POLÍTICAS SOCIAIS DIRIGIDAS À FAMÍLIA 1



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Transcrição:

POLÍTICAS SOCIAIS DIRIGIDAS À FAMÍLIA 1 João Carlos Petrini 2 O presente capítulo aborda as mudanças que ocorrem na família atual, destacando as políticas familiares. As necessidades que a família contemporânea enfrenta, geram uma demanda cada vez maior por políticas sociais que possam oferecer respostas. A família é muitas vezes escolhida como parceira da administração pública para enfrentar, em caráter preventivo, problemas relativos à saúde, à educação, à segurança, entre outros, especialmente junto à população de baixa renda. O estudo, que apresenta um resultado parcial do grupo de pesquisa Família em Mudança da Universidade Católica do Salvador (Mestrado Família na Sociedade Contemporânea ), depois de apresentar algumas características da família contemporânea, sem a pretensão de uma visão exaustiva, discute as políticas públicas e as políticas sociais, procurando identificar o proprium das políticas familiares. Mudanças na sociedade e na família A família participa dos dinamismos próprios das relações sociais e sofre as influências do contexto político, econômico e cultural no qual está imersa. A perda de validade de valores e modelos da tradição e a incerteza a respeito das novas propostas que se apresentam desafiam a família a conviver com certa fluidez e abrem um leque de possibilidades que valorizam a criatividade numa dinâmica do tipo tentativa de acerto/erro. A família contemporânea caracteriza-se por uma grande variedade de formas que documentam a inadequação dos diversos modelos da tradição, para compreender os grupos familiares da atualidade (SARACENO, 1997). O valor da igualdade foi progressivamente assimilado ao quotidiano da convivência familiar, dando origem a formas mais democráticas e igualitárias de partilhar tarefas e responsabilidades entre marido e mulher. São abandonados os modelos tradicionais que atribuíam o primado ao marido, reservando para as mulheres tarefas prevalentemente domésticas, mas não emergem novos modelos familiares que tenham uma validade universalmente reconhecida e aceita. A igualdade entre os sexos estende-se do quotidiano familiar até o trabalho profissional e ao empenho cultural e político, com uma progressiva tendência a não identificar nenhum trabalho como tipicamente masculino ou exclusivamente feminino. Estas mudanças foram incorporadas ao 1 Artigo original publicado em BORGES, A; CASTRO, M. G. (orgs). Família, gênero e gerações. Desafios para as políticas sociais. São Paulo: Paulinas, 2007. 2 Bispo Auxiliar de Salvador, Bahia, é Doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP, Coordenador do Mestrado em Família na Sociedade Contemporânea da Universidade Católica de Salvador, Diretor do Pontifício Instituto João Paulo II para Estudos sobre Matrimônio e Família, seção brasileira.

código civil, que reformulou o direito de família de modo a atender às exigências modernas. A perspectiva de realização pessoal pôs um fim à definição da mulher como rainha do lar e abriu as portas das empresas ao trabalho feminino. Isto aumentou sensivelmente os rendimentos domésticos e as possibilidades de consumo familiar e, simultaneamente, reduziu o tempo de dedicação às tarefas domésticas e à educação dos filhos. A inserção da mulher no mercado do trabalho oferece espaço de realização, especialmente quando entra em jogo uma específica competência e, portanto, certo protagonismo. Em alguns casos, o exercício de um trabalho remunerado, quando não corresponde a uma premente necessidade de contribuir para as despesas familiares, abre para a mulher uma relativa autonomia de consumo, orientado para necessidades dos filhos ou da casa ou para algum interesse próprio. Ela conquista um espaço de autonomia, livre das diferentes prioridades de gastos do marido, que implicariam em possíveis condicionamentos e conflitos. A mulher entrou no mundo do trabalho e no âmbito social, aproximando-se de modelos anteriormente masculinos mais do que o homem se envolveu com as tarefas domésticas, podendo-se notar uma menor aproximação dele dos papéis tradicionalmente femininos. A política de baixos salários pressiona o casal para trabalhar. A entrada da mulher no mercado de trabalho, que nasceu de uma reivindicação de maior liberdade, responde, às vezes, à necessidade de cobrir o orçamento familiar. Dessa maneira, o sistema produtivo também se beneficia das mudanças que ocorrem na família. O aumento das famílias monoparentais chefiadas por mulheres indica uma crescente matrifocalidade que deixa com a mulher as maiores responsabilidades para sustentar e educar os filhos, devendo administrar a casa e ter, de fato, dupla jornada de trabalho. A esse respeito, Jablonski (2003, p. 64) afirma: Essa disparidade é vivenciada pelas mulheres de forma bastante dolorosa, uma vez que há uma promessa no ar de igualdade de funções (...). Um respeitável contingente de mulheres urbanas de classe média sente-se traído e iludido por estas promessas não cumpridas. As relações entre pais e filhos ganham respeito e flexibilidade, deixam os modelos centrados na autoridade e na disciplina, enquanto são incorporados os valores de diálogo, negociação, tolerância, no horizonte de um amplo pluralismo ético e religioso (KALOUSTIAN, 1998). Verificase uma intensidade maior de dedicação e de investimento de recursos, especialmente com relação à saúde e à educação. Estes comportamentos estão associados ao número menor de filhos que o casal está disposto a criar, de acordo com um planejamento mais ou menos rigoroso. Com isso, aumenta a expectativa de gratificação emocional e afetiva dos pais em relação aos filhos (CAMPANINI, 1989). Nesse caso, observa-se certa diversidade de orientação e de comportamento em função da classe social, da renda familiar e da escolaridade dos cônjuges.

