A VIOLAÇÃO DA DIGNIDADE E DIREITOS DAS MULHERES DA PENITENCIARIA DE PICOS

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Transcrição:

A VIOLAÇÃO DA DIGNIDADE E DIREITOS DAS MULHERES DA PENITENCIARIA DE PICOS Millena da Costa Silva 1, Jordani de Araújo Ferreira 2, Geferson de Oliveira Honorato 3, Lucas Coelho Araújo 4, Thiago Natanael Barbosa Rodrigues 5 RESUMO: O presente artigo tem o objetivo de analisar a problematização do sistema carcerário feminino da cidade de Picos, estado do Piauí. Este estudo consiste em um relato de experiência dos docentes do Curso de Bacharelado em Direito da Faculdade Raimundo Sá, Picos Piauí, com o intuito de socializar experiências sobre os aspectos naturais e humanos das detentas, de seu direito a visita íntima, sobre a imagem deturbada da mulher presa, estrutura familiar, aspectos psicológicos e emocionais, e ainda sobre a falta de infraestrutura do presídio. É importante que, também, haja a conscientização de sua conduta antissocial, sendo-lhes oferecidas condições para que, no retorno à vida comum, tenham comportamento normal, reestabelecendo a sua imagem de mulher para a sociedade, reconstruindo família e voltando para o mercado de trabalho sem tamanhos prejuízos. Nesse sentido, privilegiamos bibliografias que ressalvam claramente a respeito do citado. Como resultado, a visita, onde nos possibilitou uma visão da realidade prisional e reflexão a respeito da imagem da mulher presa, foram primordiais e extremamente válidas para a consolidação dos conhecimentos necessários para um bom desempenho e, consequentemente, para nossa formação profissional. Por óbvio não é tarefa fácil, há necessidade de treinamento e sensibilização dos profissionais da área, há claro, a sensibilização dos gestores públicos, para que desta forma implantem políticas públicas efetivas para esse seguimento, buscando assim, a humanização nas cadeias. PALAVRAS CHAVES: Dignidade da mulher presa. Falta de Infraestrutura. Reintegração social. INTRODUÇÃO A Constituição Federal instituiu, em seu art. 1º, o Estado Democrático de Direito, que tem como um de seus pilares a dignidade humana. Na Carta Magna, tratando de direitos e garantias fundamentais, afirma-se que todos são iguais perante a lei, sem distinção

de qualquer natureza. Tal proclamação de igualdade é reiterada, tendo como objeto o gênero, no inciso I do art. 5º: homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações. O princípio básico consagrado pela Organização das Nações Unidas é a igualdade, ao afirmar que: As regras que se seguem devem ser aplicadas, imparcialmente. Não haverá discriminação alguma com base em raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou outra, origem nacional ou social, meios de fortuna, nascimento ou outra condição. (MORAES; SMANIO, 2002, p. 157) No entanto, a realidade prisional da cidade de Picos, estado do Piauí, é marcada pela superlotação, falta de acesso à saúde, violação da dignidade da mulher, falta de trabalhos ligados à ressocialização, direito a visita íntima, infraestrutura inadequada e ausência de atividades, o que causa revoltas e violência. Está muito longe de ao menos se parecer com as condições carcerárias proclamadas pela ONU, pela Constituição Federal, pela Lei de Execução Penal e pelos inúmeros tratados internacionais com os quais o Brasil assumiu compromissos, no que se refere ao tratamento dos presidiários. Dessa forma, as condições tanto naturais, humanas e ambientais, quanto jurídicas, deixam vários questionamentos diante do que nos foi exposto na visita de experiência acadêmica que fizemos à Penitenciária Feminina Adalberto De Moura Santos, realizada no dia trinta e um de Outubro de dois mil e dezesseis. A relevância social deste relato de experiência é para esclarecimento sobre a realidade do sistema carcerário feminino. Buscando uma contribuição relevante para o Estudo do Direito, na disciplina de Direitos Humanos e Cidadania, afim de oferecer entendimento sobre as particularidades do encarceramento. Com objetivo geral de analisar a problematização no sistema penitenciário feminino de Picos.

