espaço inicialmente aberto. Uma decisão que exerce a legitimidade de eliminar elementos descaracterizadores que implicam perda de valor para a preexistência. Ações como essa devem ser identificadas nos desenhos e nos documentos que registram as operações previstas na intervenção, como recomenda expressamente a Carta de Veneza de A publicação dá destaque ao ambicioso projeto cultural que faz da recuperação desse conjunto um dos pontos de apoio de um triângulo cultural que pretende articular a Bahia à Pernambuco e à Fortaleza. [5] Escadas velha e nova. Fonte: Ferraz, 1993, p. 157 e Ver tópico Documentação e Publicação, art. 16º. 103

107 O texto de Lina Bardi menciona o período de 1958 a 1960 e pouco como um momento proveitoso em que a Bahia viveu o esplendor de um conjunto de iniciativas que representou uma esperança muito grande para o país todo (...). Cita as instituições que compõem essas iniciativas: a Escola de Teatro, de Dança, a Escola Superior de Música e o Museu de Arte Moderna (cuja sede ocupa o Solar do Unhão) e comenta o programa de cunho sócio-político elaborado com representantes dos poderes públicos e personagens ligados à cultura da região 22. O intuito é incorporar certas manifestações do reconhecido fermento cultural local e associá-las a exposições itinerantes que dialogam com eventos de natureza análoga existentes em outras localidades. Um movimento que busca explorar aspectos genuínos da cultura tradicional. O projeto de arquitetura inscreve-se, portanto, em um amplo programa de estímulo à reconfiguração da identidade nacional, partindo das bases da cultura popular 23. Nesses termos, a implantação do Centro de Documentação sobre Arte Popular e Centro de Estudos Técnicos do Nordeste, visando à passagem de um pré-artesanato primitivo à indústria moderna, promove uma política pública de incentivo à cultura, articulada a uma nova política de industrialização. Como enfatiza Lina Bardi: não se pensa em um museu do folclore como interpretação de um fazer popular pelo olhar da cultura erudita, mas um autêntico centro de documentação e produção dos artefatos do cotidiano, um centro de experimentação que incorpora as práticas vernaculares. Eduardo Subirats discorre sobre esse projeto cultural e político radical desenvolvido entre os anos 1958 e 1964, associando-o aos anos admiráveis em que conhece Glauber Rocha, Caetano Veloso, 22 Os vínculos com o cenário cultural da Bahia na passagem dos anos (alimentados pela atuação da UFBA), a relação com Glauber Rocha e a afinidade com as teses do Cinema Novo, são temas tratados por Antonio Risério em Avant Garde na Bahia. São Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 1995, bem como na Tese de Doutorado de Luís Antônio Jorge, intitulada: O espaço seco imaginário e poéticas da arquitetura moderna na América. São Paulo: FAUUSP, 1999, pp A esse respeito, ver texto de Lina Bo Bardi em FERRAZ, op. cit., Cinco anos entre os brancos, pp O relato comenta essa experiência (motivações, iniciativas, instituições e parceiros envolvidos) e discorre sobre o desmantelamento da proposta após o golpe militar de A dissertação de Mestrado de Raissa de Oliveira (FAUUSP, 2008) aborda o período de abertura política que marcou a transição do governo militar para a redemocratização do país e o posicionamento de Lina Bo Bardi frente às circunstâncias desse momento particular. 104

108 Gilberto Gil e outras figuras notáveis. Retoma as palavras de Lina Bardi para comentar o programa formulado: a criação dum movimento cultural que assumindo os valores duma cultura historicamente (em sentido áulico) pobre, superando as fases culturalista e historicista do Ocidente, apoiando-se numa experiência popular (rigorosamente distinta do folclore), pudesse lucidamente entrar no mundo da verdadeira cultura moderna, com os instrumentos da técnica e dum novo humanismo. 24 Afirma que, com a criação do Museu de Arte Moderna da Bahia e do Museu de Arte Popular do Unhão, Lina Bardi cristaliza a síntese entre o elemento popular e a vanguarda. Sobre a pertinência de uma arquitetura capaz de aglutinar pessoas, escreve: Lina é arquiteto de espaços para a reconstrução e redefinição da cidadania da sociedade civil militarmente destruída pelos regimes autoritários. Engloba memórias populares, capazes de transformar um episódio casual (...) em um momento crucial de poética do espaço, e concebe sempre a arquitetura como um instrumento de integração da existência humana com a natureza e com seus mistérios, e como meio de confronto com a cidade e seus conflitos. 25 O projeto do Solar do Unhão, segundo o filósofo, apesar de conservar os sinais que o definiam como mercado de escravos, como lugar de sacrifício humano, não é um mausoléu. É um lugar de recreação da memória e recuperação da dignidade humana através da arte. O projeto, destaca o autor, pode ser reconhecido como alternativa ao espetáculo da arquitetura contemporânea, ao fetiche ligado ao acrítico consumo cultural. Uma espécie de manifesto de exaltação da imaginação poética, tida como componente 24 Subirats em texto intitulado: Lina Bo: un epoca nuova è già cominciata, em GALLO, op. cit., faz referência à citação de Antônio Risério em Cultura aqui, ali, cultura além, em cópia datilografada do arquivo de Lina Bo Bardi, p Idem, p

109 indissociável da condição essencial de sobrevivência da humanidade. Nesse sentido, é apropriada sua síntese a respeito da intervenção que afronta o tema da memória sem sobrepujar a preexistência: Uma reconstrução arquitetônica que não destrói nem nega as memórias, os seus lugares e as suas ruínas, para afirmar narcisicamente a temporalidade absoluta e fátua do eternamente novo. 26 Como destaca Bierrenbach 27 os edifícios testemunham a rotina de labor nas suas dependências, uma densa história que deixa marcas de modificações e acréscimos decorrentes de diferentes usos nos séculos de existência, traços marcantes da produção humana como marcas do tempo e da cultura. É justamente essa leitura que caracteriza o reconhecimento de valor elaborado por Lina Bardi e, essencialmente, o que chancela a proposição do novo uso. O SESC Pompéia ( ) Muitos autores já se detiveram sobre o projeto do SESC Pompéia, muito já foi escrito sobre a intervenção de Lina Bo Bardi. Há que se enfrentar então o risco de cair na repetição. Ou melhor, passados mais de vinte e cinco anos de sua inauguração (1982), há que se buscar uma síntese do que já foi destacado e mais: arriscar uma nova leitura, mesmo que despretensiosa. De início, esse projeto causou muita surpresa quer pela precisa e absolutamente reconhecível inserção de novos elementos nos espaços dos edifícios fabris, com o intuito de dotar de novo uso aqueles ambientes, quer pelo contraste produzido entre os novos edifícios construídos e os galpões industriais preexistentes. Hoje, embora bastante conhecido e usufruído, o lugar conserva a mesma vitalidade dos anos 1980, quando foi finalizada a primeira etapa da intervenção. 26 Idem, p BIERRENBACH, A. C. de Souza. Os restauros de Lina Bo Bardi e as interpretações da história. PPG-AU/FAUFBA, Dissertação de Mestrado,

110 Os edifícios fabris existentes Situado em um bairro de origem industrial, em terreno que já tinha pertencido à Chácara Bananal depois loteada pela Companhia Urbana Predial proprietária do terreno entre os anos de 1911 e 1913 o edifício principal foi projetado em 1938 para a família alemã Mauser. No ano seguinte, foi vendido à Fábrica de Nacional de Tambores Ltda., de propriedade da Indústria Brasileira de Embalagens (IBESA) que posteriormente abrigaria em seu espaço a linha de montagem de uma indústria de geladeiras. [6] Entre 1962 e 1963 o prédio principal sofreu transformações, além disso, foram construídos outros dois galpões menores. Em 1967, a indústria ali instalada encerra suas atividades e, em 1971, o SESC adquire o terreno ( m²), iniciando suas atividades em 1973, em caráter provisório. Os três anos seguintes podem ser entendidos como um intervalo de maturação da idéia de intervenção. Nesse período estava em estudo o traçado da linha oeste do metrô que, eventualmente, poderia interferir na área em questão, motivo pelo qual a definição do projeto teve que ser adiada. Lina Bo Bardi é convidada a apresentar sua proposta em Atuam como seus colaboradores os arquitetos André Vainer e Marcelo Ferraz. Com a aprovação do projeto em 1977, o SESC interrompe o funcionamento provisório para dar início às obras. [6] A antiga fábrica de tambores. Fonte: VAINER e FERRAZ, 1996, p. 14, 17 e

111 As fotos aéreas evidenciam a potência desses edifícios, que se distinguem na massa informe e heterogênea do entorno em transformação desordenada, mas que encontram alguns similares em quadras vizinhas e que mantiveram a fisionomia primitiva. A morfologia pode ser decomposta em vários elementos: a tipologia comum do edifício fabril (composta por blocos extensos cobertos por telhas de barro, com inclinações de quatro ou duas águas, dotadas de lanternim); os volumes compactos de feições sóbrias e uniformes; a disposição regular dos blocos independentes de planta retangular que estabelece uma hierarquia entre edifícios e espaços abertos (o eixo longitudinal é o principal, os transversais secundários) e que, sem recuos frontais, acompanha o alinhamento das calçadas, reproduz o traçado urbano. [7] [7] Vista aérea do conjunto: antes e depois da intervenção. Fonte: FERRAZ, 1993, p

112 O reconhecimento de valor Durante a fase inicial de funcionamento, as instalações fabris revelam sua força expressiva associada à sobriedade e solidez dos primeiros exemplares industriais, à distinta estrutura de concreto 28, como também à possibilidade de uso vislumbrada pela generosidade de seus espaços, após a demolição das divisões internas. Desse modo, percebe-se a versatilidade necessária à prática de diferentes atividades, mas principalmente a empatia instaurada entre a população e a atmosfera daquele lugar. Dificilmente um novo projeto teria suscitado o mesmo efeito. Pode-se dizer que as construções aliadas à ambientação estavam arraigadas na memória das pessoas que, familiarizadas, estabeleciam vínculos afetivos com aquela estrutura existente. Trata-se de uma espécie de memória profunda, uma memória involuntária, nos moldes proustianos, distinta da memória voluntária, dada pela inteligência, pela racionalidade. Para Proust: (...) um odor, um sabor, reencontrados em circunstâncias diferentes, revelam em nós, a despeito de nós mesmos, o passado; nós sentimos o quanto esse passado era diferente daquilo que acreditávamos nos recordar, e que nossa memória voluntária pintava, como os maus pintores, com cores sem verdade. 29 Um misto de sabedoria e intuição indica um caminho distinto daquele a que levaria a vaidade ou presunção: a demolição dos edifícios antigos para dar lugar a um projeto todo novo. Indo na direção oposta, Lina Bardi chega à solução que entrevê o poder de evocação da memória impregnada nos muros daquelas construções, decidindo mantê-las. Recorrendo mais uma vez a Proust, o procedimento é avalizado: 28 Lina Bardi associa as características dos elementos estruturais de concreto armado dos edifícios industriais aos projetos pioneiros de Hennebique. 29 Essas declarações comparecem na revista Espaços & Debates n. 33, 1991 na seção Entrevista intitulada Marcel Proust e a memória, pp Segundo texto introdutório, a referida entrevista foi concedida por Proust em 1912 e extraída da revista Globo n. 59, jul/ago (O grifo é nosso). 109

113 (...) eu creio que é quase somente nas recordações involuntárias que o artista deveria buscar a matéria-prima de sua obra. Primeiro, precisamente, porque elas são involuntárias, porque elas se formam por si mesmas, atraídas pela semelhança de um minuto idêntico: só elas possuem a marca de autenticidade. Depois, elas nos relembram as coisas numa dosagem exata entre a memória e esquecimento. E, enfim, como elas nos fazem provar uma mesma sensação numa circunstância inteiramente outra, elas liberam-na de toda contingência, dando-nos a sua essência extratemporal (...) 30 O escritor refere-se à literatura, mas não unicamente a ela. Se usa a metáfora do pintor, autoriza, de conseqüência, a se estabelecer uma analogia com o procedimento do arquiteto (assim, genérico, sem diferenciação de gênero, com queria a autora do projeto). Já nas primeiras visitas, declara Lina Bo Bardi, como num relato de memórias: Entrando pela primeira vez na então abandonada Fábrica de Tambores da Pompéia, em (19)76, o que me despertou curiosidade, em vista de uma eventual recuperação para transformar o local num centro de lazer, foram aqueles galpões distribuídos racionalmente conforme os projetos ingleses do começo da industrialização européia (...). Todavia, o que me encantou foi a elegante e precursora estrutura de concreto. Lembrando cordialmente o pioneiro Hennebique, pensei logo no dever de conservar a obra. 31 É como se a memória involuntária que ativa a criação de Lina Bo Bardi se sobrepusesse à memória involuntária dos usuários, que acolhem e confirmam o acerto da decisão de projeto. Assim continua o relato, arrolando os outros motivos, não menos importantes, referentes à manutenção também das práticas que animam aquele local: 30 Idem, p Em FERRAZ, op. cit., p.220. (O grifo é nosso). 110

114 Na segunda vez que lá estive, um sábado, o ambiente era outro: não mais a elegante e solitária estrutura hennebiqueana mas um público alegre de crianças, mães, pais, anciãos, passava de um pavilhão a outro. Crianças corriam, jovens jogavam futebol debaixo da chuva que caía dos telhados rachados, rindo com os chutes da bola na água.(...) Pensei: isto tudo deve continuar assim, com toda essa alegria. 32 Uma intervenção que faz numa cidade entulhada e ofendida (...) de repente, surgir uma lasca de luz, um sopro de vento. Nada melhor do que retomar as palavras de Lina Bardi para descrever os elementos essenciais desse projeto: E aí está a Fábrica da Pompéia, com seus milhares de freqüentadores, as filas na choperia, o Solarium-Índio do Deck, o Bloco Esportivo, a alegria da fábrica destelhada que continua: pequena alegria numa triste cidade. 33 Vale lembrar que não havia, naquela ocasião, nenhuma restrição à demolição dos antigos galpões. A decisão de mantê-los foi exclusivamente da arquiteta que ali reconheceu a autenticidade e dignidade de um conjunto fabril de valor documental: um testemunho da história da industrialização da cidade de São Paulo. As operações realizadas A intervenção começa no cimentado da calçada salpicado de seixos rolados divertente como repetia Lina Bardi àqueles que a ouviam descrever seu processo de trabalho amistoso e afetivo ofertado à sociedade. 34 O acesso dá-se pela rua-corredor no interior do lote que assume importância estratégica de ligação entre os edifícios e as diversas atividades que se desenvolvem em cada um deles, conduzindo ao final do percurso ao solarium, também chamado de praia, que, por sua vez, leva aos novos edifícios. Singulares canaletas revestidas de 32 Idem, p Idem, p Conforme depreende Luís Antônio Jorge, op. cit., p

115 seixos rolados flanqueiam o caminho de paralelepípedos, rentes aos edifícios, captam e conduzem as águas pluviais. [8] Os pavilhões, inicialmente rebocados nas faces voltadas para a rua, foram descascados, deixando à vista as alvenarias de tijolos de barro maciços e a estrutura interna de concreto, permanecendo o invólucro, após a liberação do espaço interno. Além da estrutura de concreto, é mantida e recuperada a estrutura de madeira que sustenta a cobertura de telha-vã (de barro, tipo francesa). [8] Totem sinalizador e rua interna com canaleta de seixos rolados. Fontes: VAINER e FERRAZ, 1996, p. 66 / FERRAZ, 1993, p [9] Espaço reservado à leitura e recreação. Fonte: FERRAZ, 1996, p

116 No maior dos galpões (com área de 50 x 70 m), módulos justapostos de concreto aparente, delimitados por muretas baixas, dispostos nos vãos entre a primeira e terceira fileiras de pilares, independentes das estruturas preexistentes, criam espaços para leitura, reunião e projeção de audiovisuais. Implantada em quotas de nível acima do piso térreo, em dois lances com alturas diferentes, como uma espécie de mezanino, essa área possibilita, para quem ali se instala, uma visão de conjunto do pavilhão. Locadas próximas da entrada, as estantes que acomodam o acervo de livros e revistas já sofreram várias transformações em seu lay-out o que, no entanto, não compromete o todo. [9] O mobiliário de madeira, a lareira, o traçado sinuoso do espelho d água o rio São Francisco desenhado no piso de pedra Goiás de variados tamanhos (que substitui o piso anteriormente existente, ao que tudo indica um cimentado comum), preenchido com seixos rolados (os mesmos da calçada e das canaletas) como convém a um rio, complementam a ocupação desse grande ambiente de estar que também acolhe exposições temporárias, espetáculos, salão de jogos e brinquedoteca, além da recepção ao público em geral. [10] [10] Espaço de convivência. Fonte: VAINER E FERRAZ, 1996, p. 78 e

117 Os acréscimos, elementos criados para propiciar os novos usos propostos, distinguem-se com clareza das estruturas existentes e, a rigor, podem ser removidos sem prejuízo da construção primitiva. O caráter de simplicidade desses ambientes foi preservado com a manutenção das tubulações e instalações à mostra, com a colocação de elementos singelos e, ao mesmo tempo, duráveis como os painéis em treliças ou as básicas portas de correr em madeira que, isentas de guarnições e acessórios desnecessários, deixam à vista as roldanas e cabos de escorrimento. Restaurante, teatro [11] [12] e oficinas-ateliês [13] são os usos propostos para os outros edifícios menores dispostos ao longo do eixo principal. Ao descrever o projeto do teatro-auditorium, espaço organizado a partir do palco central e de duas arquibancadas dispostas em lados opostos, Lina Bardi considera importante explicar os motivos da utilização de cadeiras de madeira, ao invés de poltronas estofadas: (...) os Autos da Idade Média eram apresentados nas praças, o público de pé e andando. Os teatros grecoromanos não tinham estofados, eram de pedra, ao ar livre e os espectadores tomavam chuva, como hoje nos degraus do estádio de futebol, que também não têm estofados. Os estofados apareceram nos teatros áulicos das cortes, no Settecento e continuam até hoje no confort da Sociedade de Consumo. A cadeirinha de madeira do Teatro da Pompéia é apenas uma tentativa para devolver ao teatro seu atributo de distanciar e envolver, e não apenas de sentar-se. 35 É a idéia da chamada Arquitetura Pobre, isto é, não no sentido da indigência mas no sentido artesanal que exprime Comunicação e Dignidade máxima através dos menores e humildes meios FERRAZ, op.cit., p FERRAZ, op. cit., p Os teatros são programas arquitetônicos recorrentes na trajetória de Lina Bo Bardi. O tema é enfrentado em casos específicos como no Teatro Politheama de Jundiaí ou no Teatro Oficina em São Paulo. O primeiro corresponde a uma restauração nos termos declarados por Lina de compromisso entre os critérios da restauração de hoje e a plena realização de uma Continuidade Histórica no Tempo e na Memória. (FERRAZ, p. 264). O segundo é 114

118 [11] Corte transversal do teatro. Fonte: VAINER e FERRAZ, 1996, p. 60. [12] Foyer e interior do teatro. Fontes: VAINER E FERRAZ, 1996, p. 90 / FERRAZ, 1993, p [13] Oficinas. Fonte: FERRAZ, 1993, p encarado não só como reconstrução de uma estrutura Física e Tátil, mas persegue a reconstrução de uma identidade cultural destruída pela Tempestade, uma alusão aos tempos difíceis do regime ditatorial. (FERRAZ, p. 258). 115

119 Com esse mesmo espírito de resgate de uma dignidade popular organiza o espaço dos ateliês/oficinas é a articulação entre o trabalho artesanal e o saber-fazer. A arquitetura é aquela que extrai da escassez de meios a sua expressão genuína: recintos autônomos distribuídos ordenadamente no espaço livre, de um lado e outro da fileira central de apoios, com formas e dimensões diversificadas, constituídos de alvenaria em blocos de concreto aparentes de altura limitada, para que seja visível o desenvolvimento das atividades por quem circula entre os recintos dos ateliês. O procedimento utilizado permite mais uma vez distinguir o espaço das oficinas como uma inserção mais recente em uma estrutura preexistente. A técnica e materiais empregados eliminam revestimentos e exigem um trabalho primoroso de aparelhamento dos blocos, rigoroso inclusive por não corrigir com a espátula as rebarbas da argamassa do rejunte das peças. Um detalhe que representa não a falta de cuidado na execução, mas uma operação essencial em que são subtraídos elementos e gestos desnecessários. A imposição da área non-edificandi, de grande empecilho à acomodação do novo programa de uso, converte-se em importante espaço lúdico constituído pelo grande deck de madeira a praia. Assim explica Lina Bo Bardi o raciocínio que conduz o projeto: Uma galeria subterrânea de águas pluviais (na realidade o famoso córrego das Águas Pretas) que ocupa o fundo da área da Fábrica da Pompéia, transformou a quase totalidade do terreno destinado à zona esportiva non edificandi. Restaram dois pedaços de terreno livre, um à esquerda, outro à direita, perto da torre-chaminé-caixa d água tudo meio complicado. Mas, como disse o grande arquiteto norte-americano Frank Lloyd Wright: as dificuldades são nossos melhores amigos. Reduzida a dois pedacinhos de terra, pensei na maravilhosa arquitetura dos fortes militares brasileiros, perdidos perto do mar (...). Surgiram, assim, os dois blocos, o das quadras e piscinas e o dos vestiários. No meio, a área non edificandi. E... como juntar os dois blocos? Só havia uma solução: a 116