A família sempre foi o lugar do encontro entre diferentes gerações, a história é constituída por uma seqüência de gerações, ora prevalecendo a cooperação, ora o conflito. Nas últimas décadas, as novas gerações divergem da geração dos adultos e dos avós, quanto às metas que merecem ser perseguidas, aos valores que devem ser respeitados e aos critérios para discernir o que vale ou o que deve ser descartado. Por essas e por outras razões, as novas gerações experimentam, muitas vezes, uma distância e uma estranheza com relação aos pais e à geração mais velha em geral. Um confronto sistemático a respeito de aspectos relevantes da existência, em geral, é recusado, sendo considerado desgastante e improdutivo, enquanto costuma ser valorizado o ambiente da afetividade familiar, mesmo sem estendê-lo a uma comparação mais exigente. No quotidiano, prevalecem formas de acomodação prática e o diálogo é substituído por negociações pontuais. Os vínculos de pertença, que ligam os pais aos filhos e vice-versa, tendem, nesse ambiente, a ser mais frouxos. Os pais reclamam que o mundo ao qual os filhos se referem como superado, na realidade é por eles ignorado e descartado sem o receio de perder algo de interessante. Nos últimos tempos, a imprensa noticiou atos de grave violência entre pais e filhos, chegando ao parricídio, ao matricídio e ao assassinato do filho por parte do velho pai, deixando entrever quão profunda e grave é a distância que foi construída entre as gerações. O aumento da esperança de vida faz com que se encontrem, na mesma família, três ou quatro ou até cinco gerações simultaneamente presentes. Por outro lado, os filhos tendem a permanecer na casa dos pais durante muitos anos, até terminarem os estudos e conseguirem uma situação profissional que lhes permita sair de casa e, possivelmente, construir sua própria família. Muitas vezes retornam para a família de origem com um ou dois filhos, quando se divorciam. As relações familiares tornam-se mais delicadas quando filhos já adultos, mas dependentes economicamente, comportam-se com uma autonomia nem sempre considerada positiva pelos pais (DONATI, 2008). Inovações tecnológicas e mudanças na família As inovações tecnológicas introduziram novos valores e novos comportamentos no quotidiano das pessoas, algumas tendo incidência muito forte na maneira de compreender a família. Com a descoberta e a difusão da contracepção química (a pílula), a sexualidade foi separada do amor e da procriação, e isso alterou substantivamente a percepção da sexualidade e das relações de intimidade. Estas deixaram de ser a premissa para que um homem e uma mulher que se amam elaborassem um projeto comum de vida, destinado a durar no tempo, como espaço de responsabilidade recíproca e para com os eventuais filhos. A sexualidade, desligada da destinação a criar vínculos duradouros de responsabilidade