2 SISTEMA PENITENCIÁRIO FEMININO DE PICOS 2.1 História da mulher presa no Brasil Os graves problemas que caracterizam o sistema penitenciário brasileiro e que têm se intensificado, ao longo das últimas décadas, em função da escalada nas taxas de encarceramento encontram sua gênese nas inúmeras carências e deficiências estruturais que acompanham a história do país. Referem-se, assim, à precariedade das condições físicas oferecidas nas cadeias e presídios, ao déficit de vagas, à absoluta insalubridade nas unidades de aprisionamento, comumente caracterizadas como depósitos de seres humanos, ao lado da prevalência de uma cultura de intensa violência institucional que, para além de utilizar amplamente práticas como a tortura, está fortemente representada em trágicos episódios, os quais consistem em verdadeiras práticas de extermínio da população encarcerada, consistindo o Massacre do Carandiru em caso exemplar de desrespeito. Mais recentemente, o sistema penitenciário brasileiro tem se visto imerso numa crise mais acentuada de legitimidade em razão da formação e atuação das organizações criminosas dentro dos presídios, o que tem levado a um acirramento ainda maior das políticas de contenção por parte do aparelho repressivo, sobretudo dentro das prisões, agravando a violência institucional, e à supressão de direitos e garantias dos indivíduos presos. O cárcere, que é por muitos, comparado a uma máquina de moer carne, tem o condão de submeter, comprimir e misturar a massa heterogenia até transformá-la em um corpo só, um corpo dócil (...) (FOUCAULT, 1987). No caso do encarceramento feminino, há uma histórica omissão dos poderes públicos, manifesta na completa ausência de quaisquer políticas públicas que considerem a mulher encarcerada como sujeito de direitos inerentes à sua condição de pessoa humana e, muito particularmente, às suas especificidades advindas das questões de gênero. Isso porque, como

se verá no curso deste relatório, há toda uma ordem de direitos das mulheres presas que são violados de modo acentuado pelo Estado brasileiro, que vão desde a desatenção a direitos essenciais como à saúde e, em última análise, à vida, até aqueles implicados numa política de reintegração social, como a educação, o trabalho e a preservação de vínculos e relações familiares. É certo, no entanto, que as circunstâncias de confinamento das mulheres presas e a responsabilidade do Estado pela sua custódia direta demandam do poder público uma ação ainda mais proativa e um tratamento de fato especializado, com o fim de garantir às mulheres encarceradas o acesso e gozo dos direitos que lhe são assegurados pela normativa nacional e internacional. As mulheres encarceradas apenas deveriam sofrer limitações ao seu direito de ir e vir, mas o descaso, a negligência e omissão do Estado no cumprimento de seus deveres disseminam violações de todos os demais direitos das presas que não deveriam ser afetados. O Estado, que deveria nesse universo específico construir espaços produtivos, saudáveis, de recuperação e resgate de auto-estima e de cidadania para as mulheres, só tem feito ecoar a discriminação e a violência de gênero presentes na sociedade para dentro dos presídios femininos. Representando menos de 5% da população presa, a mulher encarcerada no Brasil é submetida a uma condição de invisibilidade, condição essa que, ao mesmo tempo em que é sintomática, legitima e intensifica as marcas da desigualdade de gênero à qual as mulheres em geral são submetidas na sociedade brasileira, sobretudo aquelas que, por seu perfil socioeconômico, se encontram na base da pirâmide social, como é o caso das encarceradas. 2.2 Violação da dignidade da mulher no cárcere

