O PAPEL DA URODINÂMICA NA AVALIAÇÃO DA INCONTINÊNCIA URINÁRIA EM MULHER PRÉ TRATAMENTO CIRÚRGICO. THE ROLE OF PRESURGICAL URODYNAMIC ASSESSMENT IN THE TREATMENT OF STRESS URINARY INCONTINENCE IN WOMEN LUISA DOS SANTOS MASCOLO e PEDRO LUCAS DE PAULA 1 JORGE ANTONIO PASTRO NORONHA 2 RESUMO Objetivos: Revisar o papel da avaliação urodinâmica pré tratamento cirurgico de incontinência urinária aos esforços (IUE) em mulheres. Métodos: Foi realizada revisão bibliográfica em maio de 2018 sobre estudo urodinâmico e incontinência urinária em mulheres nas bases de dados PubMed e Lilacs, utilizando como palavras-chaves na busca os termos urodynamics, women e urology, adotando como critérios de inclusão: data de publicação igual ou maior a janeiro/2013 (com exceção de um trabalho que foi incluído devido a relevância clínica no assunto); trabalhos redigidos em língua inglesa ou portuguesa; acesso livre ao texto integral e abordagem da avaliação urodinâmica (AUD) em mulheres com IUE. Os 1 Acadêmicos da Escola de Medicina da PUCRS 2 Médico Urologista e Chefe do Serviço de Urologia do HSL PUCRS e Professor da Escola de Medicina da PUCRS.
400 critérios de exclusão foram incontinência urinária (IU) em pacientes do sexo masculino e crianças, além de comorbidades neurológicas. Resultados: O estudo urodinâmico é um exame que avalia a função do complexo uretro-vesical nas fases de enchimento e esvaziamento do ciclo miccional. A AUD auxilia a detectar e a diagnosticar com maior precisão as disfunções do trato urinário inferior (DTUI) com base em sua fisiopatologia, podendo assim participar da tomada de decisão terapêutica. Conclusões: O estudo urodinâmico pré-operatório deve ser reservado para casos selecionados, como na incontinência urinária complicada, nos prolapsos genitais e disfunções neurológicas. Portanto, não deve ser solicitado de rotina em todas as pacientes com incontinência urinária. Palavras-chave: urodinâmica, incontinência urinária de stress feminina. ABSTRACT Aims: to review the role of preoperative urodynamic assessment in the treatment of stress urinary incontinence in women. Methods: Bibliographic review was performed in May 2018 on urodynamic and stress urinary incontinence in the PubMed and Lilacs databases, using the key terms urodynamics, women and urology. The inclusion criteria used as reference were: publication date equal to or greater than January 2013 (except for two articles, which were included for clinical relevance in the subject); papers written in English or Portuguese; free access to the full text and approach to Urodynamic Assessment (AUD) in women with IUE. The exclusion criteria were IU in male patients, children and neurological comorbidities. Results: The urodynamic study is a test that evaluates the function of the urethral and bladder complex at the phases of filling and emptying of the voiding cycle. The AUD helps to detect and diagnose more accurately the lower urinary tract dysfunctions (DTUI) based on your pathophysiology, and thus participate in the therapeutic decision making. Conclusions: The preoperative urodynamic study should
401 be reserved for selected cases, such as complicated urinary incontinence, genital prolapses and neurological dysfunctions. Therefore, it should not be done routinely in all patients with urinary incontinence. Keywords: urodynamic evaluation, female stress urinary incontinence INTRODUÇÃO Incontinência Urinária (IU) é uma condição clínica comum em ambos os sexos, faixas etárias (aumentando proporcionalmente com o envelhecimento) e que gera um impacto negativo na qualidade de vida dos pacientes (1). A Sociedade Internacional de Continência (ICS) define a IU como a queixa de qualquer perda involuntária de urina (2). Assim, a IU não é considerada uma doença, mas um sintoma resultante de alterações fisiopatológicas isoladas ou combinadas do trato urinário inferior (TUI): da bexiga e/ou do mecanismo esfincteriano uretral, assim como das estruturas de sustentação dos órgãos intrapélvicos e dos comandos neurológicos do sistema nervoso central e periférico (3). A IU é o sintoma de trato urinário inferior (STUI) mais prevalente entre as mulheres e sua prevalência varia amplamente nos diferentes estudos. Essa discrepância ocorre em virtude das dificuldades em padronizar a definição de IU e os métodos de avaliação, bem como as características do estudo e população-alvo. A mediana da prevalência da IU em mulheres em 35 estudos foi de 27,6% (com um intervalo de 4,8-58,4%) e por ser uma queixa estigmatizada em muitas culturas, acredita-se que o número de mulheres atingidas seja ainda maior (4). Tendo em vista a fisiopatologia, a IU é dividida em subgrupos, dos quais os mais comuns são: a IU de esforço (IUE), a IU de urgência (IUU) e a IU mista (IUM). A IUE se caracteriza por perdas devido ao aumento da pressão abdominal na ausência de contração do músculo detrusor, sendo mais prevalente em mulheres adultas antes da menopausa. Já a IUU tem como principal queixa o desejo súbito de urinar, associado a