recíproca, coincide sempre mais com a sua dimensão lúdica, deixando na sombra a dimensão procriativa (PETRINI, 2003, págs. 73-76). Conforme observa Castells, a sexualidade torna-se uma necessidade pessoal que não deve necessariamente ser canalizada e institucionalizada para o interior da família (CASTELLS, 2003, pág. 261). Os meios contraceptivos provocaram uma mudança ainda mais significativa para a mulher, que deixou de ter a sua vida e a sexualidade atadas à maternidade como a um destino, recriou o mundo subjetivo feminino e, aliado à expansão do feminismo, ampliou a possibilidade de atuação da mulher no mundo social (SARTI, 2004, pág. 194). Uma preocupação com a ecologia humana começa a emergir, apresentando a exigência de uma posição mais crítica com relação às manipulações que as biotecnologias tornam possíveis e a necessidade de avaliar mais cuidadosamente a possibilidade de interferir em processos vitais humanos, com o perigo de agredir o que é mais especificamente humano no homem. Antes que se difundisse uma sensibilidade ecológica, preocupada em defender a destinação originária de rios e florestas, prevaleceram atitudes predatórias que provocaram grande destruição. São reconhecidas algumas semelhanças entre o tratamento reservado a florestas e rios, quando os interesses econômicos se sobrepõem a quaisquer outras considerações e às manipulações do corpo humano, quando o poder e o lucro constituem os critérios determinantes para orientar a ação (MORANDÉ, 2005). Nesse horizonte, as tecnologias reprodutivas dissociaram a gravidez da relação sexual, alterando os significados tradicionalmente atribuídos à maternidade e à paternidade, sendo possível planejar um filho e produzi-lo em laboratório. (PETRINI, 2003a). Na realidade, como observam Scavone e Barbosa, as novas tecnologias reprodutivas acabam reforçando a normatização médica da família e seu controle sobre o corpo da mulher (Scavone e Barbosa citados por SARTI, 2004, pág. 197). O matrimônio e a constituição da família, a geração dos filhos e, especialmente, a maternidade, que eram considerados fenômenos naturais sobre os quais eram limitadas as possibilidades de interferir, passam a ser vividos como escolha subjetiva (SARTI, 2004, pág. 195), estabelecendo-se uma alternativa entre o pólo da escolha individual e o pólo do destino (FONSECA, 2002). A possibilidade de superar as dúvidas a respeito da paternidade, através da análise do DNA, começa a alterar a responsabilidade masculina com relação aos filhos gerados fora do matrimônio ou fora de uma relação estável. Mudanças socioculturais e familiares Outras mudanças referem-se ao universo dos valores e dos modelos de comportamento, das

crenças e dos critérios para avaliar as diversas circunstâncias da vida, percebida como sendo cada vez mais complexa. O pluralismo ético, cultural e religioso descreve esta complexidade que se torna visível em grupos que, em geral, apresentam diferentes níveis de organização e diversificada capacidade de interagir, dialogar ou de interferir nas decisões da sociedade inclusiva. Aspectos subjetivos da convivência familiar tomam o lugar de seus aspectos objetivos: a família passa a ser considerada como uma realidade particular, cujo significado diz respeito somente ao percurso existencial das pessoas que a integram. A família assume o papel de um grupo social em que se expressam afetos, emoções e sentimentos, sem relevância para a vida em sociedade. Dessa forma, é diminuída a importância da família como instituição que assenta sua constituição na dimensão jurídica dos vínculos familiares. A tendência pós-moderna à des-institucionalização da família não impediu ao legislador brasileiro reconhecer deveres entre os parceiros de uniões de fato (ou consensuais) e destes para com os filhos. Isto significa que o legislador atribui valor estrutural às uniões de fato, que vinculam as pessoas para além do eventual desaparecimento dos aspectos afetivos e comunicativos. Na convivência familiar, são abandonados os modelos que, tradicionalmente, destacavam a figura paterna como o responsável pela família e atribuíam à figura materna as tarefas domésticas e os cuidados com os filhos. Paulatinamente vai sendo assimilado ao cotidiano o valor da igualdade entre os sexos e, em certa medida, entre as gerações, com reflexos nos modos de partilhar trabalhos e responsabilidades, especialmente entre esposa e marido. Nestes últimos tempos, por efeito da rejeição ao passado e da implosão das esperanças utópicas depositadas no futuro, os anseios de realização humana deslocaram-se para o presente, através do acesso ao mercado. A exigência de satisfação no presente colocou em crise o ideal do sacrifício individual visando o bem da família. Assim, reduziu-se a disponibilidade da pessoa ao sacrifício para o bem do outro. O ponto de saturação no relacionamento conjugal é alcançado rapidamente (PETRINI, 2005).