120 solução aérea, onde os dois blocos se abraçam através de passarelas de concreto protendidos. 37 [14] Uma invenção que se nutre da memória, um projeto com profundo sentido poético, ou seja, compreendido como um fazer, um modus operandi que se ampara em conhecimento acumulado, em experiência vivida, uma operação que, nos termos colocados por Alessandro Castroviejo 38, articula o universal e o particular. [14] A praia e ao fundo os dois novos blocos unidos pelas passarelas. Fonte: VAINER e FERRAZ, 1996, p Idem, p RIBEIRO, Alessandro J. Castroviejo. Arquitetura: poéticas nos anos 90 vistas através da arquitetura. Dissertação de Mestrado pela FAUUSP,

121 Os critérios de intervenção Os textos de Lina Bardi apresentam a mesma índole de sua arquitetura: concisos e enfáticos tocam nos aspectos cruciais para explicitar os fundamentos que orientam as escolhas de projeto: Ninguém transformou nada. Encontramos uma fábrica com uma estrutura belíssima, arquitetonicamente importante, original, ninguém mexeu... o desenho de arquitetura do Centro de Lazer Fábrica da Pompéia partiu do desejo de construir uma outra realidade. Nós colocamos apenas algumas coisinhas: um pouco de água, uma lareira. 39 Mais uma vez, as próprias palavras de Lina Bardi exprimem o espírito da ação quanto à relação passado/presente: Não se trata de só devolver o prédio como uma máquina do tempo no passado. Isso é preciso esclarecer porque a retromania está tomando conta do mundo, não é isto que estou fazendo (...) se formos tomar por princípio absoluto o uso que fizemos dos espaços da fábrica da Pompéia, haverá gente querendo recuperar e proteger uma salada de edifícios que são velhos e não históricos. Assim a cidade transformar-se, por excesso de zelo, numa cidade de cacarecos, o que não é desejável. É preciso deixar também florescer a nova arquitetura. Assim atua, mantendo os antigos pavilhões industriais e reconfigurando o conjunto com a concepção dos novos blocos verticais monolíticos de concreto aparente, voltados às funções esportivas. A carga expressionista dessa nova arquitetura foi destacada por vários autores, entre os quais Bruno Zevi 40 e Eduardo Subirats 41. [15] [16] [17] 39 FERRAZ, op. cit., p Em artigo intitulado A fábrica dos signos, publicado na revista L Espresso (maio/1987), em coluna dedicada à crítica de arquitetura que o autor manteve por vários anos. 41 Em vários textos entre os quais o já mencionado na nota

122 [15] Planta do conjunto. Fonte: VAINER e FERRAZ, 1996, p. 60. [16] Corte longitudinal do galpão das oficinas. Fonte: VAINER e FERRAZ, 1996, p. 60. [17] Elevações. Fonte: VAINER e FERRAZ, 1996, p

123 O significado renovado de uma fábrica Um texto de Ruth Verde Zein, publicado em uma edição especial da revista Projeto 42 dedicada a Lina Bo Bardi, sob o título Fábrica da Pompéia, para ver e aprender, é particularmente instigante. Inicia discorrendo sobre a cidade um confuso amálgama de signos (...) em permanente mutação que, segundo a autora, praticamente impede de se falar em contextualismo, o que impõe ao projeto a estratégia de dotá-lo, diante da impossibilidade de adotá-lo (o contexto). No SESC Pompéia, aponta Ruth Verde Zein, Lina Bo Bardi consegue o duplo feito: não só adotar o contexto do bairro de caráter industrial, como também dotá-lo de um sentido próprio, transformando seu significado de espaço introvertido de produção em espaço extrovertido de lazer. A extroversão se materializa na reconfiguração da rua-corredor de paralelepípedos no interior do lote, como um convite ao público a entrar, propiciando a continuidade entre o espaço urbano e a viela interna. Os galpões são mantidos em sua configuração volumétrica como grandes recipientes capazes de abrigar diferentes atividades. Os novos elementos e instalações indispensáveis para os novos usos propostos não rompem com a amplitude e a continuidade espacial originárias. Um dos primeiros aspectos surpreendentes na decisão da arquiteta certamente foi a reutilização dos galpões. A resolução antecipa uma tendência que vai se tornar mais comum na década seguinte, com projetos notáveis, promovidos pelo poder público, como o da reforma da Pinacoteca do Estado ( ), projeto de Paulo Mendes da Rocha, e a criação da Sala São Paulo ( ), nas antigas dependências da Estação Júlio Prestes, projeto de Nelson Dupré. Opta pela reutilização que não se mimetiza, ao contrário, distinguese com clareza através da inserção de elementos precisos a desempenhar funções definidas por um programa arquitetônico rigoroso, atento às diferentes atividades e, ao mesmo tempo flexível, polivalente, deixando também espaço para o imprevisto e para as 42 Revista Projeto n. 149, pp

124 imprevisíveis possibilidades criadas tanto pelos gestores, como pelos usuários habituais do lugar. O crítico Bruno Zevi, amigo de Lina Bardi, em artigo já mencionado, cita Ruth Verde Zein e refere-se ao projeto como um corajoso restauro inventivo que investe de novos conteúdos a arquitetura preexistente. Conclui sua descrição enfatizando o espaço denso de humanidade e poética fantasia : O objetivo não é o da mundana inclusividade, mas um confronto entre eventos de matriz e carga expressiva heterogêneas. Apesar dos pressupostos ideológicos de uma estética do choque, emerge um equilíbrio quase prefeito. Bo Bardi usou magistralmente os ingredientes lingüísticos à sua disposição: a flexível planimetria oitocentista, o vernáculo do bairro, os ótimos multicoloridos dos camponeses imigrados, os códigos da vanguarda, além de citações de Sant Elia, Le Corbusier, Mies van der Rohe e das Höfe vienenses. Extraordinária montagem de fragmentos, que evita virtuosisticamente qualquer aspecto Kitsch. Renunciando declaradamente à mitologia da beleza clássica, este centro sociocultural de São Paulo joga a carta das dissonâncias com atrevimento e espontaneidade. O direito ao feio é uma reivindicação recorrente em Lina Bardi, uma alternativa ao belo que comparece em um manifesto apresentado como peça de divulgação de uma exposição organizada no próprio SESC, em 1982 I Exposição de Artes dos Funcionários do INAMPS cujo texto afirma: A expressão Kitsch surgiu na Alemanha no fim do século XIX quando a Revolução Industrial tomou definitivamente o poder. É o estigma da alta burguesia culta contra os setores da mesma classe, menos afortunados, que através da industrialização começavam a ter acesso aos Tesouros da Arte, ao Belo. Esta pequena exposição não é uma Integração do Kitsch é apenas um pequeno exemplo do DIREITO AO FEIO, 121

125 base essencial de muitas civilizações, Desde a África até o Extremo Oriente que nunca conheceram o conceito de Belo, campo de concentração obrigado da civilização ocidental. De todo esse processo foram excluídos uns ainda menos afortunados: o povo. E o povo nunca é Kitsch. Mas esta é uma outra história. São idéias como essa que fazem de Lina Bo Bardi um personagem admirável que não obstante sua erudição empenha-se em estabelecer, em sua incansável busca criativa, uma comunicação direta entre o repertório moderno e a tradição da cultura popular. 43 A Ladeira da Misericórdia (1987) Dois aspectos essenciais são destacados na análise desse projeto: a aproximação entre a visão de Lina Bo Bardi acerca da história e o pensamento produzido no campo da restauração; a correlação entre o projeto de Salvador e a experiência de recuperação do centro histórico de Bolonha dos anos , sob coordenação de Pier Luigi Cervellati e Roberto Scannavini, enquanto adoção de uma política atenta à estrutura tipológica da arquitetura existente e ao cidadão usuário. Construir no construído A análise desse projeto, juntamente com a do SESC Pompéia, presta-se de modo especial ao reconhecimento de que a ação de Lina Bo Bardi e equipe (formada por Marcelo Ferraz e Marcelo Suzuki) envolve uma expressiva poética do construir no construído. Esse é, sem dúvida, um dado relevante e oportuno para afrontar a delicada questão da fronteira entre o restauro e a intervenção que se coloca não apenas como operação meramente conservativa, mas 43 Esse tema é abordado por Eduardo P. Rossetti no artigo Tensão moderno/popular em Lina Bo Bardi: nexos de arquitetura. Em Cadernos PPG-AU, FAUFBA, ano I número , pp Em texto intitulado: Centro histórico da Bahia, antigo e moderno, publicado nos anais do XIII Simpósio Multidisciplinar da USJT (set. 2007), Marta Bogéa refere-se à sofisticada edição entre o erudito e o popular presente na sua obra. 122

126 que admite a transformação da preexistência, ainda que controlada por critérios rigorosos. [18] Nesse sentido, o estudo recorre à reflexão representada pelos chamados restauro científico e restauro crítico e, em especial, à contribuição de Cesare Brandi, importante crítico de arte do século XX, italiano, interlocutor de Giulio Carlo Argan 44, autor do livro Teoria del restauro, publicado em Brandi é aqui lembrado por sua reflexão filosófica sobre o problema do restauro que, de certa forma, dá prosseguimento à concepção do chamado restauro crítico 45. O autor representa fonte necessária e fundamental de pesquisa na atualidade: elabora uma análise rigorosa que busca definir princípios gerais orientadores da prática a partir do conceito que se tem da obra a ser submetida ao restauro tida como objeto de interesse histórico e artístico. [18] Implantação geral do Plano de Salvador. Fonte: FERRAZ, 1993, p Em História da arte como história da cidade. No cap. 1: História da arte Brandi é mencionado em várias passagens, entre as quais a da p. 27, em que Argan relaciona o juízo estético de matriz idealista, à compreensão fenomenológica da produção artística de Brandi. Em Projeto e destino comparece um texto intitulado: Eliante ou da arquitetura (Carta a Cesare Brandi) de 1956, uma réplica à sua crítica ao modernismo racionalista. 45 Entende-se por restauro crítico a elaboração teórica, produzida por Roberto Pane, Agnoldmoenico Pica e Renato Bonelli, na Itália em meados do século XX, em meio aos debates do pós-guerra. Define o restauro como um ato de cultura e ato criativo cujo escopo é conservar e reintegrar o valor expressivo da obra, apoiado em critérios de identificação da qualidade artística. Para uma análise aprofundada, consultar verbete restauro architettonico em Enciclopedia Universale dell Arte, vol. XI, Veneza-Roma, Istituto per La colaborazione culturale,

127 A outra perspectiva de investigação refere-se às relações indissociáveis das áreas centrais de interesse histórico com o tecido urbano e metropolitano. Uma compreensão diferente daquela hegemônica até pelo menos as décadas de , segundo a qual essas áreas eram consideradas como elementos estanques, cindidos de continuidade com a realidade urbana da cidade difusa e policêntrica. Esse novo enfoque possibilita conciliar a preocupação preservacionista, às diretrizes mais gerais do planejamento urbano. Entretanto, se até meados do século XX a ação conservacionista afirmava-se principalmente como reação ao abandono e às demolições injustificadas, hoje se identificam excessos em certos processos chamados de patrimonialização 46 que devem ser contidos. A celebração do restabelecimento de um diálogo interrompido Ao saber da iniciativa do prefeito Mário Kertézs que, em 1986, decide retomar a profícua relação de Lina Bo Bardi com a cidade de Salvador e com a cultura baiana, Jorge Amado manifesta grande entusiasmo. Reconhece a importância da ação iniciada no Museu de Arte Moderna e no Museu de Arte Popular, integrantes do projeto do Solar do Unhão e comemora a realização do projeto da Casa do Benin. Assim recorda o autor a situação que antecede a intervenção: (...) processo de abandono e devastação, o contínuo vandalismo, a memória apodrecendo em esquecimento, o patrimônio o do povo, o que pertence à nação posto à venda a preço vil. 47 Em poucas palavras o escritor consegue reunir aspectos centrais ligados ao tema da conservação: a consternação derivada do 46 Conceito elaborado por JEUDY, 2005: refere-se ao processo de fruição do patrimônio cultural, banalizado por estratégias de marketing e políticas culturais de consumo e turismo de massa que privilegiam a imagem, o simulacro, em detrimento do fato material genuíno, além de preterir a população local, em favor dos visitantes ocasionais. Em CHOAY, op. cit., o tema é igualmente abordado. A autora refere-se ao fenômeno resultante da expansão e banalização do conceito de patrimônio como um complexo de Noé, p Texto publicado na revista Projeto n.º 149, em edição especial dedicada à obra de Lina Bo Bardi, p

128 descuido, o apropriado sentido coletivo associado à idéia do patrimônio cultural e a crueza dos interesses econômicos que solapam as bases de uma herança comunitária. [19] A retomada do diálogo Outro texto, de Lina Bo Bardi, datado de março de , expõe os critérios de condução do projeto de recuperação do centro histórico de Salvador, descrevendo a idéia geral que permeia a intervenção: A palavra restauração lembra, em geral, as tristes restaurações. Dentro de um certo período histórico precedente há a destruição de um edifício, isto é, a destruição pelo Tempo, ou pelos homens, por incidentes, por uma guerra, um terremoto... Em geral, a restauração é a restituição a um estado primitivo de tempo, de lugar, de estilo. Depois da Carta de Veneza, de 1965, as coisas melhoraram, mas aquele marco de ranço de uma obra restaurada sempre continua. É muito difícil não perceber ou sentir isso entrando num restauro. O que estamos procurando na recuperação do Centro Histórico da Bahia é justamente um marco moderno, respeitando rigorosamente os princípios da restauração histórica tradicional. [19] Salvador. Imagens do centro histórico degradado. Fonte: Couto, [et al.], 2000, p FERRAZ, op. cit., p Texto também publicado na revista Projeto n.º 149, p

129 Para isso, pensamos num sistema de recuperação que deixe perfeitamente intacto o aspecto não somente exterior, mas também o espírito, a alma interna de cada edifício. Será um sistema de pré-moldados, perfeitamente distinto da parte histórica, denunciado pela sua estrutura e pelo tempo atual. Não vamos mexer em nada, mas vamos mexer em tudo. O arrazoado de Lina Bardi inicia com uma associação entre restauração e tristeza, refere-se textualmente à lembrança de tristes restaurações. A menção deixa espaço para interpretações. A tristeza tanto poderia estar ligada ao processo desencadeado antes da intervenção de restauro a destruição por ação do tempo, do homem ou de incidentes traumáticos, entre os quais as guerras como também poderia referir-se a uma visão saudosista que, descontente com a ação do tempo que tudo transforma, pretenderia restabelecer uma condição ideal originária, como se fosse possível retroceder, ou interromper a passagem do tempo. Uma alusão clara às proposições fantasiosas de Viollet-le-Duc 49. Chega a atribuir avanços à contribuição da Carta de Veneza, mas não vê motivos para muita animação. Detecta a presença de certo ranço atribuído à obra restaurada. Esse ranço, que remete à idéia de conservadorismo, é tudo o que ela quer evitar. Certamente Lina Bardi não se identifica com uma posição romântica, saudosista, de apego ao passado, nem tampouco com uma visão conservadora de oposição a inovações de modo geral. Sua intervenção é fortemente marcada pela contraposição a uma conduta que vigorou no passado, mas que ainda continua fortemente arraigada ao senso comum de restauração, compreendido como cancelamento das vicissitudes do tempo, em favor da restituição de um estado mítico primitivo. Algo muito próximo da posição defendida pelo francês Viollet-le-Duc que, no século XIX, juntamente com John 49 A definição de Viollet-le-Duc sobre o termo restauração, conforme consta no primeiro capítulo desta pesquisa, está presente no Dictionnaire Raisonné de l Architecture Française du XI au XVI Siècle, traduzido para o português: Restauração. E. E. Viollet-le-Duc. Cotia, S.P.: Ateliê Editorial, 2000, p. 17. Em síntese: Restaurar um edifício (...) é restabelecê-lo em um estado completo que pode não ter existido nunca em um dado momento. 126

130 Ruskin, protagoniza o debate ligado à preservação da herança adquirida do passado. 50 O inglês, por sua vez, radicaliza sua posição, não admite sequer uma mínima intervenção, em nome de uma deferência absoluta à materialidade e ao conhecimento histórico. O respeito à autenticidade histórica prescreve a intocabilidade dos vestígios do passado. Entre as duas posições, aquela que obtém maior ressonância é a de Viollet-le-Duc, o que determina uma maior popularidade e também uma espécie de renitência. Lina Bo Bardi, ao afirmar que pretende respeitar rigorosamente os princípios da restauração histórica tradicional, mostra que tem plena consciência dos passos dados por Camillo Boito e consolidados por Gustavo Giovannoni 51, no sentido de superar o impasse criado pelas visões contrapostas dos primeiros teóricos. Sabe que esses arquitetos asseguram uma visão moderada que acolhe os ensinamentos da arqueologia e do estudo rigoroso dos documentos históricos. Tal posição afirma-se na primeira metade do século XX como restauro histórico-filológico que se desdobra no chamado restauro científico, cuja contribuição será analisada a seguir. A menção à Carta de Veneza é indicação de que Lina Bardi está ciente da ampliação da noção de patrimônio que ultrapassa o limite do monumento, das grandes criações, para nela incluir a produção arquitetônica ordinária, ou seja, as obras modestas, que tenham adquirido, como o tempo, uma significação cultural 52. Uma ampliação que passa a considerar dignas de interesse de preservação as edificações mais recentes, o conjunto urbano, seu traçado, suas relações entre volume construído e espaços abertos, além do próprio ambiente natural. Essa maior extensão do acervo dos bens patrimoniais, assim como a vasta destruição provocada 50 As condutas iniciais voltadas à preservação e restauro, elaboradas no século XIX, são tratadas no primeiro capítulo deste trabalho. Vale relembrar que tema é abordado em várias publicações, entre as quais se destaca: KÜHL, B. M. Arquitetura do ferro e arquitetura ferroviária em São Paulo. Reflexões sobre sua preservação. São Paulo: Ateliê Editorial, 1998, pp Camillo Boito ( ) tem grande relevância no panorama cultural do século XIX como arquiteto, restaurador, crítico e professor. Sua obra Os restauradores, apresentada na conferência de Turim de 1884, constitui uma das bases essenciais da teoria contemporânea da restauração. Seu discípulo, Gustavo Giovannoni, aprofunda a reflexão iniciada por Boito, dando sua decisiva contribuição para a redação da Carta de Restauro de A vertente criada por ambos ficou conhecida como restauro científico. 52 Carta de Veneza: Artigo 1º. Consulta ao site acesso em 2/04/

131 pela Segunda Guerra Mundial, contribuem para a crise metodológica que atinge o restauro científico, abrindo caminho para a revisão conduzida pelo restauro crítico. Um aspecto relevante do projeto da Ladeira da Misericórdia envolve a técnica aplicada à consolidação e travamento das estruturas existentes, resultado da parceria com João Filgueiras Lima, o Lelé. Uma solução que obedece às orientações da Carta de Veneza que no artigo 10º afirma: Quando as técnicas tradicionais se revelarem inadequadas, a consolidação do monumento pode ser assegurada com o emprego de todas as técnicas modernas de conservação e construção cuja eficácia tenha sido demonstrada por dados científicos e comprovada pela experiência. Neste caso, o procedimento técnico inovador corresponde à utilização dos painéis plissados em argamassa armada, ora usados como divisórias internas, ora como lajes que substituem os assoalhos irremediavelmente deteriorados, ora empregados como contrafortes de estabilização dos edifícios existentes, recompondo a continuidade do conjunto naqueles lotes vazios em que as construções primitivas foram demolidas. [20] Esse é um sistema de consolidação estrutural que nasce a partir de uma triangulação conceitual proposta por Lina Bardi que, conhecendo o processo de concepção estrutural de Lelé, recomenda-lhe de observar o trabalho de Pier Luigi Nervi, a respeito da reelaboração do processo construtivo do ferro-cimento 53. Um dado curioso testemunha essa articulação operada por Lina Bardi. Na impossibilidade de comparecer a um primeiro encontro de trabalho com Lelé que deveria acontecer na Fábrica de Escolas, no Rio de Janeiro, Lina envia, por intermédio de seus colaboradores, uma folha de capim-palmeira dentro de uma caixa, com o seguinte 53 A esse respeito consultar texto dos Anais do XIII Simpósio Multidisciplinar da USJT, São Paulo, 2007, intitulado: Projeto Piloto Ladeira da Misericórdia pela lente de um caleidoscópio. Lente 3: Longe dos olhos e perto da criação: Lina, Lelé e Nervi. A aproximação entre o sistema idealizado por Nervi e o das peças préfabricadas de argamassa armada de Lelé, intermediada por Lina Bo Bardi é descrita em detalhes. 128

132 recado: entreguem isso a Lelé e digam que eu penso em uma estrutura assim. Ele vai entender (...). Em carta de resposta a Lina Bardi, acompanhada de estudos das peças pré-fabricadas em ferrocimento, Lelé demonstra ter entendido a sugestão e explicita a referência de consulta em forma de um P.S.: Foi muito importante examinar o material que você me mostrou do Nervi. 54 [21] [22] Talvez seja justamente o back-ground teórico, associado a um consistente preparo técnico, o que impede o diálogo com as equipes do SPHAN local, dificuldade mencionada por Cecília Rodrigues dos Santos 55 ao comentar o veto à continuidade de implantação do projeto. Ainda hoje é comum deparar-se com posições datadas em discussões com especialistas. Quando o tema é o patrimônio urbano, é recorrente a evocação de argumentos enunciados pelo chamado restauro científico, marcados por uma visão positivista, de certo modo esquemática, das questões estéticas. [20] Contrafortes em argamassa armada. Fonte: FERRAZ, 1993, p Cf. LATORRACA, Giancarlo (org.). João Filgueiras Lima Lelé. São Paulo: Blau: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, em texto em que é descrito o processo de concepção dos elementos pré-fabricados, intitulado: Recuperação do Centro Histórico FAEC. Salvador, BA, 1988, p Revista Projeto n.º 149, jan./ fev. 1992, p