A Lei de Execuções Penais, ao dispor sobre os direitos saúde, educação, assistência social, exercício do trabalho e de atividades intelectuais, no caso das mulheres em gestação, reclusão em estabelecimento compatível, direito à amamentação, entre outros (arts. 41, 83 e 89 da LEP) dispôs também sobre a obrigação do Estado em oferecer condições materiais à execução desses direitos. Mas foi ao estabelecer o direito à jurisdição ao preso, inserindo a atuação do sistema de justiça em toda a dinâmica prisional, que a legislação nacional estendeu com mais nitidez os princípios democráticos ao cárcere, posição essa que ainda hoje é assumida por poucas nações no mundo. Embora precários os dados nacionais que deem conta do perfil biográfico e social da mulher encarcerada, um censo penitenciário realizado no estado de São Paulo em 2002 revelou que: 54% das presas são pardas e negras, quanto ao grau de instrução, 61% não concluíram sequer o nível fundamental, 82% são mães, mas apenas 27% se declaram casadas (Cfr: FUNAP/SAP/SP, Censo Penitenciário do Estado de São Paulo, 2002). Não obstante, as violações não foram erradicadas ou sequer mitigadas com a edição dessa normativa, que já completa vinte e dois anos e celebra sua contínua inaplicabilidade e ineficácia. Para que se compreendam as razões desse permanente descumprimento das disposições legais por parte, em especial, das instituições responsáveis justamente por sua aplicação, deve-se ter em conta a cultura predominante no país de desrespeito à estrutura legal vigente, sobretudo quando ela se refere à atribuição de direitos a segmentos populacionais menos favorecidos. Esse fato não deixa de representar uma contundente negativa do Estado brasileiro em reconhecer os direitos civis dessas populações, num fenômeno característico da organização social e política brasileira a que a antropóloga Teresa Caldeira denomina democracia disjuntiva. Se no âmbito da estrutura legal vigente encontram-se as principais disposições garantidoras de direitos dos presos e atinentes às obrigações do Estado e, ainda assim, as

permanentes violações ocorrem na esteira dessa tradição de desrespeito aos estatutos legais pelas instituições públicas, pretende-se, com essa exposição, além de denunciar a dramática situação a que as mulheres encarceradas são submetidas no Brasil, instar o Estado brasileiro a criar as condições de aplicabilidade do ordenamento vigente e responsabilizá-lo por sua ineficácia e pelas violações por ele promovidas. 2.3 Transgressão dos direitos da reinserção social na penitenciária feminina de Picos Embora a prisão se apresente como um espaço majoritariamente masculino, as taxas de delinquência feminina encontram-se em constante elevação. A mulher vem, ao longo do tempo, ampliando sua participação na sociedade, inclusive no mundo do crime (LIMA, 2006, p.11), segundo relato feito pela gerente adjunta Daniela Leite, da penitenciária feminina de Picos, o local disponibiliza espaço físico para comportar onze (11) mulheres presas, onde, o mesmo excede essa disponibilidade, mantendo atualmente trinta e uma (31) mulheres em cárcere privado. Dessa forma, algumas delas têm que dormir nos colchões pelo chão, inclusive no chão do banheiro. As selas ficam expostas aos efeitos da natureza, como exposição ao sol e chuvas. Por bem, o ambiente, levando para o aspecto de limpeza do espaço físico, é aparentemente limpo e não há mau cheiro no local. De acordo com Foucault,