As mudanças que ocorrem na sociedade (SZTOMPKA, 1998) repercutem nos aspectos institucionais e na legislação relativa à família, bem como nas relações entre seus membros e nas identidades pessoais. A família atual experimenta a maior parte das mudanças em andamento como conquistas, que colocam os sexos e as gerações em condições mais igualitárias, num estilo inédito de co-responsabilidade diante das tarefas e das exigências que a convivência familiar apresenta. Muitas vezes, no entanto, estas novas circunstâncias, aliadas ao novo contexto sociocultural, contribuem para tornar mais fracas as redes da solidariedade familiar, mais frágeis os vínculos de pertença recíproca entre os diversos membros de uma família, menos importantes as relações de parentesco ali vivenciadas. No começo do século XXI, falar de família implica referir-se a uma realidade em desordem (SARTI, 2004, pág. 194). Os vínculos familiares Os vínculos familiares nascem como caminho de realização humana, quando um homem e uma mulher começam a experimentar um afeto que faz crescer entre eles uma relação preferencial e recíproca de dedicação e de doação. Este fenômeno, que é percebido como atração irresistível (Eros), caminha para uma crescente intimidade, leva cada um a perceber a outra pessoa como indispensável para encontrar satisfação. A hipótese de não se poder ligar a essa pessoa, percebida como a única que corresponde aos mais profundos anseios de felicidade, é fonte de grande sofrimento. Na medida em que a cultura da banalidade não reduz este ímpeto inicial à relação ocasional de modestas proporções e limitados prazeres, as duas pessoas passam a elaborar um projeto comum de vida. O casal começa a partilhar todos os aspectos da existência, desde o quotidiano mais concreto, com suas tarefas, limites, responsabilidades, até a perspectiva futura de crescimento conjunto, de cooperação em todas as circunstâncias da vida, de abertura para gerar filhos e educá-los. A relação de intimidade assim iniciada consolida-se através da criação do vínculo matrimonial, civil e/ou religioso. No Brasil, de acordo com os dados do IBGE (2000), 71,4% dos casais são constituídos dessa maneira. O dado estatístico é importante porque, no ambiente caracterizado por muitas e profundas mudanças sociais e culturais que dão origem a uma pluralidade de formas familiares, o essencial permanece. A família emerge como o lugar mais significativo (quando não o único) onde a pessoa entra em jogo com a totalidade do seu ser. Sentimentos e afetos, valores e crenças, interesses e ideais, preocupações e trabalhos, sucessos e doenças são partilhados, eventualmente discutidos, e acolhidos pelas pessoas que, dessa maneira, vão tecendo os fios da relação de intimidade. O vínculo

matrimonial, antes de adquirir a dimensão jurídica, é constituído pelos aspectos da existência que são partilhados, expressando densidade humana extraordinária. Todos os processos que configuram os vínculos familiares não se desenvolvem de maneira linear e progressiva, de uma etapa inicial até a plena maturidade, antes, percorrem um itinerário venturoso, devido a uma multiplicidade de fatores que intervêm. Nas relações familiares, a liberdade das pessoas envolvidas emerge a cada momento como um dos fatores determinantes, na medida em que perderam valor os padrões tradicionais de comportamento. Devem ser continuamente reconquistadas as razões que afirmam as relações familiares como desejáveis e positivas para as pessoas nelas envolvidas, através do processo de diálogo e de negociação. Além disso, o vínculo familiar representa apenas um pólo da personalidade adulta: o pólo caracterizado pela exigência de integração, que busca partilhar a vida com outros e que aspira a construir relações de intimidade para, nela, encontrar complementação e realização humana. Mas um outro pólo, presente na pessoa, disputa espaço com o pólo da integração: o da autoafirmação, especialmente fortalecido na sociedade moderna, pela cultura do individualismo (LIPOVETSKY, 1989b; LIPOVETSKY, 2002; LIPOVETSKY, 2004a; LIPOVETSKY, 2004b), segundo o qual os outros são considerados como limites e obstáculos a serem vencidos e, os vínculos são percebidos como amarras que mortificam as aspirações individuais. É verdade que a família encontra-se novamente num pedestal, mas ao mesmo tempo, nunca houve tantos divórcios, tantas uniões livres, tantos filhos fora do casamento. Em resumo, cada um se impõe como um ator livre das antigas imposições coletivas. O novo sopro ideológico da família não significa de forma alguma uma reabilitação dos deveres familiares, ou seja, submissão do indivíduo aos deveres em relação à coletividade representada pela família, mas ascensão de uma família psicologizada, à la carte, emocional, gerida segundo o princípio da autonomia individualista (Lipovesky, 2004a, pág. 28). À acentuada tendência individualista, alia-se outra que tende a mercantilizar todo intercâmbio, de modo tal que se reduzem (...) os espaços da gratuidade, tudo calculando em função da conveniência e da utilidade (PETRINI, 2005, págs. 39-40). Dessa forma, a polaridade, acima descrita, atravessa as relações familiares, tornando-as frágeis. Resumindo, relações significativas, compreendidas como vínculos recíprocos de pertença, constituem um pólo de atração na convivência familiar, a ponto de poder-se dizer que a família constitui-se exatamente por causa e em vista de relações que tenham essa qualidade. No entanto, o pólo constituído pelo ideal da autonomia, percebido como um valor indispensável para a realização individual, provoca tensões e conflitos que no passado eram resolvidos, muitas vezes, com atitudes autoritárias ou com o apelo a direitos e deveres institucionalmente definidos. Atualmente, o limiar entre esses dois pólos encontra-se em estado fluido e, em grande medida, é definido por decisão subjetiva. Um dos maiores desafios da família contemporânea consiste exatamente em equacionar os impulsos