133 O respeito histórico como culto desmedido ao passado determina proposições de ambientamento 56, com o uso de formas de estilo simplificado para os elementos novos. Medidas fundadas em uma pretensa neutralidade na inserção do novo, no contexto histórico consolidado, estabelecem a adoção de normas muito rígidas e genéricas que priorizam volumes, alturas, mas não garantem a qualidade arquitetônica da intervenção contemporânea. [21] Plantas com indicação dos painéis de argamassa armada. Fonte: FERRAZ, 1993, p O termo é do idioma italiano e refere-se à conduta sugerida pelos teóricos do restauro científico, com respeito à tutela dos ambientes de reconhecido valor histórico. Recomenda que na construção de novos edifícios na recomposição de lacunas no tecido urbano (por demolição ou perdas de continuidade), mantenham-se os volumes dos edifícios preexistentes, assim como os elementos estruturadores da forma que integram o repertório tradicional. O interesse declarado é o de preservar a uniformidade, ou seja, evitar a discrepância de linguagem entre o velho e o novo. Esse tema é tratado no segundo capítulo desta pesquisa. 130

134 Um diálogo de tempos Indiscutivelmente a análise de intervenções em preexistências de valor artístico e documental requer necessariamente o balizamento dos critérios adotados no projeto com aqueles preceitos desenvolvidos no campo disciplinar da preservação de bens culturais. Nesse sentido, é fundamental considerar a reflexão teórica já produzida e consolidada, como instrumento que formula os princípios gerais a serem reelaborados nas circunstâncias específicas dos casos analisados. Uma abordagem preliminar desatenta pode sugerir uma completa independência de Lina Bardi em relação ao pensamento produzido no terreno da preservação e restauro. A sua postura livre, contestadora, e sua personalidade controversa corroboram essa tese. De fato, não é o caso de rotular seu procedimento de projeto conforme esta ou aquela vertente da restauração. A este estudo interessa, entretanto, identificar certas tangências de raciocínio. Interessa, sobretudo, investigar como Lina transita entre o rigor exigido pelo respeito histórico e a liberdade que tanto preza. A esse propósito, convém retomar as posições do restauro científico e crítico, no intuito de entender de que modo são incorporadas ao fazer arquitetônico de Lina Bo Bardi. [22] Conjunto antes e depois da recuperação. Fonte: FERRAZ, 1996, p. 292 e

135 Giovanni Carbonara 57, em seu livro Avvicinamento al restauro (1997), dedica um capítulo ao tema do restauro científico 58. Observa inicialmente a ascendência do chamado restauro histórico, espécie de transição que, a partir das primeiras proposições, impõe certos limites às reconstituições, na medida em que as atrela à análise cuidadosa de documentos e de iconografias existentes, além de atentar não exclusivamente à condição primitiva do edifício a ser restaurado. Compreensão que destaca o valor documental da arquitetura, o restauro científico afirma-se nas primeiras décadas do século XX e consolida a convicção de que se devam preservar as diversas passagens que marcam a existência de um edifício, como camadas de tempos distintos que sinalizam a trajetória da história. Colocando-se como mediação de posições conflitantes: opõe-se à visão de Viollet-le-Duc de que o restauro deva passar inobservado ao recomendar que a intervenção seja distinguível da preexistência, mas, do mesmo modo, opõe-se à posição de Ruskin ao afirmar a legitimidade da restauração. Como teoria intermediária propõe rigor e cautela na intervenção, ou seja, priorizar as obras de manutenção, reparo e consolidação, nessa ordem, deixando as ações mais invasivas para os casos indispensáveis. Por respeito à autenticidade do material original é que se impõe a diferenciação dos acréscimos em relação às partes antigas e, da mesma forma, que as reconstruções se baseiem em dados precisos, refutando hipóteses incertas. Tanto a distinção entre o antigo e o novo nas operações de restauro, como a manutenção da sobreposição de passagens sucessivas, contribuem para que o restauro científico promova o diálogo de tempos. 57 Carbonara é professor, diretor da Scuola di Specializzazione per lo Studio ed Il Restauro dei Monumenti della Facoltà di Architettura dell Università degli Studi di Roma La sapienza. Contribui de modo significativo para a reflexão no campo disciplinar da restauração com diversas publicações, entre as quais se destaca os livros consultados: Avvicinamento al restaro: Teoria, storia, monumenti. Nápoles, Liguori, 1997 e La reintegrazione dell immagine. Roma: Bulzoni, Em Avvicinamento... contempla, mais do que as técnicas, os princípios reguladores da prática no trato da restauração, no sentido de garantir aquela operosidade consciente dos próprios deveres e dos próprios limites dos quais se adverte, frequentemente, a ausência. 58 CARBONARA, G. Avvicinamento... em parte II, cap. 8, trata do Restauro Científico, pp Na parte III, cap. 2, aborda o Restauro Crítico, pp

136 Assinala Carbonara que durante várias décadas o restauro científico é visto como postura de absoluto rigor, justamente pelo fato de representar importantes reparos às imprecisões e arbítrios possibilitados pelas interpretações das primeiras teorias. Dois fatores, no entanto, concorrem para que essa conduta seja considerada superada, em meados do século XX, como ocorre inevitavelmente com os postulados históricos: - o primeiro é a afirmação de novas teorias estéticas, entre as quais a de Benedetto Croce 59, uma compreensão crítica atenta às especificidades de cada obra e à sua trajetória no tempo, mais do que aos aspectos estilísticos e enfoques evolutivos priorizados por uma leitura de matriz positivista, como o era a do restauro científico; - outro fator que contribui para o questionamento dessa posição é a destruição avassaladora provocada pela Segunda Guerra Mundial, que exige respostas rápidas e urgentes, ações em larga escala, não compatíveis com a ação cautelosa e inflexível de selecionar criteriosamente cada objeto de intervenção, de realizar estudos (bibliográficos e de arquivos) e levantamentos (in-loco) rigorosos e demorados antes de proceder à intervenção propriamente dita, como querem os preceitos dessa linha de atuação. Mesmo porque, nessas circunstâncias excepcionais não se trata exclusivamente de reparo, recuperação e reconstrução de obras de valor arquitetônico consagrado: as ações voltam-se de modo geral aos bens comuns de caráter ordinário e devem suprir carências mais imediatas. O próprio Giovannoni admite adaptações: melhor um restauro cientificamente imperfeito, que represente uma ficha perdida na história da arquitetura, que a renúncia completa, a qual privaria as nossas cidades do seu aspecto característico nos mais significativos monumentos de arte. 60 Há que se considerar um aspecto novo que aflora de forma contundente: a questão emotiva, sentimental. A guerra comove, revolve sentimentos, faz emergir motivações de caráter afetivo, tornando discutíveis as prerrogativas ditas científicas da postura até então em vigor. 59 Ver CROCE, B. Breviário di estética, CARBONARA, op. cit., p. 248 (tradução da autora). 133

137 São esses questionamentos a colaborar para o desenvolvimento do restauro crítico, entre os anos 1940 e 1960, principalmente por mérito dos teóricos: Renato Bonelli, Roberto Pane e Agnoldomenico Pica, que nesses anos apontam as dificuldades de aplicação das orientações previstas pelo restauro científico e defendem a necessária revisão. Os aspectos mais discutidos, segundo Carbonara, eram: a orientação classificatória e positivista no modo de entender as manifestações artísticas, a ênfase em uma abordagem evolutiva na condução da análise histórica da produção artística, um substancial desinteresse pelo componente estético do problema, especialmente no que tange às recomendações de soluções formais neutras, no aconselhamento ao ambientamento, que acabam por subestimar as qualidades figurativas dos monumentos. Destaca o autor que os debates mais expressivos do ponto de vista filosófico, especialmente estético, ocorrem em Nápoles e Roma. Conforme destaca Carbonara, o restauro crítico parte da premissa de que: cada intervenção constitui um caso em si, não enquadrável em categorias (como aquelas meticulosamente indicadas pelos teóricos do chamado restauro científico : completamento, liberação, inovação, recomposição, etc.), nem adaptável às regras preestabelecidas ou a dogmas de qualquer tipo, mas a se reinventar com originalidade, caso a caso, nos seus critérios e métodos. 61 De acordo com esse entendimento, o restaurador deve ter, além de competência técnica, um profundo conhecimento da história da arte e da arquitetura, condições que lhe permitem distanciar-se de decisões arbitrárias, para encontrar a escolha apropriada, condizente com uma adequada investigação histórico-crítica. A discussão versa sobre os procedimentos mais comuns: a reintegração de lacunas, a remoção de acréscimos inconvenientes, a diferenciação de elementos novos, a reversibilidade e a escolha da técnica a ser adotada nas operações a serem realizadas. 61 Idem, p. 285 (tradução da autora). 134

138 A qualidade da solução aplicada em cada operação está necessariamente ligada à criatividade e à capacidade de invenção, requisitos essenciais da ação arquitetônica. Uma criatividade que deve ser orientada, ainda que não exclusivamente, mas em grande medida para a conservação. Uma das preocupações básicas é, através do juízo crítico, diferenciar a obra arquitetônica de caráter excepcional, enquanto qualidade artística e valor estético, da obra de valor documental, testemunho da atividade humana, pois, segundo a concepção do restauro crítico, a finalidade da ação é justamente liberar a verdadeira imagem. Uma vez que os conceitos de qualidade não são permanentes, mas se transformam com o tempo, estes exigem, portanto, o esclarecimento dos motivos e dos critérios que amparam o reconhecimento de valor. Conforme observa Carbonara, o restaurador alinhado com essa vertente mostra-se mais confiante na sua própria capacidade crítica e atribui prioridade ao valor artístico, pois a ele não interessa preservar unicamente o valor da obra enquanto documento, mais do que isso, o que realmente interessa é o esforço de atualizar o ato criativo. Nesses termos, o restauro é entendido como processo crítico e ato criativo, duas operações aproximadas em uma relação dialética, em que a segunda é subordinada à primeira. Assim sintetiza o autor essa atitude voltada a tornar viva e presente a obra de arte e de arquitetura: Aqui se unem o reconhecimento e a satisfação derivada do valor artístico-histórico com a necessidade de restituir à obra a eficácia e a pregnância 62 que o tempo corroeu e diminuiu. O restauro como avaliação crítica é paralelo à história da arte, da qual extrai princípios e métodos; representa, em essência, um caso particular, em que a ação crítica se prolonga na prática. (...) demonstra o 62 Conforme definição do Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa : forma e estabilidade de uma percepção; lei ou princípio geral da teoria da Gestalt segundo o qual a configuração perceptiva particular que reponta, entre todas as outras potenciais, é tão boa quanto o permitirem as condições prevalentes, e suas propriedades são a simplicidade, a estabilidade, a regularidade, a simetria, a continuidade, a unidade, a concisão (p.ex., uma circunferência com pequenas falhas no traçado é vista como se fosse perfeitamente fechada) 135

139 conhecimento do momento histórico e uma consciente continuidade com o passado 63 Sem dúvida, as definições carregam o peso de incorrer em interpretações pessoais pouco rigorosas, pelo próprio vocabulário usado pelos teóricos dessa vertente, (atualização, valorização, forma completa, liberação da verdadeira forma, verdadeira unidade figurativa), quando apropriado por agentes motivados por ações de modernização e transformação arbitrária ou duvidosa. Uma contribuição no sentido de aprimorar essa conduta e de conter as imprecisões a que inadvertidamente induz pode ser reconhecida na teoria de Cesare Brandi. Apelando mais uma vez a Carbonara, admite-se que a filosofia do restauro na Itália, ainda hoje vê seu ponto de referência no pensamento de Brandi, fundador e diretor do Istituto Centrale di Restauro di Roma, o mais prestigioso organismo nesse campo. A partir de uma orientação crítica de ascendência kantiana e inspiração crociana, organiza seu pensamento, com amplas e originais aberturas à fenomenologia de Husserl e ao estruturalismo de Heidegger. As escolhas transitam entre as teorias Para situar os procedimentos de Lina Bardi em confronto com as posturas a que faz referência, nada mais oportuno que iniciar com a sua compreensão a respeito das conexões entre a história e as memórias coletivas, entre a narrativa oficial e as diferentes interpretações que constituem o cotidiano: Mas o tempo linear é uma invenção do Ocidente, o tempo não é linear, é um maravilhoso emaranhado onde, a qualquer instante, podem ser escolhidos pontos e inventadas soluções, sem começo nem fim. 64 Tempo e história nessa citação são sinônimos, o que equivale a entender a história, como passado vivo que incide diretamente no presente e conduz à reflexão. Vale observar que essa é uma das 63 Carbonara, op. cit. p. 278 (tradução da autora). 64 FERRAZ, op. cit. Citação de fechamento da publicação. 136

140 discussões propostas pela chamada Nova História 65, uma abordagem contemporânea que renuncia à temporalidade linear, detendo-se nos múltiplos tempos vividos, entendendo que a experiência individual se enraíza no social e no coletivo, como se pretende analisar. Fundamental para esta análise investigar o seu entendimento acerca da locução presente histórico : Existe porém outro tipo de Passado que pode ser conservado mas deve viver ainda em forma de Presente Histórico, acompanhando o presente real da vida de todos os dias. 66 O termo já tinha sido nominado na mencionada Aula de arquitetura 67 e reaparece no texto sobre a intervenção que transforma o antigo Palácio das Indústrias em nova sede da Prefeitura do Município de São Paulo 68 nos seguintes termos: É preciso se libertar das amarras, não jogar fora simplesmente o passado e toda a sua história: o que é preciso é considerar o passado como presente histórico. O passado, visto como presente histórico, é ainda vivo, é um presente que ajuda a evitar as várias arapucas... Frente ao presente histórico, nossa tarefa é forjar um outro presente, verdadeiro, e para isso é necessário não um conhecimento profundo de especialista, mas uma capacidade de entender historicamente o passado, saber distinguir o que irá servir para as novas situações de hoje que se apresentem a vocês, e tudo isto não se aprende somente nos livros. Na prática, não existe o passado. O que existe ainda hoje e não morreu é o presente histórico. O que você tem que 65 Ver a esse respeito texto de Jacques Le Goff em Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Verbete Memória, p.44. A revista Annales d histoire économique et sociale, criada em 1929 por Marc Bloch e Lucien Febvre, provocou polêmica e surpreendente transformação nos domínios da historiografia. Da Escola dos Annales, como passou a ser chamada, nasce a Nouvelle Histoire, associada a importantes nomes como Emmanuel Le Roy Ladurie, Fernand Braudel, Pierre nora, além do próprio Le Goff. 66 FERRAZ, op. cit., p. 276, em texto sobre o Projeto Barroquinha. 67 O primeiro parágrafo consta no texto da Aula Inaugural da FAUUSP de 1990, publicada na revista Projeto n. 133, p Sobre o projeto para a instalação da sede da Prefeitura Municipal de São Paulo no antigo Palácio das Indústrias ( ), convém destacar a sugestiva ideia da instituição antikafkiana mencionada por ela. 137

141 salvar aliás, salvar não, preservar são certas características típicas de um tempo que pertence ainda à humanidade. Mas, se a gente acreditar que tudo o que é velho deve ser conservado, a cidade vira um museu de cacarecos. Em um trabalho de restauração arquitetônica, é preciso criar e fazer uma seleção rigorosa do passado. O resultado é o que chamamos de presente histórico. 69 Essas colocações fazem pensar à apreensão de uma dimensão histórica que não se reporta a um passado idílico, o dos tempos idos que os anos não trazem mais, como lastimava o poeta, mas que, ao contrário, enxerga as coisas vivas do presente como resultantes de todo um acúmulo de experiências passadas que lhe conferem peso e significado cultural. Remete ainda à fronteira entre lembrança e esquecimento, à imprescindível seleção implícita no processo de reconhecimento daquilo que se elege para conservar. É natural também associar essas reflexões com a visão do restauro crítico acima discorrida. Por outro lado, tal noção sugere de pronto uma aproximação com aquela enunciada por Brandi em seu livro, Teoria da restauração 70, ao apresentar a história e a estética como os elementos centrais da obra de arte ou do bem cultural sujeito aos interesses de preservação. Rever as contribuições de Cesare Brandi revela-se oportuno em razão da autoridade representada pelo autor no domínio da preservação e do restauro. A relevância de sua obra dá-se pela busca de princípios e métodos de intervenção filiados ao pensamento crítico e científico. Defende a postura rigorosa de que toda e qualquer intervenção deva se apoiar na filologia e na hermenêutica, ou seja, no estudo dos fenômenos da cultura por meio 69 FERRAZ, op. cit., p BRANDI, C. Teoria da restauração. Trad. Beatriz M. Kühl. São Paulo: Ateliê Editorial, A tradução do livro para o português permitiu a maior divulgação dessa obra fundamental no Brasil, bem como a ampliação e atualização das discussões, conforme os debates mais recentes do panorama internacional. 138

142 de textos, documentos e, desse modo, se contrapor ao empirismo e à arbitrariedade. Uma primeira contribuição do autor equivale à apreensão da peculiaridade da ação de conservação voltada ao bem cultural, distinta daquela dirigida ao artefato comum. Em uma acepção corrente a noção de restauro pressupõe a recuperação de uma condição de uso. Se, para o artefato comum esse aspecto é relevante, para a obra de arte, de acordo com Brandi, essa condição pode ser secundária, tendo em vista a preponderância de sua expressividade figurativa, frente às questões utilitárias. Dessa apreensão decorre o primeiro corolário enunciado pelo autor: (...) qualquer comportamento em relação à obra de arte 71, nisso compreendendo a intervenção de restauro, depende de que ocorra ou não o reconhecimento da obra de arte como arte. 72 O valor atribuído ao objeto de intervenção condiciona definitivamente a ação, isto é, a própria intervenção deverá articular seu conceito não com base nos procedimentos operativos, mas com base no conceito que se faz da obra. Assim conclui Brandi: Chega-se, desse modo, a reconhecer a ligação indissolúvel que existe entre a restauração e a obra de arte, pelo fato de a obra de arte condicionar a restauração e não o contrário. 73 Para compreender o alcance da reflexão de Brandi, convém, em primeiro lugar, retomar a sua definição de restauro: (...) a restauração constitui o momento metodológico do reconhecimento da obra de arte, na sua consistência física 71 A referência de Brandi à obra de arte deve ser contextualizada. Na atualidade essa compreensão é mais alargada, subentende a noção do patrimônio numa acepção mais ampla, equivalente a de bem cultural. 72 BRANDI, C. op. cit., p Idem, p

143 e na sua dúplice polaridade estética e histórica, com vistas à sua transmissão para o futuro. 74 Conforme sugere Carbonara, da definição depreende-se que: restauro é ato crítico, atento ao juízo de valor, dirigido ao reconhecimento da obra na sua dupla polaridade estética e histórica; do reconhecimento surge o dever 75 de conservação; por tratar de obras de arte (como já mencionado, vale estender a compreensão à noção de bem cultural, ou seja, particulares expressões do fazer artístico, portadoras de significado cultural), a restauração deve privilegiar a instância estética, por constituir o fato basilar da artisticidade, aspecto fundamental que define a obra de arte como tal; a obra é entendida na sua totalidade indissociável de forma, imagem e matéria (que veicula a imagem consubstanciada na forma). Cabe aqui esclarecer acerca do momento metodológico mencionado na definição de Brandi. Segundo o próprio autor, a ação de preservação se impõe como um imperativo categórico no próprio instante do reconhecimento da obra. Tal reconhecimento advém de modo intuitivo na consciência individual, representando porém uma consciência coletiva que exige a conservação. O caráter metodológico vinculado à ação impõe uma postura científica, a adoção de um corpo de regras e diligências que orientem os trabalhos, como único modo de conter o casuísmo da intervenção. No entender de Brandi, o restauro está situado no momento da manifestação da obra de arte como tal na consciência de cada um. A ação encontra origem no momento de reflexão, nessa súbita revelação que impõe a necessidade de transmissão ao futuro. 74 Idem, p Nos termos colocados por Emannuel Kant ( ), conforme Houaiss: (...) obrigação de agir segundo uma lei moral ditada pela pura razão, a despeito de quaisquer inclinações sensoriais ou afetivas, ou mesmo de regras e valores de origem religiosa ou política 140

144 Restauro é, portanto, providência vinculada ao reconhecimento de valor que, por sua vez, requer um processo organizado, lógico e sistemático de instrução. Essa idéia sobre a formulação do juízo estético, enquanto reconhecimento de valor da obra de arte, apresenta afinidades com as de Giulio Carlo Argan: O valor é, obviamente, um algo mais de experiência da realidade ou da vida, pelo qual o objeto transcende a própria instrumentalidade imediata; e este algo mais não passa do objeto para o sujeito se a consciência, no momento em que o recebe, não reconhece que ele se situa além da esfera da contingência, na esfera dos valores permanentes da civilização, da história. 76 Sobre os componentes constitutivos do objeto de intervenção, assim discorre Brandi: Como produto da atividade humana, a obra de arte coloca, com efeito, uma dúplice instância: a instância estética, que corresponde ao fato basilar da artisticidade pela qual a obra de arte é obra de arte; a instância histórica que lhe compete como produto humano realizado em um certo tempo e lugar e que em certo tempo e lugar se encontra. 77 Mais adiante pontua o caráter dúplice da historicidade: Foi dito que a obra de arte goza de uma dúplice historicidade, ou seja, aquela que coincide com ato de sua formulação, o ato de criação, e se refere, portanto, a um artista, a um tempo e a um lugar, e uma segunda 76 ARGAN, G. C. História da arte como história da cidade. Trad. Píer Luigi Cabra. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 17. Com já mencionado, autor explicita a afinidade ao mencionar Brandi diversas vezes, como na p. 28, quando afirma que Brandi reconhece que a obra de arte é percebida pela consciência em sua historicidade. Em outro trecho afirma: O próprio Brandi exclui que a obra de arte seja comunicação de mensagens ou conteúdos dados, os quais, de fato, se fossem fielmente retraduzidos em palavras e conceitos, resultariam com freqüência insignificantes ou incoerentes. (p ). 77 Idem, p. 29. Conforme Argan, em Projeto e destino, p.59, o conceito de artisticidade, em sentido fenomenológico, foi posto com clareza por Dino Formaggio em L idea di artisticità (1962). Argan aconselha ainda consultar a obra: L integrazione estética, de 1959, de Rosario Assunto. 141

