UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

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1 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE COMUNICAÇÃO E ARTES JOSÉ MARIANO KLAUTAU DE ARAÚJO FILHO Miguel Rio Branco: imaterialidades do objeto, materialidades da imagem São Paulo 2015

2 JOSÉ MARIANO KLAUTAU DE ARAÚJO FILHO Miguel Rio Branco: imaterialidades do objeto, materialidades da imagem Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Doutor em Artes. Área de concentração: Teoria, Ensino e Aprendizagem da Arte. Linha de pesquisa: História, Crítica e Teoria da Arte Orientador: Prof. Dr. Domingos Tadeu Chiarelli São Paulo 2015

3 Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte. Catalogação na Publicação Serviço de Biblioteca e Documentação Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo Dados fornecidos pelo(a) autor(a) Filho, José Mariano Klautau de Araújo Miguel Rio Branco: imaterialidades do objeto, materialidades da imagem / José Mariano Klautau de Araújo Filho. -- São Paulo: J. K. A. Filho, p.: il. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais - Escola de Comunicações e Artes / Universidade de São Paulo. Orientador: Domingos Tadeu Chiarelli Bibliografia 1. Fotografia 2. arte brasileira contemporânea 3. Miguel Rio Branco 4. fotografia documental 5. signo I. Chiarelli, Domingos Tadeu II. Título. CDD 21.ed

4 Filho, José Mariano Klautau de Araújo. Título: Miguel Rio Branco: imaterialidades do objeto, materialidades da imagem. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Doutor em Artes. Área de concentração: Teoria, Ensino e Aprendizagem da Arte. Aprovado em: Banca Examinadora Prof.Dr. Instituição: Julgamento Assinatura: Prof.Dr. Instituição: Julgamento Assinatura: Prof.Dr. Instituição: Julgamento Assinatura: Prof.Dr. Instituição: Julgamento Assinatura: Prof.Dr. Instituição: Julgamento Assinatura:

5 Para meus pais Maria Lúcia Medeiros e Mariano Klautau (in memorian) e Val Sampaio

6 Agradecimentos Agradeço primeiramente ao meu orientador Tadeu Chiarelli pelo estímulo, confiança e sobretudo amizade, e aos colegas do Grupo de Estudos Arte & Fotografia pela troca e convivência ao longo desses quatro anos. Aos professores João Musa, Dária Jarentchuk, Solange Ferraz de Lima e Tadeu Chiarelli pela importância e prazer de suas aulas. Às professoras Helouise Costa e Dária Jarentchuk pelas contribuições no exame de qualificação. À Tina Vieira e Edu Ferreira, minha família em São Paulo. À Rose Silveira pela dedicação e total apoio na revisão desta tese. Aos amigos e colegas que contribuíram com materiais, dados, documentos, depoimentos e informações: Rubens Fernandes Junior, Rosely Nakagawa, Lívia Aquino, Fernanda Grigolin, Ângela Magalhães, Nadja Peregrino, Isabel Amado e Marcello Camargo, Isabel Santana e Wladimir Fontes. À atenção de Eduardo Queiroz, João Farkas e Kiko Farkas (Acervo Galeria Fotoptica SP), Romeu Loreto (Biblioteca do MASP SP), Socorro de Andrade Lima, Fernanda Sá e André Larcher (Galeria Milan - SP). À Miguel Rio Branco pelas contribuições, materiais e depoimento dados a este estudo..

7 RESUMO A tese investiga as dinâmicas da imagem fotográfica presentes na poética do artista brasileiro Miguel Rio Branco. Para isso, a sua trajetória é pesquisada tendo como objetos de análise seus livros Dulce Sudor Amargo (1985), Nakta (1996) e Silent Book (1998), e o filme Nada Levarei quando Morrer Aqueles que Mim Deve Cobrarei no Inferno (sic), realizado em Tais obras são eixos que permitem compreender a lida complexa que o artista mantém com as noções de tempo, percepção e realidade. Nesse processo, a fotografia desempenha um papel instigante na reestruturação do objeto percebido enquanto fenômeno em um mundo compreendido pela imagem. Ao trabalhar a imagem fotográfica com aparente procedimento direto na captação do objeto, Miguel Rio Branco não se detém no objeto ou assunto, mas extrai dele sua possibilidade de expressão, entre as marcas indiciais e as representações simbólicas. Essa intervenção do artista imprime ao objeto outra condição: misto de sua presença física no mundo e uma natureza distinta, revelada na imagem. Suas construções narrativas, observadas a partir da produção de seus livros e da sua relação com as estéticas do cinema, serão analisadas como elementos singulares para contribuição do debate sobre fotografia no campo da arte. Proponho investigar a instabilidade do signo fotográfico no conceito histórico da fotografia documental na arte, tendo como parâmetro o trabalho do artista, suas motivações de ruptura com a tradição do documento e a constituição de sua poética entre as décadas de 1970 e Palavras-chave: Miguel Rio Branco. Fotografia. Fotografia documental. Livro fotográfico. Arte brasileira contemporânea. Signo. Cinema.

8 ABSTRACT The dissertation investigates the dynamics of the photographic image present in the poetics of Brazilian artist Miguel Rio Branco. For such, I examine his trajectory through analytical objects: the books Dulce Sudor Amargo (1985), Nakta (1996), and Silent Book (1998), as well as the movie Nada levarei quando morrer aqueles que mim deve cobrarei no inferno (sic) or, in English I shall take nothing when those die who owe me will charge in hell (sic) made in These works are axes that allow the comprehension of the artist s complex handling of the notions of time, perception, and reality. In this process photography plays a thought-provoking role in restructuring the perceived object as a phenomenon in a world understood through the image. When Miguel Rio Branco works the photographic image with an apparently direct procedure for capturing the object, he does not only focus on the object or subject, but draws their entire possibility of expression, between the indexical marks and symbolic representations. This intervention imprints another condition on the object: a mix of its physical presence in the world and a distinct nature, revealed in the image. His narrative constructions, observed in the production of his books and his relationship with the cinema s aesthetics, will be analyzed as unique elements that contribute with the photography debate in the field of Arts. I propose the investigation of the instability of the photographic sign within the historical concept of documentary photography in the arts. As a parameter, I adopt the artist s work, his motivations for relinquishing the documentary tradition, and the constitution of his poetics between the decades of 1970 and Keywords: Miguel Rio Branco. Photography. Documentary photography. Photographic book. Brazilian contemporary art. Sign. Cinema.

9 SUMÁRIO RESUMO... 6 ABSTRACT... 7 INTRODUÇÃO CAPÍTULO UM - Miguel Rio Branco Aproximações DO OBJETO FOTOGRÁFICO E DA INVENÇÃO DE UMA POÉTICA Anos Cinema de ficção e fotografia documental, uma trajetória de formação A exposição Negativo Sujo Documento, realidade brasileira e fotografia: a recepção e o debate crítico Entre o Pelourinho Maciel em 1979 e o livro Nakta em 1996 Algumas considerações iniciais FOTOGRAFIA DOCUMENTAL MODOS DE USAR E PENSAR Contraponto, diálogo e convergências Ações do documento e o sentido da imagem na experiência fotográfica: perspectivas de Allan Sekula As sedimentações e os moldes do documental (nos EUA) A série: operações de construção e sentido CAPÍTULO DOIS - Nada levarei quando morrer aqueles que mim deve cobrarei no inferno BAHIA QUASE-CINEMA Exposição Nada Levarei quando Morrer Aqueles que Mim Deve Cobrarei no Inferno Aspectos materiais, intenções poéticas A constituição de um Dossiê Pelourinho diversidade material e mobilidade das imagens Nada Levarei quando Morrer Aqueles que Mim Deve Cobrarei no Inferno, o filme CAPÍTULO TRÊS - Um Livro (Mundo) Explodido DO LIVRO EXPLODIDO À REORDENAÇÃO DO MUNDO Dulce Sudor Amargo O livro O ofício de documentarista e os projetos artísticos no contexto de Dulce Sudor Amargo O doce suor brasileiro no livro latino Dulce Sudor Amargo, México e a Coleção Río de Luz O rio de luz de Monasterio: da representação política à política da representação O doce suor amargo no Brasil: exposição e livro em NAKTA, O RETORNO À DESORDEM O modelo editorial e a escrita do artista CAPÍTULO QUATRO - As imagens e as coisas SILÊNCIOS E RUÍDOS DA IMAGEM FOTOGRÁFICA A duração da experiência

10 4.1.2 Os discursos do índice - as mensagens de Barthes e Burgin Henri Van Lier e a bifurcação do índice Claudio Marra e a duplicidade conceitual As retóricas da imagem e o enredo da linguagem O retorno ao tema - Entre o ensaio fotográfico, as instalações e o livro A Academia Santa Rosa no Silent Book Imaterialidades do objeto, materialidades da imagem CONSIDERAÇÕES FINAIS O LIVRO COMO (DES)MATERIALIZAÇÃO A LINGUAGEM DOS DOCUMENTOS EM SÉRIE ACERVOS: BIBLIOGRAFIA Bibliografia de Miguel Rio Branco Catálogos de exposições de Miguel Rio Branco Bibliografia sobre Miguel Rio Branco BIBLIOGRAFIA GERAL Correspondências De Miguel Rio Branco com diversos Documentos audiovisuais Documentos sonoros Sites

11 INTRODUÇÃO Foi entre os anos de 1996 e 1998 que as fotografias de Miguel Rio Branco, de fato, atraíram minha atenção. Destaco dois trabalhos, em especial, que mobilizaram meu interesse: o livro Nakta, adquirido em Curitiba, e a exposição sem título que visitei na Galeria Camargo Vilaça, em São Paulo, e que apresentava a série Santa Rosa, realizada em uma academia de boxe na Lapa, no Rio de Janeiro. No mesmo período, lembro-me de ter visto, em 1996, outra exposição montada no Festival Inverno de Ouro Preto, constituída de pedaços de espelhos e muitas fotografias sem moldura justapostas na penumbra do espaço expositivo. Hoje identifico essa montagem como sendo a instalação Out of Nowhere, ou parte dela. Dessa forma, tive, naquele período de dois anos, o contato com três tipos de trabalho do mesmo artista, cujo suporte era diverso, mas mantinha, por meio da fotografia, uma relação de estranhamento com a realidade. Quanto à instalação, absorvi com certa reserva o amontoado de coisas difíceis de serem vistas na escuridão da galeria, embora tenha experimentado, na ocasião, uma percepção diferente com a materialidade da fotografia. Quanto ao livro Nakta e à exposição na Camargo Vilaça, envolví-me mais profundamente. Fiquei instigado pelo caráter explícito e ao mesmo tempo enigmático com que os objetos se apresentavam como imagem no corpo sequencial do livro. Na exposição das imagens da academia de boxe, havia na eloquência das ampliações em grande formato um trabalho sofisticado na captação dos espaços, das cores, dos volumes, e um modo de construção do retrato no qual os personagens ou eram flagrados como rastros em movimiento, ou surgiam fixos como monumentos corporais. No espaço da exposição, havia uma beleza que não se esgotava no aspecto formal, e no ritmo do livro, uma abstração que trabalhava a favor da identificação do objeto e não se esvaziava na fragmentação. Embora fossem obras diferentes a exposição, como resultado de um ensaio, e o livro como trabalho autônomo de exercício narrativo, o que passou a motivar meu interesse era compreender como um trabalho de aparente identidade documental possuía um modo singular de abstração e conseguia desenvolver um discurso apoiado no contato direto com os objetos, em um tipo de confronto que parecia os destituir de seu significado primeiro, sem abrir mão de sua visibilidade figurativa. 10

12 Dessa forma, considerei esses dois eixos o aspecto formal e o discurso como as dinâmicas de compreensão do trabalho de Miguel Rio Branco. A convivência e o contato com outras obras do artista, ao longo da década seguinte, fizeram-me compreender que a força das imagens ganha intensidade no conjunto, na cadência e na relação de uma fotografia justaposta à outra, no ritmo proposto em série e combinações constituídas em dípticos, tripticos e polípticos. Desse modo, um valor ou significado de determinada imagem transfere-se para a outra, e vice-versa, em uma alternância que rompe a lógica do signo simbólico e adensa o caráter indicial dos objetos e assuntos representados nas fotografias. Para que essa experiência com o signo fotográfico coloque-se em curso, constatei outro fator preponderante que me parece norteador de seu trabalho: a constituição de um espaço de fruição entre artista e espectador, no qual a dimensão da experiência vivida do artista é evocada e compartilhada com o espectador no jogo dos significados, nos deslocamentos de sentido e na apreensão da realidade fotografada. Portanto, instaura-se um campo de percepção para o acontecimento fenomenológico do signo fotográfico. O conjunto das imagens e seu ritmo serial resultam muitas vezes em um tipo de provocação sensorial, na qual a realidade cotidiana é recolocada como uma nova experiência. A mobilidade das imagens é exercitada em diversos suportes: do plano bidimensional das fotografias em papel ao trabalho espacial das projeções e instalações. No entanto, um dos suportes me pareceu particularmente especial: o livro como meio para construção de narrativas, como uma espécie de discurso cinemático da experiência da realidade e de seus signos. Silent Book, produzido em 1998, condensa o diálogo entre a experimentação discursiva e a sedução cromática dos baixos tons e das sombras utilizadas pelo artista. Envolvente e erótico, com imagens que remetem a ambientes religiosos ou lugares suspensos no tempo, Silent Book marca a consolidação de uma poética dedicada ao livro como linguagem e representa a abertura de um ciclo em sua trajetória. É por meio dos livros que se pode observar sua poética cuja origem encontra-se no entrecruzamento do ofício de fotodocumentarista com a experiência do cinema. Os livros escolhidos para análise nesta tese, Dulce Sudor Amargo, Nakta e Silent Book, sinalizam três décadas de sua trajetória em que a experiência com a fotografia identificada como documental foi sofrendo mudanças diversas. Cada obra impressa é 11

13 analisada tanto em sua particularidade quanto na relação que possui com o contexto histórico do artista. Cada livro é uma espécie de mirante que, embora situado em uma linha cronológica, contempla os percursos anteriores e posteriores à sua realização. O mirante gira o olhar em torno do campo de produção de um determinado período histórico e não intenta corroborar uma linha evolutiva do trabalho do artista. Portanto, Dulce Sudor Amargo, produzido em 1985, no México, conduz-nos para o trabalho sobre a comunidade do Maciel, no Pelourinho, iniciado em Uma vez em 1979, foi necessário considerar a recepção de sua primeira grande individual, Negativo Sujo apresentada no Parque Laje em 1978 e no MASP em 1979 momento em que a representação social de um Brasil interiorano se dá no embate com a tradição da fotografia documental e das experiências perceptivas com o cinema dos anos A formação do artista, a recepção crítica sobre seu trabalho e suas vinculações com os conceitos históricos sobre o gênero documental na fotografia são abordados no primeiro capítulo desta pesquisa. O trabalho sobre a zona de prostituição do Maciel em Salvador marco profundo no conjunto da obra de Rio Branco estende-se ao longo da década de 1980, gerando a exposição e o filme intitulados Nada Levarei quando Morrer Aqueles que Mim Deve Cobrarei no Inferno. A obra fílmica foi somada à análise dos livros na tese pela importância que o trabalho assumiu enquanto debate sobre experiência e documento na fotografia. A representação do Brasil, por meio da comunidade do Maciel, foi ganhando sentidos distintos que, de um lado, alteraram a noção de identidade cultural do país e, de outro, sinalizavam estratégias poéticas instauradas no percurso do artista. A exposição e o filme Nada levarei... desmontam, em níveis diversos, a imagem de uma paisagem humana brasileira marcada pela marginalidade social. A entrada definitiva da cor em sua obra, a opção pela saturação dos tons escuros e a proximidade física com os personagens ganham um sentido acentuado na montagem de suas séries. Os aspectos da experiência social do corpo e do retrato, elaborados na narrativa do filme, são analisados como um exercício de confronto e reconhecimento no qual o espaço compartilhado entre fotógrafo e ambiente resulta em igual experiência sensorial para o espectador. Nesse sentido, fotografia e filme partilham das dinâmicas da imagem fixa e em movimento e de uma abordagem do real que remete às visões fenomenológicas presentes nas teorias do cinema de André Bazin e Sigfried Kracauer. 12

14 A exposição Nada Levarei... insere em seu espaço um audiovisual que funciona como um tubo de ensaio para a concepção do filme no ano seguinte. Essa peça audiovisual sinaliza a formação de Rio Branco no cinema e sua filiação à geração de artistas que utilizaram o audiovisual e o Super-8 como experimentações narrativas das imagens técnicas. Esses recursos experimentais compartilhados com artistas plásticos e o trabalho de fotografia com os cineastas serão abordados como elementos fundamentais na construção conceitual de Nada Levarei... tanto na sua forma fotográfica quanto na narrativa fílmica. No Capítulo Dois analiso esses trabalhos como constituintes de um tipo de Dossiê Pelourinho, no qual a diversidade material amplia o sentido de mobilidade das imagens e redimensiona o caráter documental na fotografia de Rio Branco. Os livros Dulce Sudor Amargo (1985) e Nakta (1996) são abordados no terceiro capítulo a partir da retomada das considerações de Rio Branco sobre exposição Negativo Sujo, em 1978/79. Embora não tenha sido construído na forma de livro, Negativo Sujo revela o desejo de Rio Branco pela materialidade impressa e narrativa, e chega a identificar a exposição como um bloco de anotações sobre o Brasil. Portanto, tal desejo e projeção mental são analisados como índices conceituais de uma poética que será dedicada futuramente ao livro, inaugurada com a produção no México de Dulce Sudor Amargo. Lançado pela Coleção Río de Luz, o primeiro livro de Rio Branco insere-se, por um lado, em um contexto político de representação da identidade cultural latinoamericana e, por outro, da identidade documental da fotografia produzida no continente. Para isso, parte do ensaio de 1979 sobre o Pelourinho será retrabalhado e somado a outras imagens de Salvador realizadas em O mundo instável do Maciel observado na exposição e no filme, realizados anteriormente, será reordenado sob uma perspectiva narrativa que recoloca certa brasilidade em conjunção com uma latinidade pretendida pelo projeto editorial mexicano. A tese investiga as ideias, conceitos e aspirações do artista e do coordenador da coleção, Pablo Ortiz Monastério, em torno da concepção editorial e da força poética das imagens de Rio Branco no processo de adaptação ao contexto de uma cultura latino-americana comum. A análise sobre o livro Dulce Sudor Amargo é abordada simultaneamente por dois eixos: o exercício poético do artista, que imprime um sentido cinematográfico para o livro, e a representação política que a obra passa assumir como parte da estratégia 13

15 identitária projetada pela coleção mexicana Río de Luz. Nesse percurso, o artista busca uma superação do tema fotográfico ao expandir ligeiramente a delimitação geográfica da comunidade do Maciel para imagens que incorporam as feiras e zonas costeiras do centro de Salvador. Entretanto, no processo editorial, o trabalho de Rio Branco é ligeiramente restringido ao campo delimitado de um gênero documental latinoamericano. A importância do livro Dulce Sudor... é discutida entre essas duas instâncias e no contexto de sua produção em meados da década de 1980, entre o ofício de repórter e os projetos artísticos institucionais. A exposição que Rio Branco realiza no Brasil em 1987, por ocasião do lançamento de Dulce Sudor..., irá contribuir para relativizar mais as delimitações geográficas, identitárias e temáticas em seu trabalho. Algumas considerações sobre sua recepção são igualmente avaliadas na abordagem final sobre o livro. Em seguida, a tese investiga Nakta, o segundo livro produzido pelo artista 11 anos depois de Dulce Sudor Amargo, como sendo uma ruptura mais incisiva na questão do tema, na abordagem do objeto real e na montagem narrativa não linear. Nakta constitui-se de pedaços do mundo, resquícios de objetos, fragmentos de cenas e inaugura a presença da animalidade no universo fotográfico do artista. A presença do bicho no conjunto do trabalho transforma-se em metáfora de vida e norte, em que a imagem do corpo permanece como signo de instinto e representação sobre a finitude das coisas e dos objetos. Comparado ao livro anterior em termos de narrativa, Nakta faz um retorno à desordem e empreende um tipo de corte mais seco no espaço-tempo do assunto fotografado e na junção a outros objetos e imagens. Atitude que radicaliza a recusa do artista em moldar-se a um procedimento ensaístico ou documental sobre o fato ou o acontecimento. O ato de recusa não exclui um modo de olhar no objeto sua força simbólica, suas contingências, sua dimensão cultural. Constituído de fotografias de diversas épocas e lugares, e ainda marcado pela presença de imagens do Maciel, o livro insere um poema do francês Louis Calaferte, que potencializa o aspecto simbólico dos objetos e cenas construídos no seu discurso narrativo. Nakta também sinaliza um outro momento histórico da trajetória de Rio Branco em que a captação fragmentada da realidade está associada a trabalhos produzidos a partir de projeções. A concepção do livro surgiu da instalação Pequenas Reflexões sobre uma certa Bestialidade montada na Bienal de Rotterdam. As imagens de animais utilizadas na projeção migraram para a montagem do livro e da exposição inaugurados 14

16 em Curitiba na Bienal de Fotografia de Naquele momento, o artista já estava envolvido constantemente com projetos de instalação e obras espaciais, e o livro refletia, no plano bidimensional, o exercício das fragmentações e dos cortes temporais conceituados nas projeções. Nakta assume, enfim, um desprendimento do tema e da ilustração, e um movimento rumo à abstração no sentido narrativo. Apesar de conter componentes formais de um catálogo de exposição, o livro instaura uma mudança no modo de perceber, narrar, montar e significar o mundo. E ainda recupera aspectos de trabalhos anteriores, quando traz de volta imagens antigas que ganham novos significados, justapostas a outras sequências. Nesse momento, o trabalho de fragmentação fixado na estrutura do livro evidencia ambientes e universos recorrentes, que marcam a fisionomia documental da obra do artista: feiras, mercados, matadouros, vestígios de objetos, restos de matéria em decomposição. Identifica-se, portanto, um repertório de índices enigmáticos que irá se adensar futuramente em favor de uma escrita visual na qual os objetos captados como imagem são continuamente ressignificados na experiência perceptiva entre artista e espectador. Com Nakta, Miguel Rio Branco começa a aprofundar sua escrita cinemática na estrutura discursiva do livro. O Capítulo Quatro é dedicado inteiramente ao primeiro projeto impresso mais sofisticado e autônomo realizado pelo artista: o livro Silent Book, lançado em Sua concepção gráfica, sua edição e a justaposição de fotografias dinamizam-se em dobraduras que permitem alternar imagens continuamente. Os conjuntos e séries organizam-se ora em dípticos, ora em trípticos variáveis e criam um jogo quase infinito de superposições semânticas para o leitor A trama construída pelo livro é abordada nesta tese em diversas camadas. Uma delas aponta verticalmente para o sentido simbólico das imagens em seus agrupamentos provisórios no curso do ritmo de sua leitura. Chamo de passagens as séries provisórias que ocorrem na leitura do livro. Várias delas seleciono para análise tendo como prioridade alguns assuntos, objetos ou situações recorrentes em sua estrutura narrativa. Rio Branco relata que o livro Silent Book está associado à instalação Porta da Escuridão (1996) pela reflexão sobre a relação medo sexualidade. No entanto, faz uma ressalva quanto ao livro e afirma que, em sua narrativa, tal relação situa-se em segundo plano. Como é constatado no curso desta tese e proposto na leitura sobre Dulce Sudor Amargo e Nakta, os livros tornam-se catalisadores ou provocadores de processos 15

17 expositivos, e, principalmente, das instalações que ocuparam lugar predominante na produção de Rio Branco, a partir da década de Assim como Nakta foi pensado a partir da instalação Pequenas Reflexões sobre certa Bestialidade, realizada na Holanda, Silent Book associa-se a outros três trabalhos expositivos: as instalações Out of Nowhere e Porta da escuridão (1994 e 1996) e a exposição individual na Galeria Camargo Vilaça (1998), em São Paulo, com o ensaio sobre a Academia de Boxe Santa Rosa, no Bairro da Lapa no Rio de Janeiro. Analiso a força simbólica e plástica do livro Silent Book menos por suas relações com as instalações do que por sua origem na experiência do ensaio e do envolvimento que o artista teve com o ambiente e os personagens da academia Santa Rosa. Coloco em perspectiva crítica a importância do ensaio da academia de boxe na realização do livro. A representação do corpo construída por Rio Branco no boxe exerce um componente libertador das tensões e atenua a simbologia austera das imagens religiosas que constituem Silent Book. Menos fragmentadas e mais descritivas e plásticas, as imagens de corpo injetam uma potência erótica nas passagens narrativas e fragilizam o sentido de culpa ou medo convencionalmente associados às imagens sagradas. Argumento na tese que a natureza ensaística e documental que originou o trabalho da academia de boxe não adquiriu a devida importância por parte do artista, por sua atitude paradoxal de afastamento do tema em função da experiência plástica das projeções e instalações. No entanto, o que o projeto das instalações parece diluir, a concepção de mobilidade intuída nos livros recondensa os significados das imagens. Abrem-se nesse momento, no curso da tese, algumas considerações iniciadas no primeiro capítulo sobre a dinâmica do signo fotográfico no trabalho do artista, em especial a mutação constante que ocorre entre as funções indiciais e simbólicas no encadeamento de suas séries. Trago de volta discussões e conceitos em torno do índice para ressaltar sua impossibilidade de atuação isolada assim como os outros tipos de signo pois figura como parte de uma linguagem, de um discurso construído, porque se encontra continuamente atravessado por operações simbólicas. O trabalho fotográfico de Miguel Rio Branco pode ser considerado um estudo sobre o signo indicial, em todas suas variáveis. Suas séries e articulações jogam o tempo todo com essas funções e, por isso, requerem um tempo de observação, um espaço de duração para que as formas e sentidos intercambiáveis possam operar e desafiar os significados primeiros das imagens. Em seu processo de ressignificação, o artista cria 16

18 um espaço de compartilhamento no qual a parcela de experiência perceptiva do leitor é fundamental para que o desdobramento de cada imagem aconteça e o sentido da narrativa ocorra na experiência da leitura. Em Silent Book, experimentamos uma sensação tátil pela presença concreta com que diversos objetos são apresentados: fechadura, relógio, ranhuras, portas, buracos, fendas. A dimensão erótica está impregnada em muitas de suas sequências, não fazendo distinção entre imagens de boxeadores, santos, representações pictóricas, estátuas. O corpo é o lugar do prazer, do desconhecido e do sentido de tempo. A narrativa espessa e condensada acentua a dimensão material das imagens e a função indicial dos objetos. Silent Book seria um parâmetro para se observar as potencialidades do trabalho fotográfico no suporte do livro e este, um lugar no qual o trabalho conceitual operado pela fotografia ganha um espaço privilegiado de experimentação com o tempo e o significado. No espaço do livro, é possível realizar o jogo ambíguo da fotografía, ao qual se refere Claudio Marra. Para além de sua identidade material, ou seja, um objeto ou cena representado sobre um pedaçod de papel, algo manufaturado, a fotografia teria uma identidade conceitual no qual ela opera não como substância objetiva, mas como gatilho de estímulos mentais flutuantes (MARRA, 2010, p. 6). É nessa perspectiva que Marra considera que o uso dominante a linguagem fotográfica na cultura contemporânea, depois de um grande período histórico em que se viu envolvida na disputa com a pintura, não seria mais o da objetualidade pictórica, e sim o da desmaterialização conceitual. Tal desmaterialização e a impressão de uma presença física por vezes é encontrada no projeto poético de alguns artistas, como é o caso de Rio Branco. Ele incorporou a parcela de mundo vivido na relação com o assunto fotografado e entendeu a capacidade de reelaboração dos signos com os quais se confronta. O livro pode ser considerado uma experiência de desmaterialização porque funciona como sequência de espaço-tempo, no qual um discurso se constrói no lugar compartilhado entre escritor/artista e leitor/espectador. A fotografia ocupou o espaço do livro desde os primeiros tempos de seu surgimento, seja enquanto documento acoplado ao texto, seja como discurso de natureza distinta. Texto e imagem iniciaram uma parceria intensa, manifestada de forma repentina em vários campos do conhecimento, estreitando as relações entre ciência, arte e história. Nesse sentido, apesar de o 17

19 documento fotográfico ser considerado inicialmente um signo circunscrito às informações de caráter objetivo, houve, na contracorrente desencadeada pela cultura visual do século XIX, um outro tipo de produção, pensamento e atitude em relação ao potencial expressivo e artístico da imagem fotográfica. A intensa produção visual que se dá a partir da década de 1870, em meio ao debate entre fotografia e a arte e que se estende às vanguardas das primeiras décadas do século XX, mudam as noções de documento. Os livros e publicações de naturezas diversas efetivaram essa mudança e constituíram uma nova percepção e escrita com imagens. O espaço para a materialização da fotografia encontrou-se no livro à medida que a imagem se autogerava na vocação para a multiplicidade. À medida que o documento é colocado em estrutura serial nas publicações, ele passa a expandir seus significados e constituir narrativas de diversas naturezas. Dessa forma, proponho pensar que a experiência imaginativa da fotografia no livro não é propriamente uma particularidade da produção contemporânea de arte, muito menos do gênero inventado recentemente no campo da produção editorial relacionada à arte fotográfica, o fotolivro. Se existe um campo de estudo mais alargado para a reflexão sobre livro e fotografia, certamente seria um lugar de encontro entre a cultura visual, a poética e o livro de artista. É por essa razão que trago para as considerações finais desta tese alguns exemplos de livros fotográficos realizados em tempos históricos distintos, para relativizar alguns dos limites cronológicos delimitados por teorias e constatar pela via dos anacronismos das imagens e narrativas a experiência imaginativa materializada na fotografia. Assim, a Londres de 1877 é tão construída e experienciada por Thomson e Smith quanto a Amazônia por Andujar e Love, em Os postos de gasolina ou os apartamentos dos livros canônicos de Ruscha, em 1962, seguem o mesmo rigor objetual das plantas de Karl Blossfeldt, em Rio Branco, assim, provavelmente não teria entrado na Bahia, no Pelourinho, no Maciel, se não fosse a convivência com Mário Cravo Neto e seus livros na década de Também não teria talvez empreendido uma certa temperatura de cor, se não fosse o cinema de Jabor e seu fotógrafo, Afonso Beato. E como ele mesmo afirmou recentemente: Se não fosse o cinema, meus livros nem existiriam (RIO BRANCO, 2015). A produção impressa de Miguel Rio Branco é difícil de categorizar. Muitos de seus catálogos funcionam como publicações de artista. Alguns pequenos folders de exposição possuem um conceito cinemático que confere uma originalidade a uma peça 18