402 polaciúria, incontinência de urgência e noctúria, sintomas associados à bexiga hiperativa que afetam, sobretudo, mulheres idosas. A IUM, por sua vez, apresenta conjuntamente características de IUE e IUU, com a presença ou não de hiperatividade detrusora (5). Dois mecanismos, que normalmente contribuem para assegurar a continência urinária, estão envolvidos na IUE: o fechamento uretral intrínseco que envolve a mucosa, o corpo esponjoso e o músculo (insuficiência esfincteriana intrínseca) e o mecanismo de suporte externo, fornecido pela função do assoalho pélvico. As alterações mais comuns, muitas vezes sobrepostos, para a IUE incluem a hipermobilidade do colo vesical e da uretra durante picos de pressão abdominal (resultantes do enfraquecimento das estruturas do assoalho pélvico que dão suporte à uretra) e a fraqueza do próprio esfíncter urinário proveniente de traumas, repetidas cirurgias uroginecológicas, doenças neurológicas, envelhecimento ou doenças que levam à atrofia muscular sistêmica (6). O diagnóstico e a quantificação da IU podem ser realizados por uma avaliação subjetiva, através da história clínica, e/ou objetiva, pela avaliação urodinâmica (AUD). Primeiro, e mais importante, a anamnese dirigida com ênfase na alocação dos sintomas no estágio apropriado do ciclo vesical e o exame físico adequado estabelecem o diagnóstico presuntivo e direcionam as investigações subsequentes. Os STUI apresentam correlação reduzida com a fisiopatologia das DTUI; favorecendo, muitas vezes, o diagnóstico incorreto. Portanto, a AUD é particularmente útil para identificar objetivamente anormalidades funcionais e estruturais do TUI (7). A AUD é um termo genérico utilizado para designar uma série de técnicas que tem o objetivo de qualificar e quantificar a atividade do TUI durante duas fases distintas da micção: a etapa do enchimento e armazenamento e a de esvaziamento vesical. A AUD reproduz os sintomas do paciente através da combinação de medidas não invasivas e invasivas. Dentre as não invasivas, pode ser medida a urofluxometria livre inicial, que determina diversos parâmetros do fluxo urinário, tais como volume, tempo total de esvaziamento, pico de fluxo e média de fluxo. As técni-
403 cas invasivas são, a cistometria de enchimento, que analisa a função de armazenamento, além do teste de pressão de perda do detrusor (DLPP) e o teste de pressão de perda de Valsava (VLPP)(8). O tratamento da IUE tem como objetivo o desaparecimento ou a redução do número de episódios de IU a fim de diminuir o impacto nas atividades diárias das pacientes. Para tanto, os tratamentos oferecidos podem ser divididos em conservador e cirúrgico. O tratamento conservador é baseado na mudança no estilo de vida, realização de terapia comportamental, treinamento dos músculos do assoalho pélvico e na terapia medicamentosa. Já o tratamento cirúrgico atual inclui as cirurgias de sling, e a colpossuspensão retropúbica (9). O tratamento cirúrgico da IUE tem maior probabilidade de sucesso, mas pode apresentar diversas complicações, tais como sangramento, infecção, disfunção miccional, lesão visceral, dor (10). Desde a descrição do conceito de insuficiência esfincteriana intrínseca (IEI) da uretra em 1980 até a década de 1990, as pacientes portadoras de IUE eram classificadas de acordo com o padrão urodinâmico em dois grupos fisiopatológicos distintos, segundo os quais a perda urinária se relacionaria, predominantemente, à hipermobilidade da uretra ou à IEI da uretra. Como o procedimento indicado para a hipermobilidade (colpossuspensão retropúbica) se diferenciava do escolhido para o tratamento da IEI (sling pubovaginal aponeurótico), a realização da AUD tinha uma justificativa relevante. O advento da teoria integral da década de 1990, embora sem contrapor-se ao conceito de IEI, determinou a liberalização das indicações dos slings, independente dos resultados da AUD. Apesar disso, a AUD permanece incluída na avaliação pré-operatória das pacientes com IUE, mesmo sendo uma ferramenta de custo relevante e com potenciais efeitos adversos como disúria transitória, hematúria, bacteriúria e infecção do TUI sintomática (11). Recentes trabalhos discutem a importância da AUD para pacientes com sintomas de IUE pura, visto que os resultados obtidos com tratamentos cirúrgicos são similares tanto para o grupo de mulheres
404 que realizou AUD antes da cirurgia, quanto para o grupo de mulheres que não a realizou (12). Nessa revisão da literatura foram avaliadas as evidências acerca dos reais benefícios da AUD pré tratamento cirúrgico, a fim de esclarecer qual a melhor conduta. MÉTODOS Esse artigo é uma revisão da literatura sobre a utilidade da AUD na avaliação pré-cirúrgica de mulheres com IUE. Para tal, buscou-se artigos científicos de língua inglesa e portuguesa nas bases de dados Medline (pubmed) e Lilacs. Para a pesquisa, foram utilizadas as terminologias cadastradas nos Descritores em Ciência da Saúde (DeCS) da Biblioteca Virtual em Saúde da Bireme, correspondentes aos Medical Subject Headings (MeSH) da National Library of Medicine. As palavras-chaves utilizadas na busca foram: urodynamics, women e urology. Os critérios utilizados para a inclusão dos artigos foram os seguintes: data de publicação igual ou maior a janeiro/2013 (com exceção de dois trabalhos, que foi incluído devido a relevância clínica no assunto); escrito em língua inglesa ou portuguesa; acesso livre ao texto integral e abordagem de AUD em mulheres com IUE. Foram excluídos artigos relacionados com IU em pacientes do sexo masculino, crianças e comorbidades neurológicas e que não abordavam o tema proposto. RESULTADOS Como abordado anteriormente, diversos trabalhos têm sido publicados nos últimos 5 anos questionando a necessidade da realização da AUD no pré-operatório da incontinência urinária em mulheres. Esta discussão foi iniciada após a publicação de dois importantes estudos clínicos randomizados: Urodynamics prior to Stress Incontinence Surgery (VUSIS) and Value of Urodynamic Evaluation (ValUE). Estes estudos afirmaram que a AUD não traz benefício no uso rotineiro das pacientes com IUE (13).