145 historicidade que provém do fato de insistir no presente de uma consciência (...) O período intermediário entre o tempo em que a obra foi criada e esse presente histórico que de modo contínuo se desloca para frente, será constituído de outros tantos presentes históricos que se tornaram passado, mas de cujo trânsito a obra poderá ter conservado traços. 78 O entendimento do presente histórico, formulado por Brandi, é fundamental para a definição do momento adequado para situar a intervenção de restauro. (...) o único momento legítimo que se oferece para o ato da restauração é o do próprio presente da consciência observadora, em que a obra está no átimo e é presente histórico, mas também é passado e, a custo, de outro modo, de não pertencer à consciência humana, está na história. A restauração, para representar uma operação legítima, não deverá presumir nem o tempo como reversível, nem a abolição da história. A ação de restauro, ademais, e pela mesma exigência que impõe o respeito da complexa historicidade que compete à obra de arte, não se deverá colocar como secreta e quase fora do tempo, mas deverá ser pontuada como evento histórico tal como o é, pelo fato de ser ato humano e de se inserir no processo de transmissão da obra de arte para o futuro. 79 Vale destacar a clara intenção de evidenciar a intervenção, não mimetizar, não esconder, não confundir o público em geral, seja composto por iniciados ou não. Difícil saber se o presente histórico de Lina Bardi tem por base a expressão brandiana 80. Contudo sua origem e formação apontam para uma familiaridade com a notável produção desse intelectual 78 Idem, pp Idem, p. 61. (O grifo é nosso.) 80 Em debate realizado no MASP, em 25/08/09, por ocasião do lançamento do livro Lina por escrito, Silvana Rubino (umas das organizadoras da publicação junto com Marina Grinover) comenta a respeito da acepção crociana dessa expressão. Benedetto Croce representaria certamente um dos pontos de contato entre os presentes históricos de Lina Bardi e de Cesare Brandi. 142

146 italiano. Fato é que a citada Carta de Veneza surgiu na esteira do debate criado entorno do chamado restauro crítico e tanto o documento, como as idéias defendidas por essa tendência, são materiais burilados pelo pensamento de Brandi e ainda permanecem nos dia de hoje como referências válidas para aqueles que atuam no campo disciplinar do restauro. Mais relevante que apontar essas aproximações, talvez seja observar que a orientação geral do projeto, sob certos aspectos, afina-se com os princípios apresentados pelo teórico. É oportuno reafirmar que não se trata aqui de pretender enquadrar forçosamente a conduta de Lina como arquiteto disposto a lidar com as preexistências conforme as diretrizes de uma precisa vertente da teoria da restauração, e sim buscar afinidades no encadeamento lógico do problema. Mesmo porque não se pode subestimar o peso de sua formação, inclusive no tocante ao campo específico da restauração, tão relevante na produção acadêmica de Roma, cidade em que se formou. Os ensinamentos de Gustavo Giovannoni, aliás, eram freqüentemente mencionados e confirmados pelo relato de seus colaboradores mais próximos, enquanto referência de uma significativa herança cultural adquirida. Daí o apreço pelo sentido histórico do ofício do arquiteto, contra as posições mais abstratas e simplistas do movimento moderno que defendiam fazer do passado tábula rasa. A história entendida como presente histórico e memória viva é o mote da intervenção que promove um diálogo de tempos no território da Ladeira da Misericórdia. Uma recriação, algo indicado como pertinente pelo próprio Brandi, não obstante sua postura rigorosa: apesar de não entrar no campo da restauração, pode ser perfeitamente legítimo também do ponto de vista histórico, porque é sempre testemunho autêntico do presente de um fazer humano e, como tal, monumento não dúbio de história. Importante ainda analisar como é abordado pelo autor o problema da conservação ou remoção de acréscimos extemporâneos sob os dois elementos essenciais que constituem as obras objetos de 143

147 intervenção: o da história e da estética. Indagar em que medida se aplica a razão histórica ou prevalece a razão estética, e buscar uma alternativa em caso de eventual discrepância. Observa Brandi que segundo a instância da historicidade, a princípio, a adição é um novo testemunho do fazer humano e, portanto, da história e como tal tem o direito de ser conservada. A remoção, ao contrário, deve ser justificada, pois apesar de se inserir igualmente na história, destrói um documento e não documenta a si própria, o que equivaleria a um cancelamento de uma passagem histórica. Disso decorre que, para a historicidade, a conservação da adição é norma enquanto que a remoção é excepcional. Do ponto de vista da estética, inverte-se o raciocínio: o acréscimo reclama a remoção. Delineia-se, assim, o conflito entre as duas instâncias e a resolução é determinada por aquela que tem maior peso. E como a essência da obra de arte deve ser vista no fato de constituir uma obra de arte e só em segunda instância no fato histórico que individua, é claro que se a adição deturpa, desnatura, ofusca, subtrai parcialmente a vista, essa adição deve ser removida (...) 81 Vale enfatizar que será sempre um juízo de valor a determinar a prevalência de uma ou de outra instância histórica ou estética na conservação ou remoção dos acréscimos. Lina Bo Bardi não cai na armadilha do excesso de zelo do presente frente ao passado. Não acata as recomendações de ambientamento, nem tampouco os clichês de um novo envidraçado que, fingindo-se discreto, se apresenta com espalhafato. Opta por uma calculada intervenção em que a ruína continua ruína, assegurando assim sua presença como vestígio de um tempo humano, ao mesmo tempo em que impede o avanço da corrosão, do desmantelamento, por meio da consolidação estrutural com o emprego dos contrafortes de argamassa armada, uma técnica nova e apropriada. Os terrenos baldios propiciam projetos de novos 81 Idem, p.84. (O grifo é nosso). 144

148 edifícios que convivem com muros e vegetação preexistentes. Novos usos diversificam e animam as atividades ali presentes. É importante destacar a atenção do projeto ao espaço interno dessas construções em que as modificações são claramente perceptíveis: as paredes novas, que empregam a mesma técnica dos contrafortes, distinguem-se daquelas mantidas. A transformação não ofende, mas dialoga como o existente. As escolhas notadamente pessoais, descoladas das posições aceitas no campo da restauração, podem ser identificadas nas decisões de pintar de branco as paredes, de remover as tintas da madeira dos caixilhos, deixando evidentes o aspecto e a cor do material. Estas atitudes são facilmente reconhecidas como marcas de um raciocínio moderno. Coincidem com as estratégias de valorizar a autenticidade dos materiais, de optar pela simplicidade e pela ausência de cor. O patrimônio urbano Ao se tratar da Ladeira da Misericórdia, fala-se de uma intervenção em um trecho de cidade, uma ação que extrapola o edifício para se reportar ao urbano, um contexto marcado pelos testemunhos da arquitetura tradicional. O entendimento da relação inseparável que atrela a arquitetura ao território é condição essencial para a formulação do conceito do patrimônio urbano, considerado em sua dimensão de bem cultural coletivo, que ultrapassa os limites estritos do valor econômico, da mercadoria. Tomar por referência a notável reabilitação do centro histórico de Bolonha é indicação clara desse pressuposto. Trata-se de uma ação exemplar elaborada em fins dos anos 1960 e realizada ao longo das décadas de : uma das primeiras ações de grande repercussão internacional a reverter um fenômeno de degradação e desvalorização que acomete não só Bolonha, mas outras áreas centrais de importantes cidades européias. A situação de desgaste agrava-se na mesma medida em que se pronuncia um mecanismo de expansão urbana, associado à especulação imobiliária que, ao privilegiar áreas periféricas para implantação de novos projetos e serviços, relega os centros históricos à condição de abandono. 145

149 A falta de investimentos particulares (e também públicos) contribui para uma evasão acentuada de habitantes e para uma limitação de uso, o que determina a permanência preponderante daqueles usuários com poucos recursos financeiros para arcar com as despesas das obras de recuperação e modernização das edificações. Faz-se então necessária a intervenção do poder público para promover investimentos e alterar aqueles processos gerados pela atividade do mercado imobiliário. No diagnóstico elaborado pelos idealizadores do programa, entre os quais havia políticos, arquitetos e urbanistas ligados ao Partido Comunista Italiano que administrava o município desde o pós-guerra, pode ser notado o tom cético em relação ao modelo vigente de expansão urbana e à situação dos sítios históricos: (...) conviene subrayar la necesidad de tener una visión global del problema del centro histórico y su recuperación, partiendo de un análisis crítico del sistema de desarrollo de nuestro país y de las consecuentes tendencias en la ordenación del territorio como causa primordial de la destrucción actual de los centros históricos y de la marginación de las clases sociales menos pudientes y de las actividades más humildes. Dentro de este sistema, que se traduce, por su parte, en un constante aumento de la producción de casa nuevas e, por otra, en una concentración de las instalaciones productivas dentro de las áreas metropolitanas, está claro que el centro histórico reviste hoy un valor marginal y subalterno. 82 Parte-se então da premissa de que não se pode definir uma política de conservação urbana desvinculada da política econômica e territorial, ou seja, entende-se que os aspectos da conservação estejam intimamente ligados aos fenômenos econômicos e sociais. Nesse sentido, o centro histórico é considerado como um bem cultural inalienável, como um notável patrimônio econômico edificado que não pode ser desperdiçado, nem deixado nas mãos da 82 Na edição em espanhol de CERVELLATI, P. L., SCANNAVINI, R. Bolonia politica y metodologia de la restauración de centros históricos. Barcelona: Gustavo Gili, 1976, p.1 146

150 especulação, mas que pelo contrário deve ser conservado e recuperado para fins de habitação social, alijado de transformações estruturais e funcionais a que, na ausência de uma ação tutelar de natureza conservativa, estaria espontaneamente submetido. Estão lançadas as bases da chamada Conservação Integrada que obterá grande repercussão internacional após a Declaração de Amsterdã (1975) que, sob influência das ações em Bolonha, recomenda expressamente a conciliação entre as preocupações de conservação e as diretrizes do planejamento urbano e territorial. O resultado é uma intervenção cuidadosa que dispensa a devida atenção à população residente e aos grupos de baixa e média renda, que procura viabilizar a execução das obras de recuperação sem provocar a expulsão dessa mesma população. O mecanismo de gentrification 83 tão acentuado em ações mais recentes, em que essas preocupações não são postas em evidência, é assim contido. Outra questão pertinente na análise desse plano é o cuidado com a materialidade arquitetônica e o trabalho meticuloso de levantamento e análise das tipologias construtivas que antecederam as intervenções. Esta é uma orientação fundamental, ditada pelo respeito histórico, pelo reconhecimento de que o valor daquele conjunto edificado está aportado em aspectos interligados entre si, tais como: a configuração espacial, a técnica construtiva, o emprego dos materiais, a organização interna dos edifícios. Isto significa que a atenção está muito além da simplificação que considera tão somente o volume, seu contorno, ou a aparência externa, para levar em conta a arquitetura em toda sua inteireza. [23] Os rumos tomados pela experiência, em certos aspectos, se distanciaram das premissas iniciais. Observou-se, por exemplo, que a própria expansão da universidade colaborou para uma procura por habitação nas áreas centrais, por parte de estudantes e professores que necessariamente desalojaram antigos moradores de menor 83 O significado do termo, usado genericamente para indicar um processo de transformação de uma zona popular em região nobre, é analisado em detalhes, nas diversas nuances dadas por diferentes autores em texto de Silvana Rubino: Gentrification: notas sobre um conceito incômodo. In: SCHICCHI, M. C. et al. (org), Urbanismo: dossiê São Paulo-Rio de Janeiro. Campinas: Rio de Janeiro: PUC- Campinas, PROURB-UFRJ, A autora informa que o termo foi usado foi pela primeira vez pela socióloga inglesa Ruth Glass em

151 poder aquisitivo. Esses dados confirmam que a cidade é organismo vivo, sujeito a pressões e conflitos, que nem tudo pode ser decidido na mesa dos planejadores e que deve haver espaço para negociação. Provavelmente Lina Bardi alude a esses aspectos, quando lamenta as limitações dos resultados obtidos 84. Ainda assim, essa intervenção continua a ser uma importante referência, e mesmo com todas as ressalvas, mostra-se pertinente evocá-la por suas preocupações sociais, por sua atenção aos habitantes do local, aos usos peculiares e principalmente por respeitar os testemunhos autênticos da cidade antiga, sem transformá-los em réplicas ou simulacros. [23] Bolonha. Trecho do bairro de S. Leonardo. Levantamento e foto das obras de recuperação. Fonte: FAZIO, 1997, p FERRAZ, op. cit., p. 270: em texto que descreve o projeto da Ladeira da Misericórdia, Lina Bardi menciona os erros cometidos em planos de recuperação urbana de diversas cidades européias, entre as quais Roma e Bologna, em que os moradores antigos são substituídos por populações de maior poder aquisitivo. 148

152 A esse respeito, Giulio Carlo Argan ressalta os avanços obtidos pela prefeitura de Bolonha e destaca que essa experiência foi tida como modelo para intervenções análogas no centro histórico de Roma, no período em que esteve à frente da administração municipal da capital. Enfatiza o processo: de uma regeneração integral do tecido urbano do centro através de procedimentos que, ao mesmo tempo, destinamse a restabelecer um grau de dignidade social e a submeter os edifícios a uma restauração propriamente dita. 85 Observa que nas camadas populares bolonhesas há um grande apego à cidade e ao bairro de origem, o que convalida a intervenção. Assinala ainda que a administração pública consegue conter e reprimir significativamente a especulação na construção civil. É mais uma vez Argan quem formula questionamentos válidos para afrontar a problemática articulação entre as ambições de projeto para o futuro das cidades e a legitimidade de conservação do patrimônio: Podemos acaso dizer que nossas escolas de história da arte preparem estudiosos capazes de participar de equipes de projetistas, de colaborar no estudo dos processos vitais da cidade, e não somente de colocar obstáculos e limites, os quais têm, com certeza, sua razão de ser, mas apenas na medida em que os pontos da conservação forem enquadrados e, de certo modo, garantidos por um tipo de cultura urbana que não repudie a sua historicidade, mas dela tenha consciência dela? 86 Argan defende uma postura ativa, ética, um compromisso político, e não meramente analítico do próprio historiador da arte que para ele é o mesmo que historiador da cidade. Se não fosse assim, provavelmente não teria aceitado o desafio de atuar como prefeito de Roma entre 1976 e Decididamente propõe uma reformulação da história da arte como disciplina, quando coloca o problema de 85 ARGAN, op. cit., p Idem, p

153 uma nova (ou antiga) ética profissional, que reconheça como capital a atividade do besorgen, de cuidar das coisas. Prossegue, definindo um novo papel para o historiador: Portanto, é necessário que os historiadores da arte considerem o estudo científico de todos os fenômenos da cidade como inerente à sua disciplina; a conservação do patrimônio artístico como metodologia operativa inseparável da pesquisa científica; a sua intervenção no devir da cidade como o tema fundamental da sua ética disciplina (...) 87 Importante destacar que Argan reitera sua convicção sobre a complementaridade de ação entre o planejamento e a conservação: para revitalizar os centros históricos não se pode contar apenas com as possibilidades técnicas de recuperação. Se a reanimação deve traduzir-se numa refuncionalização mais orgânica, é claro que a intervenção dos técnicos do patrimônio cultural é necessária desde a primeira fase do estudo do projeto e que tal intervenção não deverá ser limitada aos centros históricos propriamente ditos, mas estendida a toda a área da cidade na medida em que influa no centro histórico e o condicione. E, restaurar, é bom lembrar, não significa recuperar, nem modernizar. 88 Essa é uma interação vislumbrada por Argan para o desempenho profissional do historiador, mas que cabe com maior pertinência ao arquiteto, pela própria natureza propositiva de sua profissão: uma ação que não pode ser exclusivamente defensiva e inibidora, mas que deve entrar no mérito das propostas, dos projetos para o futuro da cidade. Diferente dos critérios de intervenção adotados na experiência de Bolonha, assim como das oportunas observações de Argan, que encontram afinidade com a atuação de Lina Bo Bardi cuja atenção volta-se ao centro histórico comprometido com suas raízes culturais e com a população que nele habita o Programa de Recuperação do 87 Idem, p Idem, p

154 Centro Histórico de Salvador (plano iniciado em 1992), considera prioritariamente o território urbano como um produto econômico. Vale-se de estratégias de marketing para a construção da imagem de uma administração pública ancorada em uma pseudovalorização da identidade cultural e das tradições da Bahia em seus aspectos mais estereotipados. Um procedimento muito em voga no panorama internacional que aponta para o consumo cultural e o turismo de massa como elementos fundamentais para reverter processos de degradação e abandono das áreas centrais. Conforme sinaliza, ainda que sem ampla divulgação, o texto de um documento elaborado pela CONDER (Companhia de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Salvador), órgão do governo estadual que, com o IPAC (Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia), é encarregado de gerenciar a intervenção, a área recuperada deve assumir as características de um shopping center ao ar livre, gerando uma dinâmica que contaminaria saudavelmente as quadras vizinhas (...) viabilizando o Centro Histórico 89. No entanto, essa visão da área como empreendimento comercial, mas que depende do investimento público para sobreviver, revela a incoerência, a hipocrisia e inadequação da intervenção. A implantação do programa determina a remoção e indenização de cerca de mil e novecentas famílias que vivem precariamente nessas áreas degradas. Essas pessoas vivem, até então, naqueles locais justamente por pagarem preços muito baixos de aluguel em habitações insalubres, ou por ocuparem construções invadidas. Vale destacar que não se verifica, por parte dessa população, resistência ao desalojamento. Entre outros motivos, a oferta de indenização, por mais baixa que seja, é um atrativo. Além disso, não há nenhuma forma de organização comunitária que favoreça uma reação minimamente programada. Lamentavelmente não há preocupação do poder público com o destino dessa população que se desloca para outras regiões em condições igualmente precárias. 89 Apud Sant Anna,

155 Como assinala Márcia Sant Anna 90 o que determina o perfil centralizador da gestão da administração pública é essencialmente: (...) a possibilidade de controlar e manter a área recuperada como uma espécie de out door permanente da administração estadual e uma sala de visitas sempre arrumada para o turista. Para que funcione desse modo, o Pelourinho tem de ser pintado constantemente e se parecer o tempo todo com uma fotografia. Tem que ser um hiper Pelourinho, sempre novo em folha e isento das marcas de suas próprias contradições, a fim de cumprir essa função midiática e múltipla de signo da baianidade, ícone do turismo e do lazer e de símbolo do consenso e do bom governo. 91 Convém ressaltar o equívoco da concepção cenográfica que ignora as tipologias tradicionais, as relações de parcelamento do solo que compõem a substância histórica do espaço urbano. Nesse sentido é igualmente discutível a estratégia de permeabilidade para uma nova configuração espacial de certas quadras associadas a novos usos (encontro e lazer), modificando o caráter peculiar dos quarteirões na estrutura espacial da cidade tradicional. Vale-se da aplicação acrítica de um mecanismo recorrente nas ações contemporâneas que privilegia a articulação entre os lotes, a ligação entre o edifício e a cidade. Ignora, por outro lado, a estrutura urbana consolidada no tempo, as relações entre espaços construídos e espaços abertos, certos elementos de valor documental como os anexos que formam conjuntos de construções enfileiradas nos fundos de lotes, construídas para os ex-escravos após a libertação. [24] A concepção de lugar turístico apartado do cotidiano e da vida da cidade, com seu caráter superficial, não colabora para vencer as dinâmicas de esvaziamento que constantemente ameaçam esses 90 Em texto intitulado: A recuperação do Centro Histórico de Salvador: origens, sentidos e resultados, publicado na revista RUA Revista de Urbanismo e Arquitetura, n. 8, Salvador, jul/dez O artigo desenvolve uma análise aprofundada do programa de recuperação, de seus critérios e etapas de implantação. 91 Idem, p

156 territórios, nem contribui para solucionar os sérios problemas estruturais ligados à pobreza urbana. Todo projeto de arquitetura e urbanismo, depende de um conjunto de ações políticas de valorização humana para se concretizar. Impossível requalificar e recuperar cidades se há degradação das condições mais gerais de vida. Nesse sentido, nem o projeto de Lina Bo Bardi se mostra imune à persistência das graves questões estruturais e da degradação social. De qualquer forma, sua ação se contrapõe ao espetáculo, evita transformar o Pelourinho em alegoria turística. Em sua proposta para a Ladeira da Misericórdia, Lina Bardi mantém o uso comercial e de serviços no pavimento térreo. Nada em comum com as atividades voltadas unicamente para turistas, associadas a um novo agente empreendedor. Por outro lado, não exclui a presença de visitantes, atraídos por novos usos propostos para os terrenos vagos, como o restaurante Coaty. Desse modo, projeta uma nova arquitetura que se coloca como afirmação de um novo tempo. Como sugere Michael Sorkin: a melhor defesa de uma arquitetura histórica autêntica é o complemento de uma autêntica arquitetura contemporânea. 92 [24] Salvador. Vista aérea mostra espaços requalificados no interior das quadras. Proximidade do largo do Pelourinho ilustra a concepção cenográfica da intervenção. Fonte: COUTO, [et al.], 2000, p. 101 e Em artigo publicado na revista RUA, n. 8, Salvador, jul/set