20 institucional. Não importa o tamanho, a gramatura do papel, o formato e a função. Suas peças impressas sempre surpreendem pelo encadeamento de suas imagens e pelo infinito deslocamento das fotografias. As imagens ganham e perdem títulos constantemente. O protocolo de identificação da fotografia documental não é abandonado pelo fotógrafo, e sim constantemente remexido, transposto, escondido como numa espécie de jogo de ocultações dos seus referentes. Muitas imagens silenciosas e enigmáticas presentes no livro Silent Book possuem identificação posterior ou circunstancial. Isso ocorre com muitas obras que se reúnem em séries em determinadas exposições ou que atuam isoladas em outros contextos. A partir de Silent Book, os livros de Rio Branco dispensaram qualquer referência de identificação para que as articulações narrativas pudessem, enfim, adquirir, na fruição, um discurso próprio. Por isso, essa obra impressa de 1998 representa, em muitos aspectos, a síntese do que o artista intuiu e buscou desde os anos 1970, quando o cinema de ficção e a fotografia documental infiltraram-se em sua formação. Rio Branco soube atravessar os anos 1980 e encontrar uma fala própria dentro da política de tradição da fotografia documental brasileira e latino-americana. O desejo pelo livro tornou-se um diferencial em sua poética e o exercício que o artista empreendeu em seu suporte funciona como um componente libertador de um molde formatado pela história canônica da linguagem documental. 19

21 Miguel Rio Branco Aproximações CAPÍTULO UM

22 1.1 DO OBJETO FOTOGRÁFICO E DA INVENÇÃO DE UMA POÉTICA Miguel Rio Branco, fotógrafo brasileiro 1 é antes um artista. Ou o inverso: Miguel Rio Branco, artista brasileiro, é antes um fotógrafo. Pode parecer apenas um jogo retórico e dual sobre sua figura, porém, a proposição supõe uma série de complexidades e camadas operadas simultaneamente, quando a sua poética está em jogo: a dinâmica entre arte e fotografia, entre imagem e objeto, entre linguagem e matéria. Investigar seu trabalho nos permite conhecer a fotografia como um campo de intersecções entre linguagens e práticas diversas, e verificar o alcance de sua fisionomia artística e a dimensão sígnica que passou a ocupar na cultura contemporânea. Miguel Rio Branco é reconhecido na arte contemporânea brasileira por uma fotografia densa e obscura, marcada pela cor e extraída de uma paisagem humana circunscrita, em parte, na marginalidade social. Desde os anos 1960, ele vem construindo um percurso no qual pintura, cinema e fotografia estão em constante diálogo e em diversos suportes. Do procedimento mais documental às intricadas e labirínticas instalações, o artista possui uma obra extensa e difícil de ser abarcada de uma só vez. A partir deste capítulo introdutório, este estudo propõe apontar na obra de Rio Branco uma característica fundamental, que funciona como um elemento norteador do seu processo criativo e está presente no seu percurso de artista: o entrecruzamento de uma abordagem documental do objeto ou assunto captado com a construção de um conceito sustentado na elaboração de séries ou conjuntos de fotografias, que desfazem as pretensões tradicionais de veracidade da representação fotográfica de cunho documental. O resultado alcança uma expressão poética de grande densidade realizada em narrativas que fragmentam a realidade, ficcionalizam o mundo e indiciam uma experiência vivida. Rio Branco fotografa as coisas, os lugares e os objetos do mundo, e os devolve ao espectador de modo enigmático e direto, a um só golpe: uma academia de boxe, um circo, um matadouro, um bairro de periferia, uma igreja, o quarto de uma prostituta, edificações em ruína, objetos deteriorados, matérias em decomposição, peles, cicatrizes, 1 Miguel Rio Branco nasceu 1947 nas Ilhas Canárias. De família brasileira, sempre viveu e atuou no Brasil. Morou por períodos curtos de sua formação e experiência profissional na Europa e EUA. Atualmente vive no Estado do Rio de Janeiro.

23 corpos, animais, objetos abandonados. Quase tudo mergulhado em tom sanguíneo e sombrio. O mundo visual do artista é esse, tecido por elementos aparentemente soltos no espaço e no tempo, e que, no entanto, quando processados em uma narrativa, nos aproxima de um mundo que reconhecemos, mas que nos assusta. O encadeamento de imagens proposto por ele está presente nos diversos momentos em que seu trabalho é apresentado. As instalações muitas vezes são constituídas por imagens em grande formato e objetos combinados às projeções em vídeo e à utilização de som. Nesse caso, o artista promove, de forma mais evidente, uma profusão de imagens de diversas naturezas que se atritam e se fundem, numa associação visual mais vertiginosa, com a linguagem da fotografia. Essa mesma experiência pode ser sentida, com menos alarde, mas igualmente inusitada, também em suas exposições de formato bidimensional, cuja expografia segue o padrão convencional do suporte fotográfico. Mesmo se utilizando de uma ideia linear de montagem, incluindo a tradicional moldura, observa-se uma sintaxe distinta, que denota uma importância crucial no seu trabalho: a força poética da série é constituída tanto pelo impacto individual de cada imagem apoiada na banalidade do objeto captado e sua plasticidade às vezes arrebatadora quanto pelo efeito provocado por seu conjunto. Seus dípticos, trípticos e polípticos sinalizam o jogo entre o aspecto objetivo e plástico da imagem fotográfica. Esse jogo é exercido de modo especial na poética de seus livros. O livro tornou-se suporte importante no processo de Miguel Rio Branco. Por isso, este estudo tem como objeto os livros Dulce Sudor Amargo (1985), Nakta (1996) e Silent Book (1998), 2 e o filme Nada Levarei quando Morrer Àqueles que Mim Deve Cobrarei no Inferno (sic), 3 de Tomarei algumas imagens do Nakta como ponto de partida para análise, neste primeiro capítulo, por se tratar de uma obra que aponta para a sedimentação de uma poética e para a adesão ao livro como objeto artístico. Essas verificações serão exercidas e aprofundadas ao longo da pesquisa, e terão como apoio a análise da formação do artista e a relação estabelecida entre os trabalhos estudados no corpo de sua obra. A concepção de livro fotográfico exercida por Rio Branco marca fortemente uma diferença na produção bibliográfica brasileira porque, ao concebê-los, mantém o 2 Cf. RIO BRANCO, 1985; RIO BRANCO, 1996; RIO BRANCO, 2012a. 3 Frase extraída de um escrito encontrado na parede interna de uma casa em ruínas na comunidade do Maciel, no bairro do Pelourinho, em Salvador (BA). A frase foi reproduzida literalmente e transposta como título para o quadro fílmico. 22

24 domínio quase integral na feitura da publicação. Cada projeto possui uma dinâmica de criação e colaborações específicas próprias da realização de um livro fotográfico. No caso de Miguel Rio Branco, cada livro tem suas especificidades. A parceria do artista se dá muitas vezes com o editor, um colaborador na edição de imagens ou outro profissional que esteja de algum modo inserido em uma etapa que faça parte do processo natural de um livro. Verificaremos essas características posteriormente, na análise pontual de cada trabalho e suas relações com o conceito editorial proposto e o discurso do artista no livro. Rio Branco experimenta, com singularidade, os deslocamentos de sentido que uma fotografia poderá assumir em associação a outras imagens. Portanto, a experiência sensorial mais direta provocada no espectador em suas instalações é uma derivação das construções em série operadas pelas imagens em suporte bidimensional e particularmente nos livros. As questões sobre a materialidade de suas instalações e o potencial narrativo de seus livros serão tratadas mais detidamente à medida que cada obra impressa se apresentar em relação às apresentações bidimensionais ou tridimensionais, em dado contexto do seu percurso. A relação com as imagens articuladas em conjunto, seja no espaço expositivo, seja no objeto livro, provém de sua atenção perceptiva sobre os objetos e sua significação singular no mundo. Seu intento em documentá-los e sua ação de fragmentálos promovem uma desordem simbólica quando os destituem de seus significados factuais. Entretanto, é importante perceber que tal destituição não se dá por completo. O retorno do objeto como imagem no trabalho de Rio Branco não descarta sua referencialidade; surge como parte de uma reordenação poética entregue ao público, devolvido a esse espectador com uma dimensão enigmática de um objeto sem história, mas que indicia em seu devir um drama adensado por sua potência simbólica. Por que a imagem do cão sujo e quase sem pelos deitado na calçada fotografia emblemática em sua obra nos causa um impacto direto? E por que esse impacto objetivo e preciso em um primeiro momento pode desdobrar-se em camadas de sentido? Há uma experiência compartilhada na reordenação poética do signo. O suporte e a experiência dessa reordenação estão tanto no espaço multidimensional das instalações, como na parede da galeria ou no livro fotográfico. Assim, parte considerável das imagens de Rio Branco desliza de um lugar para outro; não se fixam e mudam de intensidade e sentido conforme sua localização. 23

25 Figura 1: Dupla de imagens do livro Dulce Sudor Amargo Vistas como díptico com o livro aberto. A imagem do cão é um exemplo de tal mobilidade. 4 Em exposições, podemos vê-la como fotografia única e isolada, e, na maioria das vezes, está acompanhada de outra: a da figura de um homem, um mendigo dormindo em uma calçada, em um enquadramento idêntico ao da imagem do cão. Essa associação dupla de imagens foi construída pela primeira vez em 1980, na exposição Nada Levarei quando Morrer Aqueles que Mim Deve Cobrarei no Inferno, apresentada em São Paulo e no Rio de Janeiro, e posteriormente impressa no livro Dulce Sudor Amargo, em Desmembrada da imagem do mendigo, a do cão retorna às páginas no Nakta, em 1996, o que veremos mais adiante, já articulada a outras e em mutação sígnica que ora faz perder elementos, ora ganhar outros. O artista transfere para o público seu modo de olhar, sendo, portanto, impossível, ao analisar sua obra, fazer uma separação entre produção e percepção, entre artista e espectador. Rio Branco põe em jogo um tipo de narrativa fotográfica que não pode ser descolada dos problemas da percepção. As questões sobre produção e percepção, entre o processo criador do artista e do espectador serão analisadas levando em conta elementos específicos no contexto de cada trabalho, no caso dos livros e do filme analisados na pesquisa. A abordagem dos trabalhos apontará tanto para a duração do tempo, em uma aproximação filosófica da percepção da imagem enquanto fenomenologia do fotográfico, quanto para uma visão histórica da trajetória do artista. Tendo como perspectiva essa dupla análise, observo a distensão do instantâneo do vivido nas origens, dobraduras e aplicações da fotografia documental. A prática e a estética da fotografia como informação instituíram tradições 4 Em exposições, quando isoladas, são identificadas como Dog Man, Maciel, Pelourinho, 1979 e Man dog, Maciel, Pelourinho, 1979 respectivamente. Quando estão montadas justapostas na vertical formam um díptico intitulado Dog man Man dog, 1979 como no caso recente das mostras Teoria da cor apresentada em São Paulo Na Estação Pinacoteca em 2014 e Ponto cego em Porto Alegre no Santander Cultural em

26 no campo da cultura intensificando, sob outras perspectivas, o debate em torno do cinema, das artes visuais e das poéticas nascidas da experiência com o fotográfico. Como desdobramento desse debate e na investigação pontual dos objetos e imagens articulados nas sequências construídas pelo artista, terei constantemente como proposição teórica a amplitude do caráter indicial do signo fotográfico e a ideia de seu eterno retorno como um signo de experiência, perpassando a análise histórica sobre a obra do artista. O livro Nakta nos permite, em uma primeira aproximação, intuir alguns pontos vitais do trabalho de Rio Branco. Composto por 45 imagens e um poema de abertura, Noite Fechada, de Louis Calaferte, trata-se de um livro situado entre duas outras obras impressas de grande importância: Dulce Sudor Amargo, de 1985, e Silent Book, de Nakta constitui-se parte de uma tríade em que podemos observar uma mudança no percurso poético que caracteriza a obra de Rio Branco, marcada, por um lado, pela experiência documental e, por outro, pela abordagem plástica do objeto. O caminho traçado entre os livros Dulce Sudor... e Silent Book é um trajeto de estilhaçamento do mundo à medida que o artista vai se desgarrando do domínio do fato e de uma identidade ligada à cultura brasileira, herança oferecida pela prática documental. Essas características são relevantes para compreender a dimensão da obra do artista porque são tratadas como indícios para a análise de sua trajetória de formação. Tal percurso de formação no documental possibilitou-lhe um repertório e uma vivência da realidade sobre as quais pôde interferir na invenção de uma poética própria. Sua experiência documental nasce e se intensifica nos anos 1970, na convivência com a paisagem social do interior do nordeste brasileiro, mais especialmente o estado da Bahia e sua capital. O artista viajou constantemente pela região a partir de 1973 e mudou-se para Salvador em Em 1979 iniciou um trabalho que irá marcar sua vida e trajetória: o ensaio sobre a zona de prostituição do Maciel, no Bairro do Pelourinho, em Salvador: Durante seis meses, frequentei o Maciel, no Pelourinho. Era retratista, fazia foto de mulheres, crianças e alguns homens. Mas o trabalho realmente consistia nas cicatrizes, nus, ruínas e a força que pulsava dentro disso tudo. O tema me absorveu e foi o motivo de mais uma separação conjugal (RIO BRANCO In: SIZA, 2002, p ) 5 5 No original: Durante seis meses, frecuenté Maciel, en el Pelourinho. Era retratista, hacía fotos de mujeres, niños y algunos hombres. Pero el trabajo realmente consistía en cicatrices, desnudos, ruinas y la fuerza que latía debajo de éstas. El tema me absorbió y fue motivo de una separación conyugal más. 25

27 Muitas imagens produzidas no Maciel estão no livro Nakta como resquícios de um trabalho iniciado em Dulce Sudor Amargo, livro anterior exclusivamente constituído de imagens de Salvador, em especial no Maciel. Nakta possui uma importância específica na obra do artista porque começa a adensar uma espécie de confronto entre a abordagem direta do assunto, ou cena, e o seu uso narrativo posterior numa perspectiva mais abstrata, ou seja, as configurações plásticas que assume cada imagem em sua unicidade, ou os diversos sentidos recriados pela articulação entre elas. Sobre essas diferentes abstrações, as trataremos com atenção mais adiante. Porém, o que importa considerar no momento é que, nesse percurso, muitas imagens migram incessantemente para outros trabalhos, repetem-se e a cada deslocamento vão mudando de conotação. O processo de Miguel Rio Branco se faz na acumulação de objetos e lugares que serão reordenados posteriormente, assumindo outras significações de caráter simbólico, em estruturas sequenciais diversas. A partir de sequências montadas por dípticos, trípticos ou por meio de conjuntos maiores de imagens, as combinações que ele propõe intensificam uma visão da realidade na qual as sensações e as percepções mais obscuras sobre as coisas constroem um mundo que está sempre no limite entre morte e vida, matéria e espírito, alegria e dor, prazer e perigo. A vida, nos objetos flagrados por Rio Branco, parece conter na mesma intensidade um estado de potência e fragilidade. Isso está presente de forma mais intensa em Nakta como um desdobramento das experiências com os suportes anteriores: exposição, livro e filme em torno da vida no Maciel. As 45 imagens se apresentam no livro sempre do mesmo tamanho, na página à direita e com o espaço vazio na página à esquerda (Figura 1). Tudo segue um modo linear de apresentação. Porém, é na força pictórica da imagem única e no encadeamento entre elas que se constrói o discurso que vai além do referente, sem abandoná-lo por completo. 26

28 Figura 2: Nas imagens acima, o livro Nakta (1996) aberto entre a passagem das fotografias 12 e 13 destacando as páginas em branco como intervalo. Nas imagens abaixo, as fotografias 12 e 13. Nenhuma das fotografias possui legenda nas páginas do livro. A imagem do peixe no aquário, quando associada à da dançarina no palco de espelhos, não apresenta a busca do artista apenas por uma relação formal, embora ela esteja ali em sua força plástica (Figura 2). Essa justaposição alcança um sentido de leveza, na mesma medida em que assume sua dimensão erótica. Na junção de imagens que duram, há um intercâmbio de qualidades entre o peixe e a dançarina, entre seus ambientes. Dominados pelo vermelho, tanto o palco de espelhos em que a mulher transita quanto o aquário que aprisiona e protege o peixe são de uma sedução envolvente. Nesse jogo de lugares e seres, o que se constrói na narrativa de Rio Branco é o exercício de ambiguidades entre objeto e imagem, em que a fotografia, em sua lida com a realidade, produz um sentido móvel entre forma e significado: Existe a tendência em meu trabalho de querer transformar o referente em algo que não seja ele mesmo; para que de alguma forma dê ideias que vão mais além do referente, um salão de boxe com os espelhos e os corpos meio agitados transmite uma ideia que não representa totalmente o referente e, de certo modo, é uma tentativa de mudá-lo, de fazer com que a pessoa perceba uma outra 27

29 visão. Já não é uma simples imagen de boxe. Alí estão os fantasmas, além dos corpos (RIO BRANCO In: SIZA, 2002, p. 60). 6 Figure 3: Fotografias 18 e 19 do livro Nakta (1996). As diversas sensações são possíveis porque atuam dinamicamente no intervalo entre as imagens visuais propostas pelo artista. As formas articuladas como numa escritura aumentam as linhas de tensão, desencadeiam uma aproximação da experiência original no ato da captação do mundo com a reinvenção ficcional da fotografia. A relação construída entre a turbina de um avião em pleno voo e o abraço que revela profundas cicatrizes nas costas (Figura 3) é de natureza cinemática. Pode ser vista como a passagem de uma cena de filme, cujo romance é quebrado pela partida imaginada aqui pelo corte, pela cisão. E a fotografia é cindida em sua unicidade, para dilatar o tempo do acontecimento para o espectador. A cicatriz, muito presente no ensaio sobre o Maciel, é elemento metafórico dominante no conjunto da obra do artista e índice de mundo vivido. Esse aspecto nos abre uma perspectiva sobre sua poética, em que a experiência do mundo vivido traz um valor fundamental ao seu conceito artístico. Para o artista, a subjetividade na fotografia não é o descarte do real em função do domínio completo na construção de imagens. Essa visão resvala em um tipo de fotografia que, ao negar o que ele chama de imprevisto-vida, resulta em fotos frias, ilustrações de um imaginário de sonhos : 6 No original: Existe la tendencia en mi trabajo de querer transformar el referente en algo que no sea él mismo; a que, de alguna forma, dé ideas que van más allá del referente, una imagen que te conduzca a otros momentos. Una foto de una sala de boxeo con los espejos y los cuerpos medio agitados transmite una idea que no representa totalmente el referente y, en cierta forma, es un intento de cambiarlo, de llevar a que la persona perciba otra visión. Ya no es una simple imagen del boxeo. Allí están los fantasmas, además de los cuerpos. 28

30 Existe um equívoco em relação ao que é uma visão subjetiva... A fotografia subjetiva, como eu a vejo, revela-se mais sutil. O controle do fotógrafo existe até certo ponto, assim como a direção do que ele pretende mostrar. Parte-se de dados bem determinados, mas o momento vivido constrói o trabalho definitivo (CANONGIA, 1981, p. 58). Fica evidente para o artista que a questão da subjetividade no processo criativo de um trabalho fotográfico não é algo simplista como a invenção de uma imagem de fantasia. Rio Branco aponta para um dado particular no ato da percepção e do conhecimento que a experiência da fotografia provoca: a lida com o mundo concreto e real, portanto, mundo vivido e sua elaboração como imagem que copia essa realidade. O artista parece reescrever o real com as ferramentas objetivas que esse mundo concreto lhe oferece, quando fotografa de maneira frontal e direta quase tudo; quando extrai do mundo esses objetos para conhecê-los e consegue esvaziá-los de seus conteúdos seus códigos culturais, sem lhes tirar seu drama simbólico. Há uma operação sofisticada no revezamento entre signo, objeto e interpretante, no câmbio entre imagem, referente e sentido. Operação que se dá na conexão entre percepção e produção, no processo criativo que vai da captação à edição das imagens. Na concepção de Charles Peirce ( ), para representação, o interpretante é a liga entre signo e objeto. É o elemento de natureza essencialmente dinâmica que dá sentido a essa relação e que explica a dinâmica pela incompletude do signo. Nenhum signo pode se autocompletar plenamente, portanto, todos terão um grau de vagueza (termo adotado por Peirce) que o empurrará constantemente para uma expansão de significados, dobras, superposições, camadas. Como num poema em que o rigor do código convencional da palavra (em sua natureza simbólica) irá servir ao poeta como um jogo, Rio Branco utiliza um método funcional: o de manusear as imagens como palavras no intuito da construção da frase, da proposição, de um termo. O termo é aqui compreendido como um elemento da proposição, um enunciado, um modo no qual uma ideia parte de sua origem factual, convencional para transformar-se (transmudar-se) em signo poético. O modo de seleção de imagens e a intenção de reconfigurá-las estão sempre no limite entre seus significados convencionais e um sentido novo estimulado pela contaminação das outras imagens. 29

31 O símbolo para Peirce não é um signo codificado em sua integralidade. Ele pode e deve ser desmontado em sua condição de vagueza. Nem o índice esgota-se em si mesmo em sua visível incompletude. Na teoria de Peirce, tanto o símbolo como o índice são incompletos em suas codificações. Enquanto um, o símbolo, teria componentes codificados demais, o outro, o índice, os teria de menos. Essa é a dinâmica e a lógica da representação que Peirce propõe e que muitos pesquisadores e teóricos irão empregá-la erroneamente, impactados talvez pelo aparente rigor das categorias pensadas em sua filosofia. Operar no limite do significado convencional (seja ele indicial ou simbólico) é um ato que está mais próximo à prática de um diretor de cinema ou de um poeta. E Rio Branco o faz com a fotografia em uma atitude particular no ato de experienciar a imagem. A atividade dos sentidos em sua percepção bruta e geral nos leva a uma captação imediata do objeto, muitas vezes mais enigmática da imagem; no entanto, empurra-nos para uma sensação plena de possibilidades a serem reveladas e escavadas. Essa área mais movediça, e vaga, na expressão peirceana, é o campo perceptivo das experiências primeiras na apreensão do conhecimento. São zonas diversamente nomeadas por teóricos conforme os objetos e questões tratadas por seus determinados campos de atuação; porém, são os chamados fluxos perceptivos nos quais o conhecimento se dá de modo bastante impreciso, mas com um grau de potencialidade muito favorável no sentido intuitivo. Para Rudolf Arnheim, as concepções estéticas sempre lidaram com a relação intuição/intelecto como um par em constante crise, em que o intelecto é o dominante no processo de conhecimento do mundo concreto e a questão mais intuitiva, sempre colocada em um plano inferior ao do raciocínio. Para ele, a intuição é parte indispensável na relação que temos com as imagens do mundo em sua apreensão objetiva, pois a articulação de uma imagem perceptiva acontece subitamente em uma zona abaixo da consciência: É mais que tempo de livrar a intuição de sua misteriosa aura de inspiração poética... Só a percepção sensorial pode gerar o conhecimento por meio de processos de campo (ARNHEIM, 2004, p. 16). O processo de campo é parte do todo em uma experiência sensorial. E o conhecimento se dá intuitivamente na medida em que ele busca a organização do todo na experiência direta das partes. A percepção conhece porque experimenta as partes em uma relação que constitui o todo:... a visão opera como um processo de campo, 30

32 significando que a estrutura como um todo é que determina o lugar e a função de cada componente, observa Arnheim (2004, p. 17). Sobre a natureza da fotografia, Arnheim (2004, p. 111) considera a forma um elemento indispensável e que sua importância está na conexão com a consciência: Longe de enfraquecer as mensagens visuais, a forma é o único meio de torná-las acessíveis à mente. No ato de fotografar e estar no meio do mundo físico, o fotógrafo é capaz de reconfigurar esse mundo em imagens, sem abandonar sua condição de existir nesse mundo: O fotógrafo supera a alienação fisicamente sem ter de abandonar o distanciamento mental. A autoilusão surge facilmente no crepúsculo de tais condições ambíguas. As construções narrativas de Rio Branco revelam um mundo ambíguo entre imagem e coisa, entre espectador e imagem, entre fotógrafo e realidade em que a subjetividade está ligada a um projeto de deslocamento e reordenação dos objetos (em imagem) do mundo cujos lugares estão em constante mutação. O problema da percepção é atualizado na experiência do livro. Trata-se de atitudes de subversão dentro do sistema de representação da estética documental. É por essa reutilização do documento que Rio Branco subverte os sentidos e aproxima seu livro fotográfico do trabalho de um livro de artista. Estamos numa relação direta entre perceber, captar/montar e construir. A questão que se coloca sobre percepção é decisiva para compreender a construção narrativa que refaz um sistema documental e que se sedimenta na experiência dos livros. Em Nakta, o ato de refazer esse sistema tem uma motivação de natureza pulsional tal é a carga de sensualismo observada na cadência das imagens, ato que podemos considerar calcado no que Arnheim chama de exploração intuitiva (algo abaixo do limite racional) que exercita e define nossa forma de raciocínio. O jogo pulsional de ordem exploratória e intuitiva é proposto ao espectador já no início do livro, onde a imagem de um torso masculino (Figura 4) é inserida junto com o título do poema, Noite Fechada, e cujos primeiros versos ocupam a página seguinte: 31

33 Figura 4: Fotografia 1 do livro Nakta (1996). Noite Fino grau de penetração Osso pensante Alvo dos mortos Imóvel Habito minha noite hímen do lagarto (CALAFERTE In: RIO BRANCO, 1996). O poema de Louis Calaferte, ocupando a primeira página do livro, funciona como um contraponto verbal às imagens, como um desafio ao caráter descritivo e ao mesmo tempo abstrato da fotografia de Rio Branco. O poema não se mistura às imagens, tentando explicá-las ao longo do livro. A opção por colocá-lo inteiro em bloco, com apenas uma imagem acompanhando o título, sinaliza o espaço territorial da palavra preservado em sua independência, mas que avança, inclina-se em direção às 32

34 imagens, sugerindo uma possibilidade intercambiável entre fotografia e palavra, entre ensaio e poema. Cada linguagem tem seu espaço reservado no suporte do livro, e a intensidade de troca e diálogo entre elas só pode ser exercida pelo leitor. A possibilidade de compreensão entre narrativa fotográfica e poema se dará na experiência de caráter mais sensorial, primeiro, abstrato. Por outro lado, tudo converge para um campo concreto da experiência do instinto, do corpo como campo de desejo e dor, da condição humana como natureza de bicho, de uma paisagem social atravessada pela miséria e superada por uma energia erótica/sexual. Esses elementos se adensam em uma plasticidade cromática marcada por cores saturadas, baixa luminosidade e por um colorido sombrio, que muitas vezes não dá a ver objetivamente a cena, o assunto ou o objeto. São características que identificam a poética de Rio Branco, elementos que o tornaram conhecido na arte brasileira contemporânea como um fotógrafo cujos trabalhos possuem grande impacto formal. No entanto, é necessário compreender que a plasticidade cromática é resultado da concretude do contato direto na abordagem do objeto e que essa experiência que junta o concreto e o delirante tem origem em duas chaves que estão na sua formação: a pintura, início de todo seu trabalho artístico, e a primeira fase fotográfica, ao longo dos anos 1970, quando adota um procedimento nitidamente documental, mas transpassado pela experiência no cinema. Considerando essa fase de formação em que o cinema e a fotografia documental atuam decisivamente na construção de uma poética, observaremos a seguir como essas práticas e estéticas foram se misturando no modo de ver e produzir do artista, a partir das exposições, ensaios publicados e certa recepção crítica de seu trabalho no ambiente de discussão entre a fotografia, arte e realidade no Brasil de então. 33

35 1.1.1 Anos Cinema de ficção e fotografia documental, uma trajetória de formação O contato com a realidade social começou a marcar o repertório do artista em suas viagens pelo interior do Nordeste nos anos A seca, as zonas de prostituição e os garimpos constituem o repertório de alguns ensaios, como o realizado em 1976, na Vila de Carnaíba, Bahia, na zona de garimpo de esmeraldas. Nesse período, ainda era predominante a opção por uma estética documental em preto e branco. Pelo menos é em grande parte o que se vê nas publicações fotográficas da época, quando o trabalho do artista começa a ganhar visibilidade. Uma delas é o ensaio na Vila de Carnaíba, publicado em 12 páginas na Revista Íris do mês de novembro de 1979, constituído de 16 imagens e um texto do próprio Rio Branco. Percebemos um narrador, observador atento da paisagem humana do Brasil miserável. O ensaio poderia ser identificado, à primeira vista, como uma reportagem tradicional, abordagem jornalística comumente utilizada na chamada grande imprensa. Num segundo momento, com o olhar mais atento e sem descartar o texto que corre ao longo de toda a edição das imagens, considero a presença de um fotógrafo-narrador, que, em sua escrita, analisa e não apenas descreve. Um fotógrafo-narrador que apresenta em abordagem visual direta e objetiva imagens de conjunto, alguns planos gerais e enquadramentos frontais de uma paisagem social interiorana. A paisagem brasileira degradada e seus personagens à margem de um ciclo econômico, motivado pela exploração no garimpo, são fotografados e descritos pelo olhar do fotógrafo: Garimpo de esmeraldas, tema que fazia tempo eu queria abordar por encontrar nele um visual do qual eu talvez pudesse extrair uma aparência de desbravamento, cenário para uma parábola de nossa sociedade. Local onde pude ver na mistura de seus personagens com suas vidas presas ao oscilante valor das pedras algo de sabor bem Brasil (RIO BRANCO, 1979). Os personagens referidos por Rio Branco são profissionais do garimpo, donos de bares, prostitutas e famílias de sertanejos. No texto, o autor relata que o lugar atraiu mais de 15 mil pessoas. A condição social na qual essa população se viu inserida e seu ímpeto de sobrevivência e risco parecem ter interessado especialmente ao artista. Os 34