individualistas, que muitas vezes são compreendidos como direitos com as exigências da integração e da coesão social (DONATI, 2003). Este quadro de mudanças foi amplamente investigado por diversos estudiosos. Manuel Castells (2003) examina as raízes profundas e as mudanças recentes provocadas na realidade familiar pelos modernos movimentos de defesa da identidade. Semelhante tarefa é assumida por Zygmunt Bauman, quando estuda as conseqüências da modernidade (1999) e as relações amorosas que, na opinião dele, tornam-se líquidas (2004); Anthony Giddens (1993) dedicou um livro para analisar a transformação da intimidade, mas uma grande parte de sua obra procura compreender os reflexos na esfera pessoal da existência das mudanças que ocorrem na modernidade (1991; 2000; 2002); uma contribuição interessante foi dada por Lipovetsky, no sentido de analisar o individualismo no quotidiano (1989) e a influência das modas na convivência contemporânea (2002; 2004a; 2004b). No Brasil também foram desenvolvidos numerosos estudos que aprofundam aspectos dessas mudanças em andamento. Diversos autores brasileiros já foram mencionados. Cabe ressaltar os trabalhos de Cynthia Sarti (1994; 2004), de Cláudia Fonseca (2002), de Maria do Carmo Brant de Carvalho (2002), de Terezinha Feres Carneiro (1999; 2003), de Bernardo Jablonski (1999) e de Kaloustian (1998). 5 POLÍTICAS SOCIAIS DIRIGIDAS À FAMÍLIA Durante um longo tempo, desde a Segunda Guerra Mundial até o final dos anos 80, a família ficou fora de foco, prevalecendo a idéia de que ela constituía mais um problema na organização da sociedade moderna do que uma força positiva com a qual contar para alcançar as metas de progresso ou de desenvolvimento almejadas pelos diversos governos que se sucederam no período (PETRINI, 2003a, pág. 57-59). No Brasil, as políticas públicas eram dirigidas ao indivíduo, entendido como cidadão portador de direitos. Entre os anos 60 e 70, começou a se notar certa atenção dada à mulher, com a propagação de clubes de mães nos centros urbanos, alimentados e orientados pelas administrações municipais. Sua finalidade era ajudar a mulher urbanizada a adaptar-se ao novo contexto, oferecendo-lhe algum espaço de integração social, capacitação para administrar o lar e diminuir as despesas familiares com seus trabalhos manuais. Este foi o primeiro passo para o seu ingresso no mercado de trabalho (CARVALHO, 2003, pág. 268). O movimento feminista, nos anos 70, teve uma grande influência no fortalecimento da mulher, mesmo para a parcela da população que nunca participou de manifestações feministas. Nos anos 80, houve um grande crescimento de movimentos de luta urbana, atuantes nas periferias das grandes cidades, reivindicando melhorias nos bairros, com relação à saúde, educação e outros