157 Algumas considerações A história entendida como memória viva é a matéria-prima da arquitetura de Lina Bo Bardi, cuja síntese pode ser reconhecida na busca de superação da fratura histórica entre antigo e moderno, na construção de uma continuidade entre passado e presente. Supõe-se, portanto, que a chave de leitura para a compreensão de sua atuação em bens culturais passe por essa noção de continuidade histórica. Não se trata do restabelecimento daquela condição de tempos mais distantes em que a intervenção sobre as preexistências obedecia unicamente aos ditames e conveniências do presente, mas um processo de ativação do exercício crítico atento e indispensável em relação aos testemunhos do passado que não só norteie a conservação, mas, sobretudo, oriente a transformação criteriosa do bem a ser submetido à intervenção. Sua compreensão sobre a história é, portanto, tida aqui como condição central para entender a postura de intervenção em preexistências associadas à noção de patrimônio arquitetônico. No prefácio de sua obra, Contribuição propedêutica ao ensino da teoria da arquitetura, ao discorrer sobre a atuação recomendável do professor em fazer despertar no estudante o desejo de reflexão e pesquisa, tece considerações sobre a relação entre a arquitetura e a história: (...) a arquitetura moderna é, como todas as atividades humanas, o produto da experiência do homem no tempo, e de que não existe fratura entre o assim chamado moderno e a história, visto ser o moderno antes o produto da história mesma, através da qual somente é possível evitar as repetições de experiências superadas. É a história, quando não entendida como uma coisa de tesouras e cola, mas como coisa viva e atual, revivida em seus problemas fundamentais dotados de transmissibilidade e fecundos ensinamentos, essa história que, como é óbvio, não é aquela dos manuais escolares, monótona e de segunda mão, capaz apenas de sugerir a idéia de que o passado passou e não tem mais validade, e que o mundo começou 154

158 hoje, atribuindo-se ao homem, assim, a tarefa de refazer, sozinho, a experiência do paraíso perdido ; mas, assim a história que não seja a mera História abstrata e sim a vida concreta e fecunda. 93 Ao mesmo tempo em que seu entendimento de história mostra-se afinado com a concepção da mencionada Nova História, suas palavras também comprovam a percepção de que o panorama contemporâneo impõe a revisão crítica do modernismo ortodoxo, o que corresponde à antecipação dos debates mais recentes, principalmente naquilo que diz respeito ao questionamento da dominante visão anti-histórica que permeia o ambiente cultural da primeira metade do século XX 94. A história como vida concreta e fecunda é a mola essencial da intervenção em edifícios ligados às discussões do patrimônio construído, em que se aplica a noção do presente histórico. Uma noção que se apresenta como a motivação essencial para subordinar a preexistência e sua representação, enquanto conjunto de valores e costumes, à fruição do presente. A atenção à arquitetura como fato cultural, como organismo apto à vida, que se traduz na sua acuidade profissional em elaborar um programa de usos pertinente, exeqüível e duradouro, bem como no devido equacionamento do espaço arquitetônico pronto a acolher as atividades programáticas, é o motor de sua ação. Vale relembrar sua habilidade em reconhecer e ativar práticas sociais, especialmente no tocante ao articular conhecimentos e experiências eruditas àquelas populares. Pois bem, a intervenção resulta dessa combinação entre a visão contemporânea da história e essa percepção profissional aguda que se apropria dos meios convenientes para materializar suas intenções plásticas e construtivas, articuladas à configuração de um programa funcional 93 Em BARDI, Lina Bo. Contribuição propedêutica... pp Texto elaborado em É necessário ponderar que na passagem dos nãos 1970 para os 80, anos em que a autora freqüenta o curso da FAUUSP (precisamente entre ), ainda se pensava e fazia arquitetura como se a vertente racionalista e funcionalista fosse a última palavra de referência metodológica para a produção. Os ventos pósmodernistas agitavam o ambiente acadêmico, de modo geral, como uma espécie de modismo, uma adesão às novas tendências da forma, sem a necessária discussão conceitual. 155

159 rico e versátil. É o que Marta Bogéa reconhece como competência em edificar, recorrendo a Choay. 95 Sem dúvida, sua ação colabora para maturar outra condução das políticas culturais do SESC. Com uma visão que valoriza as atividades esportivas como chances de encontro e recreação, ao invés de competição e práticas agonísticas, acaba por contribuir para o novo enfoque da instituição, agora centrado em atividades culturais e práticas sociais, mais do que em práticas esportivas, como de início. Convém, contudo, enfatizar mais uma vez que o exercício do restauro e de intervenções correlatas impõe, ao contrário da confiança exacerbada na capacidade de criação e na aspiração à novidade contida na invenção do projeto do novo. Imprescindível, portanto, considerar a importância estética e histórica da obra a ser submetida à intervenção, além de cotejar os critérios de projeto com as teorias da restauração. Como já destacado, esse exercício reclama não só conhecimento das teorias, mas também das técnicas tradicionais e contemporâneas, e principalmente a contenção da vaidade para impedir a adoção de soluções descomedidas que sobrepujem os valores reconhecidos na preexistência. O diálogo de tempos não admite suplantar o significado cultural de uma herança do passado, mas sim a aceitação do transcorrer do devir histórico e da convivência respeitosa entre as diferentes épocas. Os projetos aqui analisados evidenciam uma combinação de comedimento e ousadia na atuação. Comedimento próprio de quem busca a simplicidade, a intervenção mínima indispensável para possibilitar o desenvolvimento das atividades previstas no programa arquitetônico. Ousadia própria da atitude corajosa de quem abre caminhos, inaugura procedimentos novos. O SESC Pompéia, particularmente, surge como marco do reconhecimento da dignidade da arquitetura de caráter ordinário, um exemplar da arquitetura industrial, até então visto com certo desprezo pelos críticos, pelos técnicos responsáveis pelos inventários do patrimônio arquitetônico. 95 Em artigo já citado, publicado nos Anais do XIII Simpósio Multidisciplinar da USJT, São Paulo, set. 2007, cujo título é Lente 2: Centro histórico da Bahia: antigo e moderno. 156

160 É o projeto de Lina Bardi a valorizar aquela arquitetura, o tombamento reconhece a intervenção como um acréscimo de significado, uma ulterior qualidade a ser preservada, na medida em que sua ação tinha explicitado o juízo de valor acerca da arquitetura existente. O conjunto após a intervenção, além de ser referência obrigatória nos debates sobre revitalização de edifícios históricos, passa a ser objeto de uma discussão mais ampla que extrapola os limites do âmbito da conservação do patrimônio arquitetônico. Como observa Luís Antônio Jorge: Este projeto é um acontecimento para a geração de arquitetos formada nos anos 1980, que reconhecia na obra um ponto de inflexão na história da arquitetura contemporânea; dissonante num contexto de afasia; extravagante, provocativo e delirante onde só se via repetição; poético e criativo, ocupando um vazio de debates e reflexão. 96 Não resta dúvida de que atribuir um uso compatível com as características do edifício, reintegrando-o a um circuito dinâmico de fruição que, aliás, é aspecto essencial da arquitetura, é um passo importante para o resgate da arquitetura, removendo-a do limbo representado pela condição de abandono. Não há como negar, entretanto, que a decisão de demolir as paredes internas e de descascar as fachadas voltadas para a rua, bem como o descarte das máquinas 97 são atitudes que contrariam as orientações ligadas à conservação dos bens identificados como patrimônio industrial. Importante, portanto, confrontar os critérios de intervenção com as recomendações de um documento arrolado como referência fundamental: a Carta de Veneza. A questão do uso dos bens culturais, abordada no artigo 5º, enfatiza a importância do uso para a 96 Op. cit., p Provavelmente, quando Lina Bardi é contratada para desenvolver o projeto, as máquinas já não estão mais lá, no espaço da fábrica desativada. 157

161 conservação, mas estabelece limites precisos para as transformações: A conservação dos monumentos é sempre favorecida por sua destinação a uma função útil à sociedade; tal destinação é portanto, desejável, mas não pode nem deve alterar à disposição ou a decoração dos edifícios. É somente dentro desses limites que se deve conceber e se pode autorizar as modificações exigidas pela evolução dos usos e costumes. (o grifo é nosso) Além das modificações realizadas nos antigos galpões, a solução arquitetônica dos novos edifícios projetados por Lina Bo Bardi para as atividades esportivas também diverge do artigo 6º da Carta de Veneza, conforme segue: A conservação de um monumento implica a preservação de um esquema em sua escala. Enquanto subsistir, o esquema tradicional será conservado, e toda construção nova, toda destruição e toda modificação que poderiam alterar as relações de volumes e de cores serão proibidas. Dois aspectos, no entanto, devem ser destacados: o primeiro referese à atribuição de valor, o segundo, à natureza da intervenção em si. Quanto ao reconhecimento de valor, convém destacar que os edifícios industriais do SESC Pompéia não configuram obras-primas inconfundíveis, de valor inestimável, obras que exigiriam limites mais severos de intervenção, ou até mesmo uma postura de conservação integral. Ao contrário, representam alguns entre tantos exemplares de edifícios industriais, de valor documental. É necessário reconhecer que a atuação de Lina Bardi impediu a demolição, fim previsível reservado à maioria dos edifícios semelhantes, especialmente os não tombados. Quanto à natureza da intervenção, admite-se, a princípio, que o uso do termo restauro, em sentido estrito, seja impreciso e inadequado. O projeto de Lina Bo Bardi corresponderia, a rigor, a uma ação de requalificação, reutilização ou reciclagem, na medida em que reconhece a dignidade e o valor documental da arquitetura preexistente e, mediante a transformação 158

162 elaborada, potencializa e resignifica a preexistência, reanimando e reinventando tanto o programa, quanto a qualidade do espaço. A relevância do novo uso prepondera em relação à predisposição de conservação da arquitetura preexistente, o que acaba por conduzir as modificações operadas nos edifícios da antiga fábrica. Certamente, o caráter da arquitetura industrial, que se afirma como recipiente capaz de abrigar grandes máquinas em amplos e contínuos espaços de trabalho, marcados pela grelha estrutural colabora para ratificar a decisão de deixar intacto o volume constituído pela cobertura e paredes externas, além da estrutura interna composta pelas vigas e pilares de concreto. Vale ressaltar a integridade da ação de Lina Bardi no tocante ao juízo de valor atribuído não só às grandes criações, mas também às obras modestas, nos termos referidos pela Carta de Veneza. Do mesmo modo, é importante admitir a atenção à autenticidade da arquitetura preexistente e o rigor empregado na inserção dos elementos novos que segue as recomendações do artigo 9º da Carta de Veneza: todo trabalho complementar reconhecido como indispensável por razões estéticas ou técnicas destacar-se-á da composição arquitetônica e deverá ostentar a marca do nosso tempo. Embora seja possível identificar pontos de concordância entre as posturas teóricas e os critérios de intervenção adotados por Lina Bo Bardi, é, por outro lado, indiscutível certa desenvoltura na apropriação e reinterpretação dessas noções a que faz menção. Importante, entretanto, notar que ela tende a acolher com maior entusiasmo as posições do restauro crítico, não só por serem mais favoráveis à estratificação das temporalidades, mas principalmente por permitirem atualizar o ato criativo. 98 Convém notar que, no caso específico do Brasil, é prática comum confundir recuperação e reconstrução, o que possivelmente se deve ao freqüente descaso concedido às operações de manutenção ordinária em bens culturais. As intervenções em geral ocorrem 98 Em Il restauro architettonico, verbete da Enciclopédia Universale dell Arte, vol XI, Veneza-Roma, 1963, reeditado em BONELLI, R. Scritti sul restauro e sulla critica architettonica. Roma: Bonsignori, 1995, p

163 quando o estado de deterioração é tão avançado que a intervenção, assumindo grandes proporções, revela a necessidade de efetuar várias substituições de elementos originais. Tratando-se de práticas freqüentes, acaba-se perdendo a preocupação com a autenticidade das peças componentes. Nessas circunstâncias, os elementos antigos autênticos acabam por se confundir com peças substituídas e refeitas. Tudo ganha um aspecto uniforme, renovado, com se tivesse sido recém acabado. Além disso, as transformações descuidadas, lamentavelmente, ainda se apresentam como procedimentos comuns, sejam resultantes de acréscimos, que de subtrações, sem a devida atenção ao reconhecimento de valor da preexistência. A experiência de Lina Bo Bardi é, portanto, diferente dos procedimentos usuais, seja dos especialistas, seja dos arquitetos em geral. Diferente das reconstruções que se fazem necessárias em função da precariedade e estado de degradação a que chegam os edifícios, depois de um longo e tortuoso percurso de desleixo e abandono, de ausência de manutenção ordinária, quando finalmente são submetidos à intervenção. Difere também do emaranhado entre restauro e reconstrução, quando a necessidade de substituição é incontornável, quando a reparação não é mais possível, quando as lacunas são numerosas a comprometer a integridade e autenticidade do conjunto. Coloca-se, isto sim, como intervenção afirmativa que se distingue da preexistência, possibilitando não só a diferenciação, mas também a reversibilidade, na medida em que os acréscimos são autônomos e independentes da estrutura primitiva. Nesse sentido, é louvável reconhecer a pertinência da ação que distingue o novo do antigo e se reserva o direito de introduzir novos elementos com parcimônia e deferência à arquitetura existente para viabilizar uma nova apropriação desse espaço arquitetônico. Desse modo, é cabível aqui comparar a atuação de Lina Bardi com a de Carlo Scarpa (não obstante as evidentes diferenças de valoração do bem submetido à intervenção): assim como ele que, em sua intervenção no Castel Vecchio de Verona, contribui para a configuração de uma narrativa arquitetônica ativada com o deslocamento do usuário no espaço, deixando rastros para uma releitura da preexistência, também Lina Bo Bardi favorece uma 160

164 apropriação pessoal, assegurando as possibilidades de novas interpretações, pessoais e coletivas. O crítico italiano Francesco Dal Co, ao comentar a obra de Scarpa 99, marca sua posição contrária à interpretação de certo crítico anglosaxônico, não nomeado, mas cujas pistas levam a Reyner Banhan. O que a crítica anglosassone interpreta erroneamente como falta de erudição, no entender de Dal Co representa a apreensão de uma cultura genuína, o domínio do ofício, equivalente à afirmação de uma espécie de dialeto do fazer arquitetônico. Destaca, dessa forma, a atuação de Scarpa como resultado da apropriação do saber dos artífices revisitado pela linguagem moderna. Uma experiência que articula, portanto, os princípios do movimento moderno com a tradição vernacular. Um traço que se evidencia em diversos aspectos do seu trabalho, tais como: nos desenhos vistos como processos contínuos de aprimoramento, como pensamento expresso graficamente, voltado à invenção; no cuidado com o detalhe, elemento essencial de articulação entre as partes e o todo; na narrativa poética presente na sua composição arquitetônica. Todos esses aspectos mencionados permitem aproximar as atuações de Lina Bardi e Carlo Scarpa. Interessante atentar para esse operar de outros tempos, do imprescindível desenho elaborado à mão, dos croquis aparentemente exaustivos para Scarpa, lúdicos para Lina, expressivos e absolutamente resolutivos para ambos. No que concerne às teorias do campo disciplinar do restauro, hoje se mostram evidentes os limites do restauro científico, principalmente quanto à prescrição de esquemas redutivos, como a proposição de elementos neutros e as soluções de ambientamento. Da mesma forma, questiona-se o menosprezo dos valores estéticos em relação aos históricos, como se o respeito histórico impusesse uma ação tímida de projeto, o que acaba por distanciar de uma solução mais corajosa, para enveredar por um caminho ambíguo, incerto, que não assegura certamente a obtenção de qualidade na intervenção. Não obstante o reconhecimento desses equívocos é, por outro lado, 99 Em palestra proferida sobre a obra do arquiteto veneziano, na Bienal de Arquitetura de São Paulo,

165 visível o avanço obtido em relação às posturas precedentes, justamente no que se refere ao respeito histórico. Antes dessa postura, as ações oscilaram entre a incúria e o imediatismo das intervenções de cunho viollettiano, propensas a eliminar os sinais da passagem do tempo, para recobrar a unidade de estilo ou a condição primitiva, identificando valor exclusivamente na origem do objeto de intervenção. A crise do pós-guerra acelera a revisão do restauro científico e alimenta a formulação do restauro crítico a partir dos anos Carbonara 100 alerta para as críticas dos anos que alegam superação das bases filosóficas sobre as quais estava fundado o conceito do restauro crítico. Isso ocorre, provavelmente, pelo retorno dos interesses pragmáticos, de um lado, e neo-positivistas, de outro. Como se diante de questões prementes a teorização representasse um acovardamento. Os debates mais recentes vinculam a teoria de Brandi ao restauro crítico, afirmando que o restauro, longe de ser uma ação empírica, acha seu fundamento na história e na crítica e, antes ainda em uma reflexão estética. 101 Giovanni Carbonara dá indicações precisas a respeito de uma possível ação de restauro que supera o limite da pura conservação para afrontar o problema da criação: A diferença entre o antigo agir espontâneo e instintivo sobre os monumentos e a ação requisitada pela cultura moderna, consiste no constante controle crítico sobre o projeto; nesta perspectiva,(...) o restauro poderia ser também pensado como operação crítica desenvolvida fazendo-se uso do mesmo sistema lingüístico que caracteriza o objeto da investigação-restauro,(...) recorrendo-se ao sistema verbal: sob este aspecto a operação de restauro se apresentaria como ato de metalinguagem, isto é, como meditação e 100 Em Avvicinamento..., p Idem, p

166 reflexão, figurativamente expressa, sobre outro fato figurativo. 102 Coloca-se então em discussão uma concepção de restauro como ação complexa e aberta a adições criativas, tal qual uma página de crítica literária que pode ser plena e legítima literatura. Uma ação análoga àquela chamada por Brandi de recriação, mas que o autor situa fora do âmbito da restauração. Vale destacar que essa compreensão é elaborada no interior do campo disciplinar do restauro arquitetônico, naturalmente mais restritivo às transformações. No entanto, mais incisivo que o debate interno, a reflexão sobre o projeto, nos dias de hoje, colabora decididamente para a diluição da fronteira entre restauro e projeto. Uma tendência contemporânea corrobora essa aproximação: enquanto o restauro é chamado a intervir, requalificar, modificar para atender a necessidades vitais de transformação, o projeto é chamado a considerar as preexistências, a levar em conta o contexto em que se insere, a tirar partido da experiência histórica, a avaliar cada demolição, cada destruição. A força do passado e a concordância acerca do seu valor tendem a se impor ao arquiteto deus ex machina construtor de um mundo novo, obrigando-o a enfrentar o conflito entre preservação e inovação. Assim faz Lina Bo Bardi com coerência e desenvoltura, por entender que memória não é relíquia, mas sim lugar do imaginário e da recriação. 102 CARBONARA, G. La reintegrazione dell immagine. Roma: Bulzoni, 1976, p (Tradução da autora.) 163

167 Quarteirão em Schutzenstrasse, Berlim ( ). Fonte: Acesso 09/10/09 Desenho Teatro Del Mondo. Fonte: ARNELL e BRICKFORD, 1991, p / Croqui Cemitério de Modena. Fonte: Acesso 09/10/09.