36 termos aparência de desbravamento e parábola de nossa sociedade denotam uma percepção que envolve a necessidade de recontar, ou ressignificar, o material fotográfico em sua origem documental. Há uma observação atenta e apurada da paisagem social naquele interior baiano e uma necessidade de olhar essa realidade. Por outro lado, parece haver uma conexão metafórica de um Brasil ainda a ser desbravado em suas riquezas, um país como aquele do período do descobrimento. O texto indica a necessidade do contato, da observação, de uma convivência e de um relato (visual e textual) que reconta a experiência no lugar: O dinheiro corre vivo e os ganhos dos garimpeiros vão geralmente acabar na rua dos bares e boates onde a dança das cartas e das prostitutas os envolve em ritmo de euforia. Para aqueles que correm o país de garimpo em garimpo, o risco e o fatalismo correm juntos tanto nos cortes quanto nas mesas e camas da zona (RIO BRANCO, 1979). Figura 5: Oito homens, Carnaíba, Bahia, 1976 Fotografia que faz parte do ensaio da Revista Iris, 1979, e da exposição Negativo Sujo, de 1978/79. Revista Iris, nº 321, novembro de Os garimpeiros, as prostitutas, as famílias aparecem nas fotografias em retratos, na sua maioria, frontais, diretos. Mas algo escapa ao rigor ordenado da informação jornalística. Apesar da frontalidade, a imagem dos garimpeiros na porta de um bar (Figura 5), tal qual uma fotografia de família, é marcada por ruídos e signos que estão nas entrelinhas: sombras pesadas atravessam alguns personagens, entre elas, a própria 35

37 sombra do fotógrafo projetada em um deles. A riqueza de cada personagem está na postura, roupa, chapéu e no gesto particular de segurar o cigarro, seja pendendo na boca ou segurando na mão. Chapéu e cigarro são signos marcantes nesse álbum de família garimpeira. Um universo másculo de desbravadores, que pode lembrar muito bem o do caubói americano da publicidade dos cigarros Marlboro e que, na imagem de Rio Branco, remete com o mesmo acento pop ao homem brasileiro das camadas populares, que fumava, na época, cigarros Continental. O termo sabor bem Brasil utilizado no texto e associado ao caráter de desbravamento mencionado pelo artista é o mesmo da campanha de cigarros Continental, cujo slogan era Uma preferência nacional. 7 Enfileirados na porta de um bar e ao lado de um cartaz de cinema pornô, os homens nos olham com semblante determinado, seguros em sua postura de descobridores de riquezas. O filme anunciado no cartaz pelo Cine Aliança é Escravas Brancas no Mercado Negro e nos ajuda a sacar da imagem a potência erótica que envolve o ambiente, a cena. Acima, na mesma página, outra imagem, dessa vez captada na porta da Boate Amada Amante (Figura 6). As prostitutas estão ali flagradas sem perceber, num lance típico da fotografia instantânea. A imagem é diurna e as meninas estão despojadas três delas com lenços na cabeça, sandálias; algumas com shorts e blusas curtos. Frontal e à distância o suficiente para incorporá-las no ambiente da fachada da boate. Abaixo do nome da boate, em letras do mesmo tamanho, a frase Agradecemos a preferência. 7 O termo sabor bem Brasil é utilizado em narração em off numa campanha de televisão dos anos 1970, com trilha de Roberto Carlos. Trata-se de um pequeno filme em que um personagem volta para sua cidade natal, uma vila do interior, buscando suas raízes. O cigarro marca a preferência pelo seu lugar de origem, onde estão a família e os amigos que foram deixados. Uma peça publicitária que se apropria de um ideal de brasilidade reconquistada em plena década de 1970, conturbada pela situação política. 36

38 Figura 6: Carnaíba, Bahia, Fotografia que faz parte do ensaio na Revista Iris, 1979, e da exposição Negativo Sujo, de 1978/79. Revista Iris, nº 321, novembro de Há humor sutil nessa brasilidade precária. Um acento sexy como uma cena de filme. Lembremos de Iracema, uma Transa Amazônica, de Jorge Bodansky, talvez como uma chave para entender esse documentarista Rio Branco. Lançado no mesmo ano do ensaio de Carnaíba, o filme de Bodansky mistura, de modo inusitado e às vezes constrangedor e irônico, ficção e realidade. 8 Há cenas com prostitutas em frente às casas onde exercem sua atividade, cuja atmosfera é a mesma das fotos documentais do artista. O ambiente do interior e da vila de garimpo é retratado com variadas nuances pelo fotógrafo, com o gosto mais pelo personagem, pela sutileza das histórias pessoais do que pela intenção de documentar a miséria, no sentido estrito. Há um interesse em olhar, ver o Brasil, porém o olho do artista parece sondar as chamadas micronarrativas. 9 O período que precede a este trabalho na paisagem interiorana brasileira é marcado por estímulos frente ao contexto político e social do país; certa tomada de consciência nascida, segundo relato do artista no período em que fazia o curso de Desenho Industrial na Escola Superior de Desenho Industrial da Universidade do Estado 8 Bodansky filma com não-atores e muitos deles interpretando a si próprios. O filme marca a cinematografia do país na fusão do real com a construção de um discurso que se dá no processo de filmagem. Isso antecipa, de certo modo, uma tendência que vai se intensificar nas décadas seguintes na poética tanto do documentário quanto da ficção contemporâneos. 9 A ideia da micronarrativa histórica está presente na concepção de micro-história, em uma perspectiva da pesquisa histórica contemporânea. Estará cada vez mais presente em um novo tipo de abordagem documental, tanto no cinema como na fotografia. 37

39 do Rio de Janeiro (ESDI UERJ), em Para ele, não havia nenhum compromisso no universo da ESDI com a realidade política que se estava vivendo no Brasil daquela época. Isso lhe trouxe inquietações e um encontro casual e oportuno com o cinema, pois a pintura, naquele momento, parte importante de sua formação original, começava a perder terreno para a fotografia em função de sua urgência em dialogar com a realidade: Talvez em função dessa consciência, a pintura perdeu nesse momento sua importancia para mim. Me parecia superficial diante de uma necessidade poderosa de comunicar de forma menos elitista. Eu queria chegar mais nas pessoas, despertá-las para os problemas que existiam (RIO BRANCO In: SIZA, 2002, p. 12). 10 A vontade por uma comunicação mais direta conduz Rio Branco, definitivamente, para a imagem técnica, a fotografia e o cinema, cuja abordagem é inicialmente movida por uma atitude de contato com a realidade e de consciência política acentuada. Pelas mãos de Lauro Escorel, filma A Jaula (1969), de Carlos Góes, e faz still para o filme Pindorama (1970), primeiro longa-metragem de ficção de Arnaldo Jabor. Essas experiências, para citar algumas, são detonadoras de um período fundamental para a formação do artista. A virada dos 1960 para os 1970 entre um curso de cinema em Nova York e o de Desenho Industrial no Rio constitui um cenário cultural rico e propenso ao exercício de sua necessidade menos elitista de comunicação. A Jaula, ganhador de um prêmio em um festival de curta-metragem em 1969, foi dirigido por Góes, que atuava intensamente na contracultura brasileira, no ápice dos acontecimentos políticos e artísticos. Vários outros parceiros com os quais Rio Branco atuou no cinema fizeram parte de uma estética experimental e ao mesmo tempo atenta às questões brasileiras, como são os casos de Julio Bressane e Sérgio Bernardes. Cada experiência aponta para elementos importantes na constituição estética do artista, como por exemplo, o caso da experiência com o longa-metragem de Jabor. Pindorama indicia aspectos muito interessantes na formação de Rio Branco. O termo Pindorama, na língua geral, significa terra das árvores altas e, em tupi-guarani, terra das palmeiras, nome dado pelos índios à nação. Jabor encenou uma alegoria sobre as origens da formação do país, na qual negros, índios, colonos e aventureiros 10 No original: Quizás en función de esta consciencia, la pintura perdió en ese momento su importancia para mí. Me parecía superficial frente a una necesidad poderosa de comunicar de forma menos elitista. Yo quería llegar más a las personas, despertarlas a los problemas que existían. 38

40 representavam a tensão desencadeada pela desobediência de Pindorama cidade brasileira imaginária no século XVI aos desmandos da Coroa Portuguesa. O fato de ter sido realizado no período da repressão da ditadura militar no Brasil e de ter sido construído em torno da ideia de origem e identidade da nação, o filme mobilizou um repertório de discussões formais, estéticas e políticas entre os profissionais envolvidos na produção. O debate sobre a nação naquele momento, a partir de uma alegoria e de tom francamente ficcional, era uma maneira de discutir esteticamente a cultura brasileira. Tratava-se de um ambiente que possibilitava outro viés de percepção sobre o país, que não o documental, e tradicionalmente engajado na atitude político-partidária ou no ofício do fotojornalista atuante na imprensa. A função de Rio Branco na equipe de Jabor era a de um ofício técnico e instrumental: fotografia still, ou seja, fotografia de cena para a divulgação do filme, para produtos de informação, como matérias jornalísticas, cartazes, spots publicitários. Não podemos esquecer que estávamos no início dos anos 1970, cuja herança efervescente dos movimentos estudantis de 1968 reverberavam na nova década que se iniciava, favorecendo uma atmosfera especial quando se lidava com a produção artística. Havia um envolvimento experiencial nos processos artísticos da época em várias instâncias, e o cinema brasileiro já vivia o impacto das ideias e performances de Glauber Rocha. Pindorama foi o filme glauberiano de Jabor. Embora ele se identifique diretamente com Terra em Transe, o filme tem proximidade estética e política maior com O Leão de 7 Cabeças, obra internacional de Glauber, de produção ítalo-francesa com história construída em torno do colonianismo euro-americano sobre o continente africano. O Leão de 7 Cabeças foi realizado em 1970, mesmo ano de Pindorama, e fazia parte de igual ambiente político e cultural brasileiro dentro de um contexto da arte internacional. A brasilidade moderna construída entre o interior profundo, as raízes sertanejas e as novas realidades urbanas instigavam os artistas a um novo cinema e, por consequência, outro modo de construir e pensar o país com as imagens. O chamado Cinema Novo ocorreu motivado pela vontade de pensar as raízes nacionais dentro de uma perspectiva de reinvenção da linguagem do cinema de alcance mais aberto, de um cinema que falasse ao mundo a partir de outros códigos de representação e elaboração rítmica da imagem. A equipe de Jabor viveu três meses filmando na Ilha de Itaparica, 39

41 em uma experiência de imersão. As cenas, personagens e narrativas alegóricas de Pindorama foram fotografadas por Rio Branco. As ficções de um Brasil original foram captadas pelo fotógrafo com uma carga dramática apoiada num conceito de cor concebido pelo diretor de fotografia, Afonso Beato, profissional que já trabalhava com Glauber e que criou para o filme de Jabor uma densidade cromática específica para o que buscava o diretor. Beato vinha de uma estética criada em diversos filmes brasileiros, a qual chamava de tropicolor : A expressão Tropicolor é uma invenção baiana. O que é tropicolor? Isso remete a uma ideia de uma cinematografia, de uma expressão, de um conjunto de filmes como Macunaíma, que fazem parte desse momento. Enfim, a busca de uma cor tropical em que o verde, os amarelos, os vermelhos são tão fortes, no sentido que a nouvelle vague sempre foi assim, aquele azulzinho, entende? A coisa das latitudes de clima temperado, entende? Tudo muito suave e tudo. E nós fizemos uma coisa de alto contraste e alta densidade, alta saturação. Tropicolor é o expressionismo tropical (BEATO, 2008). Havia ali a procura por uma sintaxe cromática que representasse o Brasil frente a um padrão de nacionalidade europeia marcado pelo cinema francês. Um contraponto, uma proposição estética, a construção de uma identidade fílmica brasileira, que certamente influenciou o olhar, a experiência e a percepção do então jovem fotógrafo de still Miguel Rio Branco. A partir do ofício técnico e instrumental em registrar as cenas de um filme para divulgação posterior, o fotógrafo utilizou filmes diapositivos, slides que, à medida que iam sendo revelados em Salvador, eram devolvidos à equipe que assistia às cenas fotografadas em projeções montadas e editadas livremente por Rio Branco em sessões noturnas, em Itaparica. Essa experiência, construída em vários níveis, tornou-se, possivelmente, um encontro fundamental do fotógrafo com um repertório de imagens e referências culturais de um Brasil colorido, profundo, gestado pelas lentes dos cineastas brasileiros em pleno calor da hora do Cinema Novo. Uma experiência de confronto e arrebatamento visual que será norteadora em diversos aspectos em seu trabalho futuro. Rio Branco entrou na realidade brasileira pelas lentes ficcionais do cinema e esse fato parece ter sido fundador, gerador de uma poética que iria se consolidar mais a frente quando começava a ganhar autonomia como artista, como fotógrafo: Quem me chamou foi o Afonso Beato, praticamente fiquei três meses sem sair da ilha. Então tudo era feito lá. Os filmes em preto e branco eu revelava lá e os cromos eram enviados para Salvador. 40

42 Eu fazia projeções toda a semana para a equipe inteira desse material. Então houve um processo de aprendizagem e de construção a partir daí... (RIO BRANCO In: PERSICHETTI, 2008, p ). O artista reconhece o período histórico como uma época em que o audiovisual era forte como linguagem documental, e a necessidade de construir uma história, mesmo que fosse poética levava-o para a narrativa, o que contribuiu em sua formação como editor de imagem. Esse traço de sua personalidade artística tornou-se uma das características fundadoras de sua poética fotográfica, hoje reconhecida na arte contemporânea brasileira. Há que se considerar que o trabalho do fotógrafo still e do editor de imagens embrionários naquele início dos 1970 não era meramente funcional e muito menos exclusivamente instrumental. Se hoje a poética do artista é identificada, ou marcada, por uma lida sensual com o objeto ou cena e sua cadência rítmica é movida pela inquietação sequencial, a partir da qual cada imagem é conversível em sua significação, na medida em que ocupa lugares diferentes seja na parede, seja na espacialidade da instalação e, fundamentalmente, na narrativa dos livros, é porque havia uma relação pulsional 11 com o fenômeno fotográfico. O acontecimento a ser fotografado foi delineando em sua trajetória uma fotografia instaurada em parte especial na poética do cinema e num tipo de abordagem documental da realidade brasileira, no qual o ato de fotografar é um ato vivido que determinou sua linguagem. Ao mencionar o processo criativo do livro Dulce Sudor Amargo, de 1985, o artista relata o trabalho que teve com seus editores, como um diálogo compartilhado realizado em várias etapas de edição das imagens para atingir o resultado final, evidenciando-se uma percepção cinemática do seu material fotográfico para o suporte do livro: Em geral faço uma primeira edição e só depois trabalhamos juntos com o 11 Utilizo eventualmente a palavra pulsão ou o adjetivo pulsional, conceitos oriundos da psicanálise que trata das energias psíquicas internas do ser humano não orientadas pela consciência. Em linhas gerais, sabemos que o termo foi subdivido nos estudos de Freud entre pulsão de vida e pulsão de morte, porém essa divisão não existiria de fato, segundo outras análises. A pulsão seria um elemento mais forte e diferente do instinto cuja direção não separa vida e morte e carrega um grau de tensão acumulada em que sexo e morte encontram-se numa mesma linha de tensão. Faço uso do termo para caracterizar o modo como o artista se relaciona com a realidade circundante e a representa em seu trabalho. Seja com as pessoas, os ambientes ou com os objetos que encontra. Este estudo não tem a pretensão de entrar nesse campo, porém na análise sobre as imagens do artista revela-se uma experiência com o mundo na qual ocorre a extração de uma potência erótica na relação com a realidade que perpassa todo o conjunto de sua obra e determina aspectos importantes de sua poética. 41

43 material para fazer a maquete definitiva, um método parecido ao do cineasta com um montador (RIO BRANCO In: SIZA, 2002, p. 44). 12 O sentido de decupagem fica implícito no seu processo criativo: a extração primeira das sequências filmadas em uma ordem narrativa, prática e técnica realizadas como etapa fundamental na construção de um filme com vistas ao chamado copião. Essa técnica e percepção próprias do universo processual do cinema são transpostas para a construção do seu discurso fotográfico. Sua fotografia, de intensa carga dramática, provocadora de sensações de estranhamento do objeto percebido, é proveniente de um nascedouro no qual as imagens não repousam na percepção do espectador porque igualmente não se estabilizam na consciência do artista. Esse exercício de mobilidade proposto ao público é construído na estética do filme, que só ganhará sentido se houver um projeto conceitual de montagem herdado da experiência fílmica o uso do corte como elemento dinâmico, que promoverá, em sua fotografia, a ruptura com o estatuto da imagem estática. Ao comparar seu método com o de um cineasta em diálogo com o montador, consideremos tal intervenção técnica como um tipo de desmontagem dos códigos usuais da fotografia documental. Uma desmontagem da realidade captada tal como a primeira transposição do chamado plano autônomo para o plano fílmico. 13 Quando Miguel Rio Branco opera com um conjunto de imagens cujos objetos e cenas fotografadas são articuladas entre si numa relação de embate, confronto e amálgama, ele escapa de uma lógica sequencial da captação documental apoiada em certa tradição da fotorreportagem ou do ensaio ilustrado. É apropriando-se dessa perspectiva cinematográfica de montagem que encontra o recurso poético para lidar com as imagens do mundo em sua objetividade, porém reordenadas pela sua experiência sensorial com o acontecimento real. Quando assume em seu processo que primeiramente faz uma maqueta e a entrega ao editor, como um cineasta entrega seu primeiro tratamento pós-copião à mesa de montagem, ele está adotando ao longo de sua trajetória uma consciência rigorosa do uso do corte como discurso, na mesma medida de importância que esse componente de 12 No original: En general hago una primera edición y solo después trabajamos juntos con el material para hacer la maqueta definitiva, un método parecido al de un cineasta con un montador. 13 Entenda-se aqui na linguagem cinematográfica em seu processo de montagem a distinção entre plano autônomo, como aquele material filmado, captado em sua dimensão real, e o plano fílmico, aquele que vai ser transformado no processo de montagem em elemento ficcional e narrativo: O primeiro é resultado da realização, da filmagem, enquanto que o segundo só existe após o corte e sua consequente união com outro plano fílmico numa relação artística (LEONE, 2005, p. 34). 42

44 linguagem tem para a montagem de uma obra fílmica. Tendo a ideia de corte cinematográfico como conceito poético para sua fotografia, Rio Branco atinge atmosferas estranhas com a associação de objetos e cenas muitas vezes banais ou desprovidas de força plástica, se vistos como imagens únicas. O corte é o ator central da montagem. Eduardo Leone (2005, p. 26) ressalta que a montagem,...através do seu fator específico, que é o corte, incidirá nesse conjunto material criando contiguidades narrativas. O exercício da contiguidade narrativa aqui referido, no campo do cinema é justamente o que possibilita, na fotografia de Rio Branco, demover o factual de sua circunstância, numa relação análoga ao plano autônomo, e recolocá-lo em um novo fluxo: o da linguagem, em analogia ao plano fílmico, o da ficção. O corte promove a junção dos planos, e no ambiente poético de Rio Branco, põe em justaposição impensada uma série de imagens que alargam seus significados e instauram outros sentidos. Voltemos à imagem do avião em pleno voo, enquadrado em sua turbina. Imagem obscura de um amarelo pesado que realça o aspecto maciço da fuselagem, um objeto robusto, encorpado e que voa em meio a um crepúsculo. E pensemos novamente na imagem que dá sequência à do avião. Apesar de identificarmos claramente o que está na imagem (as costas com uma grande cicatriz à esquerda, dominando completamente o quadro, e o rosto do segundo personagem ao fundo numa expressão de deleite e gozo), experimenta-se certa abstração na imagem, uma impressão de incerteza a respeito de qual ponto de vista, ou eixo, olhamos a cena. Fora de um eixo, provocado pelo enquadramento que chega perto demais da pele, desfocando o rosto (na sensação do gozo) ali igualmente próximo, uma imagem da turbina nos sugere uma flutuação, num plano mais geral. A outra o abraço, uma aproximação em close-up na superfície da pele. Chegamos perto demais do corpo, como se estivéssemos nos aproximando de uma planície. As justaposições marcam a poética do artista, e essa passagem presente no livro Nakta já indica uma fase em que seu trabalho alcança uma sofisticação narrativa a ponto de envolver o espectador em uma experiência perceptiva particular com o dado real fotografado. Reinscrito em uma cadeia sígnica, o objeto fotografado retoma a questão indicial em uma perspectiva poética e nos abre um debate ainda profícuo sobre a dinâmica entre signo e objeto no campo da fotografia. 43

45 1.1.2 A exposição Negativo Sujo Documento, realidade brasileira e fotografia: a recepção e o debate crítico Antes de retomar as instabilidades do signo fotográfico, retornemos agora a 1976, seis anos após Rio Branco fotografar para Pindorama, e ao ensaio na Vila de Carnaíba, publicado em 1979, na Revista Íris. No texto que corre ao longo das 16 imagens, o artista esclarece que aquele é um recorte muito pequeno de um total de 80 imagens: Aqui, reduzindo o número e simplificando a paginação, posso apenas dar uma leve impressão do assunto (RIO BRANCO, 1979). Embora não identifique claramente no texto, o artista está se referindo a 16 imagens de um mesmo conjunto que constituiu a individual Negativo Sujo, inaugurada na Escola de Artes Visuais do Parque Laje, no Rio de Janeiro, em abril de A mostra reuniu aproximadamente 300 imagens organizadas em blocos e montadas sobre diversas folhas de papel carne-seca, do tipo embrulho. A exposição chama a atenção do crítico Roberto Pontual, que a destaca em sua coluna no Jornal do Brasil como uma das exposições mais importantes na cena das artes visuais do Rio naquele ano (PONTUAL, 1978). A imagem principal do texto é a fotografia frontal em um enquadramento que remete ao formato 3x4 da face magra de um homem do campo da Região Nordeste (Figura 7). Fotografia direta, embora com pesadas marcas de luz e sombra no rosto, que adensam o olhar franco do personagem em nossa direção. Figura 7: À esquerda, fotografía que faz parte da exposição Negativo Sujo, de 1978/79. Jornal do Brasil, À direita, fragmento de montagem da exposição na Estação Pinacoteca em São Paulo, em Reprodução: Mariano Klautau Filho. 44

46 A primeira parte do artigo analisa o livro-catálogo Hecho en Latinoamerica, lançado por ocasião do 1º Colóquio Latino-americano de Fotografia, realizado na Cidade do México. Pontual ressalta a imensa importância da presença da fotografia nas artes visuais e menciona trechos de um manifesto escrito por Tina Modotti, 14 utilizados no prefácio do livro escrito pela crítica Raquel Tibol. A discussão de Pontual em torno do valor da fotografia toma o discurso de Modotti como uma defesa das particularidades e limites da fotografia como linguagem e parece aderir à vocação documental do meio. Está insinuada também a busca por identidades, tanto da fotografia como território, como da produção latino-americana pretendida pela publicação e encontro realizados no México. 15 Mas o que Pontual (1978) ressalta no trabalho do então jovem fotógrafo é o fato dele debruçar-se sobre uma realidade brasileira representada pelo seu lado avesso. As fantasias e os sonhos coloridos de um Brasil costumeiramente idealizado na fotografia nos meios de comunicação eram substituídos por uma visão dura, concreta e substancialmente anônima: E o que mais lhe interessa são as faces, os gestos e os objetos do que há de maciçamente, massificadamente anônimo no mundo. A paisagem interiorana, os garimpos e os ambientes de prostituição são mencionados pelo crítico como um cenário a ser buscado pela identidade da fotografia e para a representação da identidade do país. O que Rio Branco propõe na sua abordagem, segundo Pontual, é olhar o extremamente anônimo na paisagem cultural brasileira e discutir seu esquecimento e precariedade não só no modo de fotografar, mas de articular 14 Os trechos escritos por Tina Modotti citados no artigo destacam a discussão sobre a validade da fotografia como arte, as particularidades do meio como recurso e limite na construção do reconhecimento do mérito da fotografia em suas múltiplas funções e na sua aceitação como o meio mais eloquente e direto de fixar ou registrar a época presente. O texto de Modotti é retomado sob a perspectiva de dualidade da fotografia: por um lado, conecta-se com o objetivo e a realidade social e, por outro, na sua complexidade entre recurso e limite, aspecto esse que será mais desenvolvido por Pontual na análise que faz em seu artigo. 15 As edições do Colóquio Latino-Americano de Fotografia no México e o Encontro Nacional de Fotografia da Funarte, acontecido em várias capitais brasileiras, marcaram os anos 1980 como um projeto de difusão e democratização da fotografia como expressão. Os eventos revelaram muitas gerações de fotógrafos e pesquisadores: o intercâmbio entre as regiões brasileiras, no caso da Funarte, e entre os países latino-americanos, no que se refere ao colóquio mexicano. Havia um propósito muito claro de buscar uma identidade nacional para a fotografia brasileira em sua diversidade regional. No mesmo contexto, havia a também a busca por uma identidade que conectasse a linguagem fotográfica a um ideário comum de uma nova arte latino-americana. Havia um projeto político de uma fotografia genuinamente brasileira e latino-americana, que ainda subjaz, silenciosamente, no discurso da autonomia de identidade do campo fotográfico nas questões da arte contemporânea. Essas questões serão retomadas em alguns aspectos mais adiante. Cf. CONSEJO MEXICANO DE FOTOGRAFIA,

47 relações entre as imagens numa proposição de montagem também precária e destituída de narração jornalística: Da maneira mais pobre possível, sem qualquer trejeito de montagem, simplesmente distribuindo os trabalhos em pedaços de rolos de papel de embrulho, Miguel obteve a linguagem precisa, e por isto impositiva, em termos de conjunto entregue aos nossos olhos. Não falseando o foco feito sobre a realidade, conseguiu também não maquilar os resultados desse primeiro acercamento do mundo que mais lhe interessa (PONTUAL, 1978). Ao indicar o modo de montagem como uma linguagem precisa, a leitura de Pontual reforça certo caráter conceitual do trabalho do artista, que, em tese, recolocaria sob outras condições o estatuto da fotografia como documento da realidade. No mesmo discurso, em contraponto a essa ideia, parece reivindicar a integridade transparente do signo fotográfico, quando acredita que o fotógrafo não falseia o foco sobre a realidade, não a maquila. O termo sabor bem Brasil é destacado no artigo e localizado especificamente em uma determinada fotografia que mostra as cores berrantes de um cartaz colado na parede anônima com gente anônima, mas viva (PONTUAL, 1978). Esse cartaz colado, observado por Pontual na imagem fotográfica, certamente é a publicidade dos cigarros Continental, de onde o fotógrafo extraiu a expressão sabor bem Brasil (Figura 8), e a utilizou no texto de apresentação do ensaio na Revista Iris. A expressão não foi utilizada como um mero efeito, como algo transposto de um lugar a outro ou utilizado de modo banal ou divertido. Há ironia na frase publicitária reinserida no campo visual de uma fotografia de aparência documental, portanto de pretensão a representar certa brasilidade, mas que de fato insinua conceitualmente a complexidade e a dificuldade de uma totalidade de representação nacional que aquele ensaio aponta. 46

48 Figura 8: Fotografia que integra a exposição Negativo Sujo, de 1978/79, mencionada na resenha crítica de Roberto Pontual para o Jornal do Brasil. Catálogo Notes on the Tides, Sabor bem Brasil e preferência nacional são termos criados pela publicidade que pretendem refletir um Brasil popular e formatar a construção da identidade cultural homogênea. Incluir no campo da imagem fotográfica o cartaz que vende essa ideia e utilizar o texto publicitário no seu relato de observação e captação da paisagem social humana do país não parecem gratuitos e nem informais. O artista apropria-se de um discurso verbal na colagem e montagem das imagens e assume essa observação visual no seu conceito poético. Figura 9: Registro da remontagem de Negativo Sujo no Croninger Museum na Holanda em Catálogo da exposição Ponto Cego, Porto Alegre,