benefícios próprios da infra-estrutura urbana (SINGER & BRANT, 1980). Esses movimentos sociais eram formados e liderados, em sua maioria, por mulheres, que foram emergindo de suas tarefas domésticas para lançar o olhar sobre a cidade. Com o fim do regime militar e a nova Constituição, a atenção à família começou a crescer, tendo como foco, de início, a criança, contemplada com o Estatuto da Criança e do Adolescente. O Estado de bem-estar social que se imaginava em gestação nas décadas passadas, aparece sempre mais como um sonho destinado a não se realizar. As políticas sociais em favor da família nascem do reconhecimento de necessidades que o mercado não pode satisfazer. O indivíduo é incapaz de satisfazer suas necessidades através da compra e da venda de bens e serviços no mercado (SOUZA, 2000, pág. 2), ou porque vive em condições de pobreza, ou porque necessita de bens que o mercado não é capaz de produzir e de oferecer. Os indivíduos que vivem em sociedade necessitam consumir, além de bens e mercadorias, serviços que não podem ser obtidos pela via do mercado (CARVALHO, 2003, pág. 268). A família pode oferecer alguns bens que dependem dos vínculos que se estabelecem entre os seus membros por causa da natureza específica de suas relações, - os bens relacionais, a paternidade, a maternidade, a filiação, que vão além do afeto, do apoio mútuo e da proteção e constituem bens que somente a família pode proporcionar. Por outro lado, resulta evidente que algumas das novas formas de organização familiar possuem menor capacidade de atuar nas lacunas do Estado e compõem os grupos mais vulneráveis à pobreza da sociedade (SOUZA, 2000, pág. 5). Na realidade, trata-se, na maior parte dos casos, mais de preocupação da administração pública com outros problemas do que de atenção à família. Uma escolarização adequada das novas gerações pode ser mais facilmente conseguida com a sua participação, ou atenções à saúde da população; em caráter preventivo, elegem-na como parceira preferencial. A preocupação com a segurança da sociedade, sempre mais ameaçada pela violência, pode encontrar na família uma aliada, especialmente nos grandes centros urbanos, com probabilidade de eficácia para prevenir a entrada dos adolescentes no mundo da infração. O que se observa, no entanto, é que existem intervenções dispersas e não coordenadas mediante programas e projetos em matéria de saúde, educação, combate contra a pobreza e erradicação da violência (ARRIAGADA, 2001, pág. 6). A administração pública visa outros objetivos quando elege a família como parceira de suas ações, o que constitui uma realidade interessante, mas ainda não se trata de políticas familiares. A mesma autora, estudiosa de CEPAL, observa que tais políticas ainda carecem de uma definição específica, de um campo bem delimitado e de uma legitimidade evidente (ARRIAGADA, 2001, pág. 6). No Brasil, diversas políticas sociais correspondem a essa análise. A administração pública de

nível federal elaborou uma grande quantidade de programas de assistência, que envolvem a família 3, cujo foco, no entanto, é outro. Além disso, uma pluralidade de iniciativas é dirigida à família, mas nada deixa perceber que haja uma coordenação, uma integração entre os diversos programas propostos. Tratando-se de programas não coordenados entre si, fica mais improvável sua convergência para a realização de um projeto orgânico de intervenção, que seja capaz de gerar um projeto de vida nas famílias atendidas. A maior parte das ações facilita a sobrevivência, constituem iniciativas de tipo emergencial, numa conjuntura socioeconômica caracterizada por elevadas taxas de desemprego e de condições severas de pobreza. Mas, ao investimento dirigido a esses programas, dificilmente poderá corresponder um dinamismo de desenvolvimento auto-sustentável. No fundo, a família não é suficientemente compreendida e, mesmo nos casos em que é pensada como parceira para a implementação desses programas, não é considerada na trama de relações que a constituem para identificar, nessas relações, dificuldades e problemas e para oferecer soluções e respostas. Descuidos, abusos, violências, evasão escolar, trabalho infantil e mendicância, que podem ser encontrados no espaço da convivência familiar, não se resolvem com a oferta de algum auxílio financeiro. Será necessário elaborar um programa que planeje a presença de técnicos e de voluntários que, entrando na convivência quotidiana das famílias, possam melhorar as relações familiares, fortalecendo a rede que elas constituem (GUIMARÃES & ALMEIDA, 2003, págs. 127-135). Fazem exceção a essa dinâmica o Programa de Saúde da Família e o Programa de atenção integral à família, onde eles são efetivamente implementados. Políticas públicas, políticas sociais dirigidas à família ou políticas familiares? A expressão políticas públicas indica as ações e as intervenções planejadas por órgãos da administração públicas, isso é, por aparatos burocráticos, em benefício daqueles que o Estado reconhece como sujeitos de direitos de cidadania. Tais ações, em geral, são executadas por órgãos do governo, nos diferentes níveis, federal, estadual e municipal. Outras instituições poderão ser convidadas a participar como parceiras destas ações. Quando se usa a expressão políticas sociais, faz-se referência a orientações, medidas e decisões que um sistema social (não necessariamente estatal) adota em matéria de bem-estar para aqueles que lhe pertencem, quer indivíduos, quer famílias e associações. Políticas sociais dirigidas à família fazem pensar a uma pluralidade de sujeitos que, livremente, coordenam suas ações, de 3 Fome zero; Bolsa família; Agricultura familiar; Programa de erradicação do trabalho infantil (PETI); Vale gás, Bolsa escola, Proteção social básica à infância, adolescência e juventude; Proteção social básica à pessoa idosa; Proteção social básica à pessoa portadora de deficiência; Programa de combate ao abuso e à exploração sexual; Programa de saúde da família, Programa de atenção integral à família, entre outros constituem um conjunto de iniciativas às quais devem-se acrescentar os programas de nível estadual e municipal.