168 Aldo Rossi: o projeto arquitetônico como reflexo da tensão entre permanência e transformação A Escola de Veneza e a arquitetura analógica (...) qualquer cultura de projeto vive de uma intensa dialética entre continuidade e descontinuidade, entre permanência e mutações, entre recorrências e casualidades. Por um lado não pode existir um autêntico avanço de uma pesquisa se esta não goza de uma relativa estabilidade no tempo confirmando os paradigmas, os temas e os instrumentos disciplinares de que se alimenta; por outro, se não interviessem ciclicamente improvisas reviravoltas ou adaptações talvez traumáticas dos quadros teóricos e operativos consolidados, a própria pesquisa arriscaria repetir-se em fórmulas já experimentadas, caindo em uma imobilidade perigosa. 1 Nos anos 1970, a arquitetura italiana ocupa uma posição significativa no panorama internacional por conta da ação de arquitetos que convertem em invenção e novidade conteúdos de caráter fortemente identitário, ancorados no estudo das tipologias da cidade tradicional. Aldo Rossi ( ) é um desses arquitetos que, junto com Carlo Aymonino, Giancarlo De Carlo, Vittorio Gregotti e Giorgio Grassi, formam o grupo La Tendenza, também conhecido como Escola de Veneza. A partir da herança deixada por Ernest Nathan Rogers ( ), importante ponto de referência da cultura arquitetônica italiana dos anos , reintroduzem conceitos como tradição, história e monumento, termos praticamente banidos da linguagem moderna teorizada e experimentada na primeira metade do século XX. Entre outras correntes neoracionalistas, esse grupo revê os temas da modernidade, procurando constituir uma relação teórica e operativa entre a análise urbana e o projeto de arquitetura. Uma pesquisa que 1 Em PURINI, F. Permanenze e mutamenti nell architettura italiana. Roma: Palombi, 2004, p. 5. (Tradução da autora). 165

169 se desdobra em três enfoques principais: a conexão entre a tipologia arquitetônica e a forma urbana; a concepção do projeto como expressão da cidade; a correlação entre tradição e inovação. [1] O arquiteto Franco Purini 2 observa, de modo apropriado, que essa orientação se manifesta em uma zona de eqüidistância entre três diferentes pólos, indicados a seguir, sem entretanto se confundir com nenhum deles: a posição que se identifica com a radical negação da história defendida pelas vanguardas modernistas; a orientação historicista do pósmodernismo, um historicismo muitas vezes culto e emotivo, mas que não tem necessariamente compromisso com o rigor da releitura, nem com a coerência construtiva; a atuação do campo disciplinar da conservação e restauro. [1] Rossi. Estudo para quarteirão em Schutzenstrasse, Berlim. Fonte: Revista Casabella 654, p PURINI, op. cit., p

170 Dentro dessa perspectiva, a arquitetura de Aldo Rossi afirma-se como expressão da cidade e, conseqüentemente, transita numa posição de centralidade entre inovação e tradição. Valendo-se da primazia da cultura humanista impregnada na experiência italiana, da referência da escala humana, forte elemento de identidade da cidade tradicional, busca parâmetros de criação duradouros, procedentes da reinterpretação da herança clássica. Parâmetros esses que se propõem como modelos de uma ação disciplinar de projeto em estreita ligação com a investigação teórica e com a observação da cidade existente. Vale destacar as considerações de Purini 3 acerca desses parâmetros de projeto que, segundo ele, se apresentam imbuídos de realismo. Um realismo que, conforme destaca o autor, não se confunde com a prática que reduz a arquitetura a ofício correto, mas sempre subalterno, porque submetido exclusivamente a decisões externas. Não se confunde tampouco com a concessão remissiva do projeto, preso às normativas, como o da escola ligada a Benevolo, Cervellati, entre outros, vista com reservas, no entender de Purini, por encarar a arquitetura como um serviço social, subestimando sua natureza artística. Um realismo também distante do projeto como resposta puramente técnica e, portanto, desproblematizada. Ao contrário, conclui Purini, trata-se de uma concepção de realismo que estabelece um compromisso de projeto no limite entre o peso dos condicionantes e as potencialidades dos recursos. Uma trajetória profissional entre projeto e pesquisa Formado pelo Politécnico de Milão em 1959, Aldo Rossi desenvolve desde cedo uma experiência dividida entre o projeto e a pesquisa. Ingressa na universidade em 1949 e, ainda estudante, em 1955, participa como Delegado no Congresso da UIS (Unione Internazionale degli Studenti di Roma), viajando para Praga e União Soviética. Nesse mesmo ano, atendendo a convite de Ernesto Nathan Rogers, inicia uma colaboração duradoura com a revista Casabella-continuità, chega a ser membro do conselho editorial, entre os anos 1961 e 1964, ano em que a publicação é interrompida. 3 Idem, p

171 Nos anos colabora com Ignazio Gardella e com Marco Zanuso. Convidado por Hans Schmidt, diretor da Deutsche Bauakademie em Berlin, visita a República Democrática da Alemanha em Torna-se assistente de Ludovico Quaroni na Scuola di Urbanismo di Arezzo e de Carlo Aymonino no IAUV (Instituto de Arquitetura da Universidade de Veneza) em Sua experiência ganha impulso justamente à frente do IAUV, no período de , onde inicia a carreira acadêmica na condição de pesquisador e retorna como professor em No período entre 1965 e 1975 ensina no Politécnico de Milão. A atuação como diretor da seção internacional de arquitetura da Trienal de Milão de 1973 marca o início de uma experiência de grande repercussão, não só na Europa, mas também fora do continente europeu. Nessa ocasião, realiza o filme Ornamento e delitto, parafraseando Adolf Loos. Em meados da década de 1960, Rossi traduz para o italiano, além de editar e prefaciar a obra Architecture: essai sur l art, de Étienne- Louis-Boullée. Seu interesse pela arquitetura do iluminismo confirmase no decorrer de sua trajetória, como é possível notar nas referências explícitas presentes em seus textos. Em 1970 é aprovado em concurso para a cátedra de Caratteri degli edifici na Scuola di Urbanística di Palermo, atividade que concilia com o ensino no Politécnico de Milão. Arquiteto, professor e teórico, Rossi desenvolve essas três frentes de atuação profissional. L Architettura della città, livro de sua autoria cuja primeira edição é de 1966, conforme destaca Braghieri 4, canaliza uma significativa expressão de alento especialmente nos estudantes e jovens arquitetos daqueles anos próximos à publicação, motivando-os a redescobrir, estudar e analisar a cidade no seu devir histórico. Esse procedimento é visto como uma possibilidade concreta de enfrentar o impasse a que chega a cultura arquitetônica, imersa em uma 4 Em BRAGHIERI, G. Aldo Rossi. Barcelona: Gustavo Gili, 1986, p. 12. Entre os anos 1971 e 1984, Aldo Rossi desenvolve projetos em parceria com Gianni Braghieri. 168

172 atmosfera de reducionismo e esgotamento em relação aos postulados da vanguarda modernista, a partir da banalização do assim chamado Estilo Internacional. A discussão desencadeada por essa publicação, principalmente após a edição em língua inglesa, impulsiona um movimento de investigação sobre os textos e obras de Rossi, que se difunde com grande intensidade pelas principais escolas da Europa e da América do Norte. Entre 1978 e 1980 Rossi participa de vários eventos, entre os quais, lembram-se as conferências realizadas na Venezuela, Argentina e Brasil. Nesse último ano leciona na Yale University e em 1983 em Harvard. Em 1990 recebe o prêmio Pritzker. Sobre a experimentação a que se dedicam os jovens arquitetos motivados por seu trabalho, afirma o próprio Rossi: na realidade as formas arquitetônicas elaboram-se no tempo e tornam-se patrimônio comum da arquitetura como acontece com qualquer técnica ou ciência. Alguém antes de nós viu certas coisas e no-las transmite. A respeito da invenção que se apropria da experiência acumulada, continua Rossi: engano pensar que a criação nasce do nada ou de cada um. Crê, paradoxalmente, que continuidade e firmeza são os mais claros pressupostos para se atingir a mudança. Indica entre seus mestres: Mies van der Rohe, Adolf Loos e Heinrich Tesenow. Do primeiro, diz ter aprendido que o detalhe é invenção só na medida em que é aplicação da mente à clareza do resultado e que desta forma nos preservamos de todas as falsidades do êxito ; do segundo, declara ter aprendido a temer o engano que se esconde também naquilo que cremos ser ótimo porque o engano consiste não só no ornamento mas também no hábito e naquilo em que nos deleitamos sem que nós mesmos nos engrandeçamos. ; do terceiro afirma ter aprendido que o ofício é parte da região e que pode realizar-se com meios diversos como a ironia ou a redução ao elementar, para fazer frente aos limiares últimos do inexprimível. 5 Conforme observa Braghieri: a arquitetura de Rossi destaca-se pelo extremo rigor, pela simplicidade na composição, rigor e simplicidade 5 BRAGHIERI, G. op. cit., pp

173 que não devem confundir-se com esquematismo. O desenho para Rossi, continua o autor, não é nunca um fim em si mesmo, é sempre arquitetura porque reflete uma condição, um momento da própria vida, da realidade. O contínuo redesenhar dos elementos fixos propicia escolher o lócus ao qual devem pertencer. È a partir daí que se tornam arquitetura de fato, conclui. [2] Kate Nesbitt 6, na apresentação do texto de Aldo Rossi Uma arquitetura analógica, destaca sua condição de líder do grupo La Tendenza, situado no contexto do movimento neoracionalista italiano. Comenta a respeito do grande êxito do livro L architettura della città, publicado na Itália em 1966, depois traduzido para o inglês pela Oppositions Book em 1982, quando adquire notável projeção internacional. [2] Rossi. Città con cupole e torri. Fonte: ARNELL e BICKFORD, 1991, p Em NESBITT, K. Uma nova agenda para a arquitetura: antologia teórica da arquitetura de 1965 a 1995, São Paulo: Cosac & Naify, 2006, p

174 A autora aponta essa obra de Rossi como um texto fundamental do pensamento pós-moderno. Atribui o grande sucesso obtido, essencialmente, por se tratar de uma obra teórica que estabelece uma relação indissociável entre as idéias enunciadas e o trabalho de projeto desenvolvido pelo arquiteto, uma prática que se fortalece precisamente como concretização dos conceitos elaborados. O texto de Rossi Uma arquitetura analógica 7 discorre sobre o seu método de projeto, com base na operação de lógica formal estruturada a partir da definição do psicanalista Carl Gustav Jung ( ) em uma correspondência com Freud: (...) pensamento lógico é o que exprime em palavras dirigidas ao mundo exterior na forma de discurso. O pensamento analógico é percebido ainda que irreal, é imaginado mesmo que silencioso; não é um discurso, mas uma meditação sobre temas do passado, um monólogo interior. O pensamento lógico é um pensar em palavras. O pensamento analógico é arcaico, inexplícito e praticamente inexprimível em palavras. 8 A definição de Jung dá a entender que o pensamento analógico distingue-se daquele lógico pela sua condição intuitiva que, mais do que estabelecer relação efetiva com a realidade, corresponde a um subjetivo e introspectivo exercício de memória. Inevitável a associação com a memória involuntária de Proust 9 que, ao contrário da memória voluntária ditada pela inteligência formase por si mesma, e assim se desvincula de uma condição específica de tempo e espaço, para remeter a uma condição extratemporal. Com base nessa compreensão, Rossi atenta às formas permanentes, às estruturas urbanas essenciais, ao valor do limite 7 Ensaio publicado originalmente na revista japonesa Architecture and Urbanism 56, maio 1976, pp Apud ROSSI, Uma arquitetura analógica, em NESBITT, 2006, p A palavra analógico em grego formada por "ana" que significa "no alto" ou "por alto" e "logos" que é "pensamento", "palavra" significa "proporcional, o que é em relação com". Nesses termos, análogo não é precisamente igual, nem parecido, mas significa aquilo que pode estabelecer uma relação com. Portanto, Jung refere-se à analogia como uma relação entre coisas diferentes, talvez por isso inexprimível em palavras. 9 O conceito de memória involuntária de Proust é mencionado no capítulo que analisa o projeto do SESC Pompéia de Lina Bo Bardi. 171

175 entre o espaço público e o privado, aos traços da vida que restam impressos nos muros dos edifícios de uma cidade em constante transformação. Ao invés de se resignar diante das perdas, ou prender-se unicamente ao passado, expressa sua busca pela permanência das coisas relevantes justamente na reedição da memória, atuada na construção do próprio presente, na elaboração do projeto contemporâneo. O conceito de cidade analógica de Aldo Rossi é elaborado a partir da articulação entre a definição de pensamento analógico, formulada por Jung, e a imagem de Canaletto intitulada Capricho com edifícios palladianos. A tela de Canaletto representa uma paisagem imaginária, distinta da cidade real, em que o projeto do arquiteto Andrea Palladio para a ponte de Rialto, não construído de fato, aparece em meio a dois célebres edifícios palladianos Palazzo Chiericati e Palazzo della Ragione na realidade, construídos em Vicenza, mas que na pintura de Canaletto comparecem como parte do cenário do Canal Grande veneziano. Como Piranesi, ao retratar o sugestivo cenário de ruínas em suas Vistas de Roma, Canaletto mistura realidade e fantasia nesse retrato de Veneza. [3] [3] Canaletto. Capricci con palazzi palladiani, 1755 ca. Fonte: GRECCO, 2005, p

176 Assim analisa Rossi: Os três monumentos, dos quais um era apenas projeto, constituem um análogo da Veneza real composto de elementos definidos que se relacionam simultaneamente com a história da arquitetura e com a história da própria cidade. A transposição geográfica dos monumentos realmente existentes para o local da pretendida ponte compõe uma cidade visivelmente construída como um local de valores puramente arquiteturais. 10 Instigante a articulação elaborada por Rossi. Sua observação evidencia o encantamento diante da obra de Canaletto que, com o deslocamento de obras emblemáticas da arquitetura de Palladio de Vicenza para Veneza, configura uma representação analógica impossível de ser traduzida em palavras. Confere assim uma dimensão conceitual à obra do artista e, ao relacionar essa atitude ao pensamento analógico de Jung, transforma essa operação em um método de projeto. A partir desse entendimento, encontra um sentido diferente da história concebida não somente como fato concreto, mas como uma série de coisas, objetos afetivos a serem usados pela memória ou na concepção de um projeto. Assim a analogia explica como o recorrer a uma diversidade de aproximações entre as quais se destaca a associação entre os tipos e determinadas formas arquetípicas desperta a memória não só individual, mas de ressonância coletiva. Nas palavras de Rossi: Hoje (1976) penso minha arquitetura no contexto e nos limites de uma grande diversidade de associações, correspondências e analogias. Quer no purismo de minhas primeiras obras, quer na atual investigação de ressonâncias mais complexas, sempre considerei o objeto, o produto, o projeto como dotado de uma individualidade própria, que tem relação com o tema da evolução material e humana. Na realidade, a pesquisa sobre os problemas da arquitetura 10 NESBITT, op. cit., p

177 significa para mim pouco mais que a de uma natureza humana mais geral, pessoal ou coletiva, aplicada a um campo específico. 11 Aspecto importante de sua reflexão enfatizado no seu discurso é o contexto entendido em sua dúplice acepção: de lugar e de cultura. A esse respeito, cita Walter Benjamin, o teórico da Escola de Frankfurt, que diz: Eu sou indiscutivelmente deformado pelas relações com tudo que me cerca. Declara expressamente que a frase encerra o pensamento daquele ensaio e traduz sua arquitetura daqueles anos. Não só essa citação indica a existência de um vínculo entre o IAUV e a Escola de Frankfurt, explicitado e reforçado pela obra de ilustres representantes da Escola de Veneza, como Francesco Dal Co e Manfredo Tafuri. À maneira de um Cézanne 12 que descreve sua tensa busca por uma geometria latente nos objetos, a ser traduzida na espacialidade tangível da tela, ou de um Morandi que explora incansavelmente as formas dos objetos do cotidiano como protagonistas de um teatro da realidade, Rossi ilustra seu método de trabalho. Reflexo de tensões gerais e pessoais, a deformação das relações aflora, segundo Rossi, nas inquietações que circundam o tema principal. Vários desenhos seus possibilitam notar essas desfigurações dos elementos e de suas diferentes partes sobrepostas a uma ordem geométrica, inicialmente adotada como matriz de composição. Essa deformação atinge os próprios materiais e lhes destrói a imagem estática, acentuando seu caráter elementar e sobreposto. A questão das coisas em si, como composições ou componentes desenhos, edifícios, modelos ou descrições me parece cada vez mais sugestiva e convincente. Mas não se deve interpretar isso no sentido do vers une architecture, tampouco como uma nova arquitetura. Estou pensando em objetos familiares, cuja forma e posição já são fixas, mas cujos significados podem ser modificados. Celeiros, estábulos, abrigos, 11 Idem, p A esse respeito consultar: Dallo sferoide al poliedro in BARILLI, R. L Arte contemporanea. Da Cézanne alle ultime tendenze. Milão: CDE, 1987, pp

178 oficinas etc., objetos arquetípicos cujo apelo emocional comum desvenda preocupações eternas. Esses objetos situam-se entre o inventário e a memória. 13 Oportuno associar essa postura de investigação de Aldo Rossi, interligada à sua prática de relacionar formas arquetípicas a diferentes usos e significados, a determinada fase da trajetória de Le Corbusier, a partir da década de 1930, destacada por Colquhoun, como momento em que o arquiteto abandona a geometria mais abstrata, estereométrica, em favor da recorrência a motivos armazenados na memória. Ao comentar essa conduta, o autor evoca a imagem de um baú mental repleto de referências a serem selecionadas para compor uma espécie de bricolage compositivo 14. Situada entre a memória e o inventário, a arquitetura analógica de Rossi é a negação do culto à personalidade associada à originalidade, à singularidade, como querem os primeiros arquitetos e historiadores da arquitetura moderna 15. Amálgama entre o geral e particular, entre o racional e o surreal, entre a analogia e o contraste, suas obras, radicadas na cultura da cidade européia, entretanto, não renunciam ao imprevisto, à invenção e, nesse sentido, afirmam-se como criações incontestavelmente contemporâneas. A Arquitetura da cidade A cidade, objeto deste livro, é nele entendida como uma arquitetura. Ao falar de arquitetura não pretendo referir-me apenas à imagem visível da cidade e ao conjunto de suas arquiteturas, mas antes à arquitetura como construção. Refiro-me à construção da cidade no tempo. Considero que esse ponto de vista (...) remete ao dado último e definitivo 13 Idem, p A menção a essa imagem do baú mental cheio de objetos que estão prontos a serem utilizados em um bricolage(...) foi citada em passagem da pesquisa em que se analisa a atuação de Le Corbusier. 15 CURTIS, W. em seu livro Arquitetura moderna desde Porto Alegre: Bookman, 2008, p. 13, comenta a respeito do mito dos primeiros historiadores da arquitetura moderna de que suas formas tinham emergido imaculadas, como um recomeço do zero, menosprezando a influência da arquitetura do passado. 175

179 da vida da coletividade: a criação do ambiente em que esta vive. 16 A arquitetura, vista sob esse prisma, é construção inseparável da vida civil e da sociedade e é, por natureza, expressão coletiva. Como destaca Rossi, desde tempos mais remotos o homem constrói não apenas para criar um ambiente mais favorável à vida, mas também o faz conforme uma intencionalidade estética. A arquitetura surge, portanto, junto com as primeiras formas urbanas e, sendo inseparável da formação da civilização, constitui um fato permanente, universal e necessário, pois dá forma concreta à sociedade. Continua Rossi: Mas com o tempo a cidade cresce sobre si mesma, adquire consciência de si. (...) Na sua construção permanecem os motivos originais, mas, simultaneamente, a cidade torna mais precisos e modifica os motivos de seu desenvolvimento. 17 Da mesma maneira que se transforma, a cidade preserva seus elementos essenciais: (...) os lugares são mais fortes que as pessoas, o cenário mais que o acontecimento. A possibilidade da permanência é o único critério que permite que a paisagem ou as coisas construídas sejam superiores às pessoas. Rossi analisa a construção de certas cidades no tempo através de imagens, gravuras e fotografias que ilustram a dinâmica de transformação resultante, quer da criação, quer da destruição. Dessa forma, observa que o devir histórico motiva tanto as transformações que incidem sobre o território, quanto a permanência de elementos que asseguram unidade na expressão urbana e sua continuidade no espaço e no tempo. A cidade é fato material, mas é também o locus da memória coletiva. Analisar a cidade, para Rossi, implica reconhecer a distinção entre a 16 ROSSI, A. A arquitetura da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p Idem, p

180 cidade concreta, da imagem e da memória que se cria da própria cidade, isto é, reconhecer a construção que supera e transcende a própria materialidade, um processo que nasce da relação entre o indivíduo e sua cultura. Essa compreensão comporta a identificação de diferentes valores em jogo: o valor da cidade real, enquanto artefato, e o da representação da cidade, isto é, o de significados simbólicos aos quais se associa a sua materialidade. A análise remete a outra natureza de diferenciação: à oposição entre o particular e o universal, entre o individual e o coletivo. Nesses termos, analisa as relações entre esfera pública (identificada como elementos primários) e privada (classificada como área-residência), entre edifícios públicos e privados, entre o projeto racional da arquitetura urbana e os valores do locus. Noção de origem antiga, a res pubblica refere-se, em sentido geral, a valores compartilhados por integrantes de uma sociedade fundada sob leis de igualdade e justiça respeitadas pela maioria, tendo em vista uma convivência pacífica. Nesse sentido, o conceito de res pubblica resguarda tanto o interesse comum, a coletividade, quanto o indivíduo em particular. O locus é entendido por Rossi como aquela relação singular mas universal que existe entre certa situação local e as construções que se encontram naquele lugar. Relembra que a escolha do lugar para fundar uma cidade ou mesmo para implantar um novo edifício, tinha uma grande importância no mundo clássico, uma vez que se considerava ser o sítio governado pelo genius loci, divindade que presidia o lugar. Observa ainda que o conceito de locus continua presente tanto nos tratados renascentistas, como nos dos séculos seguintes, como o de Palladio, ou de Milizia. Mesmo em Viollet-le- Duc, continua Rossi, o esforço para entender a arquitetura como uma série de operações lógicas baseadas em poucos princípios racionais, refere-se ao lugar como espaço singular e concreto, mas que também faz parte da idéia geral de arquitetura. A identificação desses pontos singulares pode ser atribuída a um acontecimento determinado que tenha sucedido naquele sítio, ou pode depender de inúmeras causas que de alguma maneira possam ter contribuído para o reconhecimento da peculiaridade do lugar. 177

181 Ao comentar sobre a relação entre a arquitetura e o lugar, Rossi faz menção às pinturas do Renascimento: (...) onde o lugar da arquitetura, a construção humana, adquire um valor geral de lugar e de memória, porque assim fixado numa hora única; mas essa hora também é a primeira e mais profunda noção que temos das praças da Itália, estando pois ligada à mesma noção de espaço que temos das cidades italianas. Noções desse tipo estão ligadas à nossa cultura histórica, à nossa vida em paisagens construídas, às referências que fazemos em cada situação à outra situação. 18 Essa observação faz pensar à idéia geral de lugar arraigada na cultura italiana presente em obras célebres da Renascença, como as imagens da Cidade Ideal. Não há como dissociar essas imagens de uma incisiva lembrança de lugar primordial e ao mesmo tempo eterno, atemporal. [4] [4] Luciano Laurana (atribuição). Città Ideale. c Fonte: GRECO, 2005, Idem, p