49 A exposição Negativo Sujo (Figura 9) suscitou um debate crítico 16 que ao mesmo tempo ressalta ainda o impacto de denúncia social da fotografia, mas relativiza o alcance e a legitimidade do documento conforme o discurso montado por seus autores. No mesmo período, outubro de 1978, outro artigo 17 é motivado pela presença inquieta da fotografia no campo da arte, seus modos de representação da realidade e especialmente pela proposição da individual de Miguel Rio Branco apresentada no Parque Lage, no Rio. Nele, o crítico Frederico Morais reflete sobre a inserção da fotografia nos museus e no universo da arte, e seu insuperável poder de denúncia em comparação a outras artes, como a pintura. Cita, como exemplo, Guernica, de Picasso, frente à famosa fotografia da menina vietnamita nua atingida pelas bombas de napalm. 18 Para Morais, não há comparação para a fotografia quando exerce sua capacidade de rebater, de modo contundente, o factual e devolver essa imagem ao público. Considerando a validade da fotografia na arte como presença incômoda, denunciadora, política e, portanto, carregando seu caráter documental, o crítico se refere como o fez também Roberto Pontual ao 1º Colóquio Latino-Americano de Fotografia, realizado no México em maio daquele ano. Cita a fala de Ida Rodrigues 19 no encontro mexicano como eco ainda persistente do embate entre fotografia e arte: A luta dos fotógrafos para se incluírem entre os artistas tem sido uma traição à essência da fotografia, que é ser um meio, não um fim (MORAIS, 1978). A necessidade de inclusão, segundo o discurso de Rodrigues, desembocaria numa elitização da fotografia e a faria participante de um sistema caduco, que era o sistema da arte. No contexto dos anos 1970, e especialmente nos países da América Latina, a urgência da reflexão política na arte frente ao histórico dos governos autoritários alimentava o debate sobre o código fotográfico como expressão e suas mais variadas manifestações no campo artístico. A discussão de Frederico Morais (1978) foca na cena latina e especialmente no contexto brasileiro. A fotografia para ele, naquele momento, estava sendo um dos poucos meios de expressão interessados em discutir a nossa realidade. 16 Debate revelado pelos artigos de Roberto Pontual (Jornal do Brasil), Frederico Morais (O Globo), resenhas e notas nas edições da Revista Íris e jornais Folha de São Paulo e Estado de São Paulo. 17 Intitulado Na fotografia, o compromisso com a realidade: denúncia e documento social, de autoria de Frederico de Moraes, foi publicado na Seção Artes Plásticas, de O Globo, em outubro de Fotografia de Huynh Cong realizada em O crítico menciona os nomes de Ida Rodrigues e Rita Eder presentes no 1º Colóquio Latino-Americano de Fotografia na Cidade do México em debate sobre fotografia e arte. Cf. CONSEJO MEXICANO DE FOTOGRAFIA,

50 Morais menciona, igualmente, a importância da exposição realizada na Galeria Grafitti, no Rio de Janeiro, em Reunindo uma nova geração de fotógrafos, atenta aos segmentos marginais da sociedade brasileira e propõe uma análise crítica das exposições fotográficas de Otto Stupakoff na EAV Parque Lage e a de Hugo Denizart na Galeria Andrea Sigaud, até chegar à leitura mais demorada sobre Negativo Sujo, de Rio Branco. Sobre Stupakoff, Morais se mostra quase indignado com a imagem de mulheres com sombrinhas coloridas circulando em uma tranquila Saigon. A suavidade da imagem irrita o crítico já que, naquele contexto, 1968, Saigon jamais poderia ser identificada como um lugar tranquilo, uma vez oprimido brutalmente pelas forças norte-americanas. Para temperar seu repúdio à suavidade imagética de Stupakoff, Morais reagiu francamente ao grupo de personagens e personalidades captados pelo fotógrafo na tranquilidade de seus lares e piscinas ou cenas exteriores vazias de gente. Sobre o trabalho de Hugo Denizart, o crítico admite que o fotógrafo procura olhar a condição miserável do interior do Brasil: a habitação precária, os meninos de rua e a fome. As fotografias são esplêndidas, segundo Morais, porém a sofisticação das molduras em sua proposta de montagem e o colorido tecnicamente impecável das imagens não comovem, nem levam à reflexão, estão apenas exibidas como obras de arte. Há um interesse nítido, no discurso de Morais, na inserção da fotografia nas artes visuais diante do circuito expositivo apresentado no Rio de Janeiro. Ele vê um modo de estabelecer uma conexão entre fotografia, identidade brasileira e denúncia social. A fotografia, cuja tradição estava apoiada na escola da reportagem, entrava no circuito das exposições e ganhava espaço nas revistas de fotografia e arte. À fotografia cabia a tradição da realidade e o compromisso em refletir a paisagem social brasileira. Tendo como perspectiva essa análise crítica e o contexto da época, podemos considerar que Miguel Rio Branco entrou no circuito da arte pela porta do documento social. Negativo Sujo enfrentava esse embate, inclusive apresentando ruídos no discurso instituído sobre a miséria. Isso está apontado no modo como a exposição foi percebida pela crítica e pelos meios de comunicação, que estamos considerando até aqui por meio das análises de Roberto Pontual e Frederico Morais, por ocasião da estreia da mostra no Rio de Janeiro. Para Moraes, havia também na fotografia uma noção de ensaio que lia a realidade com rigidez e apenas confirmava aquilo que já se sabia, de antemão. 49

51 Tomando esse aspecto já sabido e decodificado do método ensaístico, ele discute brevemente em seu artigo o trabalho de Bina Fonyat, a ser apresentado na EAV após Rio Branco. O ensaio de Fonyat sobre o carnaval carioca pretendia documentar as nuances dessa manifestação cultural brasileira, tendo como eixo o travestismo, como ressalta Morais. Havia vários anos que o fotógrafo se dedicava ao assunto. Naquele momento preparava exposição e livro. Parece que Morais faz uma comparação do ensaio como método jornalístico a ser utilizado especialmente na imprensa, pois o fato de saber do assunto de antemão, antes de fotografá-lo, é da pratica ideológica do uso da informação na grande imprensa, principalmente no contexto de censura dos anos 1970 no Brasil. A direção tomada por Bina Fonyat certamente não era da ordem da grande imprensa, uma vez que se tratava de uma de pesquisa que já completava cinco anos naquela época. O que Morais sugere é que o ensaio possuía uma rigidez conclusiva herdada na tradição da reportagem. A análise que Morais propõe sobre Negativo Sujo, de Rio Branco é um contraponto a todos os outros artistas referidos anteriormente e uma alternativa à fotografia que exercitava seu poder de denúncia e sua linguagem comprometida com a interpretação da realidade da cultura brasileira e, portanto, considerando uma fotografia de identidade nacional, inserida em um contexto de identificação com a paisagem humana latino-americana. Em oposição ao ensaio que se estruturava, na concepção de Morais, no desenvolvimento com começo-meio-fim, a montagem aparentemente desconexa de fotografias em grande quantidade, cor e p&b, reagrupadas por conjuntos e montadas sobre papel de embrulho possuía um efeito inacabado, de cadernos de anotações. A associação de imagens gerava conotações díspares. Cenas, situações e objetos extraídos de diversas regiões do interior brasileiro, com uma ênfase no interior do Nordeste, eram combinados entre si, justapostos de forma não linear. O caráter desajustado e inventivo da montagem e as imagens de uma realidade pobre do país chama a atenção do crítico: De um lado a foto de um prato contendo um garfo e dois pedaços de bolo, sobre um deles, nítido, uma mosca. Na outra, a palavra ventania (nome de bar) tem sua correspondência formal nos efeitos que resultaram de um erro técnico. Realidade e acaso, Miguel está atento aos acidentes do processo técnico e criador tanto quanto aos 50

52 lances mais duros da realidade, o aqui e o agora brasileiros, o nordeste em particular, para onde tem viajado com frequência (MORAIS, 1978). Figura 10: Imagens da remontagem de Negativo Sujo no Croninger Museum na Holanda em 2006 e na mostra Teoria da Cor na Estação Pinacoteca em São Paulo em Catálogo da exposição Ponto Cego, 2012, Porto Alegre. As imagens de Rio Branco em seu ritmo inacabado, dissociadas de uma coerência narrativa ilustrada descreviam, relatavam, recontavam as histórias identitárias de um Brasil, ou retraçavam, desmontavam e desestabilizavam a identidade do signo fotográfico? A fotografia de cunho realista, comprometida com a consciência política e a apreensão sociocultural do país, parecia mostrar-se bastante desordenada para os padrões da sintaxe de uma fotografia direta, formal, ensaística e documental. Essa desordem (simbólica) estava na cadência de um jogo narrativo de outra natureza para 51

53 com o dado concreto que a montagem matérica no espaço expositivo possibilitava e atraía a percepção do espectador: A montagem não é linear, a exposição pode ser lida a partir de várias entradas, mas não chega a ser um difícil quebra-cabeças. Uma foto puxa a outra, ou melhor, um conjunto puxa o outro, como palavras nas frases, ou frases num texto. Mas um texto livre, frequentemente ácido e duro, às vezes poético (MORAIS, 1978). Figura 11: Fotografias da exposição Negativo Sujo. No alto, à esquerda, registro da remontagem no Croninger Museum na Holanda em Catálogo da exposição Ponto Cego, Porto Alegre, No alto, à direita, reprodução do convite do MASP. Abaixo, reprodução da Revista Íris, n. 321, O comentário sobre a acidez, a dureza e a poeticidade do trabalho de Rio Branco na crítica de Morais é resultado também de uma variedade estética no tratamento e na abordagem da cena. As imagens que fazem parte do grande conjunto de fotografias se constituem formalmente distintas uma das outras em alguns aspectos importantes. Da dureza, temos o retrato frontal do rosto magro do interiorano, já mencionado no artigo 52

54 de Pontual. Temos ainda o registro sólido e objetivo da caixa de engraxate Morais menciona uma série delas em sequência, que aparece no convite da exposição e em notas e matérias de divulgação. Do universo mais poético, mais clássico, temos uma cena de dois homens sentados jogando damas em uma calçada em Carnaíba. O enquadramento simétrico, a posição elegante dos corpos, a sofisticação acentuada pelas roupas e chapéus, e um rigor em preto branco são componentes originados da mais pura tradição da fotografia documental moderna, de efeito gráfico e aspecto sóbrio. Essa imagem está misturada no grande caldeirão, onde se encontram também as cenas de prostituição, a imagem de um boi esfolado e outra que revela o cartaz com a campanha de cigarros. O cartaz também chama a atenção de Frederico Morais e nos confirma a apropriação do slogan preferência nacional : Mais à frente, vemos, no interior de um barraco, um cartaz de cigarros Continental com seu slogan conhecido: Sabor bem Brasil. Ao lado, uma sequência de fotos corre paralelo à atividade de um fotógrafo lambe-lambe. No seu instrumental tosco e nas fotos colhidas, temos um retrato três por quatro do Brasil (MORAIS, 1978). Consideremos aqui que, nas entrelinhas da imagem e do texto que Rio Branco irá escrever para a Revista Iris no ano seguinte, há uma visão uma tanto irônica e pop de certa brasilidade e que escapa dos moldes mais formais da chamada fotografia engajada nos movimentos políticos. Não que sua fotografia estivesse fora desse contexto, muito pelo contrário; porém, Rio Branco exercia ali, naquele momento, um trabalho fotográfico desordenado do ponto de vista da lógica ilustrada da fotografia documental. Desordem onde cabia tanto uma visão crua e contundente, aparentando um compromisso político mais formal, como também cenas em que o particular, os personagens e as informações de uma cultura visual fazem parte das micronarrativas pessoais. Lembremos juntamente com o cartaz publicitário de cigarros o cartaz de cinema pornô e os letreiros da boate Amanda Amante, em Carnaíba. O instrumental tosco, mencionado por Morais, utilizado na exposição sem qualquer trejeito de montagem, como ressaltado por Pontual, alia-se à enorme quantidade de fotografias expostas. Esse aspecto material cria no espectador (e na imprensa) uma estranheza, uma imprecisão no modo de exibição e, consequentemente, 53

55 na maneira de descrevê-la ou simplesmente de identificá-la na imprensa. Negativo Sujo é apresentado no ano seguinte no MASP, em São Paulo, mas perde o título e o texto de apresentação. 20 Rio Branco decide retirar o título usado anteriormente na estreia da mostra no Rio de Janeiro. Em uma carta endereçada a Emanuel Von Lauenstein Massarani (RIO BRANCO, 1979b), então conservador principal do MASP, o artista informa que, para a temporada paulistana, a exposição não terá mais texto de apresentação e nem título. A Revista Iris de maio de 1979 anuncia a exposição a ser inaugurada no dia 25 daquele mês. A mostra é identificada de maneira imprecisa, com o nome de Anotação, informando no final da nota a não definição de um título, mas relatando detalhes da montagem em que as imagens serão organizadas sob a forma de um caderno de anotações...montadas sobre enormes folhas de papel que serão penduradas em uma das salas do museu. Cada folha reúne imagens que se associam... (REVISTA IRIS, 1979a, p. 4). A mesma seção da revista, Exposições, volta a referir-se à mostra (naquele momento ainda em cartaz) no mês de julho, em uma breve resenha crítica que mistura, curiosamente, expressões aparentemente opostas para descrever o trabalho de Rio Branco: documento, poético, registro, síntese cinematográfica, corte, realidade : Um registro muito mais descritivo do que narrativo, mas que exposto ao lado de outros registros do mesmo tom, formavam uma sintaxe quase cinematográfica, com cortes rápidos e grande poder de elipse, e que ao final, sugeriam um Brasil nada pasteurizado, mas apenas um país tão simples e rude como as próprias fotografias (REVISTA IRIS, 1979b, p. 10). Segundo o crítico, o mérito da exposição de Rio Branco, além de mostrar a realidade sem floreios foi o de apresentar uma alternativa à própria linguagem 20 Não tive acesso aos registros fotográficos da exposição original no Parque Lage (Rio) e MASP (São Paulo). Em contato com o Centro de Documentação do Parque Lage, não foi encontrado nenhum registro. O setor de documentação estava em processo de organização. Fui aconselhado a entrar em contato com o Instituto Rubens Gerchman, por ele ter sido o diretor da instituição no período da exposição. Contatei sua filha, a diretora do instituto, Clara Gerchman, por telefone e , e fui informado de que não havia registro da exposição no acervo. No MASP não consta nenhum registro fotográfico nas pastas relativas ao artista conservadas na instituição. Depois de São Paulo, a exposição esteve em João Pessoa e Salvador. Não fiz contato com os espaços que a receberam nessas últimas cidades. Os registros do catálogo Ponto Cego, mostra em Porto Alegre em 2012 e a documentação que eu mesmo realizei da mostra Teoria da cor em 2014 na Estação Pinacoteca em São Paulo onde Negativo Sujo foi remontado me foram suficientes para compreender e ilustrar a exposição nesta tese. 54

56 fotográfica: Uma exposição de fotografias não precisa ser, obrigatoriamente, constituída de grandes imagens, mas apenas de fotos, até mesmo banais, organizadas e sustentadas por alguma ideia muito bem definida (REVISTA IRIS, 1979b, p. 10). O texto é provavelmente de Moracy de Oliveira. Não há sua assinatura no comentário crítico, mas é ele, juntamente com José Nogueira, que figura como editor da revista. Moracy também atuou intensamente como crítico de fotografia do Jornal da Tarde, em São Paulo. No final de sua resenha, arrematou a análise sobre o trabalho de Rio Branco, associando-o à estética do cinema de Glauber: Enfim, Miguel Rio Branco pôs em prática, na fotografia, uma velha frase que marcou todo o cinema dos anos 60: uma câmera na mão e uma ideia na cabeça. A retirada do título da exposição se deveu a um suposto equívoco, segundo o próprio artista, na leitura de seu trabalho. Essa atitude de Rio Branco é mencionada em uma nota no jornal O Estado de São Paulo (1979), que citava a reação do artista a uma interpretação errada sobre seu trabalho a partir do termo negativo sujo, usado por Rio Branco para nomear a exposição. O título da nota foi bem sintomático: Exposição sem título. Esse fato, somado à decisão de retirada do texto de apresentação da exposição do MASP, pode ser considerado indício muito importante para avaliar em que medida o artista, mesmo fincando bases de seu trabalho em uma visão mais próxima à realidade social e ao interior do Brasil, estava exercitando um descolamento do modelo normativo da fotografia documental ou de reportagem. Modelo esse no qual o referente e sua condição factual estavam a serviço de uma construção linear da informação. A realidade, sob a ótica documental utilizada na imprensa, precisava ser ilustrada e narrada de acordo com a lógica dos fatos. Miguel Rio Branco estava se formando como fotógrafo nesse ambiente documental em um contexto político em que a observação do cotidiano e da paisagem humana o conduzia para um tipo de fotografia de abordagem direta, muito bem recebida pelos órgãos de comunicação e revistas especializadas. No entanto, os elementos que começam a surgir em sua fotografia ao longo da década de 1970, especialmente no modo de expor e pensar a estrutura dos conjuntos e séries de imagens, instauram componentes que se contrapõem à narração tradicional da reportagem ou mesmo às formas usuais de ensaio. O campo de visibilidade do trabalho do fotógrafo emergente naqueles últimos anos da década de 1970 eram as revistas e exposições de fotografia. Era a fotografia em 55

57 seu campo mais estrito que estava acolhendo o seu trabalho em uma dimensão cultural na qual a relação imagem e compromisso social adquiria uma importância especial. A seção em que Miguel Rio Branco é inserido na Revista Iris com o ensaio Carnaíba Garimpo, e em cujo texto o artista utiliza a expressão sabor bem Brasil, chamava-se Portfolio. Nela vê-se também publicado o ensaio Uma raga para o crepúsculo, de George Love, fotógrafo norte-americano radicado no Brasil, trabalhando para a revista Realidade, entre outras. No ensaio de Love, cenas e paisagens do interior do sul dos EUA. Trata-se de uma série fragmentada, fora de um rigor ilustrado de reportagem, apresentando texto do próprio fotógrafo e as imagens de uma América mais profunda e intimista: um fotógrafo percebendo as raízes de sua cultura a partir dos fragmentos não ortodoxos de um procedimento documental. Há uma intenção no conceito editorial da revista em alinhar George Love e Miguel Rio Branco, em uma estética do documento, em busca de uma identidade social e cultural: Love, no interior sulista norte-americano, e Rio Branco, no árido Nordeste brasileiro. A nota dissonante, ou pelo menos pretendida como tal pela revista, é apresentar dois fotógrafos que não rezam na cartilha da verdade documental, no sentido de que o trabalho possua uma totalidade na representação cultural de seus respectivos lugares. No texto de Rio Branco, ele esclarece, em 1979, que Isso (as imagens captadas em Carnaíba) foi em 1976; como não estive lá ultimamente, vou manter-me aos dados de então. E nomeia a série escolhida para revista de trailer. Nas páginas de George Love, vemos as imagens fotográficas acompanhadas de frases com pretensão poética ao longo do ensaio, na sua versão publicada. Independente de sua qualidade poética, o uso da palavra em um sentido mais abstrato indica um ruído na recepção mais literal dos trabalhos, apesar da contundência direta na abordagem da paisagem humana e cultural dos países em questão. Quando Rio Branco enfatiza que as imagens de Carnaíba refletem o que ele viu em 1976, e não necessariamente em 1979, ano de publicação do texto na revista, ele ressalta que a fotografia não pode ser vista como representativa absoluta daquele lugar no contexto de Portanto, as imagens não exercem, para ele, uma totalidade (costumeiramente exercida na imprensa), e sim algo vivido, olhado e captado naquele contexto em que esteve lá, três anos antes. Esses aspectos me parecem importantes na constituição silenciosa dos índices primeiros de um projeto poético. 56

58 1.1.3 Entre o Pelourinho Maciel em 1979 e o livro Nakta em 1996 Algumas considerações iniciais O período da década de 1970, pontuado pela experiência com o cinema, é marcado, entre os anos de 1978 e 1979, pela realização da exposição Negativo Sujo no Rio, no Parque Lage, e em São Paulo, no MASP. A realização de Negativo Sujo é uma espécie de marco divisório em sua trajetória. Ao propor, nessa exposição, o discurso fragmentário com a experiência documental da cena brasileira, instituído em uma montagem de caráter conceitual, Rio Branco inicia um trabalho de subversão dos limites da fotografia factual. Um trabalho, em certo sentido, sorrateiro, pois começa a corroer o estatuto de representação fotográfica de dentro do ambiente documental. Nesse mesmo período em que realiza Negativo Sujo e ganha visibilidade na imprensa e crítica especializadas, já morando na Bahia, encontra a comunidade do Maciel, distrito ocupado pela prostituição no bairro do Pelourinho, em Salvador. Nesse momento, especialmente no ano de 1979, inicia-se um período rico na trajetória de formação do artista. A experiência no Maciel consolida sua visão de mundo em relação ao uso da fotografia e começa a instaurar no seu procedimento uma poética que marcará a sua obra a partir de então. Essa vivência adensa uma ruptura que vinha sendo ensaiada nos anos anteriores e o coloca em um tipo de mergulho, de experiência de mundo vivido, que irá, em sua fotografia, conectar intensamente percepção, produção de imagem e fruição poética. Foi necessário para Rio Branco perceber a geografia urbana e estar dentro da cena social da comunidade do Maciel naquele ano de 1979, em Salvador, para realizar o seu trabalho. O fotógrafo viveu, durante seis meses, o cotidiano marginal daquele lugar, cujo espaço físico e a ambiência emocional lhe forneceram régua e compasso para o desenvolvimento de sua poética. O artista passou a dedicar-se diariamente ao Maciel. Como habitante de Salvador, começou a frequentar o bairro, principalmente as tardes; embarcou em uma experiência de submersão na vida do lugar e, aderindo mais à cor, empreendeu um compromisso mais vertical no assunto captado, rompendo mais visivelmente com o tema e a ilustração. 57

59 A partir desse momento, Rio Branco assume um tipo de fotografia agora engendrada por um contato sensual com o mundo e movida por uma pulsão que torna seu trabalho peculiar na investigação de uma fenomenologia do fotográfico. Vida e fotografia se fundem no Maciel e resultam em imagens que irão constituir a essência dos seguintes trabalhos: a exposição Nada Levarei quando Morrer Aqueles que mim Deve Cobrarei no Inferno (sic), em 1980; o filme homônimo média-metragem lançado em 1981 e o livro Dulce Sudor Amargo, publicado no México, em Proponho considerar que os trabalhos gerados a partir da experiência no Maciel marcarão conceitualmente os livros Nakta, de 1994, e Silent Book, de 1996, que, por sua vez, definirão a vontade poética do artista pelo suporte livro. Seria a partir de Nakta e Silent Book que Rio Branco adensaria a experiência do livro como modo de operação sígnica das imagens fotográficas, ora aproximando-se do confronto com o documento na captação do assunto, ora afastando-se num movimento mais vertiginoso e sensorial com a fotografia. Em Nakta, observa-se o salto poético que foi dado pela junção entre documento, cor e narrativa. O conceito de montagem operado no livro trouxe de volta a experiência pictórica anterior na formação do artista na década de 1960, acrescida pela lida com as imagens como fotógrafo de cinema em suas mais variadas funções (câmera, diretor e fotógrafo still), ao longo da década de Esses aspectos que redefiniram seu modo de percepção do mundo implantaram a construção conceitual que começou a sedimentar seu trabalho. No entanto, pouco mais de uma década antes de Nakta, envolvido com a comunidade do Maciel, Rio Branco realizava os primeiros resultados mais contundentes da experiência dos anos 1970: o filme Nada Levarei quando Morrer Aqueles que mim Deve Cobrarei no Inferno, de 1981, e o livro Dulce Sudor Amargo, de 1985, também objetos desta pesquisa. Somados aos livros Nakta e Silent Book, o filme e o livro do Maciel compõem um bloco que nos parece fundamental para entender o projeto poético de Rio Branco. Um dos desafios deste estudo é verificar quais as dinâmicas que se estabelecem entre as obras e como elas operam em diversos níveis de intensidade e interconexão. O pintor e o cineasta parecem ter despertado na percepção do artista a ideia de mobilidade com a fotografia, a despeito de sua condição estática. Com isso, passou a fragmentar a unidade pretendida pela utopia documental, imprimindo em seu trabalho 58

60 uma dimensão artística e de ficção para a experiência vivida no mundo social. A descoberta dessa abordagem iria definir a poética de Rio Branco a partir de então, aspecto que indica ter no livro Nakta o princípio de uma consolidação. Tais hipóteses serão aprofundadas no percurso da pesquisa na medida em que a investigação chegue à análise sobre a relação poética e de processo entre as obras estudadas. Essas ideias não descartam o papel fundador do primeiro livro, Dulce Sudor Amargo, e irão evidenciar a intensa mobilidade entre as imagens de diversos períodos de produção do artista. O livro Nakta, enquanto elemento de transição, funciona como um índice do ponto de tensão maior na curva panorâmica da trajetória do artista. Inserir a leitura de algumas de suas passagens narrativas neste primeiro capítulo nos permite localizar o mirante no meio do percurso histórico pretendido na pesquisa pois nos possibilita remeter a análise tanto para trás (o filme, a experiência com o Maciel, a exposição Negativo Sujo, a experiência documental e de cinema dos anos 1970) como também para frente : vislumbrar o livro Silent Book como rompimento mais incisivo com o aspecto factual. Nakta figura como um espaço em que o cinema de Rio Branco, na materialidade do livro, começa a acontecer de modo mais fragmentário, recolocando questões muito caras à fotografia e ao signo fotográfico frente às manifestações do objeto. Figure 12: Fotografias 28 e 29 do livro Nakta, Várias passagens visuais e imagens, em sua particularidade, adensam a relação entre objeto e imagem. Rio Branco constrói uma escritura das formas a partir da ambiguidade de um mundo que reconhecemos, que nos provoca em constante sobressalto, mas que nos atrai na experiência da sensação de estranhamento. A imagem 59

61 do homem que nos olha de modo tão penetrante e enigmático (Figura 12) nos evoca tal estranhamento. Vemos uma cara de bicho e, ao mesmo tempo, uma face humana tão real em sua expressão sombria e frágil. A imagem sofreu pequena interferência. Sutilmente pintadas à mão, as poucas zonas de luz a fronte do homem e o tom amarelo da camisa realçam o escurecimento quase total da imagem. Sob a luz delicada, as linhas franzidas da testa são pesadas, mas o olhar parece solitário. A ambiguidade gestada na imagem única se desdobra no diálogo com a imagem do cão (Figura 12). As zonas intermediárias entre imagem e coisa se multiplicam na cadeia narrativa. A imagem da página anterior do cachorro deitado na calçada, associada ao olhar do homem, enfatiza a condição de bicho dos seres aqui captados. Homem e bicho na mesma linha de tensão. A dimensão icônica e indicial são intercambiáveis no drama narrativo. O cachorro fotografado do ponto de vista aéreo e frontal constitui-se em uma imagem direta, objetiva em sua apreensão documental. Vemos o pelo escasso, sujo... O cão maltratado e doente resiste em seu repouso forçado. Associada ao olhar do homem antes mencionado, a imagem do bicho é parte de uma escrita em camadas. Homem e bicho são vistos aqui por Rio Branco convivendo no mesmo espaço, habitando o mesmo lugar, existindo com a mesma intensidade em sua maravilha e abandono. Há desamparo e força nesse diálogo; uma exclusão quase absoluta desses seres captados na imagem e que ainda assim revelam estados de sobrevivência. Figura 13: Fotografias 27 e 28 do livro Nakta, Voltando à página anterior, confrontamo-nos com uma imagem que denota o domínio do homem sobre o bicho. O acúmulo de cabeças cortadas de ovelhas (Figura 13) descreve concretamente o sistema de produção de alimentos, mas escapa no 60

62 diálogo com as outras imagens para a dimensão artística não só em razão do aspecto cromático dominado pelo tom de sangue, mas também pela relação que Rio Branco apresenta entre vida e morte, dor e sofrimento, força e resistência. Experimentamos, entre um procedimento documental e o exercício expressivo das imagens, algo que se interpõe entre o mundo e sua imagem. O artista saca o componente vulnerável do mundo quando põe em confronto coisas matéricas e experiências sensoriais. O confronto é a construção que põe em movimento a significação dos objetos como imagem e que, por sua vez, estará vulnerável pela experiência fenomênica do artista; experiência vivida e devolvida ao espectador em sua potência imagética ampliada pela experimentação narrativa. Veremos adiante, de modo mais extenso e detido, no Capítulo Três, as formas de narração e articulação entre imagens propostas no livro Nakta. No entanto, a necessidade de introduzi-lo aqui surge também em função da vulnerabilidade em que o documento fotográfico é colocado na estrutura do livro (e, portanto, na poética do artista), o que nos leva a algumas considerações necessárias sobre tal signo. André Rouillé (2009, p. 136) chamará de acontecimentos incorporais os elementos que atuam entre o objeto e a representação. Em reação à ideia de que a imagem fotográfica não se resolve no índice, não se esgota em seu sentido maior na coisa fotografada, ele considera que, na captação e construção de uma imagem do mundo real, há uma série de possibilidades a que ele chama de infinitas mediações que se inserem entre as coisas e as imagens. Para ele, a presença física do objeto é obviamente necessária na constituição da imagem fotográfica, porém isso não permite, em absoluto, dissolver a imagem na coisa, nem limitá-la à função passiva de ser a impressão de um referente ativo (que adere), como defendeu Barthes. Há nessas considerações de Rouillé a passagem da fotografia-documento para a fotografia-expressão, na qual o artista, ao lidar com seu referente, vai além das coisas que capta, promovendo o que chama de acontecimentos incorporais. Esse fotógrafo admite o índice em sua força concreta, mas segue além da simples designação e exprime acontecimentos: A passagem de um mundo de substâncias, de coisas e de corpos, para um mundo de acontecimentos, de incorporais. Nessa perspectiva, é considerada a ruptura do paradigma moderno da fotografia documental já que a fotografia-expressão categoria pensada por Rouillé exprime o acontecimento, mas não o representa. 61