(...) a relação castigo-corpo não é idêntica ao que ela era nos suplícios. O corpo encontra-se aí em posição de instrumento ou de intermediário; qualquer intervenção sobre ele pelo enclausuramento, pelo trabalho obrigatório visa privar o indivíduo de sua liberdade considerada ao mesmo tempo como um direito e como um bem. ( ) O castigo passou de uma arte das sensações insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos (...) (FOUCAULT, 1987). Numa sociedade calcada no patriarcalismo, são mais que evidentes os estigmas impostos pelo machismo, assim, a mulher no cárcere carrega todas as pechas de uma vida maldita. Ou seja, o sofrimento vem em dose dupla, estar presa e ser mulher. Tratar da mulher no sistema penitenciário apresenta um dilema, pois a esta sempre coube cuidar da família, dos afazeres domésticos, dos filhos, e essa é a imagem associada no imaginário social, como alguém frágil e dócil. (LIMA, 2006, p. 11) a mulher, mesmo com maior liberdade, autonomia e ainda independência conquistados, onde, cada vez mais alcançam seu espaço e poder dentro da sociedade, ainda são vistas como o sexo frágil. Quando inseridas no mundo do crime, chegando a serem privadas de sua liberdade num sistema carcerário, causam repulsão na sociedade, rompendo a imagem a que lhes foi atribuída. O cárcere produz em seus internos quer sejam homens, quer sejam mulheres - efeitos e sentimentos análogos (LOPES, 2007). A despeito disso, na prisão, homens e mulheres formam sistemas sociais distintos e são socializados de maneira diferente, havendo uma maior incidência de objetivos moralizadores nas mulheres presas, para que estas assumam valores de passividade e submissão (ESPINOZA, 2004, p. 81), retomando o papel de esperado pela sociedade, de esposas e mães exemplares, dedicadas às suas famílias e aos homens. No entanto, as perspectivas de retomada das mesmas ao convívio social nem sempre são supridas de maneira positiva. O preconceito gerado em torno da imagem a que lhes foi concedida, colocam-nas numa barreira para a ressocialização, assim como, para a retomada na tentativa de ingressar novamente no mercado de trabalho.

3 CONSIDERAÇÕES PARCIAIS Através da realização desta visita, tivemos a oportunidade de refletir que o sistema penitenciário da cidade de Picos, precisa de várias reformas, tanto jurídicas quanto estruturais, garantindo a melhorias das condições das presas. É importante que, também, haja a conscientização de sua conduta antissocial, sendo-lhes oferecidas condições para o retorno à vida comum em sociedade. Mudar esse quadro, por óbvio não é tarefa fácil, há necessidade de treinamento e sensibilização dos profissionais da área, há claro, a sensibilização dos gestores públicos, para que desta forma implantem políticas públicas efetivas para esse seguimento, buscando assim, a humanização nas cadeias. Tendo em vista os aspectos observados, entendemos que, a prisão, por si só, é um ambiente que favorece a violação dos direitos humanos. As encarceradas encontram-se multiplamente excluídas e estigmatizadas. Com o seu ingresso na prisão, recebem a cicatriz de delinquente, que se perpetuará mesmo após alcançarem a liberdade. Deste modo, é imprescindível o debate sobre o problema, solenemente esquecido e, cuja faceta causa muito sofrimento. E não é o caso puro e simples de criação e imposição de leis, mas é, sobretudo, fator de educação e, conscientização, tanto com políticas públicas, como com uma atuação vigorosa de entes estatais, como o Ministério Público e a Defensoria Pública, não só para cumprir e resguardar leis garantir, mas sim, para garantir direitos, dar dignidade às pessoas, e, no mínimo, humanizar essa máquina de moer gente, o cárcere. REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Vade Mecum. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. ESPINOZA, Olga. A mulher encarcerada em face do poder punitivo. São Paulo: IBCCrim, 2004. 183 p. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1987. LOPES, Rosalice. Memórias de pesquisa: a experiência de uma psicóloga no interior de uma prisão feminina. Imaginario, São Paulo, v. 13, n. 14, jun. 2007. LIMA, Márcia de. Da visita íntima à intimidade da visita: a mulher no sistema prisional. Tese (Mestrado). Universidade de São Paulo. São Paulo, 2006. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/6/6136/tde-24032008-085201/pt-br.php> Acesso em 09 nov. 2016. MORAES, Alexandre de; SMANIO, Giampaolo Poggio. Legislação Penal Especial. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2002.