182 O tipo Articulado ao conceito de lugar comparece o de tipo que constitui, para Rossi e os neoracionalistas italianos, um dos fundamentais componentes da morfologia da cidade. O interesse pelo tema da tipologia é reintroduzido, no início da década de 1960, com a publicação de um notável ensaio de Giulio Carlo Argan 19 sobre o teórico francês do século XIX, Quatremère de Quincy. Dentro da tradição acadêmica, Antoine-Crysostome Quatremère de Quincy estabelece no Dictionnnaire historique de l architecture (Paris, 1832) uma diferenciação entre o tipo ideal (type) e modelo físico (modèle), retomada por Argan. Tipo corresponde aqui à idéia de um elemento que deve servir de norma para o modelo que, portanto, equivale à idéia genérica, platônica, arquetípica, à forma básica comum da arquitetura como, por exemplo, um edifício que se organiza ao redor de um pátio. Modelo é aquilo que pode continuamente ser repetido tal qual se apresenta, como um carimbo que possui uma série de caracteres expressivos. Por exemplo, dentro da espécie de construção ao redor de um pátio, certos palazzi da renascença correspondem a modelos que podem ser reproduzidos. Os tipos arquitetônicos de Quatremère de Quincy são reduzidos por Argan a uma forma original comum identificada a partir de obras específicas de um contexto cultural particular, portadoras de propriedades funcionais e formais semelhantes. Desse modo, para Argan, o tipo, mais do que um conjunto de entidade fixas estabelecidas a priori, corresponde a um princípio passível de variações definidas como respostas relacionadas a mudanças tecnológicas e socioculturais. Josep Maria Montaner 20 lembra que entre os primeiros filósofos que teorizaram a respeito da noção de tipo no pensamento moderno, está Wilhelm Dilthey ( ) e sua escola. A partir da influência de Kant, esses teóricos estabelecem, no final do século XIX, a teoria dos três tipos de visão do mundo : o naturalismo, o idealismo da 19 Ensaio intitulado Sobre o conceito de tipologia arquitetônica, publicado originalmente em 1962, inserido no livro Projeto e destino. São Paulo: Ática, 2004, pp Em As formas do século XX. Barcelona: Lisboa: Gustavo Gili, 2002, p

183 liberdade e o idealismo objetivo. Perseguem, conforme indica Montaner, a intenção de encontrar um compromisso entre o positivismo e o espiritualismo; entre o realismo naturalista e a generalidade metafísica; entre a quantidade dos fenômenos e a qualidade de suas interpretações. Em suma, pretendem sintetizar aquilo que mais tarde vai se configurar como a historicidade e a permanência do estruturalismo com a vitalidade dinâmica definida por Henri Bergson 21. O conceito de tipo, anunciado por Dilthey, é retomado na cultura contemporânea por Max Weber ( ) e aplicado à história, às ciências sociais e à cultura. Segundo essa visão, é possível estabelecer conceitos extremos ideais que podem dimensionar, ordenar e relacionar a realidade empírica com a finalidade de ilustrar determinados elementos significativos. Os tipos de Weber são construções conceituais, puramente ideais, entendidas como meios de compreensão de uma realidade complexa. Um aspecto essencial da noção weberiana do tipo ideal é que tal categoria pode ser submetida a uma verificação contínua. Pressupondo a mutabilidade que acompanha o fluxo da história e a transitoriedade das sínteses estabelecidas, o autor defende a reformulação da noção de tipo, transformada em nova construção típico-ideal, sempre que comprovada sua inadequação. A noção weberiana está presente no substrato de grande parte das interpretações da arquitetura moderna e contemporânea. Um dos autores a se valer do conceito para aplicá-lo à metodologia de análise da arquitetura contemporânea é Renato De Fusco 22. O conceito de tipologia arquitetônica, da maneira como foi utilizado pelos italianos, aplica-se tanto para o momento analítico, quanto para o momento do projeto. Racionalidade e poética, memória e criação podem ser conciliadas na prática da crítica tipológica. Para Rossi, Grassi ou Aymonino, o elemento mais racional da arquitetura é a sua tradição interna revelada nas estruturas tipológicas. O fenômeno arquitetônico, para esses arquitetos, é concebido como uma série de 21 Em BERGSON, H. Matéria e memória. Ensaio sobre a relação entre o corpo e o espírito. Tradução de Paulo N. da Silva. São Paulo: Martins Fontes, Em Storia dell architettura contemporanea, Roma: Laterza, 1982, p

184 estruturas inicialmente reconhecidas, dissecadas na análise e reelaboradas no projeto. A propósito da diferença do emprego do conceito de tipo para Gregotti e Rossi, Nesbitt cita Alan Colquhoun: Mantendo-se aberto à contingência, Gregotti parece mostrar o tipo no processo de sua erosão ou transformação. Rossi mostra-o em tal nível de generalidade que, não sendo mais vulnerável à interferência da tecnologia ou da sociedade, [o tipo] permanece congelado numa eternidade surreal. 23 Aqui se encontra provavelmente a proximidade da arquitetura de Aldo Rossi, mais precisamente de seus desenhos, com as obras do pintor Giorgio De Chirico. O projeto afirma-se como uma espécie de convergência e sobreposição entre a observação da cidade existente e uma memória atemporal, uma recorrência atávica incontornável. A esse respeito, comenta Nesbitt que, embora Rossi declare-se racionalista, sua obra tem uma forte componente poética pela constante conjunção entre universal e particular, entre racional e intuitivo. [5] [6] A crítica ao funcionalismo ingênuo Rossi, ao adotar uma posição crítica frente às certezas estabelecidas pelo movimento moderno, subverte a relação forma/função como entendida pelos arquitetos desse movimento: uma relação simplista de causa e efeito desmentida pela realidade, segundo a qual a função determina a forma. Afirma que a função é aspecto secundário, insuficiente, para esclarecer a respeito da constituição e conformação da arquitetura enquanto fato urbano. Exemplo disso é a recorrência de arquiteturas de interesse histórico e artístico em que a função muda no tempo sem, por esse motivo, perderem a importância. A sua convicção de que está definitivamente superada a idéia de função e forma, vinculadas por uma relação unívoca, é tal que Rossi 23 COLQUHOUN, A. Rational architecture, Architectural Design 45, n. 6, Apud Nesbitt, 2006, p

185 elabora projetos com formas similares para funções completamente diferentes. Isso se justifica na medida em que reitera que são as relações ou o contexto a determinar o significado, portanto, os objetos fixos (formas) podem ser submetidos a mudanças de sentido. Assim, as formas arquitetônicas elementares podem ser reutilizadas para fins diferentes em situações diferentes. Isso corresponde à idéia estruturalista do papel dos elementos fixos (estruturas reconhecidas) na linguagem. Essa questão referente à crítica do funcionalismo é uma das discussões mais relevantes levantadas pela cultura pós-moderna em relação a um dos conceitos-chave da vertente racionalista da arquitetura moderna. A opinião de que a função de um edifício pode mudar, sem que essa alteração de uso comporte necessariamente em perda de significado, reafirma-se no contexto da cidade contemporânea com a adoção usual dessa estratégia nas intervenções de reutilização e requalificação de certos exemplares de arquitetura preexistente dotadas de interesse histórico e figurativo. [5] Giorgio De Chirico. La nostalgia dell infinito, [6] L enigma di una giornata, Fonte: Revista Art Dossier, n

186 É importante notar que em muitos casos trata-se de uma apropriação inadequada do tema com vistas à utilização descompromissada da preexistência, visível, por exemplo, na proliferação dos centros culturais. Quanto aos edifícios de interesse patrimonial, convém reafirmar que a intervenção deve, antes de tudo, ser avaliada em sua conveniência, para posteriormente ser controlada por critérios precisos que levem em conta tanto o significado cultural do objeto de intervenção, quanto às suas qualidades formais, para que efetivamente essa mudança de uso não comporte alterações e adaptações inadequadas e, de conseqüência, implique subtração de valor arquitetônico. O binômio transformação/permanência Ao desenvolver a hipótese da cidade como artefato 24, Rossi sustenta três proposições: afirma que o desenvolvimento urbano é correlato em sentido temporal, ou seja, é possível conectar situações de diferentes tempos como fenômenos comparáveis entre si; aceita a continuidade espacial da cidade, o que implica em não distinguir como fatos de natureza diversa o centro histórico e as áreas periféricas ou de ocupação mais recente; admite que no interior da estrutura urbana há alguns elementos de natureza particular que têm o poder de retardar ou acelerar o processo urbano e que, por sua peculiaridade, são relevantes. Dessa compreensão decorre a divisão da cidade em elementos primários e área-residência, esta última identificada como áreaestudo, quando reconhecida como elemento qualitativo do entorno urbano de um local de intervenção. Mediante esse procedimento analítico, recorre à abstração com respeito ao espaço real da cidade, como estratégia de investigação. Desse modo, Rossi distingue duas categorias fundamentais da estrutura dos fatos urbanos, reflexos das 24 Este é, entre outros, um conceito que guarda afinidade com as teses defendidas por Giulio Carlo Argan em seu livro História da arte como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes,

187 esferas públicas e privadas que não só se contrapõem, mas às vezes se confundem na cena urbana. Os primeiros, sinais de vontade coletiva, são núcleos de agregação identificados com os monumentos, pontos de referência da dinâmica urbana, marcados pelo caráter de permanência. Distinguem-se com base na sua forma e com base na sua excepcionalidade no tecido urbano. Já a área-residência refere-se a uma porção substancial da arquitetura da cidade, constituída pelo conjunto ou soma de muitas partes: sítio, ruas, bairros, casas. O bairro torna-se um setor da forma urbana intimamente ligado à sua evolução física e social. A residência é o fato preeminente na composição da cidade que representa o modo concreto de vida, a manifestação pontual de uma cultura, e interfere intimamente na sua forma física, na sua imagem e na sua estrutura. Princípios e modificações do real constituem a estrutura da criação humana. Baseando-se nos escritos de Carlo Cattaneo 25, conclui que a continuidade dos fatos urbanos fundamento de sua ação de projeto deve ser buscada nas camadas profundas, onde se entrevêem certas características fundamentais que são comuns a toda dinâmica urbana. O monumento, identificado como elemento primário, destaca-se em meio à trivialidade da área-residência. Esta por sua vez abriga a linguagem e as técnicas tradicionais, reconhecidas como formas vernaculares. Convém aqui lembrar que o termo vernáculo, derivado do latim vernaculus, empregado para designar o escravo nascido na casa do amo, passa a indicar algo produzido no país. Em sentido figurado, diz-se da linguagem correta, sem estrangeirismos na pronúncia, o idioma castiço, tanto no que se refere ao vocabulário, quanto às construções sintáticas. Sua larga aplicação no campo da produção artística, principalmente arquitetônica, consagrou o sentido de arquitetura vernacular como aquela produção própria da cultura do lugar, que se conserva ligada às raízes locais, ao saber e às 25 CATTANEO, C. La città come principio ideale delle istorie italiane. Milão, Ensaio publicado pela primeira vez em 1858, dividido em quatro números do jornal Crepuscolo, e reeditado em

188 técnicas populares. Uma visão assertiva que procura a valorização desses exemplares, como uma espécie de alerta aos estudiosos a não se atentar exclusivamente à produção erudita, nem se limitar à observação isolada dos edifícios de caráter monumental. Nesse sentido, a compreensão da cidade como história contrapõe-se à retórica racionalista-funcionalista do urbanismo moderno. Com base na concretude histórica, na observação dos registros disponíveis, conforme observa Rossi: dever-se-ia evidenciar melhor o significado de certas intervenções tendentes a qualificar a cidade em sentido moderno e a estabelecer uma relação entre seu passado e a fisionomia das principais cidades européias. Citando Halbwachs: Quando um grupo é inserido numa parte do espaço, ele a transforma à sua imagem, mas, ao mesmo tempo, dobra-se e adapta-se a coisas materiais que resistem a ele. A imagem do meio exterior e das relações estáveis que este mantém com aquele passa para o primeiro plano da idéia que o meio faz de si mesmo. 26 Ampliando a proposição de Halbwachs, Rossi afirma: Essa relação entre o locus e os citadinos torna-se, pois, a imagem predominante, a arquitetura, a paisagem; e, como os fatos fazem parte da memória, novos fatos crescem juntos na cidade. Nesse sentido, de todo positivo, as grandes idéias percorrem a história da cidade e a conformam. 27 Se a memória é vista como fio condutor da complexa estrutura urbana, então a análise histórica deve permitir uma melhor compreensão do significado da estrutura urbana, da sua individualidade, enfim, da arquitetura da cidade. 26 HALBWACHS, La mémoire collective, p.132, apud ROSSI, op. cit., p ROSSI, op. cit, p

189 Prossegue Rossi: Assim, a união entre o passado e o futuro está na própria idéia da cidade, que a percorre tal como a memória percorre a vida de uma pessoa e que, para concretizar-se, deve conformar a realidade, mas também conformar-se nela. 28 Importante atentar para o sentido dessa afirmação, tão consonante com a noção de continuidade histórica de Lina Bardi. Aqui está seu mote de invenção para o projeto do novo, definitivamente calcado na análise da estrutura urbana e, mais do que isso, na tentativa de compreensão dos nexos nela contidos. O Cemitério de São Cataldo, Módena ( ) O projeto de Aldo Rossi 29 corresponde à ampliação do cemitério neoclássico preexistente, projeto de Cesare Costa, realizado entre os anos A estrutura do século XIX adota uma tipologia tradicional do grande pátio retangular delimitado por colunatas onde se reúnem os nichos fúnebres. [7] [7] O antigo cemitério. Fonte: ARNELL e BICKFORD, 1991, p Idem, p Vencedor de um concurso público, o projeto foi elaborado em parceria com Gianni Braghieri, desenvolvido entre os anos e construído entre os anos

190 Os pórticos, elementos característicos da morfologia urbana das cidades da região da Emilia Romagna, já presentes na configuração do antigo, são também os elementos centrais da arquitetura do novo cemitério de Rossi. Constituem os columbários que delimitam o espaço do novo conjunto e criam percursos retilíneos ora perimetrais, ora centrais, ora ao rés-do-chão, ora em níveis superiores. [8] No centro da área estão situados os ossários, dispostos em lâminas paralelas entre si de diferentes comprimentos que definem, no conjunto, uma seqüência planimétrica de formato triangular, a sugerir uma espinha dorsal que se amplia na direção da base. Esses paralelepípedos, que inscrevem um triângulo isósceles em planta, elevam-se progressivamente em altura, em sentido contrário à progressão em planta. Assim o elemento mais longo é o mais baixo, enquanto que o mais curto é o mais alto, configurando um triângulo também na seção transversal do conjunto. No centro, um eixo transversal interliga as extremidades dessa espinha, onde se encontram dois elementos construtivos fundamentais com forma definida: o cubo e o cone. O primeiro abriga o sacrário dos mortos da guerra e dos restos do cemitério antigo. O cone, por sua vez, acolhe a fossa comum. [8] Planta do novo cemitério implantado ao lado do antigo. Fonte: ARNELL e BICKFORD, 1991, p

191 Esses dois elementos, unidos pela espinha central, encerram significados importantes: a construção cúbica, sem teto, nem andares, cujas aberturas regulares evocam portas e janelas que não se abrem, nem fecham, mas somente recortam os muros, simboliza a casa dos mortos; o volume cônico, que domina a fossa comum, unindo-se ao percurso central da espinha dos ossários, representa a recordação. Um pórtico maior em forma de U envolve todo o conjunto descrito. Uma cidade em miniatura, para Jonathan Glancey 30, constituída de lembranças, de sonhos, uma seqüência soberba de monumentos hipnóticos delineados com sombras profundas e dispostos ao longo de eixos inflexíveis. [9] [9] Rossi. Estudo de projeto. Fonte: ARNELL e BICKFORD, 1991, p GLANCEY, J. A história da arquitetura. São Paulo: Loyola, 2007, p

192 Sugestivo é o relato do arquiteto que, ao descrever o andamento do trabalho, ressalta a autonomia dos desenhos, como se durante o processo contínuo de reformulação, estes adquirissem a capacidade de se autogovernar: No processo de redesenhar o projeto, colocar os vários elementos e aplicar cores às partes que exigiam destaque, o desenho foi adquirindo tão completa autonomia em relação ao projeto original que se poderia dizer que a concepção inicial era somente um análogo do projeto concluído. O desenho sugeriu uma nova idéia baseada no labirinto e na noção contraditória de distância percorrida (...) Mais tarde me ocorreu que o quadrado morte é especialmente visível, como se contivesse algum mecanismo automático profundo muito distante do espaço pintado em si. 31 Autonomia do desenho à parte, permanece o método que privilegia a contínua variação da mesma forma, a repetição de motivos como a traduzir a persistente busca de aperfeiçoamento. Às claras referências do antigo cemitério existente, Rossi associa as leituras de visões utópicas de Étienne-Louis-Boulée e Claude Ledoux e a memória dos pórticos das cidades italianas, configurando um itinerário análogo, uma expressiva metáfora da cidade dos mortos, com a mesma intensidade dramática das paisagens de De Chirico. [10] [11] [12] [13] [10] Vista do cemitério de Rossi. Fonte: ARNELL e BICKFORD, 1991, p Rossi, Uma arquitetura analógica, em NESBITT, op. cit., p

193 [11] Columbário. Interior e vista externa. Fonte: ARNELL e BICKFORD, 1991, p. 97 e Acesso 16/09/2008. [12] Escadas. Fonte: ARNELL e BICKFORD, 1991, p. 101 [13] Pórticos. Vista frontal e do interior. Fonte: Acesso 16/09/

194 O Teatro del Mondo, Veneza ( ) Encarando o projeto de arquitetura como continuidade e extensão da análise teórica, Aldo Rossi vale-se do profundo conhecimento de Veneza para criar o seu Teatro del Mondo. Um projeto que combina dois dos conceitos fundamentais elaborados por ele: o da arquitetura como fato urbano inseparável da vida civil; e o da construção analógica, resultante de um exercício de imaginação situado entre a memória individual e coletiva. Assim, o Teatro del Mondo se apresenta como novo fato disposto a dialogar com a cidade, a recompor sua paisagem e a reinventar imagem que dela se tem, num procedimento equivalente ao já mencionado capricho de Canaletto. Pertinente a descrição de Marta Bogéa 32 : Como um fragmento que se destaca do corpo do qual faz parte, o Teatro del Mondo navega pelas águas e aporta em diferentes locais com a naturalidade de quem é parte do lugar. Projetado enquanto corpo itinerante, autônomo, o Teatro del Mondo traz em seu desenho elementos da cidade, transformados, porém reconhecíveis. Constitui-se assim como parte de Veneza, uma forma a um só tempo nova e familiar, que reinterpreta os dados da cidade, e ao se reinventar, reinventa também a cidade. Construído sobre uma balsa, o teatro de madeira dotado de estrutura metálica desmontável, nasce como uma arquitetura efêmera, mas que se conserva na memória e na iconografia da cidade essencialmente pela capacidade de síntese do caráter veneziano que congrega em sua própria imagem. [14] [15] Inspirado em uma antiga tradição veneziana dos teatros flutuantes, documentada na iconografia dos séculos XVI e XVII, Rossi atualiza essa proposta, reinserindo-a em uma reflexão mais ampla que se desdobra em três aspectos: a meditação sobre o teatro, sobre a cidade e, por fim, sobre a memória, através da possível relação com o teatro da memória ou teatro da sabedoria, uma alegoria da 32 BOGÉA, M. Cidade errante:... Tese de Doutorado, FAUUSP,

195 arquitetura do conhecimento, do saber enciclopédico, como se observa a seguir. Inaugurado oficialmente em , o Teatro foi colocado diante do prédio da antiga Alfândega, por ocasião da Bienal de Veneza. A estrutura tubular de ferro soldada à balsa, revestida de madeira, define prismas justapostos: o cubo central ladeado pelos volumes das escadas. Sobre o prisma central apóia-se o volume de planta octogonal das galerias superiores, encimado por uma cobertura piramidal. No alto da cobertura destaca-se a haste com uma esfera e uma bandeira, motivos que reverberam o coroamento de edifícios vizinhos identificados por Rossi como elementos primários. [14] Desenho de Aldo Rossi. Fonte: e Acesso 16/09/2008. [15] Imagem do Teatro Del Mondo no Canale della Giudecca, atrás da igreja de Santa Maria della Salute, Veneza. Fonte: ARNELL e BICKFORD, 1991, p O Teatro del Mondo, conforme relata Arantes, foi encomendado para o carnaval de 1979 e incorporado à Bienal de Veneza do ano seguinte. 192

196 Tipologicamente o teatro combina o sistema de arquibancadas (que se desenvolvem em lados opostos do palco central) com o de galerias aéreas (dispostas em três andares), correspondendo a uma capacidade de 250 lugares. Otília Arantes 34 assim o descreve: Com sua planta em forma de cruz, encimada por uma cúpula octogonal, esse Teatrinho, ancorado ao lado da antiga Alfândega, como já foi lembrado no início de nosso itinerário, rima com a igreja de San Giorgio ao fundo, ao mesmo tempo que reproduz parcialmente as formas e planos do prédio aduaneiro em estilo barroco, que, situado na entrada de Veneza, se não tem a função, aos poucos foi assumindo a fisionomia familiar de um farol. 35 [16] [17] [18] Importante reexaminar as relações entre a arquitetura do Teatro e o contexto cultural do qual é parte integrante, a Bienal de Veneza de 1980, como faz Otília Arantes. O próprio título do evento, Presença do Passado relembra Arantes, anuncia uma aparente contradição em relação ao que se espera dessas mostras, ou seja, novidade. É preciso observar, no entanto, que o imperativo do novo, ostentado pelo movimento moderno desde as primeiras décadas do século XX, transformado numa tradição do novo, mostra-se nesse momento um tanto desgastado. Nada mais compreensível, portanto, que explicitar na própria denominação da mostra o dissenso em relação à repetição das fórmulas identificadas com o Estilo Internacional, ou ao que identificam com uma ortodoxia servil em relação aos princípios da arquitetura moderna Em ensaio intitulado Arquitetura simulada, inserido no livro, O lugar da arquitetura depois dos modernos. São Paulo: Edusp, 1993, pp Arantes, op. cit. p Cf. CURTIS, op. cit., p. 547, a expressão ortodoxia servil exprime a repetição de formas que acabam por serem esvaziadas de seu conteúdo polêmico inicial e vulgarizadas por interesses comerciais ou burocracias estatais, resultando na adoção de clichês identificados como uma espécie de academicismo moderno. 193