63 Podemos pensar a poética de Miguel Rio Branco próxima a essa atitude expressiva descolada do domínio do objeto. Trata-se de um artista que imprime ao objeto uma nova condição, mescla de sua presença física no mundo e uma outra natureza revelada na imagem. No entanto, a prática narrativa proposta por Rio Branco não descarta a potência indicial do objeto fotografado e parece reter poeticamente, em parte, o drama simbólico presente no objeto factual no cotidiano da vida. Nesse sentido, a relação indicial que Rio Branco mantém com o mundo se distancia da visão separatista de Rouillé. Portanto, voltemos, sim, ao referente ativo que adere de Roland Barthes a que Rouillé se opôs. A discussão em torno do referente na fotografia e da dimensão indicial do signo pode ser retomado não por uma atitude dualista que parte da crítica acaba por aplicar quando separa documento e expressão. É importante a distinção que Rouillé propõe como modo operativo na compreensão geral da fotografia, seja como vontade artística, seja como signo cultural na história da arte. Porém, será justamente a vontade artística instauradora de poéticas, cujos casos específicos revelarão que o índice não atua isolado, em uma espécie de tautologia estéril, como querem alguns teóricos. Índice, ícone e símbolo são instâncias móveis e sobrepostas e funcionam dinamicamente, segundo Peirce. Retomaremos com mais vagar a discussão de Rouillé que, em dado momento de sua proposição, reage frontalmente às percepções de Barthes e às concepções peirceanas sobre o índice; percepções que estimulam uma leitura mais aberta sobre a condição do signo fotográfico. A leitura de Rouillé nos será fecunda justamente por sua fragilidade. Ao tentar cercear as capacidades do signo indicial, observando-o separadamente de suas cargas icônicas e simbólicas (aspectos contrários à filosofia peirceana), Rouillé retoma a discussão do documento fotográfico forjando novas categorias, como se a fotografia moderna/documental fosse inteiramente dominada por uma visão estanque do índice. Assim, seguindo seu pensamento, teríamos ainda uma radical separação, na qual uma perspectiva evolucionista marcaria uma divisão entre o moderno (documento) e o contemporâneo (expressão). A análise da gestação histórica de um gênero documental dentro do estatuto moderno da arte pode suscitar questões importantes relativas ao desenvolvimento da expressão fotográfica e as poéticas por ela instauradas na produção dos artistas da imagem, como é o caso do artista pesquisado. 62

64 Miguel Rio Branco subverte o documento, mas não rompe com ele. Antes o traz para sua experiência com o mundo, mas não o isola do mundo na idealização puramente formal. Devolve ao público o documento do mundo em imagem estranha, pois configurada em fragmento narrativo. Nesse sentido, estaremos mais próximos da distensão do tempo de cada objeto captado, reconstruído como imagem. A duração desses tempos, a junção das imagens e o ritmo desencadeado pelas associações de assuntos e objetos do mundo concreto tornam o universo do artista um campo de problematização do ideário documental, aspectos que podem enriquecer tanto a compreensão sobre sua poética como o estatuto cada vez mais variável da produção fotográfica na arte. 1.2 FOTOGRAFIA DOCUMENTAL MODOS DE USAR E PENSAR Na parte inicial deste capítulo, repeti algumas vezes a palavra documental para dar conta de tal uso, estética e modo de representação por parte do artista pesquisado. Utilizei expressões como aspecto documental, abordagem documental, procedimento documental, contundência documental, utopia documental, ideário documental etc., no sentido de ampliar a dimensão sígnica sobre o referido adjetivo e compreender melhor o alcance que assume no trabalho de Miguel Rio Branco. A complexidade artística de sua obra se deve menos pelo abandono da fotografia documental e mais pelo mergulho em suas potencialidades, que estão na origem do termo e portanto, nas origens da fotografia. O caráter de documento atribuído à fotografia existe desde a sua invenção e até mesmo antes de seu surgimento. A noção de documento e de registro é um problema construído antes, durante e depois da fotografia. Trata-se de uma questão que atravessa séculos e se mantém potencialmente rica hoje na produção de imagem. Dessa forma, considero, no contexto dessa pesquisa, a importância em conhecer mais de perto o estatuto do documento, pensá-lo historicamente e tomá-lo também como força presente na arte fotográfica produzida no contemporâneo. Então, o que entendemos de fato quando utilizamos, em nossa época, a palavra documental? O que caracterizam os 63

65 elementos que constituem um determinado trabalho quando é denominado de documental? O estudo que Olivier Lugon realiza sobre o caráter documental da fotografia traz de volta as várias camadas potenciais de significação da imagem fotográfica. Mesmo focando um período pontual da história, entre os anos 1920 e a década de 1940, sua análise nos revela a complexidade ainda viva do termo. Lugon concentra-se em aspectos da fotografia americana em relação à fotografia alemã, extraindo daquela história cultural um manancial de abordagens e estéticas que ora dialogam, ora contrapõem-se, consolidando um campo tramado pela convergência de atitudes das mais diversas. Nessa perspectiva, observaremos que o termo abriga procedimentos muito distintos e permanece ainda desafiador de polaridades, contrariando aqueles que possuem a leitura estável, que parece ter formatado a definição de um gênero Contraponto, diálogo e convergências O termo documental já transformado em adjetivo surgiu, pela primeira vez, relacionado ao cinema. Portanto, eram utilizadas expressões como cena documental, filme documental e documental. Essas variações e usos foram criados em um período que abrange os anos de 1906 e 1926, e possuem uma conexão com a estética do cinema, porém já abrigavam um contraponto em seu interior: surgem com uma dimensão criativa e expressiva, mas ao mesmo tempo antiartística. Lugon indica que o termo nasceu de um artigo crítico escrito por John Grierson sobre o filme Moana, dirigido por Robert Flaherty em Flaherty viveu nas ilhas Samoa durante um ano, de 1923 a 1924, e saiu de lá com seu filme captado e posteriormente finalizado em Moana se passa em uma comunidade que habita uma ilha do Pacífico e relata o seu cotidiano: a caça, a pesca e os rituais pelos quais os adolescentes passam a ser adultos. Flaherty filmou com objetividade realista as atividades corriqueiras e especiais da tribo e construiu um filme cujos nativos reais são os protagonistas. 64

66 As ideias que norteiam o filme documental são o resultado das atitudes de contraponto ao cinema de entretenimento, de caráter ficcional. Há um interesse maior pelas questões sociais, uma intenção política na representação da realidade. No cinema, constitui-se uma vertente conceitual nos estudos sobre linguagem que irá buscar na realidade, no fluxo da vida, a matéria essencial da estética fílmica. Essa perspectiva artística e realista do cinema será aplicada à fotografia. O gênero Docufiction será usado por Robert Flaherty, que produzirá também outros filmes importantes, cujo tratamento realista se valerá de um naturalismo ensaiado na narração visual dos acontecimentos. O que se pode perceber na convergência entre a atitude realista na captação dos eventos e o tratamento narrativo nessas obras é que há um ruído que constitui a estética do cinema produzido naquele contexto. Busca-se para o cinema uma dimensão expressiva; no entanto, trata-se, ao mesmo tempo, de uma posição antiartística. Beaumont Newhall (2006, p. 238) destaca a posição de Paul Rotha, diretor e produtor de cinema, que no livro Documentary Film (1936), de John Grierson, afirma que A beleza é um dos maiores perigos para o documental. Grierson representava, naquele período, um grupo de cineastas britânicos envolvidos com um novo cinema dedicado aos assuntos da realidade social. Sua posição antiartística revelava alguns paradoxos importantes para a própria concepção do que significava a palavra documental. Do mesmo modo que mencionava o cinema como instrumento de registro, de interpretação dos fatos e dotado de uma capacidade de influência pública, ansiava que a sociedade pudesse, com a experiência fílmica, desfrutar da imaginação. O cinema para Grierson prometía el poder de hacer dramas teatrales con nuestras vidas cotidianas y hacer poesía con nuestros problemas. Havia ali um embate conceitual que enriquecia a discussão e tornava imprecisa a definição sobre o filme documental, mesmo defendendo que este tipo de cinema foi desde o começo um movimento antiestético: O que confunde a história é que sempre tivemos o bom senso de utilizar os estetas. Fizemos isso porque gostávamos e necessitávamos deles. Foi paradoxalmente com a ajuda estética de primeira categoría que nos proporcionaram pessoas como Robert Joseph Flaherty e Alberto Cavalcanti que dominamos as técnicas necessárias para nosso propósito (GRIERSON apud NEWHALL, 2006, p. 238) No original: Lo que confunde la historia es que siempre tuvimos el buen sentido de utilizar a los estetas. Lo hicimos porque ellos nos gustaban y porque los necesitábamos. Fue paradójicamente con la 65

67 A posição de recusa à arte era clara no propósito dos cineastas que abraçavam a nova causa documental, porém o desejo por uma expressão, por uma expressividade própria dos elementos constitutivos de um conceito documental levava-os para um campo associado ao artístico. É o caráter de expressão associado ao artístico que começa a dar consistência à ideia de documento, documentação e documental. Observamos que uma palavra vai sendo superada pela outra, ou melhor, que o significado da palavra vai ganhando intensidades distintas no que se refere à sua função semântica. Dessa forma, o significado de documento adentra no mundo da arte, ainda que de modo instável e indefinido. O termo segue conquistando uma autonomia na medida em que começa a ser utilizado no campo da arte como forma documental. A fotografia (re)começa a atuar nesse limite e absorve o termo na busca de uma autonomia que será apoiada em sua natureza constitutiva de documento. Os movimentos artísticos alemães Nova visão (Moholy-Nagy, Umbo, Franz Roh) e Nova objetividade (Albert Renger-Patzsch e o livro O Mundo É Bonito,1928) e a Straight Photography americana (Paul Strand, Walker Evans, Dorothea Lange, Ben Sham, Russel Lee, Arthur Rothstein) são campos históricos potenciais para Olivier Lugon analisar as várias significações do termo documental e as distintas manifestações do signo fotográfico em sua relação com a realidade no campo da arte. Apesar de pertencerem a um período da história no qual a fotografia é identificada como sendo moderna, observa-se, na análise de Lugon, as muitas diferenças entre esses movimentos que contribuem para o debate sobre a produção fotográfica além da delimitação dos movimentos modernos. Naquele período, o mundo experimentava uma situação nova para a fotografia. Ela seguia pretendendo ser arte, porém usufruía (alimentava-se) de sua proximidade especial com a realidade. O novo fôlego expressivo, entre os anos 1920 e 1940, marcava a continuidade do curso rumo à arte após uma longa fase pictorialista, não menos complexa, que atravessou a barreira entre dois séculos (XIX e XX) e marcou as mudanças efetivadas pelas experiências das artes plásticas. Lugon ressalta que, no campo da fotografia, antes do fim dos anos 1920, utilizava-se muito mais a palavra documento e que, até o final daquela década, ocorreu ayuda estética de primera categoría que nos proporcionaron personas como Robert Joseph Flaherty y Alberto Cavalcanti que dominamos las técnicas necesarias para nuestro propósito. 66

68 uma mudança em seu uso para documental, ou seja, deixou de ser substantivo para se transformar em adjetivo. A partir de então, não será válido unicamente o caráter de documento (registro, prova, dado objetivo) ou de documentação (conjunto de dados concretos). Será documental, pois ligado à forma, expressão, linguagem. Determinado trabalho será caracterizado como tendo forma documental, expressão documental, estilo documental. Essas mudanças de significado recolocadas pela análise de Lugon levam-nos a considerar que há certa instabilidade proveniente de um dado concreto da vida a apreensão objetiva da realidade e que irá se transformar em linguagem, estética, arte. Essa dualidade, que já estava presente no cinema como sentido artístico, entrará na fotografia. Os livros de Albert Renger-patzsch e Karl Blossfeldt (Figura 14), por exemplo, marcaram um período limite em que o termo documento ainda era bastante usado, mesmo considerando-se o valor de documento aliado ao valor artístico na recepção de tais trabalhos. A série de objetos extraídos de um cotidiano industrial reunidos em O Mundo É Bonito (Die welt ist schön, 1928), de Renger-patzsch, e a publicação Formas da Arte na Natureza (Urformen der Kunst, 1929), uma enorme série de plantas fotografadas por Karl Blossfeldt, igualmente em estúdio, representam a força da dualidade que marca o período do limite semântico entre documento e documental (Figura 15). Objetos fabricados e objetos orgânicos, captados de modo fragmentado, frontal e com proximidade incomum, despertaram a atenção sobre natureza e artifício na maneira objetiva que a fotografia podia oferecer. Com isso, a palavra documento era colocada em uma situação de instabilidade, fadada ao campo da percepção estética. Figura 14: Capas de edições dos livros Formas da Arte na Natureza (Urformen der Kunst, 1929), de Karl Blossfeldt e O Mundo é Bonito (Die Welt ist Schön, 1928) de Renger- patzsch. Fonte: Capa à esquerda: Artnet. Capa à direita: Christopher Wahren Fine Photographs. 67

69 Figura 15: Trecho do livro Formas da Arte na Natureza (Urformen der Kunst, 1929), de Karl Blossfeldt. Fonte: MOMA É por essa razão que, para Lugon, o uso do termo não se mostra simplificador. Desse modo, considero importante pensar as transposições operadas pelos significados de documento, documentação e documental, pois nos ajuda a compreender que é necessário refletir amplamente sobre as ideias de documental na produção contemporânea e especialmente na produção de imagens documentais na arte realizada hoje. O que nos mostra a análise de Lugon (2001, p. 17) é que essa complexidade do documento existe desde a origem do termo e que a instabilidade do significado histórico está presente nas reflexões mais recentes sobre a fotografia na arte: Enquanto que, em 1928, na revista Das Kunstblatt, a fotografia como documento, é ainda colocada em oposição à fotografia como arte, um ano mais tarde a fotografia documental é, ao contrário, integrada à foto artística, na qual constituirá uma das duas grandes categorias. Enfim, ao longo dos anos 30, este adjetivo vai se substantivar para se tornar o documental, elevando definitivamente esta qualidade ao patamar de gênero No original: Alors qu en 1928, dans la revue Das Kunstblatt, la photographie comme document est encore opposée à la photographie comme art, un ans plus tard la photographie documentaire est au contraire intregrée à la photo artistique, dont elle constituerait l une des deux grandes categories. Enfin, au cours des anées trente, cet adjectif va se substantiver pour devenir le documentaire, elévant définitivement cette au rang de genre. 68

70 Ainda que compartilhando da mesma raiz, seriam duas nomeações muito diferentes, pois, para ele, documento é um objeto que serve para documentar, enquanto que documental torna-se um gênero que às vezes é utilizado para este fim (LUGON, 2001, p. 17). A diferença aparece bem marcada na língua alemã, quando ocorre a passagem de urkunde para dokument. Enquanto que o primeiro termo é caracterizado como restritivo, o segundo abrange uma generalidade, na qual a ideia de prova ou objeto de convicção se dilui. Ao consultar a tradução entre o alemão e o português, observei que a distinção apontada por Lugon também aparece. Urkunde é mais utilizado para designar documento oficial, certidão, escritura cartorária, certificado, entre outros. Já Dokument é usado mais em um sentido de conjunto, o que nos interessa especialmente aqui. Na tradução para o português, observamos a palavra alemã em uma relação de sinonímia com arquivo, resumo, texto, livro, dossiê. Portanto, está sempre numa relação de conjunto de dados que assumem uma generalidade de informação, diversidade de materiais a serem lidos e interpretados, e que, para isso, precisam de um tempo para serem apreendidos em sua generalidade. A ampliação do significado a partir da mudança de substantivo para adjetivo ganhará outros contornos e conceituações na medida em que o termo atravessará a década de 1930, assim como as poéticas fotográficas de diversos artistas irão se construir, ou mesmo serem revisitadas, tanto por artistas quanto por críticos e historiadores. Lincoln Kirstein, conhecido como propagador do gênero nos EUA e historiador de arte, recusa a utilização do termo documentação para o uso verdadeiramente artístico, mas defende e louva a transparência, limpidez simples da forma documental (LUGON, 2001, p. 77). Tal texto foi publicado no catálogo de uma exposição que ele organizou em Harvard, em 1930, em que o fio condutor apresentava certa ruptura com o universo poético de Alfred Stieglitz e Edward Steichen, identificados pela conquista de uma fotografia de autor ou artística, de ideal simbolista. A limpidez e a transparência da forma documental valorizadas por Kirstein refletiam a adesão da nova geração americana às imagens frontais, aéreas e limpas da escola alemã em suas diversas vertentes em torno da fotografia como os movimentos Nova visão e Nova objetividade. Havia também um interesse em trabalhos europeus precedentes a esse período, como os de August Sander e Eugène Atget, como afirma 69

71 Kirstein em sua defesa pela forma documental: Através de um meio documental, como o de Atget, ele (o meio) pode ter um uso bem mais vasto que a documentação. 23 Naquele mesmo contexto, em Harvard, está presente, já com seus 27 anos de idade, a figura de Walker Evans, amigo de Kirstein. Evans tem acesso à fotografia europeia e um interesse especial em Sander. Na época, escreve o artigo The reappearance of photography na revista Hound & Horn, publicação literária e de arte editada por Kirstein, no qual revela sua admiração pela série Faces do Tempo (Antlitz der Zeit), de August Sander. Para Evans, esse trabalho é um dos futuros da fotografia anunciada por Atget, 24 pois se tratava de um recorte fotográfico clínico da sociedade e por isso deveria ser tomado como exemplo de trabalho de descrição social. A adesão à fotografia mais descritiva, motivada por um olhar dirigido à paisagem humana e social, indicia, naquela exposição organizada por Kirstein, uma geração americana interessada na vanguarda alemã, contudo mais alinhada ao legado de uma estética sóbria, presente em Sander e Atget. Olivier Lugon destaca que a mostra reunia as vertentes alemãs, reservava um grande espaço para Eugène Atget, em comparação ao lugar ocupado por Alfred Stieglitz, e apresentava os nomes da nova geração norte-americana afinada com a estética documental, cada um sendo representado com dez imagens: Berenice Abott, Ralph Steiner e Walker Evans. O interesse na análise histórica de Lugon é que se abre uma perspectiva maior sobre a conceituação do documental. Ele percebe que a troca complexa de influências entre a vanguarda alemã dos anos 1920 e a então fotografia emergente americana, que se desenvolve ao longo dos anos de 1930 e 1940, imprime à linguagem fotográfica variantes que irão caracterizar o chamado gênero documental como postura antiartística. Consideramos aqui uma questão que parece muito viva não só para a fotografia que se produz atualmente, como também para o próprio debate sobre a imagem documental na arte contemporânea. Observo na recusa de Kirstein ao mundo simbolista e à ideia de autoria valores idealizados por Stieglitz, uma atitude que tratava o meio fotográfico independente de sua inserção cronológica na linha do tempo histórico da arte, no seu sentido linear. Esse aspecto nos dá uma dimensão anacrônica importante para a análise dos referidos episódios da história da fotografia. Tais perspectivas 23 LUGON, loc. cit. No original: À travers un médium documentaire comme celui-ci d Atget, (le médium) peut avoir un usage bien plus vaste que la documentation. 24 LUGON, op. cit., p. 74. No original: L un des futurs de la photografphie prédits par Atget. 70

72 refletem, a meu ver, tanto um retorno à Atget como também um prenúncio antiformalista que se desencadeará nos anos 1960, com a Arte Conceitual Ações do documento e o sentido da imagem na experiência fotográfica: perspectivas de Allan Sekula O campo documental é um território de conceituações instáveis, dissonâncias estéticas e repleto das mais diversas posições (anti) artísticas. Allan Sekula ( ) enfrentou, ao longo de sua trajetória como artista e teórico, as instabilidades conceituais que caracterizam a dimensão documental e sua ocupação na arte fotográfica. Crítico ferrenho de uma fotografia documental apoiada na visão positivista, atitude construída por sua enfática posição marxista, Sekula se coloca radicalmente contra todo o tipo de fotografia que sucumbe a um subjetivismo interessado na conquista da autonomia plástica para alcançar o patamar das Belas Artes. Sua crítica atinge certas conformações documentais que a fotografia adquiriu ao longo da primeira metade do século XX, quando o meio se construiu por um discurso objetivo com a realidade, aproximando-se do cotidiano. Segundo a crítica de Sekula, o que de fato ocorreu foi que tal discurso enfim pretendia em seus arroubos imaginários ou formais ser aceito pelo ideal formalista da arte moderna. Por outro lado, Sekula assume e defende uma postura documental não atrelada a uma visão simplificadora da realidade, cujo desejo de autoria sobrepõe-se às relações sociais envolvidas na representação em um trabalho fotográfico. Sua crítica ao projeto artístico de Alfred Stieglitz é reveladora de uma postura precisa como teórico e sinaliza uma percepção singular e abrangente como um artista do documento. Allan Sekula publica, em 1975, On The Invention Of Photography Meaning, onde contrapõe o universo da concepção simbolista de Stieglitz à experiência social na ação do documento em Lewis Hine. O texto define sua opção pela condição semiótica da fotografia ao construir as bases do discurso da imagem. Para Sekula (1988, p. 453), a ideologia produz a imagem fotográfica como discurso em um campo de debate onde ocorrem os intercâmbios de informação. Trata-se de um sistema de 71

73 relações entre partes engajadas numa atividade comunicativa, cuja noção de discurso é uma noção de limites. Portanto, sua ideia de intercâmbio de informações que ocorre no sistema discursivo gera mensagens com interesse específico. Ele declara o caráter tendencioso da comunicação, cujas mensagens são manifestações de interesse: Nenhum modelo crítico pode ignorar o fato de que os interesses competem no mundo real. 25 Sekula ressalta que, numa sociedade industrial avançada, a grande maioria de mensagens direcionadas ao domínio público é produzida em nome de uma autoridade anônima capaz de excluir qualquer coisa, menos a afirmação. Importante refletir que a ideia de imparcialidade que conhecemos é construída sobre eixo indicado por Sekula. Ele entende esse debate como algo que engaja a fotografia em um campo discursivo onde ocorrem as trocas:...a fotografia como uma moeda de troca tanto no hermético domínio da arte erudita quanto na impressa popular (SEKULA, 1981, p. 453). 26 Os grandes interesses políticos, seus efeitos danosos à vida cotidiana e o estatuto ideológico da narrativa visual do documentário são, entre outras questões, o alvo principal de ataque e ao mesmo tempo a fonte das conceituações de Allan Sekula. 27 Ao comparar os significados possíveis na leitura das imagens Steerage (Stieglitz, 1907) e Immigrants Going down Gangplanks (Hine, 1905), Sekula faz uma longa análise sobre os preceitos da arte moderna e as funções sintáticas da fotografia naquele momento. Sua crítica se detém sobre a tentativa da fotografia apoiar-se no significado da forma como sinônimo de um alcance espiritual e estético e evitar a relação com suas próprias contingências. O trabalho fotográfico estaria atado a um tipo experiência na qual o contexto das informações extraquadro, ou seja, os dados que estão fora da imagem fotográfica devem ser considerados. As relações sociais, culturais e políticas estão inevitavelmente enredadas no processo de trabalho, tendo o meio fotográfico como um poderoso canal de construção de um discurso. Trata-se, no contexto daquela primeira década do século XX, do embate entre uma arte autônoma e a expressão fotográfica em franco desenvolvimento contaminada pelo mundo real. A análise de Sekula é importante não só por colocar a 25 No original: No critical model can ignore the fact that interests contend in the real world. 26 No original:...the photograph as a token of exchange both in the hermetic domain of high art and in the popular press. 27 Esses componentes material e ideológico que constituem seu projeto artístico com os quais construiu Aerospace Folktales, em 1973, período inicial de sua carreira, vão se estender até os trabalhos dos anos 1990 e 2000 sobre a navegação marítima, entre eles Fish Stories, por exemplo. 72

74 fotografia no centro do debate artístico moderno em um contexto histórico. Sua leitura sobre o discurso do meio é ainda eficaz para a investigação sobre o gênero documental na reflexão contemporânea. O campo histórico em que se situam as fotografias de Stieglitz e de Lewis Hine é, em certa medida, terreno potencial para compreender os recortes operados na exposição organizada por Lincoln Kirstein, com a presença de seu amigo Walker Evans, em Harvard. As escolhas e recusas presentes naquela montagem revelavam as transformações conceituais e a configuração de uma outra abordagem documental na produção americana a partir dos anos 1930 e O entusiasmo de Evans pelo trabalho de Sander e a defesa de Kirstein por uma fotografia não-artística encontram eco nas análises de Sekula em torno das diferenças de intenção autoral entre Stieglitz e Hine e nas possibilidades de leitura que podemos fazer de suas imagens de imigrantes. Figura 16: The Steerage, Alfred Stieglitz, Fonte: The J. Paul Getty Museum. Em The Steerage, Stieglitz olha de cima (do ponto de vista de quem está no conforto da primeira classe) o movimento, o burburinho, a confusão de uma população amontoada na terceira classe de um navio (Figura 16). Em relato sobre o processo de construção da imagem, Stieglitz anseia fazer parte daquele mundo. Não como ator social e integrante daquela classe, e sim como fruidor das formas que percebe ali, nos 73

75 gestos e chapéus que se movem como um espetáculo para o deleite espiritual do seu imaginário. A fruição das formas seria, na realização da imagem, um tipo de redenção. Eu desejava intensamente escapar dos meus arredores e me juntar àquelas pessoas Eu vi formas relacionadas umas às outras. Eu vi uma imagem de formas, e nela, o sentimento que eu tinha sobre a vida. E eu estava me decidindo. Será que eu deveria deixar de lado essa visão aparentemente nova que me prendia pessoas. As pessoas comuns, o sentimento do navio e do mar e do céu, e o sentimento de libertação, de que eu estava longe de uma multidão chamada rica Rembrandt me veio na memória e eu me perguntei se ele teria se sentido como eu estava me sentindo (SEKULA, 1981, p ). 28 Atento à imagem construída por Stieglitz e ao relato do seu autor, Sekula tece sua crítica ao caráter afetivo extraído da percepção de uma imagem documental para suprir os desejos e necessidades de uma arte simbolista. Para Sekula, esse caráter afetivo atribuído à experiência da imagem fotográfica está na origem da invenção do daguerreótipo, na qual o culto ao objeto único (mágico) mesclava-se à relação com a imagem especular e real. Esses valores persistiram na passagem do século XIX para o XX, quando, no contexto da revista Camera Work, Stieglitz a configurou como um objeto editorial precioso, no uso de materiais, nos processos de reprodução, no refinamento dos papéis utilizados para a fixação da impressão das imagens. Stieglitz foi o chefe máximo da Camera Work e fez da revista um trabalho material caprichoso e aliado ao discurso sofisticado de inclusão da fotografia no seio da arte. O esforço discursivo da revista incluía um repertório fabuloso de imagens dos fotógrafos-artistas e textos, artigos sobre as aspirações da arte e de uma nova fotografia. A postura artística de Stieglitz e da revista evitava que a fotografia fosse tomada inteiramente por sua contingência realista e assim ser interpretada unicamente por seu aspecto mundano e factual. Sekula faz uma perspicaz avaliação a partir de Steerage, quando relaciona como partes do mesmo discurso o ideal político do projeto editorial (pensado para a arte moderna) e o ideal poético do artista (pensado para sua inclusão na 28 No original: I longed to escape from my surroundings and join these people I saw shapes related to each other. I saw a picture of shapes and underlying that of the feeling I had about life. And as I was deciding. Should I try to put down this seemingly new vision that held me people. The common people, the feeling of ship and ocean and sky and the feeling of release that I was away from the mob called rich Rembrandt came into my mind and I wondered would he have felt as I was feeling 74

76 arte moderna). Em Steerage, o mundo estaria ali captado para uma experiência espiritual com as formas. A cena vista/vivida seria construída como imagem, na fotografia, como o resultado e o exercício do inconsciente. Buscava-se a abstração como sentimento diante de tal realidade. Esse valor poderia conferir à fotografia sua dignidade estética que, na visão de Sekula (1981, p. 460, grifos meus), apoiava-se no fetiche de dois tipos distintos de material: mas o espiritualismo representa somente um polo do discurso do século XIX. Fotografias alcançam um status semântico tanto como objetos de fetiche quanto documentos. A fotografia é imaginada para possuir, dependendo de seu contexto, um poder que é principalmente afetivo ou um poder que é principalmente informativo. Ambos poderes residem no valor mítico da verdade da fotografia.. Mas esse folclore distingue inconscientemente duas verdades separadas: a verdade da magia e a verdade da ciência. 29 A visão enlevada de Stieglitz do espetáculo fenomenológico da terceira classe, seu maravilhamento diante das formas que se desprendiam daquela cena real, seguindo a lógica de Sekula, só foram possíveis porque o espírito viu-se, a um só golpe, arrebatado duplamente pela verdade da magia e pela verdade da ciência. A crença na atitude espiritualista para com a fotografia tornava possível inseri-la como linguagem expressiva, com potencial tão imaginativo quanto as artes plásticas em seu projeto moderno e global. O delírio romântico de Stieglitz sob o filtro crítico de Sekula deixou claro que a tradição artística que ele buscava na fotografia sustentava-se ainda na questão do gênio, do culto ao talento, da aptidão técnica e do recurso material. O espaço para a discussão sobre arte, em sua Camera Work, comprovava essa estratégia de reunir, no mesmo objeto editorial, imagem fotográfica e textos críticos sobre arte, que legitimavam o novo tempo para a fotografia pictorialista e pós-pictorialista. Após as experiências pictorialistas mais enfáticas, com as operações químicas diretamente no processo fotográfico para a constituição da imagem final, a fotografia começava a apreender o mundo com mais naturalidade e verdade. Construía-se uma relação mais direta com o mundo, porém suas formas, aparentemente banais, 29 No original:... but outright spiritualism represents only one pole of the 19th century photographic discourse. Photographs achieve semantic status as fetish objects and as documents. The photograph is imagined to have, depending on its contexts, a power that is primarily affective or a power that is primarily informative. Both powers reside in the mythical truth value of the photograph. But this folklore unknowingly distinguishes two separate truths: the truth of magic and the truth of science. 75