405 No entanto, recentemente Mengerink e colegas realizaram entrevistas com médicos urologistas e ginecologistas holandeses que atendem pacientes com IUE para avaliar a implementação das recomendações do estudo VaIUE na prática diária. Curiosamente, os autores observaram que a grande maioria dos entrevistados 93% não realizava AUD pré-operatória de rotina em mulheres com IUE (15). Nager et al. analisaram se mulheres com IUE se beneficiaram da realização da AUD no pré-operatório por mudar os resultados do tratamento cirúrgico comparado às pacientes tratadas apenas após anamnese e exame físico. Este estudo concluiu que, para mulheres com IUE não complicada, a avaliação pré-operatória clínica isolada não foi inferior ao teste urodinâmico para o resultado cirúrgico em 1 ano. Na mesma linha, Huang et al. avaliaram o impacto do teste urodinâmico no pré-operatório da intervenção cirúrgica da incontinência urinária e prolapso pélvico na população feminina chinesa. Os autores concluíram que a AUD pode resultar em mudanças nos planos de tratamento dos prolapsos genitais, uma vez que as mulheres chegam na consulta referindo apenas abaulamento vaginal, mas com a realização do estudo urodinâmico se observa que essas pacientes apresentam também incontinência urinária oculta (16). Por fim, resultados similares também foram encontrados no estudo realizado por Topazio e colegas. Em concordância com os estudos mencionados anteriormente, se conclui que a AUD deve ser reservada para casos de incontinência urinária de esforço complicada. De fato, nesses casos, a UDA pode acrescentar novas informações úteis ao manejo terapêutico, o que inclui, por exemplo, o diagnóstico de disfunção miccional. CONCLUSÃO Por causar um impacto tão significativo na qualidade de vida das pacientes e ser um sintoma prevalente, o diagnóstico de IUE não
406 deve ser postergado. Assim, a solicitação de teste urodinâmico para avaliação inicial da IU vem sendo amplamente discutida por diversos grupos de pesquisa. A revisão dos estudos mais recentes e de maior relevância indicam que a AUD não deve ser utilizada de rotina em todas as pacientes, pois se trata de um exame invasivo e não isento de riscos. Ademais, os estudos mostram que, para o tratamento cirúrgico da IUE não complicada, a realização de AUD no pré-operatório não altera os resultados terapêuticos quando comparada a avaliação clínica através da anamnese e exame físico. Dessa forma, se faz necessária a utilização crítica deste método de avaliação invasiva, o qual deve ser reservado para quadros de IUE complicada, necessidade de reintervenções e casos de disfunção neurológica. Com efeito, nestes casos selecionados, a AUD pode influenciar a intervenção terapêutica, possibilitando melhores resultados a longo prazo. REFERÊNCIAS Aoki Y, Brown HW, Brubaker L, Cornu JN, Daly JO, Cartwright R. Urinary incontinence in women. Nat Rev Dis Primers. 2017 Jul 6;3:17042. Bo K, Frawley HC, Haylen BT, Abramov Y, Almeida FG, Berghmans B, et al. An International Urogynecological Association (IUGA)/International Continence Society (ICS) joint report on the terminology for the conservative and nonpharmacological management of female pelvic floor dysfunction. Neurourol Urodyn. 2017;36(2):221 44. RIOS, Luis Augusto Seabra et al. Atlas de Urodinâmica. 1. ed. Rio de Janeiro: Sociedade Brasileira de Urologia, 2015. 126 p. Minassian VA, Drutz HP, Al-Badr A. Urinary incontinence as a worldwide problem. International Journal Of Gynecology And Obstetrics. 2003 Sep;82(3):327-38. FREITAS, Fernando et al. Rotinas em Ginecologia. 6. ed. Porto Alegre: Artmed, 2011. 736 p. Ashton-Miller JA, Howard D, DeLancey JO. The functional anatomy of the female pelvic floor and stress continence control system. Scand J Urol Nephrol Suppl. 2001;(207):1-7
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