197 [16] Elevações do projeto. Fonte: ARNELL e BICKFORD, 1991, p [17] Plantas. Fonte: ARNELL e BICKFORD, 1991, p [18] Cortes. Fonte: ARNELL e BICKFORD,1991, p

198 A presença do passado aparece nas fachadas alinhadas da Strada Nuovissima, uma rua cenográfica composta de citações da arquitetura italiana do passado, reconhecíveis porque incorporadas à cultura não só dos especialistas, mas do público em geral. Situada no espaço da Cordoaria do Arsenal, ao longo dos 320 metros da nave central, essa rua-manifesto é resultado da intervenção de vinte arquitetos conhecidos internacionalmente. Não há, nessa proposta, o rigor de uma reconstituição fiel. Ao contrário, é a brincadeira, o que move a iniciativa dessa colagem de fachadas extraídas de diferentes contextos urbanos. Uma ironia que ressuscita, em forma de alegoria, a rua corredor, cuja morte tinha sido decretada por Le Corbusier, ao propor o novo urbanismo racionalista-funcionalista da Carta de Atenas do CIAM em A entrada da exposição, obra de Aldo Rossi, relembra um fragmento de muralha antiga, pontuado por espécies de torres-contrafortes, que se ajusta discretamente ao espaço disponível do acesso principal. Estabelece uma ligação com o Teatro, enquanto componentes da cidade análoga que temporariamente são incorporados à cidade existente. [19] [19] Processo de construção. Fonte: ARNELL e BICKFORD, 1991, p

199 Se por um lado, o portal de entrada aparentemente antecipa a proposta da rua desenhada no interior, por outro se distingue, da mesma forma que o Teatro, daquilo que Arantes denomina arquitetura simulada, como se explica a seguir. Otilia Arantes, assinala a inserção desses dois elementos portal e teatro ao contexto urbano, não apenas com respeito às relações físicas ou topográficas, mas também do ponto de vista das articulações estabelecidas entre a morfologia local e uma tipologia atemporal, entre as formas puras e as arquiteturas concretas. Nesse sentido é que se refere ao Teatro de Rossi, como um significativo exemplo de arquitetura situada em contraponto com a arquitetura simulada, nascida de um ambiente cultural ligado ao pósmodernismo, que abusa das colagens e das citações historicistas, em uma atmosfera de culto ao humor pop e, portanto, descontextualizada. A proposta de Rossi, por sua vez, revela-se como uma espécie de paradoxo a esta perspectiva, na esteira do pensamento italiano do grupo Tendenza, como afirmação de uma arquitetura comprometida com o lugar. [20] [21] Da mesma forma que redefine a paisagem ao navegar pelas águas do Canal Grande, o Teatro del Mondo possibilita, através de pequenas aberturas dispostas no corpo do edifício, ao espectador assistir, do seu interior, ao espetáculo da própria cidade. Teatro, mirante, farol, signo urbano, o edifico navegante de Rossi encerra muitos significados e evoca outro mais antigo, obra de um curioso personagem veneziano, célebre a seu tempo: Giulio Camillo Delminio (c ), também conhecido como Il Divino Camillo. Trata-se do Teatro della Sapienza, do qual há relatos de que tenha sido elaborado um modelo em madeira, além do projeto e do texto que o descreve: L Idea del teatro. Seus escritos têm despertado interesse renovado, após reedições recentes, pois denotam a figura de um estudioso que se alinha com o ideal renascentista de criar um sistema de conhecimento desvinculado da 196

200 hierarquia do modelo teológico medieval, recorrendo à cultura antiga, especialmente ao modelo retórico. O projeto do Teatro da Sabedoria, enquanto local que reúne e organiza toda a sabedoria humana, baseia-se no modelo clássico descrito por Vitrúvio (cuja estrutura reflete a concepção do universo) e incorpora as noções da mnemotecnia antiga. Constituído por sete ordens horizontais subdivididas em sete partes (correspondentes aos planetas) encerra quarenta e nove compartimentos (câmaras de memória, loci do saber), cada um deles identificado por uma imagem extraída da mitologia. [20] Desenho e vista do Teatro. Fonte: ARNELL e BICKFORD, 1991, p. 220 e 237. [21] Vistas do Teatro. Fonte: ARNELL e BICKFORD, 1991, p

201 A historiadora inglesa Frances Yates 37 descreve detalhadamente não só as peripécias de Giulio Camillo em busca de patrocínio para sua invenção, como também particularidades do projeto detraídas de documentos examinados a respeito do assunto. [22] [23] Em seus estudos, a historiadora investiga a fundo a mnemotécnica antiga e sua transformação no tempo, enquanto capacidade de associar mentalmente imagem de coisas a lugares organizados em sistemas arquitetônicos rigorosos. Como relata Yates, de acordo com esse procedimento, o bom orador antigo seria aquele capaz de mover-se em imaginação, durante seu discurso, através de uma edificação construída mentalmente, extraindo dos lugares memorizados as imagens ali colocadas de objetos, argumentos e personagens 38. [22] Teatro da memória reconstrução por Yates. [23] Ilustração extraída da edição veneziana de 1552 das obras de Giulio Camillo. Fonte: wwwi-camillo.com/camillo/cam-it-6htm. Acesso 10/09/ Em A arte da memória. Tradução de Flavia Bancher. São Paulo: Editora Unicamp, No capítulo intitulado Teatro de Camillo e o Renascimento Veneziano, pp , a autora discorre sobre o tema. 38 Conforme Yates, a criação da técnica de ativar e conservar a memória a mnemotecnia é atribuída a Simônides de Céos (c ªC.). A autora relata que Cícero, no seu De oratore [2, 86], conta sob a forma de lenda religiosa a invenção da mnemotécnica: durante um banquete em que Simônides canta um poema em honra de Castor e Pólux, o anfitrião diz que pagaria somente a metade do valor estabelecido, deixando que os deuses pagassem o restante. Logo em seguida, Simônides retira-se do local, chamado por dois jovens (uma alusão aos deuses homenageados), pouco antes que o teto desabasse. O reconhecimento dos corpos, após a tragédia, é feito por Simônides que se lembra do lugar ocupado por cada um ao redor da mesa, antes do desabamento. 198

202 Tal estratégia baseia-se na concepção de que a memória é constituída a partir de um processo de espacialização, como constituição de um espaço mental em que as imagens são arquivadas, exatamente como no Teatro da Sabedoria, idealizado pelo Divino Camillo. Um modelo que articula os lugares da memória à construção de esquemas de relações, como se a memória pudesse corresponder a um espelho da totalidade do mundo, uma espécie de reprodução esquemática do mundo exterior. Nesses termos, o teatro de Camillo pode ser interpretado como a própria alegoria da enciclopédia universal, como lugar do saber alicerçado na memória. A aproximação dos dois teatros aquele de Camillo e o de Rossi permite relacionar um e outro nas associações que estabelecem entre memória, conhecimento e invenção. O sentido de espacialização do conhecimento do Teatro della Sapienza, presente na elaboração mental do Teatro Del Mondo, reforça os vínculos existentes entre ambos e, o que é mais importante, acentua os vínculos que o teatro de Rossi estabelece com a cidade, na medida em que este se transforma de teatro efêmero em herdeiro de todas as arquiteturas de Veneza. Paul Ricoeur 39, filósofo francês que estuda a relação entre memória e imagem (importante, segundo o próprio autor, para a consciência moderna que o indivíduo tem de si mesmo), observa que a redução da memória à condição de arquivamento de imagens, mera lembrança de impressões vagas das coisas, corresponde a um equívoco. Isso ocorre não só por se ignorar a dimensão temporal, mas também por se destituir a capacidade de representação e interpretação do passado, condição imprescindível da análise histórica. Esse é justamente o aspecto levantado pela crítica que reconhece nessa mostra da Bienal de Veneza, como em certa produção dos anos 1980 rotulada genericamente de pós-moderna, a convalidação de um historicismo efêmero, um modismo que se 39 Em A memória, a história, o esquecimento. São Paulo: Editora Unicamp,

203 sustenta unicamente de imagens: mistura de simulacros e cópias, tons áulicos e vernaculares, academia e regionalismo. 40 Importante, porém, considerar a alternativa apresentada por Ricoeur para reparar o equívoco anteriormente mencionado, ou seja, atentar para a memória como modo de acesso à realidade ontológica do indivíduo que é fundamentalmente condição histórica. Tal estratégia permite articular conhecimentos muitas vezes apreendidos de modo estanque: a fenomenologia da memória, a epistemologia da história e a hermenêutica da condição humana, a fim de constituir o campo de reflexão sobre a natureza constitutiva da representação do passado, da referência ao ausente, enquanto fundamento para a determinação da experiência moderna do si mesmo. [24] A reflexão proposta por Ricoeur desperta interesse pelo fato de entender o resgate da memória em relação de reciprocidade, e não de oposição ao estudo da história, como já foi entendida no passado. [24] Interior do Teatro. Fonte: Acesso 16/09/2008, e ARNELL e BICKFORD, 1991, p Bruno Zevi, apud Arantes, op. cit., p

204 À luz das considerações de Ricoeur, seria injusto e redutivo interpretar o exercício analítico de Rossi como uma mera evocação de imagens, como afirma Moneo referindo-se à arquitetura Improcedente portanto igualar a investigação de Rossi aos exercícios historicistas de um pós-modernismo passageiro, cujo ápice manifesta-se justamente nos anos Sua arquitetura não se limita a reproduzir simulacros, a ater-se unicamente à vestimenta, à epiderme da arquitetura. Talvez pretensiosa, não certamente superficial, sua produção explora e concilia a tratadística neoclássica sobre a cidade (Poete, Lavedan, Habwalchs), com as visões utópicas de Ledoux e com os estudos sobre a tipologia arquitetônica (de Quatremère de Quincy, revisitados por Argan). Uma tipologia que não se relaciona apenas com as questões construtivas ou funcionais, mas essencialmente se vincula à estrutura espacial básica do edifício inserido na trama da cidade. [25] [25] Rossi. Estudo para Escola Broni. Fonte: ARNELL e BICKFORD, 1991, p

205 Recorrendo mais uma vez a Bogéa: quer para endossar o caráter do lugar, quer para reinventá-lo, esse projeto reconhece a preexistência como mote de invenção e dessa forma edita tempos distintos da cidade. Atento ao presente, o Teatro del Mondo de Rossi, concilia memória e história, tendo em vista sua continuidade no tempo. Assim permite que a nova obra, além de reapresentar e resignificar o passado, constitua uma marca incontestável da produção contemporânea. Escola Edmondo De Amicis, Broni ( ) Um projeto de recuperação e ampliação de pequeno porte, mas especialmente importante pela atenção dirigida ao edifício preexistente que se traduz em uma intervenção singela, mas que, ao mesmo tempo, corresponde a um aporte significativo. O edifício transformado em escola no final do século XIX apresenta uma sóbria fachada umbertina 41. A proposta de Rossi reconstrói o pórtico de entrada, a escadaria principal e o pátio interno, conforme indicação em destaque na planta e imagem da fachada principal. [26] [26] Planta da Escola De Amicis. Em destaque modificações propostas por Rossi. Fonte: Revista a+u, Nov/ O termo umbertino refere-se ao estilo arquitetônico usado no final do século XIX na Itália, durante o reinado de Umberto I de Savóia. 202

206 Esta é uma intervenção particularmente interessante para o estudo que pretende articular as reflexões do campo disciplinar do restauro com a compreensão do arquiteto envolvido mais diretamente na prática de projeto e, por isso, não necessariamente informado a respeito das discussões conceituais da área específica. A intervenção de Rossi estabelece um sutil contraste com o edifício preexistente, fazendo com que o novo seja entrevisto dentro do antigo. Conserva o pátio e dá destaque aos elementos verticais: o pórtico do térreo, a galeria superior coberta e o saguão de entrada. Ilumina as escadas centrais que saem do pátio, fazendo a luz penetrar no interior. [27] [28] Embora não se trate de uma preexistência de caráter monumental, nem de uma obra de valor inquestionável do ponto de vista arquitetônico, merece de Rossi o devido respeito, propriamente por ser um exemplar de uma arquitetura do cotidiano que encerra um não desprezível valor documental. [27] Escola De Amicis. Galeria voltada para o pátio interno e escada redesenhada. Fonte: Revista a+u, Nov/

207 Segundo relato do próprio Rossi: (...) o movimento diário fundiu logo em seguida os dois corpos, o velho e o novo, num todo único, mas com certa ambigüidade. Isso dá a impressão de que minha intervenção contém uma proposta completamente nova para o edifício. 42 A referência a uma proposta completamente nova, contida na frase de Rossi, remete à tentativa de extrair uma regra de caráter mais geral de um processo particular, como sugere sua menção ao procedimento, enquanto um método a adotar em projetos de conservação e renovação de edifícios preexistentes ou de centros antigos: O mesmo método pode ser usado para a conservação de prédios antigos e para a renovação de centros históricos urbanos. Nesse último caso, cada novo acréscimo, por independente que seja a sua concepção, tem uma existência física dentro de um contexto predeterminado. Esse contexto é não somente diverso em termos formais, mas também tem uma dimensão própria no tempo, que deve ser levada em consideração toda vez que se quiser modificar o contexto. 43 [28] Escola De Amicis. Pátio interno e detalhe da fonte. Fonte: revista a+u, Nov./ Em Nesbitt, op. cit. p

208 O interesse desse projeto é justamente o raciocínio explicitado na solução proposta. Um exercício de intervenção em preexistência que propicia refletir a respeito de um possível método a ser aplicado em situações análogas. O novo e o antigo não se confundem, mas dialogam sem conflito 44. Teatro La Fenice, Veneza ( ) O projeto de reconstrução do teatro veneziano La Fenice permite discutir um tema controverso do campo disciplinar da restauração que emerge no período do pós-guerra: a proposta de reconstrução com era, dov era (como era, onde estava). [29] A orientação inicial é voltada a edifícios desaparecidos por ação dos bombardeios, portanto de modo repentino e traumático. [30] [31] A discussão acaba se ampliando para casos em que a perda seja resultante de um episódio abrupto e acidental. É evidente que em situações extremas de crise e trauma os argumentos que apelam à razão podem perder terreno para aqueles carregados de emoção. [29] Gravura do interior do teatro do século XIX. Fonte: rg/wiki/teatro_%c5%81a_fenice. Acesso 08/09/ Id. p Convém observar que, embora Rossi não faça qualquer menção a respeito, poucos anos antes da realização desse projeto, ou seja, em 1964, tinha sido votada no II Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos dos monumentos históricos promovido pelo ICOMOS (Conselho Internacional dos Monumentos e Sítios) a Carta de Veneza que recomenda, entre outras medidas, que os acréscimos indispensáveis em obras de restauração devem ser reconhecíveis e ter a linguagem do próprio tempo. 205

209 Essa é a situação que envolve o La Fenice de Veneza que, em 1996, sofre um incêndio doloso devastador o segundo de sua história, o primeiro tinha ocorrido em Após o acontecido, a Prefeitura local não tem dúvidas: institui um concurso nos moldes de uma concorrência pública para execução de obras em que o projeto e a construção estão interligados entre si. Determina-se, desta forma, que os concorrentes sejam empresas do ramo da construção civil que, por sua vez, contratam escritórios de arquitetura para desenvolver os projetos a serem submetidos à avaliação do júri. A rápida ação da administração pública gera polêmicas por dois motivos principais: o primeiro ligado à modalidade de seleção que elimina o concurso de projetos, para optar pelo processo de concorrência que atrela a solução de projeto aos custos de execução; o segundo motivo está relacionado a um dos pontos do edital que dispõe que o teatro seja reconstruído no mais breve período de tempo, conforme a lógica da reconstrução com era dov era, ou seja, como se o teatro devesse quase que literalmente ressurgir das cinzas tal qual era antes do infortúnio 45. [30] Imagem aérea, o teatro destruído. Fonte: Acesso 08/09/ A polêmica que envolve o concurso não se limita a esses aspectos que antecedem a escolha do primeiro colocado. A construção do projeto vencedor, que reunia a empresa L Impregilo (Grupo Fiat) e o projeto da arquiteta Gae Aulenti, foi embargada judicialmente pelo fato de não ter sido contemplado, naquela proposta, o projeto para a ala sul prevista no edital. Com o veredicto final define-se a continuação da obra conforme o segundo classificado: o consórcio das empresas Hotzmann-Romagnoli com projeto de Rossi. 206

210 Além das dificuldades de reconstituição de praticamente todo o interior do edifício, pois permanecem intactos apenas os muros perimetrais de tijolos maciços de aproximadamente um metro de espessura, a obra envolve questões ligadas à logística da construção: a necessária montagem do canteiro em Mestre para armazenamento do material por absoluta falta de espaço no próprio local, o que determina que o transporte deva ser obrigatoriamente por via aquática. As estruturas da platéia, dos palcos e da cobertura originalmente em madeira com previsão de reconstrução pelo edital, não contam com o aval dos bombeiros que exigem o uso de material resistente ao fogo. Os ambientes do foyer, bilheteria, as salas de dança e ensaio, assim como as Salas Apolíneas devem, conforme o edital, ser reconstruídos de acordo com o método filológico. Isto significa que um estudo rigoroso de documentos e levantamentos iconográficos existentes deve amparar a reconstrução, e que a partir da interpretação desse material devem ser estabelecidos criteriosamente todos os elementos figurativos a serem refeitos e os métodos empregados na reconstituição. [31] O teatro em ruínas. Fonte: Acesso 08/09/

211 Sobre a decisão de reconstrução do teatro na sua configuração primitiva, assim se manifesta Aldo Rossi antes mesmo da definição do resultado do concurso 46, declarando-se favorável ao partido do com era, dov era : [32] É a única escolha sensata para Veneza, se não fosse reconstruída a torre campanária de San Marco com era dov era não seria a mesma Veneza 47. Se Roma perde um monumento é um drama mas Veneza não é cidade de grandes monumentos, é composta de pequenos episódios. [32] Imagem do interior. Fonte: Acesso 08/09/ Em entrevista concedida a G. Leoni, publicada no periódico AREA, 32, maiojunho de 1997, pp (Tradução da autora). 47 Rossi refere-se à reconstrução da Torre campanária de San Marco após o desmoronamento ocorrido em 14/07/1902. A reconstrução ( ) foi realizada com base nos desenhos de G. Spavento (c.1504), sob supervisão de Gaetano Moretti ( ), cf. Carbonara, 1997, p

212 Conforme essa observação entende-se que, para o arquiteto, a excepcionalidade da obra monumental constitui a principal condição a exigir uma atitude de cautela em relação à reconstrução. Subentende-se, portanto, que a preocupação central esteja ligada à autenticidade, a não se incorrer em falsificação 48. Aldo Rossi, por outro lado, não vê problemas em reconstruir um edifício não mais existente se este não se trata de um monumento de caráter singular, marcado pela atribuição de autoria. Adota, portanto, segundo essas declarações, uma atitude diferente para obras de caráter ordinário, de ascendência vernacular, como qualifica o próprio teatro em questão. De todo modo, Rossi afirma que o edital não deveria ser tão restritivo: Eu penso que se devesse limitar ao respeito à volumetria originária, para não prejudicar o skyline veneziano. Refazer o interior filologicamente, como prescreve o edital por uma precisa determinação da tutela municipal [de proteção do patrimônio], é em certo sentido paradoxal. Naturalmente cada um levará a experiência própria, também o tapeceiro particular, e será um elemento de novidade. A torre cênica será, ao contrário, totalmente refeita, inclusive nos limites volumétricos, e é a única parte projetável ex novo. Rossi lamenta a respeito das rígidas restrições definidas pelos entes públicos ligados à tutela do patrimônio arquitetônico que se valem do princípio da intocabilidade da cidade museu conforme expressão do próprio arquiteto e faz ressalvas explícitas à noção do patrimônio ambiental : Diria que nunca me interessei muito aos valores ambientais. Ainda que em polêmica com meu mestre Rogers, nunca condividi a idéia das preexistências ambientais; é um conceito de sabor cenográfico. 48 A esse respeito consultar o conteúdo do apêndice dedicado ao tema, presente no livro de Cesare Brandi Teoria del restauro (1963). Por comodidade e adequação fazse aqui mais uma vez referência à tradução para o português de Beatriz Kühl: Teoria da restauração (2004), ver Falsificação, pp Nesse texto a falsificação é analisada a partir do juízo de falsidade que pressupõe a não congruência do sujeito ao seu conceito, às determinações que deveria possuir. 209

213 Sobre o traço característico do território veneziano afirma: Aliás, Palladio foi o primeiro a entender que Veneza é feita de elementos isolados, enquanto Sansovino procurava por em comunicação, unir. A partir dessas considerações mencionadas pode-se ter uma idéia do conteúdo controverso daquele depoimento. Quando se decide pelo projeto de Rossi, o arquiteto já tinha falecido, mas perdurava a polêmica sobre a reconstrução. A execução do projeto não obedece literalmente ao princípio do com era, dov era. Basta analisar a atual Sala Nuova, local onde antes do incêndio estavam as instalações de aquecimento, para se dar conta da transformação: adaptada a sala de ensaios para orquestra e coro, essa sal ganha uma instalação sui generis que constitui uma cenografia em madeira da Basílica Palladiana de Vicenza. [33] [33] A cenografia Palladiana. Fonte: Acesso 09/10/

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