77 precisavam de certo espírito sensível (burguês) para captá-las e filtrá-las nessa nova relação de encontro (e confronto) entre percepção e objeto. Sekula ressalta que Steerage foi publicada na Camera Work, em edição que apresentava 10 imagens de Stieglitz. E trazia também um artigo que não possuía nenhuma relação direta com as imagens, e que, no entanto, segundo Sekula (1981, p. 463), servia para legitimar tanto o tipo de fotografia que Stieglitz fazia como artista quanto a ideologia estética que ele projetava como articulador, crítico e editor. O texto The Uncouncious in Art, assinado por Benjamim De Casseres, aponta Sekula, estabelecia as condições gerais para interpretar Stieglitz. De fato, o texto de De Casseres é um apelo à estética da imaginação criadora. Repleto de metáforas poéticas no intuito de propor o inconsciente como uma região abissal e intocada no processo mental, mas que funciona como uma espécie de tesouro precioso, que faz ativar a emoção estética: Emoções vagas, indefiníveis, confusas; emoções que despertam redemoinhos e furacões em mar profundo (SEKULA, 1981, p. 463). O texto possui a mesma pretensão lírica do relato de Stieglitz. Evoca o poder imaginativo e a sensibilidade sentimental necessária para a fruição da plasticidade do mundo. Quando Sekula propõe analisar esses conceitos com vistas a uma fotografia projetiva no ideal da tradição artística, está considerando, de modo claro, o discurso simbolista como representação de poder e destacando o papel da arte e da tradição que acolhe o novo meio (fotográfico) no seio do projeto moderno. Para ele, as palavras de De Casseres seriam o melhor exemplo do misticismo estético da moderna burguesia. Em sua própria época, é claro, essa visão dificilmente foi a expressão de uma estética instituída, mas figurou como a retórica de uma vanguarda movendo-se além do catequismo românticosimbolista do gênio e da imaginação para dentro do protosurrealismo (SEKULA, 1981, p. 464). 30 A visão de Sekula é, em sentido geral, uma crítica aguda às diversas configurações da arte moderna e sua tentativa de ruptura com os poderes anteriores. Em sentido específico, e é o que nos interessa especialmente nesta investigação, é a leitura igualmente aguçada sobre o signo fotográfico e seu status de documento, em meio ao 30 No original: In its own time, of course, this piece was hardly an expression of institutional estethics, but stood as the rethoric of a vanguard moving beyond the romantic-simbolist catechism of genius and the imagination into proto-surrealism. 76

78 contexto de grandes mudanças na arte. Sua análise, muitas vezes irônica e agressiva ao projeto de Stieglitz, indicia a ineficácia de um projeto autoral para a fotografia já naquele contexto de início do século XX. A ineficácia e a instabilidade são reveladas por trabalhos já existentes, como os de Eugène Atget, na França, e os de August Sander, na Alemanha. Bem mais complexos em sua atuação como documento, Atget e Sander operam na contracorrente da fotografia artística de então e não só influenciarão as correntes modernas da década de 1920 como também serão reativados pelas gerações americanas dos anos 1930 e 1940, como aponta Olivier Lugon: na perspectiva de uma renovação ou consolidação do gênero/estilo documental. Como contraponto ao trabalho de Alfred Stieglitz, em uma discussão mais pertinente sobre a condição de documento da fotografia, Sekula toma como exemplo o trabalho de Lewis Hine. A imagem de referência que utiliza para análise é Immigrants Going down Gangplanks (1905), porém, outras como Neil Gallagher, Worked Two Years in Breaker. Leg Crushed Between Cars. Wilkes Barre (1909) (Figura 17) e A Madonna of The Tenements (1904) são citadas para completar sua leitura (Figura 18). Não será possível, e nem é a intenção, apresentar toda a complexidade analítica de Sekula, mas, em síntese, o que ele ressalta nas imagens de Hine, em contraposição às de Stieglitz, são os elementos que atestam a relação efetiva que o primeiro mantém com seus assuntos, personagens e cenas. Figura 17: À esquerda, Immigrants going down gangplanks, À direita, Neil Gallagher worked two years in breaker. Leg Crushed between Cars.Wilkes Barre, 1909 Lewis Hine. Fonte: Seven Steeples. A extração do factual não é negligenciada por Hine e nem tenta assumir uma atitude artística pretensiosa com a fotografia, ou, pelo menos, não assumir certas 77

79 atitudes artísticas baseadas em preceitos da tradição das artes plásticas. As retóricas construídas por Hine são mais complexas, pois estabelecem as informações factuais em uma tentativa de compreensão da vida social. Numa comparação puramente formal, fica patente a divisão de classes no navio de Stieglitz e a inexistência de hierarquia nos personagens imigrantes que entram no navio de Hine. O enquadramento e o ponto de vista são elementos que ressaltam as diferenças entre as imagens logo à primeira vista, mesmo que a leitura de Sekula pareça um pouco tendenciosa e sarcástica. Hine atuou como documentarista, muito próximo das pessoas cujas comunidades fotografou: sindicatos de trabalhadores, associações de imigrantes, habitações populares, cooperativas e jornais independentes etc. Figura 18: Figura 1: A Madonna of the Tenements, 1904, publicada na capa do periódico The Survey, Fonte. Ao lado, a imagem sem a interferência gráfica da página do jornal Lewis Hine. Fonte: The Art Institute of Chicago. Ao enfatizar, na retórica da imagem fotográfica, o poder de sua metonímia, Sekula diz que a metonímia em Stieglitz fragiliza-se em função da aspiração única e exclusiva pela metáfora, enquanto que em Hine ela se potencializa por assumir a função de documento. A condição documental das imagens de Hine dá corpo às historias e tensões sociais, nomeia e identifica os personagens retratados (o caso de Neil Galagher), tratando-os não como signo de uma massa anônima, mas como pessoas com nome e histórias distintas, em meio às transformações ocorridas em um período das reformas liberais na sociedade norte-americana. Sekula não desconsidera a natureza fetichista da fotografia tanto como objeto de culto quanto como documento, como foi mencionado anteriormente, na leitura sobre Stieglitz. Ele também percebe essas inconstâncias nas fotografias de Hine; porém, o que ele aponta de importante é que isso reflete a condição 78

80 variada na qual se manifesta a fotografia como documento. As variações sígnicas desse estatuto é que irão determinar um gênero ou um estilo chamado de documental. No retrato de Neil Galagher (a criança que é vítima de acidente de trabalho), o poder da metonímia funciona como uma legitimação do documento e faz a imagem discorrer sobre um contexto social em que o trabalho infantil é uma questão de denúncia. Ao mesmo tempo, a postura altiva e elegante do garoto que tem o nome explicitado na legenda reforça sua identidade particular e seu lugar no mundo. Não se esvazia em metáforas de efeitos simbolistas concentrados unicamente dentro do quadro fotográfico como em Steerage. Figure 19: Madonna della seggiola, Raphael, 1513/1514, Palazzo Pitti, Firenze. Fonte: Hawaii Library. Quanto à Madonna of The Tenements, que ele inclui em seu texto numa versão publicada na capa do periódico The Survey, em 1911, Sekula não livra Hine das contingências de uma formação cristã e de uma crença positivista, mas relativiza seu humanismo quando o considera oscilar entre uma formação realista do século XIX de referência literária (ele menciona Tolstói), associada ao compromisso da reportagem moderna do início do século XX. Ele menciona o formato ovalado que o projeto gráfico do periódico escolhe para a imagem da Madona de Hine, mas, curiosamente, não faz referência à Madonna della Seggiola, de Rafael, cuja semelhança é implacável. A cena fotografada por Hine é quase idêntica à pintada por Rafael (Figura 19). 79

81 As identificações entre os trabalhos 31 suscitariam diversos assuntos inclusive sobre quem, de fato, no caso da capa do periódico, decidiu enquadrar a imagem de Hine dentro da estética pictórica. Sekula evita entrar nesse universo porque seu foco estaria, talvez, na especificidade semiótica dos fatos e da experiência social da fotografia, situada entre dois polos: entre o realismo e o misticismo, ou ainda entre reportagem e a expressão espiritual. Sekula prefere acreditar que em Hine há uma concentração dos elementos no quadro, porém suas conotações ganham intensidade na medida em que as forças extrapolam o quadro, escapam e retomam o mundo social. Em síntese, são esses alguns dos aspectos que Sekula aponta como sendo da natureza factual do signo fotográfico, que devem ser levados em conta naquele período histórico e ainda hoje como ferramentas para a compreensão da linguagem fotográfica no período moderno e na produção contemporânea. A leitura de Sekula sobre o universo inspirado de Stieglitz, em Steerage, e as ações do documento nas imagens de Lewis Hine mostra-se atual para a relativização das noções de documento e observação da produção fotográfica hoje no campo da arte. A imagem fotográfica é investida de um complexo poder metonímico, um poder que transcende o perceptual e passa para o campo do afeto. A fotografia é algo que se acredita codificar a totalidade de uma experiência, funcionar como um equivalente fenomenológico do Stieglitz-estando-naquele-lugar. E mais, essa metonínimia é tão atenuada que transforma-se em metáfora. Isso para dizer que a compulsão redutivista de Stieglitz é tão extrema, sua fé no poder da imagem é tão intense que ele nega o icônico da imagem e faz seu clamor por significado no nível da abstração. (SEKULA, 1981, p. 466, grifos meus). 32 O discurso subjetivista, segundo Sekula, também se encontra no modo de perceber e legitimar artistas consagrados pela história, cujos outros aspectos presentes em seus trabalhos não são devidamente analisados. Em Desmantelar la Modernidad, Reiventar el Documental. Notas sobre la Política de la Representacíon, Sekula retoma 31 A comparação é feita muito brevemente no artigo Is it art? Documentary photography at the New York Photo Festival, escrito por Sara Coleman em seu blog The Literate Lens. Cf. COLEMAN, No original: The photograph is invested with a complex metonymic Power, a Power that transcends the perceptual and passes into the realm of affect. The photograph is believed to encode the totality of an experience, to stand as a phenomenological equivalent of Stieglitzbeing-in-that-place. And yet this metonymy is so attenuated that it passes into metaphor. That is to say, Stieglitz s reductivist compulsion is so extreme, his faith in the power of the image so intense, that he denies the iconic of the image and makes his claim for meaning at the level of abstraction. 80

82 sua crítica sobre a carga afetiva demasiado pesada e atribuída à imagem documental, que nos faz distanciar de uma visão crítica da sociedade. Ao mencionar um caráter afetivo do documental, utilizado mais para o mundo do espetáculo e/ou para o culto à nostalgia, Sekula toma como exemplo a leitura que Walter Benjamim fez sobre os aspectos ficcionais e enigmáticos da obra de Eugène Atget: a ideia de que os lugares públicos, esvaziados de gente, davam a impressão de que se tratava de cenários de crime fotografados antes ou depois do ato. Para Sekula (2004, p. 41), essa leitura...serve para poetizar um estilo inexpressivo e não expressionista, para fundir nostalgia e o frio instrumentalismo do detetive 33, ou seja, diante de uma obra que indicia a destruição do passado pelas mudanças violentas à memória e ao espaço urbano, prefere-se evocar o boêmio nostálgico (que) resiste mediante atos de aquisição solipsistas e passivos. 34 O que percebemos nas análises em torno do gênero documental propostas por Sekula é que a confusão criada sobre a ideia de que a fotografia era uma das Bellas Artes retardou o entendimento mais sofisticado sobre o gênero. Demorou-se a perceber quais mecanismos inerentes à função de documento poderiam desdobrar a linguagem como signo artístico: Acontece uma coisa curiosa quando se reconhece oficialmente que o documental é arte: de repente, o péndulo hermenéutico oscila do extremo objetivista ao extremo contrario, o subjetivista. O positivismo cede a uma metafísica subjetiva, o tecnologismo dá lugar ao autorismo (SEKULA, p , grifo meu). 35 Para Sekula, o culto da autoria, o que ele chama de autorismo, domina a imagem e a faz separar-se de seu contexto e de suas implicações sociais. Este ato distancia a fotografia de todos os seus usos cotidianos, ou melhor, das questões em potencial que estão enraizadas na multidão de usos prosaicos e humildes que caracterizam o meio. A elevação ao estatuto de Bela Arte faz parte do projeto formalista perseguido pela fotografia no território da arte, e para Sekula, parece ser extremamente nocivo, pois nivela todas as imagens em um único sentido e elimina delas o aspecto mais dissonante, 33 No original: sirve para poetizar um estilo inexpresivo y no expresionista, para fundir nostalgia y el frío instrumentalismo del detective. 34 No original: bohemio nostálgico (que) resiste mediante actos de adquisicíon solipsistas y pasivos. 35 No original: Sucede una cosa curiosa cuando se reconoce oficialmente que el documental es arte: de repente, el péndulo hermenéutico oscila desde el extremo objetivista hasta el extremo contrario, el subjetivista. El positivismo cede a una metafísica subjetiva, el tecnologismo da paso al autorismo. 81

83 o das relações indiciais: Só o formalismo pode unir todas as fotografias do mundo, enquadrá-las e vendê-las (SEKULA, 2004, p. 45) As sedimentações e os moldes do documental (nos EUA) A adesão à não autoria, a reivindicação de uma fotografia que não se descole do cotidiano e a reflexão sobre o poder da metonímia na imagem fotográfica são assuntos fundadores do estatuto documental, que começa a ser consolidado nos EUA como um gênero relacionado especialmente às questões sociais. Volto a lembrar que não é à toa que o jovem Walker Evans, em 1930, se interesse muito mais por Atget e Sander e menos por aqueles que faziam parte da Nova Visão (Neues sehen ou Neue optik), ou da Nova Objetividade (Neue Sachlichkeit). Ambos movimentos são fundamentais para se entender a autoafirmação da fotografia como expressão e apreensão da coisa real, e juntos traçam um painel bastante diverso e experimental das possibilidades da fotografia. Porém, os aspectos expressionistas de ambos, em especial o da Nova Visão, e a relação interessada na economia industrial e na expansão capitalista em elementos da Nova Objetividade que pode ser sintetizada na primeira fase do trabalho de Albert Renger-Patzch afastam o interesse mais específico por parte de uma geração americana em moldar o gênero. O documentarismo americano, que em certo sentido colonizou a ideia de fotografia documental, constituiu-se a partir do interesse pelas experiências de vanguarda europeia, mas se deteve na estética mais sóbria, aparentemente mais conservadora, de um tipo de trabalho apoiado na força do documento (social) e na feição antiartística representada por Eugène Atget e August Sander. É desse embrião que se constrói a ideia de fotografia documental aliada ao comprometimento político e aos movimentos de classe, e tem na história da FSA, nos EUA, a marca definitiva, ao longo das décadas de 1930 e 1940, da consolidação de um gênero que Olivier Lugon prefere chamar de estilo. 36 No original: Sólo el formalismo puede unir todas las fotografias del mundo en una sala, enmarcalas y venderlas. 82

84 Em sua perspectiva histórica, aspectos importantes da fotografia norte-americana documental surgiram de uma troca intensa e de um interesse mútuo entre a cena alemã e a produção dos EUA. O interesse pelos aspectos políticos intensificou-se, na produção norte-americana, por uma geração determinada a assumir uma posição definida sobre os problemas sociais internos do país. Porém, um período antes da consagração de uma fotografia social/documental norte-americana, já ocorria um fluxo de imagens entre os dois países, cuja identificação e certas diferenças de abordagem geraram um debate estético interessante para a consolidação posterior da chamada fotografia documental. A grande exposição Film und Photo (Fifo), organizada por Moholy-Nagy em Stuttgart, reuniu, em 1929, mais de trabalhos da produção contemporânea em cinema e fotografia. A fotografia norte-americana esteve presente e recebeu dos críticos de lá opiniões bastante favoráveis. Como representantes da Straight Photography, os artistas que apresentaram seus trabalhos foram Imogen Cunnnigham, Paul Outerbridge, Charles Sheeler, Edward Steichen, Ralph Steiner, Edward Weston e Brett Weston. Parte da crítica tomou os trabalhos, por um lado, como oposição a certas características eloquentes das imagens da Nova Visão, e, por outro, reconhecia uma identificação com aspectos da Nova Objetividade, mas com ressalvas a esta última por sua religiosidade diante dos mistérios glorificados da natureza e da máquina (LUGON, 2001, p. 46). Para a crítica, ressalta Lugon, havia uma simplicidade natural para com o objeto fotografado: o respeito ao objeto, a exatidão da tomada e uma qualidade desconhecida na Europa. Essa busca pela precisão, essa clareza na descrição do objeto são algo compartilhado pela Nova Objetividade alemã mas a seção americana testemunha, em comparação, de uma reserva expressiva ainda mais forte e de uma modéstia inédita na Alemanha (LUGON, 2001, p , grifos meus) No original:...le respect de l objet, l exactitude du rendu et une qualité inconnue en Europe. Cette recherche de la précision, cette clarté dans la description de l objet son certes partagées par la Nouvelle Objectivité allemande mais la section américaine témoigne, en comparaison, d une réserve expressive encore plus poussée et d une modestie inédite en Allemagne. 83

85 Figure 20: À esquerda Eggs and bowls, Fonte: The J. Paul Getty Museum. À direita Avocato, Fotografias de Paul Outerbridge. Fonte: Christies O olhar da crítica alemã sobre a produção americana já vinha se dando desde os anos anteriores à Fifo, quando as imagens circulavam em exposições menores e revistas especializadas. A despeito da evidente semelhança plástica entre as gerações de ambos países, como atesta o trabalho de Paul Outerbridge (Figura 20) em relação ao de Renger-Patzsch, a crítica alemã elabora uma análise, atribuindo à produção americana uma qualidade apoiada na observação dos objetos e da natureza com uma atitude serena e humana. Esse modo de lidar com as possibilidades técnicas do aparelho e reconhecer as formas do cotidiano de modo simples tornava o trabalho mais humanizado, natural. O olhar direto, frontal e rigoroso, perspectiva compartilhada pelos movimentos norte-americanos e alemães, era atenuado também pela escolha dos assuntos. A crítica parecia valorizar objetos do cotidiano doméstico (americano) em detrimento das vigas e estruturas de ferro da economia industrial capitalista (alemã). O que ressaltamos como objeto de interesse na análise de Lugon é que ela parece indicar que os norte-americanos apreenderam, subitamente, a Nova Objetividade alemã e, num ato de admiração dissimulada, tornaram-na mais humanizada e convenceram os próprios alemães de que sua devoção à modernidade industrial resultou em uma fragilidade conceitual construída sob a égide de valores desumanizados. A apreensão mútua entre a produção fotográfica alemã e a americana suscitou um debate peculiar sobre a própria crítica da modernidade artística. Um debate permeado por nuances e paradoxos. O espírito humanista observado pelos alemães na 84

86 fotografia dos americanos era uma crítica não somente ao culto exagerado da industrialização nas formas fotográficas presentes nas imagens alemãs como também uma reflexão sobre como olhar diretamente a coisa real e quais assuntos escolher dessa realidade. Tendo como questão a condição documental do meio fotográfico, Lugon destaca um impasse curioso na constituição do gênero. Entre uma simplicidade mais conservadora do olhar americano e uma plasticidade mais experimental da vanguarda alemã, resta a ideia de que a fotografia permanecia testando os limites do aparelho, assumindo qualidades próprias em seus recursos técnicos, porém oscilando entre a busca formal moderna que se apoiava no novo mundo industrial e a percepção do mundo prosaico, corriqueiro ou cotidiano que a conduzia para as questões humanas e sociais. Lugon destaca inclusive, em dado momento, que há uma espécie de mitificação da simplicidade americana na produção alemã, a ponto da crítica considerar que a verdadeira fotografia moderna é nativa dos EUA por imprimir à imagem certa objetividade análoga à eficácia econômica que se atribui ao país. Esses contrafluxos observados no debate conceitual sobre a relação entre fotografia e documento tomam as experiências estéticas americana e alemã, entre as décadas de 1910 e 1920, como um período intenso e preparatório para a consolidação de uma outra ideia não menos complexa: a configuração do gênero documental na fotografia como uma relação direta com a realidade social. Isso se dá mais regularmente ao longo das décadas de 1930 e 1940, especialmente nos EUA, com a documentação das condições de vida no âmbito rural daquele país. A adesão ao termo documental inicia por meio da atitude em direção às questões sociais, em direção à paisagem humana, a partir de um programa de documentação fotográfica, idealizado em 1935, pela Farm Security Administration, secretaria de administração do Governo americano para as reformas econômicas no campo rural. A FSA reuniu, ao longo de oito anos, diversos fotógrafos para um projeto de documentação da vida das comunidades rurais nos Estados Unidos, em um período de crise aguda. A conhecida Depressão Americana, na qual o país mergulhou em graves problemas financeiros e sociais, constituiu-se na paisagem humana sobre a qual se construiu a ideia que persiste, ainda que com ressalvas e equívocos: a chamada fotografia documental. 85

87 A pobreza da vida rural foi fotografada sistematicamente por profissionais como Walker Evans, Dorothea Lange, Russel Lee, Arthur Rothstein, Ben Shahn, entre outros. A intenção da secretaria era diagnosticar, para o governo Roosevelt, os níveis de miséria em que foi jogada a sociedade rural americana. A fotografia passou a desempenhar um papel substancial nesse processo e gerou, para além da questão propriamente social, a validação de certa estética fotográfica. Mas esses aspectos não representam algo apaziguador, e nem redutor, como as histórias oficiais parecem indicar. Para uma compreensão mais vertical sobre o estatuto do documento, é necessário relativizar a ideia difundida sobre a clivagem entre uma fotografia mais plástica e formal visão objetiva e direta nos anos 1920, e uma outra fotografia de caráter documental igualmente objetiva e direta apoiada no interesse sobre os problemas sociais e políticos, e no abandono da preocupação formal. Essa separação é questionada na análise de Lugon e é nesse sentido que ele adota a palavra estilo ao invés de gênero para referir-se ao documental. Ao mencionar um texto de John Szarkowski, de 1973, Lugon revela uma polaridade que persiste no tempo e separa, em nossa capacidade perceptiva, o documento fotográfico da expressão e do campo da arte. Szarkowski acredita que não há nenhuma correlação segura (por mais sedutora que tenha parecido) entre realismo e engajamento social ou abstração e indiferença social. Os fotógrafos documentaristas do FSA adotaram uma posição diante da realidade, que marcou uma diferença no adensamento da discussão que se propagava, décadas atrás, sobre a representação fotográfica e o debate sobre as transposições de significado que ocorriam no signo fotográfico entre documento, documentação e documental. A fotografia americana irá construir a noção de documental após imiscuirse às fontes europeias, especialmente as da produção alemã, extraindo daquela experiência (inclusive da admiração da crítica alemã) a consolidação de uma linguagem direta, sem efeitos, voltada para o real comum, forjando assim uma modernidade natural, como aponta Lugon (2001). Mais uma vez, será necessário lembrar a presença enigmática de Eugène Atget como uma espécie de fantasma que paira a desafiar a ordem cronológica das fases da modernidade fotográfica estabelecidas entre a história da arte e a história da fotografia. A questão que se retoma nesse momento é que a descoberta na Alemanha de uma fotografia de acento americano, de simplicidade direta, é marcada pelo interesse 86

88 germânico pelas imagens do francês Atget, quase como se ele fosse um norteamericano. Lugon declara que, em dado momento, Atget é confundido como um artista americano na Alemanha. De fato, suas fotografias chegam a participar da seção norteamericana, e não da francesa, em uma grande exposição coletiva internacional realizada em Buffallo, em 1932, intitulada Modern Photography at Home and Abroad, na Albright Art Galery. É bastante curioso observar que, em certa medida, parece ter havido uma apropriação da estética de Atget por parte dos norte-americanos. Primeiramente, quando estes se tornaram donos de seu acervo, já que é Berenice Abott que descobre Atget em Paris e compra uma quantidade considerável de seu acervo e o leva para Nova York, logo após a morte do fotógrafo francês. 38 Em segundo lugar, podemos considerar que o trabalho de pesquisa e difusão de sua obra, a partir das instituições americanas, se dá aliado à percepção aguda das dimensões estéticas, tanto da obra de um Sander em especial, como da vanguarda fotográfica alemã, extraindo daí uma conformação mais robusta e perene de um ideal de fotografia documental, que se estabelece em muitos aspectos como nativa dos Estados Unidos da América. E que se explica pela eliminação dos excessos plásticos e da veneração ao triunfo industrial próprio da produção alemã. Conta, igualmente, o uso singular que os norte-americanos fazem das experiências da vanguarda alemã na captação e apreensão da coisa prosaica, mundana e da paisagem social. Tal uso imprime uma força oportuna à cultura norte-americana em um período importante de Pré e Pós-Guerra. Trata-se do período que vai da profunda crise econômica e pobreza ao renascimento social e triunfante de uma sociedade da imagem e do consumo, se pensarmos entre meados da década de 1930 até a exuberância dos anos 1950, entre o nascimento e produção do trabalho da FSA, o desenvolvimento das revistas ilustradas e a pré-eclosão da Pop Art. Todos esses fenômenos são perpassados pela imagem fotográfica e colaboram para o enraizamento da ideia de que o adjetivo documental consagrou-se como um gênero americano moderno, tendo como foco e justificação a realidade social. E, 38 Berenice Abott edita o livro Atget em 1930, promove exposições de suas fotografias, disseminando seu trabalho nos EUA. Nos anos 1960 vende ao MOMA o acervo de Atget que havia comprado nos anos 1920 em Paris. O livro, apesar de ser considerado um recorte parcial e modernista da obra de Atget, certamente obteve um grande alcance na difusão de seu trabalho em todo o mundo. 87

89 oportunamente, funcionou, em um mesmo pacote, como estratégia política a sua aceitação no sistema das Belas Artes. O discurso teórico de fotógrafos norte-americanos importantes do período é francamente reativo à atitude de projetar uma estética artística para o signo fotográfico. No entanto, acolhe, paradoxalmente, a reinvenção de uma arte fotográfica sustentada pela originalidade (e naturalidade ) norte-americana em lidar com o documento e com a realidade representada no documento fotográfico. O paradoxo abriga sutilezas territoriais no esforço de inaugurar e legitimar a nova fotografia moderna documental sob a assinatura nacional estadunidense. Walker Evans e Berenice Abott discorreram abertamente, com certo sarcasmo, contra a fotografia artística em favor de uma relação mais honesta com a realidade do mundo. Na defesa de uma fotografia que praticasse semelhanças realistas e honestas, Abott ataca a herança pictorialista europeia, a ingenuidade yankee e o comercialismo fotográfico, identificando-os como vilões que impedem o bom caminho da fotografia como expressão. Ambos reclamam os elementos originários, os componentes que fundaram as primeiras preocupações da fotografia, quando de sua invenção, ou seja, as questões matriciais com que se debateram os primeiros fotógrafos envolvidos com as fidelidades, ainda que problemáticas, mas evidentes da representação da coisa real. Ambos se ressentem que tais elos iniciais foram esquecidos. Imbuída de postura evolucionista, Abott preocupa-se com o rumo que a fotografia deve tomar naquele momento texto escrito em 1951 diante da profusão de significados, usos, aplicações e manifestações possíveis, que pode encarnar o signo fotográfico no mundo moderno: Chega o momento em que temos que progredir, ir adiante, crescer. Se não for assim, murchamos, decaímos, morremos Para comprender o momento em que concerne essencialmente a fotografía, é necessário examinar suas raˆzes, medir seus logros passados, aprender as lições de sua tradição. Repassaremos brevemente seus inícios, que foram realmente espetaculares (ABOTT In: FONTCUBERTA, 2003, p ). 39 O mesmo acontece com Walker Evans cujo texto mencionado anteriormente, e de modo breve, por Lugon abriga outros fatores mais complexos que apresentaremos 39 No original: Llega el momento en que hemos de progresar, tirar hacia delante, crecer. De no ser así, nos marchitamos, decaemos, morimos Para comprender el ahora que concierne esencialmente a la fotografía, es necesario examinar sus raíces, medir sus logros pasados, aprender las lecciones de su tradición. Repasaremos brevemente sus inícios, que fueron realmente espectaculares. 88

90 no contexto dessa pesquisa. Evans se declara, logo no primeiro parágrafo, saudoso dos componentes valorizados na primeira infância da invenção da fotografia. Na mesma perspectiva de Abott, Evans (In: TRACHTENBERG, 1980, p. 185) mira para trás ao defender o futuro da fotografia: O real significado da fotografia foi submerse logo após sua descoberta. O acontecimento se deu simplesmente na relação já existente da camera com a revelação e fixação da imagem. Tal súbita ocorrência de invenção prática foi um golpe indireto, cuja aplicação foi obrigada/destinada a tornar-se atada à peculiar desonestidade de visão de sua época. 40 A honestidade ou a desonestidade para com a fotografia, valores referidos no discurso de Evans e Abott, estavam ali relacionadas à tentativa de alcance do status de arte pelos procedimentos similares à criação pictórica ou ao campo da ficção. Com isso, a fotografia se distanciava de seu real valor, que já encontrava no embrião de sua descoberta, que era seu aspecto de semelhança com a aparência do mundo, seu compromisso com a vida real, que teria sido preterido pela necessidade de se tornar arte. Embora a análise de Evans seja mais substanciosa que a de Abott, ambos compartilham de uma mesma atitude reducionista: a de atribuir à herança pictorialista o grande mal ao desenvolvimento de uma fotografia limpa, desprovida de manipulações formais e adereços estéticos. Daí certa ironia em Evans (In: TRACHTENBERG, 1980, p. 185), quando diz que a segunda metade do XIX nos fornece essa fantástica figura, o fotógrafo de arte, verdadeiramente um pintor fracassado com uma bolsa cheia de truques misteriosos. 41 E sarcasmo em Abott, quando se refere a Henry Peach Robinson como o responsável por difundir uma praga terrível a imitação da pintura que afastou a fotografia de sua essência realista. Este converteu-se na grande figura da fotografía, cobrava preços altos e ganhava muito dinheiro. Plagiava a composição dos quadros pictóricos, mas elegeu alguns dos piores exemplos da história. O maior desastre de todos foi um livro que escreveu em 1869, intitulado Fotografia Pictórica. Seu sistema consistía em favorecê- 40 No original: The real significance of photography was submerged soon after its discovery. The event was simply the linking of an already extant camera with development and fixation of image. Such a stroke of practical invention was an indirect hit wich in application was bound to become tied up in the peculiar dishonesty of vision of its period. 41 No original: The latter half of the nineteenth century offers that fantastic figure, the art photographer, really an unsuccessfull painter with a bago f mysterious tricks. 89