maneira a convergir para uma finalidade comum, a de promover o bem-estar da família em algum aspecto decidido em conjunto como relevante. A expressão políticas familiares é muito usada nos ambientes acadêmicos e políticos da Europa. Baste aqui recordar dois livros dedicados às políticas familiares, com a observação de que, na bibliografia que eles trazem, são referidos diversos textos que usam a mesma expressão já no título (CAMPANINI, 1999, Le politiche Familiari Oggi; DONATI, 2003, Sociologia delle Politiche Familiari). Considerando a grande quantidade de políticas públicas e de políticas sociais dirigidas aos mais diversos segmentos da população e aos mais diferentes problemas sociais, resulta de grande utilidade separar para distinguir e para delinear melhor as características próprias das políticas dirigidas à família, especificando critérios para definir o objeto de estudo de maneira mais precisa. Quando se fala em políticas familiares, opera-se uma distinção de outras políticas sociais que, mesmo quando elegem a família como parceira de suas propostas, não possuem as características próprias das políticas familiares. Nesse sentido, distinguem-se as políticas familiares das políticas de combate à pobreza ou de erradicação da violência ou outras. Não se questionam as políticas sociais de combate à pobreza e outras, nem o fato de que elegem a família como uma parceira preferencial. Trata-se de definir melhor o que caracteriza a política familiar e a distingue de outras políticas sociais. Um critério sintético, para delinear uma política social como familiar, não é tanto o objeto de sua atenção, a família, mas o fato de estar orientada a sustentar as relações familiares, fortalecendo-as e tornando-as mais capazes de agir com responsabilidade diante das próprias circunstâncias de vida. Delimitando o campo das políticas familiares Muita discussão envolve a tentativa de definir o conceito de família não somente na perspectiva do trabalho intelectual, mas também no horizonte das políticas sociais. O que parece necessário é deixar de lado qualquer tipo de modelo familiar, assumindo como núcleo do conceito uma característica que pode ser encontrada, em alguma medida, em todo e qualquer tipo de família, nas diferentes feições que vai assumindo atualmente na sociedade brasileira: a cooperação entre os sexos e entre as gerações. Exatamente estes aspectos estão sendo postos em questão pela vulnerabilidade dos vínculos familiares e pela cultura do individualismo desenvolvido na sociedade contemporânea. Quando o tema é família de baixa renda, com a finalidade de compreender sua realidade e

de realizar algum tipo de política social que a fortaleça, tem maior utilidade ampliar o conceito de família à rede de relações que a constitui como grupo social com certo grau de solidariedade entre seus membros (SARTI, 2004, págs. 201-202). Numa perspectiva semelhante, move-se o economista do IPEA, Souza, que relata o caso de estudos jurídicos ou antropológicos que entendem famílias como grupos de parentes que se relacionam com certa intensidade e regularidade e, portanto, não são limitados pelas fronteiras do domicílio (SOUZA, 2002, pág. 2). Mapear a rede de relações significa compreender e ativar a comunidade local na qual a família considerada tem o seu domicílio e na qual provavelmente se situa a maior parte das relações de solidariedade com as quais pode contar, valorizando os talentos e os recursos locais (NEUMANN & NEUMANN, 2004). O estudo de Pierpaolo Donati sobre as políticas familiares (DONATI, 2003) apresenta uma contribuição na definição de conceitos e de critérios de grande utilidade operativa para o estudo das políticas sociais dirigidas à família. O critério da delimitação das políticas familiares depende do modo segundo o qual diferentes temas da vida social são considerados, em função da família, das relações que seus membros vivem. É a orientação da ação que define uma política social como familiar (DONATI, 2003, págs. 18-19). Uma política é familiar se implica a família e não de outros objetivos, mesmo nobres e socialmente úteis. Ela reconhece a subjetividade social da família e a considera como titular de direitos e de deveres como família. Isto implica o reconhecimento dos bens relacionais como próprios dela, merecedores de proteção. Estes bens relacionais fazem parte do capital humano (VITTADINI, 2004) com o qual qualquer política deve contar, para dar passos ao encontro das famílias em situação de desvantagem social. Nesse sentido, essas políticas chamam em causa a família como sujeito ativo, livre e responsável e não como mero destinatário passivo do programa de intervenção. Elas não cuidam apenas da família em crise, mas estendem um olhar amplo às relações e às redes que elas constituem para responder a suas necessidades, para fortalecer sua capacidade de ação positiva. Políticas familiares indicam um campo de atuação transversal a qualquer sistema de ação pública, privada ou mista. Elas podem interessar não apenas a instituições da administração pública, mas a diferentes sujeitos sociais, públicos e privados, que desenvolvam interesses com relação à família. Elas constituem um campo de atuação com uma pluralidade de atores: o Estado, o mercado, as associações (o privado social) e o sistema das famílias. A administração pública, quando realiza políticas familiares, não se move no horizonte do estado assistencial, mas no subsidiário, que considera as famílias como atores responsáveis no plano público. Que o estado seja subsidiário significa que tem o dever de intervir para fortalecer a família (especialmente em suas relações), mas tem, simultaneamente, o dever de valorizá-la e promovê-la, para que seja protagonista de sua vida, nunca a substituindo em suas tarefas e responsabilidades. O