91 lo inteiramente. Tentava corrigir o que via a câmera. O gênio e a dignidade inatos ao sujeito eram assim negados. (ABOTT In: FONTCUBERTA, 2003, p. 217). 42 Ao defender uma postura antiartística, Abott e Evans propunham recolocar diversos aspectos que, de fato, haviam sido perdidos no processo de desenvolvimento técnico da fotografia. As relações imediatas com o dado real precisavam ser resgatadas, o reconhecimento de que o aparelho tinha seus mecanismos próprios de representação e de que esses componentes estariam a serviço de um intento em compreender as formas do mundo social eram motivos que faziam sentido em ambos discursos, pois tanto Evans como Abott tornaram-se artistas importantes na constituição de uma nova identidade para fotografia moderna. Walker Evans, como um arguto observador e ordenador da vida social, foi uma figura fundamental da equipe que trabalhou para a FSA. Esse texto escrito em 1931 já reconhece o novo tempo para a fotografia e marca o período de consolidação do meio como documental. De olho no legado de Eugène Atget, como um exemplo que desmonta a lógica pictorialista, Evans parece muito atento às variações e possibilidades sígnicas da obra do francês. Ele insinua que há certa ingenuidade no trabalho do artista, quando não acredita na consciência plena do que estaria fazendo, porém conclui que Atget realiza um trabalho que não se deixa dominar pela compreensão dos surrealistas. Para Evans, a presença de Atget no espaço da cidade se impõe e alcança uma dimensão maior do que seus admiradores até aquele momento quiseram determinar sobre sua obra: Sua visão geral é de uma compreensão lírica sobre rua, uma observação treinada sobre esse tema, um sensibilidade especial (para a pátina) para as camadas superficiais, um olho para o detalhe que se revelava além de tudo aquilo desprezado por uma poesia que não era a poesia da rua ou a poesia de Paris e sim a projeção da persona de Atget (EVANS In: TRACHTENBERG, 1980, p ) No original: Éste se convirtió en la gran figura de la fotografía, cobraba precios altos y ganaba galardón tras galardón. Plagiaba la composición de los cuadros, pero eligió algunos de los peores ejemplos de la historia. El mayor desastre de todos fue un libro que escribió en 1869, titulado Fotografía Pictórica. Su sistema consistía en favorecerlo todo. Intentaba corregir lo que veía la cámara. El genio y la dignidad innatos al sujeto humano eran así negados. 43 No original: His general note is lyrical understanding of the street, trained observation of it, special feeling for patina, eye for revealing detail, over all of which is thrown a poetry which is not the poetry of the street or the poetry of Paris but the projection of Atget s person. 90

92 Há duas observações peculiares no trecho acima mencionado, que contribuem significativamente para o pensamento conceitual sobre a fotografia e documento na arte, o que pode nos ajudar na compreensão sobre a abrangência do sentido documental da fotografia praticada hoje no campo artístico. Não se trata da poesia da rua, mas da projeção da persona (ou pessoa) do artista sobre o espaço. Essa dimensão é da ordem da experiência indicial, portanto, do campo fenomenal das relações do artista com o espaço concreto da cidade. Talvez não seja especificamente isso o que Evans quer dizer. Contudo, essa dimensão experiencial está certamente na observação que faz sobre a importância da projeção da pessoa sobre o lugar em que está e que fotografa, ou seja, estar no lugar é fotografar o lugar. Aspectos no debate sobre as relações fenomênicas intrínsecas a certos projetos documentais na arte. Outra observação perspicaz de Evans sobre Atget é acerca de um sentimento especial para a pátina, um olho para a revelação do detalhe como partes de uma observação treinada que ele atribui à percepção do fotógrafo francês para o que estaria abaixo das camadas mais finas e superficiais da realidade. Pátina está aqui menos como um artifício estético e mais como uma consciência sobre o futuro daquela imagem, sobre sua sobrevida, sua duração ou perduração do olhar (realizado em foto) sobre aquele lugar. A despeito da técnica artificial ou da camada de despojo sobre uma superfície, ambos a delatar (ou a inventar) um envelhecimento da matéria, pátina também significa uma mudança ocorrida na aparência de um objeto provocada por uma longa duração no tempo. O uso metafórico da palavra pátina, por Evans, nos faz compreender a percepção de Atget como algo capaz de produzir imagens que sempre retornam como significados inesgotáveis, como imagens fantasmáticas, ou fantasmais, a sobreviverem ao tempo, recolocando continuamente a manifestação do documento sob a luz de uma análise renovada. Parte significativa do texto analisa a qualidade técnica das publicações europeias que se dedicam à fotografia, especialmente a alemã Photo-Eye e a francesa Photographie, e reflete a nova discussão em torno do seu status de arte. Evans é bastante atento às relações de força entre imagem, sentido e técnica, tomando o meio impresso como importante enquanto suporte tanto da linguagem fotográfica quanto da sua difusão e debate crítico que, naquela época, ocorria na Europa. Porém, em dado momento, deixa escapar uma frase no mínimo curiosa: A América realmente é o lar natural da 91

93 fotografia, se a fotografia é pensada sem operadores (EVANS In: TRACHTENBERG, 1980, p. 186). 44 Esse sentimento sutilmente introjetado em Evans naquele período, 1931, já era um anúncio de que os EUA, ao consolidar a prática documental aliada ao interesse social, alcançou um plano bem sucedido de naturalização da fotografia moderna (como documental) na história da fotografia. No texto de Abott, original de 1951, portanto uma fase de consagração e pleno desenvolvimento da fotografia nos EUA, essa ideia nacionalista é explícita: Os Estados Unidos teve um papel são e vital no auge da fotografía. O gênio norte-americano se adaptou ao novo meio como patos na agua. Um interessantíssimo estudo da fotografía nos Estados Unidos um libro de importancia para todos é A Fotografia e a cena america de Robert Taft. Nele se integram o crescimento social e económico de nosso país. Na fotografía, Estados Unidos não se atrasou nem imitou servilmente, e podemos nos vangloriarmos de uma sólida tradição norte-americana (ABOTT, 2003, p. 214). 45 É nessa direção que se encontra a observação de Lugon sobre a eficácia econômica dos EUA como análoga ao interesse e à expansão da linguagem fotográfica no país. Quando Evans e Abott se aborrecem radicalmente com a estética artística europeia e os seus fantasmas pictorialistas que ainda assombrariam a fotografia, eles estão ali como defensores, por um lado, de uma fotografia que lide formalmente de outro modo com o fato real, que busque um tipo de autoconhecimento e compreenda seus compromissos com a sociedade. Por outro lado, figuram como defensores do liberalismo econômico estadunidense como uma nação líder, que faz triunfar o comércio das imagens e instaurar uma nova e indiscutível velocidade na comunicação por imagens. O desempenho das revistas ilustradas pode ser visto como parâmetro de observação do processo de naturalização da fotografia moderna e documental pela 44 No original: America is really the natural home of photography if photography is thought of without operators. 45 No original: Estados Unidos tuvo un papel sano y vital en el auge de la fotografía. El genio norteamericano se adaptó al nuevo medio como los proverbiales patos en agua. Un interesantísimo estudio de la fotografía en Estados Unidos un libro de importancia para todos es La fotografía y la escena americana de Robert Taft. En él se integran el crecimiento social y económico de nuestro país. En fotografía Estados Unidos ni se rezagó ni imitó servilmente, y podemos vanagloriarnos de una sólida tradición norteamericana. 92

94 nação norte-americana. Numa comparação entre a Revista Vu e a Life, por exemplo, ocorre a troca de guarda de poder no que se refere aos veículos consagradores das imagens fotográficas como informação e documento. Quando a francesa Vu, lançada em 1928, pioneira em aliar fotografia, vanguarda, arte e design, entra em decadência, a americana Life, lançada em 1936, aprendiz de seu legado, continua sua missão, porém adaptando-a às condições econômicas e publicitárias no aquecido comércio da cultura estadunidense. Enquanto que a Vu alimentava-se do interesse pelas artes de vanguarda e pela fotografia como expressão criativa, apropriando-se de montagens e fotocolagens como informação crítica e independente, a Life seguiu, inicialmente, seu modelo visual inovador; no entanto, foi-se transformando, com o passar das décadas, em um ideal da nova cultura midiática americana, provida, essencialmente, pela força da publicidade e dependente da nova ordem capitalista. Junto a isso forjou-se também um ideal da fotografia como comunicação e arte sob o modelo da fotografia documental já então naturalizada norteamericana. É importante ressaltar as distinções entre um estilo documental consolidado como linguagem independente dos meios de comunicação impressos e o fotojornalismo propriamente dito, praticado e desenvolvido na imprensa. Ambos possuem suas especificidades, no entanto comungam de um mesmo espaço global e período histórico, no qual se viram atados pelo laço da modernidade (e) na tentativa de constituição da fotografia enquanto linguagem autônoma. O jornalismo moderno e as revistas ilustradas colaboraram profundamente com o arrojo do estilo documental, pois, na condição de canais de circulação, tornaram-se o espaço oportuno para o diálogo com o grande público. Acrescente-se a esse processo o avanço da fotografia de publicidade para consagrar o modelo norte-americano de modernidade como bem constatam Helouise Costa e Renato Rodrigues. Eram revistas versáteis, bem balanceadas, que abordavam temas variados e pretendiam ser acessíveis a qualquer leitor. O objetivo era sempre aumentar o número de leitores e com isso o número de anunciantes. A fotopublicidade ganhou um grande impulso e passou a direcionar o gosto e o consumo de grande parte dos norteamericanos. O sonho da modernidade foi dar uma função à arte, recolocá-la numa trajetória objetiva, racional e possibilitar a sua difusão como padrão para a sociedade. Nesse sentido é lícito afirmar que o sonho 93

95 moderno só se realizou plenamente através do fotojornalismo e da fotopublicidade (RODRIGUES; COSTA, 1995, p ). É esse comercialismo triunfante que parece inquietar Berenice Abott em seu texto de O título que a fotógrafa escolhe para sua análise é revelador de uma atitude positivista: Photography at the Crossroad. Diante de uma encruzilhada, temos o bom e o mau caminho. Mesmo crente do papel são e vital que os Estados Unidos desempenhavam no auge da fotografia, Abott é reativa ao industrialismo exacerbado que empurra a fotografia para a banalidade, para o culto à técnica, para a produção massificada. Incomoda-se com o vasto campo aberto para a prática do amador. Reclama mais seriedade e conhecimento aprofundado para a formação do fotógrafo profissional. Deseja para a fotografia uma atividade competente, especializada, consciente da linguagem, na qual forma e técnica não devem subjugar a intenção e o conteúdo. Em certos momentos, o texto de Abott parece uma nova versão do célebre desespero de Baudelaire diante do iminente domínio da fotografia sobre a sociedade ignorante : O público moderno e a fotografia, escrito por ocasião do salão de Guardadas as diferenças e proporções, o medo é o mesmo. Enquanto o poeta anuncia o encantamento nocivo de uma sociedade narcisista diante do efeito especular do novo meio, Berenice Abott acredita que a fotografia veio para ficar e nos fazer refletir sobre nossa condição de realidade, tomando todos os espaços possíveis do cotidiano. Porém, há que se alertar sobre o mau caminho do amadorismo, a falta de conhecimento e consciência sobre forma e conteúdo, e, portanto, há que se avançar e escolher o bom caminho da consciência social. Nesse caso, em pleno início dos anos 1950, os EUA eram um perfeito exemplo da dor e delícia do uso do meio fotográfico por uma sociedade das imagens em franca expansão. Mas já é hora de que a industria faça caso da opinião séria e esperta dos fotógrafos com experiencia, assim como que responda às do trabalhador profissional. Isto é importante porque um bom fotógrafo não pode satisfazer plenamente o potencial da fotografía contemporânea se se encontra limitado físicamente com um equipamento e materiais somente para amadores, ou simplesmente para uma venda rápida. A câmera, o tripé e outras ferramentas necessárias para fazer fotografías que estão destinadas com muita frequência a desenhistas que nunca em sua vida produziram uma fotografía séria, hão de ser máquinas muito superiores se tem que 94

96 liberar criativamente o fotógrafo em vez de dominar seu pensamento (ABOTT In: FONTCUBERTA, 2003, p. 218). 46 O tempo e o contexto são muito diferentes e a intenção do discurso aponta para conquistas opostas: Baudelaire alerta para a incapacidade de a fotografia ser arte e para o equívoco que envolve a sociedade em estado de encantamento. Abott reitera a capacidade de a fotografia se afirmar como arte (não mais com os pressupostos do pictorialismo) e alerta para o efeito nocivo da banalização industrial e da técnica sobre o gênio da nova fotografia autoral. Apesar disso, ambos tocam e evitam aprofundar um mesmo universo de assuntos que caracterizam fortemente o signo fotográfico: a capacidade irreversível de reprodução e multiplicação de imagens como um estatuto cultural determinante na vida da sociedade, a partir de sua efetiva descoberta e trajetória em sua evolução técnica. Ao invés de encarar tais fenômenos culturais, descambam para um misto de indignação e superioridade estéril para com a sociedade. Baudelaire destila raiva:... a sociedade imunda precipitou-se, como um único narciso, para contemplar sua imagem trivial no metal. Uma loucura, um fanatismo extraordinário apoderou-se de todos esses adoradores do sol (BAUDELAIRE apud DUBOIS, 2001, p. 28). E Abott (In: FONTCUBERTA 2003, p. 218) exibe sua saúde mental e integridade artística: A antiga moda de se deixar dominar pela técnica e ignorar o conteúdo se associa à epidemia que converteu muitos como parte de uma histeria generalizada. 47 O bom caminho se mostra claro para Berenice Abott. A fotografia não pode ser confundida com pintura, poesia, dança ou sinfonia. E Não é somente uma imagen bonita, nem um exercício de técnicas contorsionistas e encaminhadas à pura qualidade do positivo. A fotografía é, ou deveria ser, em sua assertiva um documento significativo, uma afirmação netrante, cuja síntese descritiva estaría apoiada na palavra 46 No original: Pero ya es hora de que la industria haga caso de la opinión seria y experta de los fotógrafos con experiencia, así como que responda a las necesidades del trabajador profesional. Esto es importante porque un buen fotógrafo no puede colmar el potencial de la fotografía contemporánea si se encuentra limitado físicamente con un equipo y unos materiales hechos solamente para amateurs, o simplemente para una venta rápida. La cámara, el trípode y otras herramientas necesarias para hacer fotografías, que están diseñadas con demasiada frecuencia por delineantes que nunca en su vida tomaron una fotografía seria, han de ser máquinas muy superiores si han de liberar creativamente al fotógrafo en vez de dominar su pensamiento. 47 No original: La rancia moda de zambullirse en la técnica e ignorar el contenido se añade a la epidemia y se ha convertido para muchos en parte de la actual histeria generalizada. 95

97 seleção, 48 o mecanismo que ativaria a escolha do tema extraído da realidade e seu uso imaginativo por parte do fotógrafo. Extrair da realidade mesma, o que nos comove e nos produz impacto, seria o mais adequado para conferir à fotografia uma linguagem autônoma. A seleção do conteúdo apropriado à imagen vem da delicada união entre o olho adestrado e a mente com imaginação (ABOTT, 2003, p. 219). 49 Tal conceituação idealista construída por Abott mira a certeza de que a então fotografia contemporânea precisaria se afirmar como documental, cujas relações principais estariam entrelaçadas com o calor da vida, o pulsar do cotidiano. Tais aspectos iriam conferir à fotografia uma honradez e seriedade, para usar palavras de Abott, no que se refere à sua constituição como linguagem alicerçada sobre as contingências da realidade. A fotografía pode apresentar-se tão artísticamente quanto refinadamente como quiser; mas para merecer ser seriamente considerada, tem que estar conectada com o mundo que vivemos. O que necesitamos é voltar à grande tradição do realismo, sobre uma base espiral de compreensão histórica (ABOTT In: FONTCUBERTA, 2003, p. 220). 50 A disposição analítica de Abott e Evans em favor de um certo retorno à tradição nos traz elementos importantes ao voltar o olhar às inconstâncias do realismo instauradas já no período inicial da invenção. Voltar o olhar para o legado anacrônico de Atget é uma perspectiva dinâmica para os tempos de hoje. Ter a dimensão histórica como parâmetro de crítica para a análise contemporânea a fotografia daquele período, anos 1950, no caso do texto de Abott é certamente uma atitude inquieta. Porém, os discursos de ambos, especialmente o de Abott, projetam um molde para a fotografia documental e moderna. Isso ocorre com tal ênfase que os adjetivos moderno e documental se confundem, a ponto de fazer a história da fotografia e a história da arte assimilar tal simbiose projetada. 48 No original: No es solo una imagen bonita, ni un ejercicio de técnicas contorsionistas y encaminadas a la pura calidad del positivado. Fotografia é, o debería ser, em sua assertiva un documento significativo, una afirmación penetrante, cuja síntese descritiva estaria apoiada na palavra selección 49 No original: La selección del contenido apropiado a la imagen viene de la delicada unión entre el ojo adiestrado y la mente con imaginación. 50 No original: La fotografía puede presentarse tan artísticamente y tan finamente como se quiera; pero para merecer ser seriamente considerada, tiene que estar conectada con el mundo que vivimos. Lo que necesitamos es volver a la gran tradición del realismo, sobre una base espiral de comprensión histórica. 96

98 É clara a determinação de Abott em encerrar sua defesa pela conceituação sobre o gênero documental dentro de um limite: o da extração do fato real que se apresenta diante dos olhos do fotógrafo a partir de um ato imaginativo e até mágico, porém, sem contorcionismos e, acima de tudo, adiestrado. A crítica ao efeito contorcionista é uma evidente alusão às experiências da Nova Visão alemã. E o adestramento fica por conta da nova ordem social e racional da cultura americana, o que forjou a chamada modernidade natural A série: operações de construção e sentido Esses aspectos estão sendo discutidos no contexto da pesquisa por se tratar de componentes que definem o embate pela consolidação e emancipação da fotografia como linguagem documental em seu reconhecimento moderno, ao passo que estabelecem o desejo de que esse meio se torne Arte Bela para o mundo em seu processo de dignificação configurado no seio da sociedade americana. Nessa perspectiva, o ideal moderno da fotografia se consolidaria na América e se constituiria como tal a partir de seus aspectos documentais. O estudo de Lugon identifica, a despeito da considerável homogeneização do gênero nos EUA, uma variedade de significações, usos, aplicações e conceitos por meio dos quais a fotografia se constrói e se estrutura como signo. As relações entre fragmento e conjunto, imagem única e série, plano fechado e visão panorâmica trazem para o debate sobre a imagem documental diversos paradoxos encontrados, especialmente, na trajetória tanto da crítica quanto dos artistas que experimentaram essa intensa e mútua troca estética acontecida entre EUA e Alemanha. Lugon parece ressaltar que o debate agiu simultaneamente para o esclarecimento e o obscurecimento das capacidades estéticas autônomas da fotografia e da definição de um gênero que ele propõe chamar de estilo. Em dado momento, enfatiza uma mudança que se opera na chamada prática documental, considerada definidora do sentido próprio da fotografia: a passagem da imagem única e isolada para a constituição de uma série, de um conjunto de imagens com potencial narrativo. 97

99 A prática da série passa a ser vista como um exercício de sistematização dos elementos extraídos do mundo, não apenas uma coleção fragmentária de variados pontos de vista de uma coisa talvez aqui se perceba a crítica de Abott sobre os contorcionismos, mas a recontextualização de um assunto sob a forma de imagem. A construção artificial do mundo, enquanto construção de sentido, se daria a partir de uma concatenação entre as imagens em busca de uma leitura da realidade, tomando a fotografia como artifício no sentido da linguagem. Essa atitude na direção da série romperia duplamente a tradição do pictorialismo e o idealismo da beleza autônoma de uma nova fotografia moderna. Tomando essa constatação de Lugon, percebo que o exercício da série de fato desloca o fator artificial que a tradição pictorialista fez persistir sobre os aspectos modernos da fotografia a função de efeito e/ou adereço para o reconhecimento da fotografia como discurso. É nesse sentido que chama a atenção para as semelhanças entre as visões de Benjamin e Kracauer sobre a articulação das imagens captadas da realidade como construção: há que se ter alguma coisa a construir, algo fabricado, diz Benjamin (Apud LUGON, 2001, p. 62). E Kracauer provoca justamente o componente instantâneo do fotojornalismo para diferenciar um conjunto de imagens do conceito de série: Cem reportagens sobre uma fábrica são incapazes em restituir a realidade da fábrica. Elas são e permanecem, para sempre, cem instantâneos da fábrica. A realidade é uma construção (LUGON, 2001, p. 62). Há a necessidade de tomar consciência de uma outra artificialidade, reativa à tradição do quadro, definidora da condição de documento e esquiva à dimensão estética. No entanto, nota-se que essa nova artificialidade do documento não se priva do exercício formal, especialmente nas concepções críticas e práticas ocorridas na Alemanha. Por outro lado, no processo de sedimentação do gênero nos EUA, observa-se uma tentativa mais enfática (no pensamento crítico) em obscurecer esse aspecto e uma prática mais modesta das possibilidades de enquadramento em prol de um discurso mais naturalista do meio. Será esse discurso pretensamente naturalista que irá moldar, em grande medida, o que convencionamos chamar ainda hoje de fotografia documental e que, de certo modo, relacionamos com a estética moderna. No entanto, os artistas em seus processos particulares e percursos poéticos, independente de períodos históricos, findam por desativar os mecanismos montados pelas histórias oficiais. O exercício da série, das sequências, do encadeamento e do 98

100 descontínuo vem sendo intensamente absorvido pela produção contemporânea, redimensionando os aspectos da imagem e da sintaxe de fisionomia documental e nos trazendo de volta a necessidade de uma perspectiva histórica. Os trabalhos de Miguel Rio Branco aqui escolhidos para o estudo sobre a constituição de sua poética oferecem-nos a oportunidade de refletir sobre as inconstâncias e oscilações em torno da ideia de documento e do chamado gênero documental a partir de dentro de sua obra. As produções que o artista irá inaugurar na década de 1980 tratadas no capitulo seguinte colocarão em xeque diversas polaridades e desafiarão certos estatutos da fotografia objetiva e de conformação social. 99

101 Quando morirò no porterò niente com me queli che mi devono qualcosa mi pagheranno all inferno I will take nothing with me when i die those who owe me debts will pay me in Hell Nada levarei quando morrer aqueles que mim deve cobrarei no inferno CAPÍTULO DOIS

102 2.1 BAHIA QUASE-CINEMA Figura 21: Miguel Rio Branco e Mário Cravo Neto, Sertão da Bahia, Fonte: PERSICHETTI, A fotografia que capta um instante on the road é uma espécie de duplo autorretrato que Miguel Rio Branco mostra, eventualmente, quando quer retratar seu percurso artístico. A imagem é significativa, pois nela aparecem o artista e seu amigo, o fotógrafo Mário Cravo Neto, vistos pela janela de um carro em movimento com Rio Branco em primeiro plano e o amigo ao volante (Figura 21). Datada de 1985 e localizada no sertão da Bahia, a fotografia de álbum de família marca um rico período na trajetória do artista, que podemos nomear de segundo ciclo na sua carreira. Os anos 1970, tratados pontualmente no capítulo anterior a partir de alguns trabalhos importantes, estão sendo considerados neste estudo como sua primeira etapa de formação como artista; período no qual percepção e produção operaram entre uma fotografia de feições documentais e um cinema de estética experimental. Ambas foram direcionadas à paisagem social brasileira, cujo processo revelou interesse sobre a vida das gentes do interior e seus modos de sobrevivência, e resultou em imagens que evidenciavam uma discussão sobre miséria e identidade.

103 Trata-se de um período que, em síntese, vai das experiências com Pindorama, de Arnaldo Jabor, em 1971, à realização da individual Negativo Sujo, em 1978/ Esses trabalhos de cunho político, permeados pela experimentação estética, funcionaram como um tipo de tratamento do solo sobre o qual Rio Branco iria iniciar a demarcação de seu terreno poético. Na fotografia de 1985, com Cravo Neto, o automóvel parece atingir uma velocidade de cruzeiro, confortável e satisfatória, evocada pela expressão feliz de um artista que começa a ganhar autonomia de voo. Essa imagem nos evoca tal sensação, pois, de fato, o ano de 1985, para Miguel Rio Branco, marca um tempo de realizações importantes nascidas no início da década de A imagem do carro em pleno sertão baiano é emblemática em seu percurso. É nessa região que o artista empreende uma jornada pela realidade brasileira, que culmina com a experimentação documental de Negativo Sujo, em 1978, no Parque Laje, no Rio de Janeiro, e em 1979, no MASP. Nesse mesmo ano, abre-se o segundo ciclo, o da sua chegada à comunidade do Maciel, no Pelourinho, em Salvador. Observa-se, naquele momento, um movimento experimental com a fotografia dentro de uma paisagem social, já voltado para as interioridades do país, representado pelas imagens sobre garimpos, seca e pobreza rural em Carnaíba, e o começo de uma viagem mais para dentro, tanto no sentido da condição humana quanto das possibilidades do signo fotográfico, ao deparar-se com o cotidiano de um distrito de prostituição de uma grande cidade brasileira, a comunidade do Maciel. A partir daí nascem trabalhos que resultarão na exposição fotográfica Nada Levarei quando Morrer Aqueles que Mim Deve Cobrarei no Inferno, em 1980, no Rio e São Paulo. Além dela, a direção do média-metragem de mesmo nome, em 1981, e a edição, no México, do seu primeiro livro, Dulce Sudor Amargo, lançado oficialmente em novembro de 1987, no Brasil, acompanhado de uma exposição na Galeria de Fotografia da Funarte, no Rio de Janeiro Retornarei sempre a esse período ressaltando aspectos importantes nessa fase de formação. 52 A edição do livro no México data de A inauguração da exposição e o lançamento no Brasil ocorreram no dia 5 de novembro na Galeria de Fotografia da Funarte. Cf. FUNARTE, 1987a. 102

104 2.1.1 Exposição Nada Levarei quando Morrer Aqueles que Mim Deve Cobrarei no Inferno As imagens que o artista começa a expor em 1980, na individual Nada levarei..., na Fotogaleria Fotoptica, em São Paulo, constituem-se na primeira exibição pública das fotografias captadas dos ambientes e pessoas com os quais Rio Branco conviveu e viveu, entre junho e dezembro de 1979, no Maciel (Figura 22). A exposição, inaugurada em 13 de outubro, é formada por 50 fotografias coloridas, montadas em Cibaprint (BRIL, 1980; OLIVEIRA,1980), que causaram impacto imediato na cena artística brasileira, mobilizando análises críticas e, em seguida, ganhando projeção internacional. São imagens de crianças, prostitutas, bares, cafetões, cachorros de rua, casarões antigos em estado de abandono e a presença ostensiva dos corpos. Ainda que o artista recuse certo aspecto documental do trabalho que remete à tradição do fotojornalismo e que ele rejeite seu trabalho como denúncia social, é impossível negar a força política que tais fotografias provocaram: ao revolver as entranhas da miséria urbana de uma capital brasileira, Rio Branco devolveu ao público, na forma de imagem, uma energia sexual inscrita no corpo, especialmente o das mulheres do bairro. Figura 22: Fotografias que integram a exposição Nada Levarei quando morrer aqueles que mim deve cobrarei no inferno, Fotografias acima e abaixo à direita: Fonte: Acervo Fotoptica São Paulo. Fotografia abaixo à esquerda: Fonte: Exposição Teoria da Cor - Estação Pinacoteca São Paulo, Reprodução: Mariano Klautau Filho. 103

105 Uma vida difícil se vê estampada nas imagens, nos retratos, porém revestidas de um poder erótico em reação à situação miserável em que vivem os habitantes do lugar. Apesar dos cortes bruscos, às vezes inusitados, cujo enquadramento privilegia partes e não o todo retratos em que os rostos não aparecem, muitas fotografias do Maciel são secas e diretas, como a do ventre masculino com os dois galos, desprovida de qualquer nuance (Figura 23). Outras imagens são elegantes, mais sofisticadas na composição, como, por exemplo, a do bar visto de dentro, tendo uma coluna a dividir a imagem em dois quadros, permitindo uma descoberta mais vagarosa dos elementos em cena (Figura 24). Figure 23: Imagens que integram a exposição Nada Levarei quando morrer aqueles que mim deve cobrarei no inferno, Fonte: livro Dulce Sudor Amargo, Figura 24: Imagem que integra a exposição Nada Levarei quando morrer aqueles que mim deve cobrarei no inferno, Fonte: Coleção Pirelli Masp. 104

106 Outras ainda são mais obscuras, enviesadas, mesmo em se tratando de nus explícitos (Figura 23). No entanto, todas estão ligadas por uma visão frontal com o mundo, talvez envolvidas por uma necessidade paradoxal de confrontação e diluição com aquela comunidade. Rio Branco sempre evitou assumir a palavra documento como sustentação do seu trabalho. Em contraposição, incorporou, na maioria das vezes, o conforto pela plasticidade e busca formal, como no seu depoimento a Lígia Canongia (1981) na época do trabalho no Maciel: Bem, creio que minhas fotos têm tanto o lado formal como o documental. Vistas ou montadas de maneira diferente, poderiam ser tidas tanto como documentais quanto formais. Creio que é pela montagem que se concretiza a minha visão pessoal. Esta é que não deixa que o formalismo domine, nem que possa dizer: isto é um documento. Em outro depoimento, dessa vez a Fernando Cerqueira Lemos (1980), do jornal Folha de São Paulo, o artista relatou como conduzia o seu processo no que se refere às motivações iniciais e os procedimentos usados. Rio Branco afirma naquela altura, 1980, que seu trabalho surge A partir de uma ideia, às vezes de ordem social (utilizando muito o fotojornalismo como começo de trabalho), às vezes formal, durante a execução das tomadas, deixo meu inconsciente bastante solto, sem esquecer, no entanto, as linhas mestras conceituais. Esse limiar entre a motivação de ordem social e um envolvimento intuitivo e instintivo, comportamento que caracteriza muito mais o campo do inconsciente, parecem perpassar toda a produção do artista desde as primeiras experiências. Considero aqui que não há um fotógrafo documental que foi se transformando em um artista, cuja busca formal e plástica foi ganhando autonomia. Embora alguns depoimentos do artista, alguns artigos críticos, a própria recepção do público e o tratamento dado pelo mercado da arte observados ao longo de sua carreira reforcem parcialmente essa ideia, a intenção deste estudo, entre outros objetivos, é investigar a presença dos aspectos documentais em sua poética como um campo de atrito e instabilidade, como um elemento forte e problematizador. Por outro lado, considera-se a plasticidade, os mecanismos de subjetivação, os contornos inconscientes não como componentes apaziguadores de seu trabalho. Operar no limite e aproximar-se das diversas dimensões que esses aspectos se manifestam na obra do artista nos dará a 105