princípio da subsidiariedade, de antiga formulação, entra sempre mais na definição de políticas sociais, pela capacidade que tem de traçar um itinerário à ação pública. Evita o lassaiz faire do neoliberalismo, que se desinteressa dos problemas sociais mais agudos e passa ao largo do estatismo, que sempre corre o perigo de tomar conta e definir o que cabe aos organismos intermediários no caso, à família (NOGUEIRA, 2003). Considerações finais A família nasce para dar continuidade e estabilidade a relações de pertença, inicialmente entre um homem e uma mulher, estendendo-se estas a eventuais filhos e incorporando outras relações do parentesco mais amplo. Os vínculos assim constituídos realizam o proprium da família. Mas, essa mesma família, que se forma para dar mais espaço a vínculos experimentados como positivos, cultiva o ideal da autonomia e, em alguns momentos, considera os vínculos como opressivos e mortificantes, cada um procurando reconquistar a liberdade um dia vinculada a outra pessoa. Há um modo de estudar a família que a identifica com as funções sociais que ela desempenha. Nesta perspectiva, atribui-se a debilidade da família contemporânea ao esvaziamento de funções pela entrada do estado e de outras agências (públicas ou privadas) que tomam para si tarefas antes executadas. Com efeito, partindo desse enfoque, não somente a socialização e a educação das novas gerações, o cuidado com os idosos, mas até mesmo a tarefa procriativa pode ser assumida por laboratórios especializados. Dessa maneira, acaba-se perdendo de vista a família que se pretende investigar, pois inexoravelmente ela desaparece do horizonte quando é reduzida à soma das funções que a ela atribuídas. Há outro enfoque, mais propriamente antropológico, que considera a família como lugar de experiência humana única e insubstituível, onde as relações adquirem um significado de totalidade e, portanto, são supra-funcionais. Nelas podem ser encontrados bens que o mercado não é capaz de produzir e de vender, os bens relacionais, tais como a reciprocidade e a gratuidade, o acolhimento incondicional, a totalidade da atenção. A cooperação entre os sexos e entre as gerações constitui o terreno no qual se joga o grau mais ou menos civilizado da sociedade, a possibilidade de uma efetiva paz social. Os bens e os males de uma família concentram-se principalmente nas relações. As políticas familiares têm nelas o campo preferencial de atuação, pela cooperação de instituições públicas e privadas, de associações e de voluntários, que deverão ser oportunamente coordenadas. A construção do vínculo convive quotidianamente com reivindicações de espaços de autonomia, ora através de um conflito aberto, como quando um adolescente ou um cônjuge clamam

por mais liberdade; ora de maneira velada, quando um membro da família se concede o direito de uma autonomia não considerada legítima. A cultura contemporânea, no entanto, pressiona, de diversas maneiras, para ampliar o leque de liberdades socialmente aprovadas, que reduzem a força do vínculo. As relações familiares perdem a certeza de padrões consolidados e tornam-se flutuantes. A vulnerabilidade das relações familiares nasce no ponto de intersecção entre a esfera privada, onde entram em jogo as liberdades subjetivas dos membros da família e a esfera pública, onde diversas agências veiculam novos valores e modelos de comportamento familiar. Os bens e os males da família concentram-se principalmente nas relações que ela vive. A sociedade moderna, que legitima o poder do estado para que promova o bem-estar da sociedade, paradoxalmente produz, ao mesmo tempo, estilos de vida que fazem crescer o mal-estar (DONATI, 2003, pág. 42-43). Este parece ser o preço de uma maior liberdade individual. Conhecer a família, os dinamismos de suas relações, os vetores que constroem/desconstroem os vínculos que a constituem, amplia a liberdade das pessoas que podem formular suas decisões a partir de compreensão mais adequada de todos os fatores em jogo.