107 oportunidade de compreender sua trajetória menos linearmente e evitar uma visão evolutiva sobre sua obra. Entre o inconsciente solto e a atenção às linhas mestras conceituais, o artista equilibra-se, arrisca-se em ideias que parecem contraditórias, mas que, de fato, indiciam procedimentos que estão sempre experimentando limites na representação do objeto ou assunto com o qual se envolveu. A fotografia parece ter sido o meio mais profícuo para Rio Branco na experimentação desses limites, e é partindo da tradição de uma relação direta com a realidade proporcionada pelo signo fotográfico que ele inicia sua confrontação com o mundo, movido por uma consciência social e uma necessidade de expressar sua postura perante a realidade social do país. A vivência no Maciel foi motivada por um instinto político. Algumas imagens reunidas na exposição Nada Levarei... ganharam as páginas da revista Aperture. O ensaio foi acompanhado de texto assinado pelo próprio artista, em que fica evidente seu interesse pelas questões sociais do Brasil, atribuindo às imagens um valor de denúncia: A comunidade do Maciel é um rasgo no tecido social de Salvador. Salvador foi a primeira capital do Brasil, quando era colônia de Portugal em pleno florescimento. Isso permaneceu assim, até a capital ser transferida para o Rio de Janeiro em Salvador está situada numa costa de 750 milhas que atrai uma considerável e crescente população turística. Trata-se de uma situação que se estende por toda a terra tropical o negócio do turismo que agrava as tensões sociais onde a diferença social já é grande (RIO BRANCO, 1983). 53 O texto escrito para a Aperture é motivado especialmente pelo interesse de Rio Branco em fotografar as prostitutas. Ele explica que o trabalho com as mulheres teve início em Brasília e nas chamadas cidades-satélite em Foi em Luziânia que começou o trabalho na zona. A partir de então, continuou a produzir essas imagens em diversas cidades brasileiras. O artista declara que foi somente no Pelourinho que encontrou o que queria: O clima dessas primeiras imagens era muito mais a mistura de sensualidade e drama. Mas não percebi de fato o que eu estava buscando antes que eu fosse viver em Salvador e viesse conhecer a 53 No original: The community of Maciel is a tear in the social fabric of Salvador. Salvador was the first capital of Brazil, when it was a colony of Portugal and in full bloom. It remained so until the capital was moved to Rio de Janeiro in Salvador is situated on a 750-mile coastline that attracts a healthy and growing tourist population. It is a situation one finds throughout the tropical lands a tourist trade that aggravates social tensions in a country where the social dissonance is already severe. 106

108 comunidade do Maciel na histórica area do Pelourinho. Era a mescla da degradação da área com as cicatrizes das pessoas que moravam dentro de paredes miseráveis (RIO BRANCO, 1983). 54 A associação entre as ruínas e paredes deterioradas do bairro e as cicatrizes no corpo das mulheres foi a chave inicial que Rio Branco encontrou para o seu trabalho. Essa relação metafórica foi mencionada por ele desde os primeiros depoimentos de época, entre 1980 (ano da primeira exposição) e 1985 (ano do primeiro livro), e até recentemente, nas entrevistas publicadas sobre seu trabalho. 55 Essa relação poderosa, possibilitada por uma percepção atenta e delicada, entre cicatriz corporal e a deterioração de muros e paredes levou-o a uma abstração plástica que, com o uso absoluto da cor, de uma certa temperatura tonal, começou a sedimentar uma estética fotográfica, que despertou o interesse por sua fotografia. Foi na fragmentação, no detalhe, tanto da cicatriz quanto das rachaduras e manchas, que ele evidenciou as texturas, imprimiu as cores saturadas, fez perceber as camadas que subsistiam por baixo daquelas superfícies e trouxe à tona a existência subjetiva daqueles seres e coisas. Figure 25: Imagem que integra a exposição Nada Levarei quando morrer aqueles que mim deve cobrarei no inferno, Acervo Fotoptica, São Paulo. Por baixo das estruturas deterioradas dos casarões, revela-se a falência de um projeto moderno de elite brasileiro representado pelos bairros nobres do século XVIII, 54 No original: The mood of these early pictures was very much a mixture of sensuality and drama. But I did not truly capture what I was looking for until I went to live in Salvador and came to know the Maciel community in the historic Pelourinho area of the city. Something very special struck me as I came to know Maciel. It was the melding of the decay of the area with the scars of the people who live within its wretched walls. 55 Cf. CANONGIA, 1981; SIZA, 2002; PERSICHETTI, 2000, 2008; BOUSSO,

109 na então capital do Brasil. A cicatriz, elemento constante no trabalho, funciona como signo indicial por excelência: sintoma da dor e das micro-histórias de uma população, em sua maioria negra e mestiça (Figura 25). A comunidade do Maciel foi fotografada em pleno século XX, ainda escravizada por um poder econômico e uma lógica de riqueza que excluem e recusam a mestiçagem como traço identitário da nação. Não é à toa que o artista sublinha em seu texto para a Aperture, que Salvador é considerada a cidade mais africana do país e que foi a primeira capital até Considera-se, então, que o aspecto formal tão propagado pelo comentário de sua obra pode indicar, por outro lado, uma característica não muito evidenciada: uma abordagem política, calcada em uma consciência mais atenta sobre a história social do Brasil. A analogia entre arquitetura e corpo e o embate entre opulência e miséria, pressentido nas camadas da história do bairro, têm o sexo, o erotismo e a pulsão como antídotos de sobrevivência, mecanismos para a recuperação de certa dignidade. Em seus relatos sobre os habitantes do Maciel, Rio Branco menciona diversas vezes a questão da dignidade como uma característica mantida por eles, em meio ao caos e a miséria do lugar. Porém, esses signos de resistência estão numa espécie de escrita lírica, engendrada no trabalho plástico que ocorre no jogo entre a fragmentação do detalhe peles e muros e o campo mais aberto das imagens retratos de conjunto em que os rostos e os corpos aparecem em sua totalidade. Ou também em cenas que incorporam mais elementos dispostos em diversos planos ou sequências, que já sugerem um uso narrativo para a exposição (Figura 26). 108

110 Figura 26: Imagem que integra a exposição Nada Levarei quando morrer aqueles que mim deve cobrarei no inferno, À esquerda acima e as fotografias abaixo: Fonte: livro Dulce Sudor Amargo, A dupla de fotografias à direita acima: Acervo Fotoptica, São Paulo. As cicatrizes nos corpos das prostitutas são fotografadas de modo quase direto, enquadrando somente a área do corpo onde se localizam, excluindo o rosto do quadro. São dispostas em sequências, como um registro que documenta e descreve possíveis histórias (Figuras 27 e 28). Algumas delas, por detrás dessas cicatrizes, são relatadas pelo artista como resultado de brigas, tortura, sífilis e outras doenças (RIO BRANCO, 1983). Terezão da Lapa tem uma em forma de meia lua entre os seios, produzida por queimadura de carvão infligida por policiais. Feita com lâmina de barbear, quando estava presa por homicídio, a de Andorinha tem a forma do pássaro de mesmo nome e transformou-se em sua identidade mais concreta, talvez por localizar-se no rosto. Rio 109

111 Branco ainda menciona a de Leninha, produzida por queimaduras de charuto no meio das pernas. Figura 27: Imagem que integra a exposição Nada Levarei quando morrer aqueles que mim deve cobrarei no inferno, Acervo Fotoptica, São Paulo. Figura 28: Tríptico que integra a exposição Nada Levarei quando morrer aqueles que mim deve cobrarei no inferno, Esta imagem é uma remontagem do tríptico para a exposição Teoria da Cor Estação Pinacoteca de São Paulo, Reprodução: Mariano Klautau Filho. 110

112 Há uma clara intenção do artista, considerando um texto traduzido para o inglês e publicado em uma revista de ampla circulação internacional, como a Aperture, em descrever objetivamente fatos e imagens que, de algum modo, denunciam o ambiente social no qual ele estava mergulhado para desenvolver seu trabalho fotográfico. A descrição e os relatos não enfraquecem e nem valorizam as imagens. Funcionam ali como mais uma linha, mais uma camada da escrita no corpo fenomenológico do trabalho, em seu conjunto de enunciados. As motivações que levaram Rio Branco ao Pelourinho já vinham se construindo, como experiência com a realidade social brasileira, desde 1976, no sertão nordestino. Os atritos entre imagem direta e documental e as construções expositivas (montagem de Negativo Sujo), que desalinhavam a narrativa de tradição fotojornalística, faziam-se presentes e se consolidavam tanto no próprio discurso verbal do artista quanto na percepção crítica sobre seu trabalho. Junto a isso, havia na fala de Rio Branco uma inconstância, oscilação na tentativa de precisar os conceitos e definir qual tipo de fotografia ele propunha. Importante considerar que tal oscilação reverbera a dificuldade de fixar uma única ideia sobre o sentido de documental, apesar da história (oficial) da fotografia e da arte, em grande medida, ter conseguido aprisionar o termo em um gênero. A inconstância de Rio Branco reflete certa inexatidão sobre o conceito de fotografia documental que temos visto e procurado entender, sob uma perspectiva histórica, na análise proposta neste estudo. Observa-se a opção por uma linguagem mais poética, uma quase recusa ao documentarismo; mas, ao mesmo tempo, seu discurso deixa entrever, constantemente, uma necessidade pela denúncia social, componente que estaria, em tese, associado ao desejo documental. A fotografia de Rio Branco estava se desenvolvendo sob essa via de mão dupla, já experimentada no projeto Negativo Sujo, mas cujo fluxo e contrafluxo entre documento e sentido poético começavam a ganhar volume e intensidade 56 com a exposição Nada Levarei..., a ponto de gerar impressões mais arrebatadas. Havia nessa nova série pontos de convergência e de atrito mais provocativos entre as situações reais de miséria do lugar retratado e as soluções técnicas de caráter formal e narrativo. Isso marcou, de fato, uma diferença na produção daquele momento e despertou o interesse 56 Associo ao sentido de volume e intensidade a um outro componente que engendra a poética do artista: a velocidade. Diz respeito à mobilidade de sentido que ganham as imagens na medida em que o artista avança na sua trajetória, que resultará, especialmente, nas instalações. 111

113 da crítica, que se viu envolvida por imagens fotográficas de outra natureza sobre a paisagem humana do Pelourinho. O crítico Moracy de Oliveira, do Jornal da Tarde, ressalta o caráter escorregadio do tema da exposição, como um lugar comum da cena social brasileira e que, contudo, foi tratado pelo fotógrafo de outro modo, resultando em um discurso próprio:...cheio de imagens/símbolo de fácil assimilação como é um bairro decadente que exibe fachadas coloniais semidestruídas, prostitutas, traficantes e um repertório completo de marginais, Miguel Rio Branco consegue uma síntese onde a documentação sociológica convive de forma invejável com um discurso pessoal amargo e pessimista (OLIVEIRA, 1980). O discurso pessoal se constrói, segundo o crítico, a partir de uma atitude sem paternalismo, em que a câmera esmiúça o lugar e encontra um universo de violência, sexualidade, insegurança e transitoriedade. Ao observar a precariedade do lugar e somá-la, já na construção do trabalho, ao discurso não linear do artista, Oliveira percebe o trabalho como uma ampliação da realidade feita de sensações fragmentadas, de frases interrompidas que nunca se completam. Em meio à sua análise, em sentido geral, considero aqui a menção feita pelo crítico a um elemento importante que começa a aparecer na obra de Rio Branco e que irá marcar profundamente sua futura trajetória: a transitoriedade e o provisório, tanto da realidade (dos objetos) como das imagens, o que será percebido em seus livros, de forma mais densa, a partir dos anos 1990, questões que tratarei pontualmente mais adiante. Além disso, Oliveira relaciona as fotografias como uma escrita que não se completa, quando as chama de frases interrompidas. Esse efeito de incompletude inusitada provocada, paradoxalmente, por imagens tão diretas e descritivas, que caberiam muito bem em um contexto de reportagem jornalística ou ensaio documental mais ilustrativo surpreende espectador e crítico. O arrebatamento causado pela exposição Nada Levarei... atingiu em cheio a crítica Stefania Brill, causando uma interferência curiosa em sua escrita, fazendo-a utilizar vários substantivos compostos: vida-inferno; corpos-fachadas; casas-quadros; venezianas-tábuas; vermelho-vida; vermelho-inferno; branco-inocência; branco-loucura; branco-fundo do poço. Embora careça de um apuro mais equilibrado de análise e uma atitude menos barroca na organização do pensamento, a resenha de Brill é francamente abalada pelo caráter pictórico e fílmico da montagem da exposição no espaço da galeria. 112

114 De certa forma, a crítica tenta emular, em seu texto, a cadência das imagens e o impacto da cor. O uso dos substantivos compostos seria uma tentativa de incorporar verbalmente a apreensão visual dos dípticos e trípticos, que começam a ser utilizados de forma mais evidente naquele contexto. A junção de substantivos que se chocam e se complementam, funcionando como adjetivo, em sua significação utilizada por Brill, é uma reação à justaposição de imagens que se chocam e se interpenetram tanto como significados simbólicos quanto impressões icônicas. Stefania Brill se deixa impressionar pela luz do entardecer que atravessa as fotografias e assume a vertigem cromática, que começa tomar corpo na obra do artista. Em um dado momento, ela capta a intensidade que se constrói entre as camadas do real concreto e as aspirações pictóricas de Rio Branco: São barro, cal, madeira, que se vestem numa luminosidade de sol (que luz bonita é esta do entardecer que aquece, ilumina e penetra nas fendas e dobras, emprestando um relevo às imagens). São as cores de terra, tijolo, café emolduradas num verde envelhecido, azul colonial e dourado barroco. As venezianas-tábuas brutas entreabertas deixam apenas adivinhar a vida escondida. Um retângulo vazado, esboço de uma janela, aprisiona dentro de nada um verdadeiro céu azul com uma nuvem branca suspensa (BRILL, 1980). No artigo, ainda, Stefania Brill admite que mergulhou nas imagens de Rio Branco: Não conheço Maciel, lá no Pelourinho. Mas mergulhei nele durante caminhada pelas imagens de Miguel Rio Branco. Apesar de desfiar uma profusão verborrágica submergida desse mergulho, que a fez perder o fôlego da escrita, Brill comportou-se sob o impacto de um outro aspecto que iria marcar futuramente a poética de Rio Branco: o cromatismo saturado. As cores em tons ora fechados, ora mais intensos e contrastantes, foram instauradas em sua obra a partir dessa primeira exposição. Tais cores não foram assumidas de forma exclusiva devido à sua formação de pintor, como ele mesmo informa em depoimentos ao longo de seu percurso. Há três fatores a considerar nesse contexto, que me parecem importantes para refletir sobre sua produção tanto nessa fase embrionária com o Pelourinho como em sua produção dos anos 90 em diante. Em primeiro lugar, o universo cromático inaugural em Nada Levarei... não teria sido possível sem a experiência igualmente inaugural e sensorial de seu trabalho no 113

115 filme Pindorama, de Arnaldo Jabor, em Ali, técnica, experimentação narrativa, estética cinematográfica e uma alta dose de cultura espiritual fizeram a cabeça de todos os artistas envolvidos, considerando esses fatores assumidos como posição político-estética. O segundo aspecto, já como desdobramento da experiência vinculada à influência conceitual do Cinema Novo, é o fato de que as cores enfim assumidas com a exposição de 1980 realizam o desejo de representação de uma certa brasilidade, ou pelo menos de um enfrentamento estético e político de uma realidade brasileira particular. Há um confronto com a realidade motivado pelo desejo de representação do Brasil, no qual a contundência documental realista usa a ficção como mecanismo para recolocar questões sociais e culturais. Os mecanismos ficcionais percebidos no trabalho fotográfico de Rio Branco podem ser compreendidos como tendo natureza semelhante às concepções de montagem nas teorias do cinema. Enfatizo que o uso de procedimentos ficcionais estaria localizado, mais fortemente, na estrutura cinematográfica narrativa que o artista escolhe para tratar sua fotografia, sem desconsiderar o uso ficcional da cor nesse confronto como o mundo concreto e social em que as realidades são ampliadas. O terceiro aspecto está relacionado ao mencionado uso ficcional da cor. Seria considerar o contexto da exposição Nada Levarei... como o momento em que Rio Branco inaugura uma fotografia cromática de tal impacto plástico, que boa parte da crítica e da recepção a seu trabalho nas décadas posteriores irão defini-lo unicamente como um artista de conformação barroca e cujo trabalho com a cor tem como origem exclusiva a pintura, práticas e experiências iniciadas em seu aprendizado formal, durante os anos Lívia Aquino (2005) aponta em seu estudo sobre o artista que o primeiro momento em que o trabalho de Rio Branco foi identificado com a estética barroca aconteceu em uma exposição curada por Paulo Herkenhoff, em Frankfurt, em Nessa mostra havia um políptico do artista intitulado Barroco sobre o qual Herkenhoff ressalta, no catálogo da exposição, a expressividade luminosa em relação ao constraste com as zonas escuras das imagens, sendo isso uma consciência do artista sobre a materialidade de seus claros-escuros fotográficos. O crítico ainda enfatiza que diante de tal consciência, pintor e fotógrafo são termos insuficientes e que as dobras mais importantes contidas no universo do trabalho seriam as dobras da alma. Há que se 114

116 observar a dimensão onírica e espiritual a ele atribuída e o fato de que Rio Branco, sob os olhos da crítica, está se descolando de uma identificação restrita à fotografia como se a conexão com a pintura fosse um passaporte para sua legitimação no campo da arte. Isso, evidentemente, ganha um peso, especialmente com a sofisticação com que a cor, em seu trabalho, adquire nos anos Assim, Aquino constata: A partir deste momento da exposição do políptico Barroco, outros críticos também passam a demarcar a obra do autor em torno do estilo barroco, principalmente pelo drama explicitado na sua fotografia por meio da luz e da sombra, como também pela cor (AQUINO, 2005). Parte dessa associação com o estilo é pertinente já que é nítida a relação que Rio Branco mantém com a pintura, não somente como parâmetro e referenciais no seu repertório de conhecimento de história da arte. Porém, quando um conjunto considerável da crítica acredita nesse repertório como fonte única acaba por homogeneizar sua obra, apoiando-se em aspectos plásticos da estética barroca para justificar a importância da obra fotográfica no campo da arte. 57 Neste sentido, pareceme que a recepção crítica sustenta-se, por vezes, em uma atitude formalista e insuficiente para a compreensão das várias camadas que estruturam seu trabalho. Opto por investigar o sentido constante de movimento que atua o artista no modo de construção poética e como ele mobiliza a apreensão do fruidor para um trabalho no qual cada imagem possui uma duração, para um exercício de (dis)tensão que está latente na fixidez da imagem fotográfica, mas que ganha mobilidade no conceito de montagem seja na exposição ou no livro Esclareço que a recepção crítica mencionada neste trecho acaba por referir-se, quase exclusivamente, ao barroco histórico, e não se relaciona à ideia de barroco como percepção de mundo, uma vertente trans-histórica, ou neobarroca, acentuada na arte visuais e na cinematografia contemporânea, como o cinema-novo e suas alegorias, por exemplo, e não apenas o uso específico das cores. 58 Os três aspectos mencionados são colocados no sentido de compreender mais pontualmente essa passagem no percurso artístico de Rio Branco, como uma chave para análise da constituição de sua poética. 115

117 2.1.2 Aspectos materiais, intenções poéticas A exposição Nada Levarei quando Morrer Aqueles que Mim Deve Cobrarei no Inferno, apresentada na Galeria Fotoptica, em 1980, é muito significativa pois apresenta diversos elementos que inauguram procedimentos materiais, levantam questões sobre a representação do documento fotográfico e revelam um processo de invenção poética que irá marcar o conjunto do seu trabalho, assim como a sua identificação por parte do público e recepção crítica. Constituída de 50 imagens coloridas, ampliadas em cibaprint, a exposição marca a primeira adesão do artista ao uso total da cor. A grande quantidade de imagens lhe dá o fôlego necessário para trabalhar sua intenção cinematográfica no jogo narrativo com as imagens estáticas. O suporte em Cibachrome fornece-lhe uma forma arrojada de apresentação. A sofisticação das ampliações em Cibachrome em tamanho maior, nos formatos 30X40 e 50X60, parece sinalizar uma mudança em relação à precariedade dos materiais e às cópias em pequeno formato utilizadas na exposição anterior, Negativo Sujo, mais ligada a procedimentos conceituais operados na arte dos anos A história da montagem da exposição Nada levarei... nasce um pouco antes, na mostra de Mário Cravo Neto, montada no mesmo espaço e que antecedeu a de Miguel Rio Branco. Apresentado por Cravo Neto a Rosely Nakagawa, responsável pela Galeria Fotoptica na época, Rio Branco foi convidado a realizar exposição na galeria. Sua intenção era seguir o mesmo padrão técnico das fotografias de seu amigo, ou seja, ampliá-las no processo Cibachrome, que, na época, era possível de ser produzido em Nova York. Cravo Neto já trouxera as ampliações prontas do exterior, uma série em cor de retratos em estúdio, feita em negativo 6x6, em cromo. Segundo Rosely Nakagawa (2014), a mostra de Cravo Neto na Fotoptica era uma versão inicial série ainda pouco conhecida do público, colorida em fundo neutro, do universo dos retratos em preto e branco, que, posteriormente, marcou a identidade artística de seu trabalho. A Galeria Fotoptica, ao convidar o artista, financiava produção e montagem das exposições. No entanto, segundo Rosely, não poderia arcar com as ampliações que Rio Branco queria fazer, pois não possuía meios para produzir as ampliações em Cibrachrome. O Ciba era um processo de impressão direto entre o positivo e um tipo de papel criado especialmente para filmes em slides, cuja imagem final revelada é positiva. 116

118 O papel fotográfico da empresa suíça Ciba-Geigy era de alta qualidade e trazia fielmente o registro de contraste, de brilho, destaca Rosely. O ciba trazia toda a luz que o cromo tinha; tinha uma superfície meio perolada, então o branco era reflexivo, observa Rosely Nakagawa. A Fotoptica, por sua vez, oferecia um processo direto de impressão pela Kodak, parecido com o ciba, mas sem a mesma qualidade. Rio Branco possuía algumas imagens em Cibachrome, mas, para completar o seu projeto de exposição, precisava produzir várias outras imagens. Diante do impasse, ele pensou em uma concepção radicalmente oposta à anterior: Depois dessa impossibilidade técnica, ele propôs que as imagens fossem impressas em tecido e costuradas na parede, conta Rosely. Tal ideia foi impossível para a estrutura da galeria: uma casa antiga na qual não se podia interferir no reboco e nem derrubar paredes, como o artista chegou a sugerir. A opção pela ampliação das imagens via processo direto da Kodak, que imitava a qualidade do Cibachrome, acabou sendo aceita pelo artista para aproximar-se ao máximo das cópias em Ciba que ele já possuía. A junção entre esses dois processos diretos, Kodak e Ciba, mesmo apresentando diferenças de qualidade, findou por apresentar, como resultado, um acabamento sofisticado para as imagens. As matérias da época sobre a exposição, algumas já mencionadas aqui, não informam essa diferença técnica. Todas elas afirmam que se tratava de 50 imagens em Cibaprint, certamente pelo fato da própria divulgação da exposição não informar a diferença entre os dois meios de impressão, detalhe que não parecia importante em face da força de conjunto do trabalho. O fato é que a série completa que constituía a exposição era produzida em cromo e ampliada em processo direto, ambos com uma característica especial: a captação e a reprodução da intensidade vivaz das cores. A realidade cromática se destacava. A luz, mais intensa era captada pela qualidade técnica do cromo e emulada mais fielmente pela superfície do suporte do Cibachrome. No processo da Kodak, a qualidade era inferior, mas a lógica e o efeito de realidade eram o mesmo. Era o que buscavam as empresas, e os fotógrafos, crentes dessa relação especular, incorporavam esses recursos e apostavam no impacto do resultado técnico como tradução de uma estética. Importante ressaltar que o papel produzido pelo Ciba não era, exatamente, um papel. Tratava-se de um tipo de plástico, um suporte em poliéster, que brilha, reflete feito um slide gigante. Suas condições de durabilidade são muito maiores que os 117

119 processos comuns em papel. A tecnologia avançada de materiais, somada a processos químicos de grande durabilidade e fidelidade técnica, funciona, na indústria fotográfica, a serviço de uma tradução cromática da realidade, que acentuava os tons e realçava a luminosidade dos brancos. É por meio dos suportes industriais da Ciba-Geigy ou da Kodak, criados para produzir fidelidade de cor, resolução de contrastes e alta nitidez, que é construído um padrão de realidade. Esses elementos resultantes de técnicas que intensificam as cores e alcançam alta definição acabam determinando as intenções de um dado trabalho e contribuindo para sua força poética. O mundo colorido idealizado inventado pela Kodak e/ou pelo Cibachrome encontrou o mundo real da zona de prostituição do Maciel. Muito se fala do impacto que as imagens de Rio Branco causaram naquele momento, quando foram expostas pela primeira vez. Rosely Nakagawa afirma que a mostra foi um choque na época pela imagem da Bahia que ele (Rio Branco) mostrava, o avesso do avesso : O que tínhamos na época como tradição em fotografia era o fotojornalismo, a fotodocumental, a foto de moda. Nós não tínhamos espaço para ensaios tão experimentais. A única pessoa que fazia mais isso era o George Love na [revista] Realidade, e era uma pessoa combatida por causa disso. A expectativa de uma galeria de fotografia era ver fotografias bonitas na parede, pra vender, pra decoração. A gente tentava fugir disso. E como um espaço de arte para fotografia, uma exposição sobre a Bahia esperava-se muita baiana, muita fachada colonial. A do Mariozinho [Cravo Neto] eram retratos, era uma coisa mais palatável, tinha uma sofisticação escultural. Era mais tratada. Mas a do Miguel [Rio Branco] era crua. Ele tratou de uma coisa que ninguém queria ver. Aquilo era tratado sem efeito glamouroso. Era uma realidade que ninguém queria ver. E ele tratava [era] de uma maneira crua, o jeito de fotografar também era: essa aproximação mais glauberiana, sem nenhuma bondade, nenhuma intermediação. Então isso era uma coisa muito inesperada para o público em geral e para a Fotoptica, que era uma empresa, queria mostrar o belo etc. (NAKAGAWA, 2014). O público, a galeria, os críticos, os fotógrafos, todos, de fato, foram impactados pelo efeito provocativo que o trabalho de Rio Branco propunha sobre certa realidade brasileira. Havia uma dimensão de outra natureza sobre o objeto real, que causava no espectador uma impressão de proximidade com o assunto. É por isso que a superfície da pele das prostitutas e suas cicatrizes de variadas formas ganham um sentido 118

120 glauberiano, como mencionou Rosely. As cicatrizes corporais e a deterioração da arquitetura que abrigava os moradores do Maciel foram realçadas pelo padrão Kodak/Cibachrome de qualidade e aumentavam o efeito de proximidade entre objeto imagético e espectador. A intensidade das cores (prometidas pelas indústrias) tornaram mais quentes as peles morenas e negras das mulheres (Figura 30), mais vivas as penas e feridas nas costas do galo de briga (Figura 29). A promessa comercial de definição e nitidez tornou mais monstruosa a figura da prostituta seminua com o corpo todo marcado e as pernas inchadas por alguma enfermidade (Figura 29); ou mais dramático o couro sem pelo do cão sobre a calçada (ver figuras 1, 12 e 13 no primeiro capítulo). Figura 29: Imagens que integra a exposição Nada Levarei quando morrer aqueles que mim deve cobrarei no inferno, Fonte: Livro Dulce Sudor Amargo, 1985 Figura 30: Imagem que integra a exposição Nada Levarei quando morrer aqueles que mim deve cobrarei no inferno, Fonte: Acervo Fotoptica, São Paulo. 119

121 A sofisticação material dos produtos industriais fotográficos acabava de construir um novo espelho, uma outra face da miséria social no Brasil do ano de 1980, período transitório representativo do rescaldo da época ditatorial. A história da fotografia e suas relações de fidelidade com o objeto fotografado é contada pela fabricação dos materiais, pelos padrões instituídos pela qualidade diversa dos processos químicos e óticos; enfim, pelo que a indústria permitia para que o diálogo especular com o mundo se desenvolvesse de infinitas maneiras. Por isso, a variedade tão ampla de realidades possíveis, que ainda continuam a serem escritas pelo signo fotográfico. A realidade chocante do Pelourinho, mostrada pela primeira vez na exposição Nada levarei... seria, em um primeiro momento, a realidade material dos suportes tecnológicos da Kodak ou o do processo Cibachrome. Em um segundo momento, é fato que existe um olho no meio desse percurso atento à materialidade da vida real e, ao mesmo tempo, à materialidade dos suportes capazes de artificializar (pelo intenso brilho e a vivacidade das cores) a crueza do cotidiano, a frontalidade dos retratos, o relevo das cicatrizes. O cartaz publicitário dos cigarros Hollywood possui um apelo pop, mas está jogado na vala, no meio-fio, no espaço público, que também é tomado pelo lixo (Figura 31). Figura 31: : Imagem que integra a exposição Nada Levarei quando morrer aqueles que mim deve cobrarei no inferno, Fonte: Acervo Fotoptica São Paulo 120

122 A força da primeira apresentação das fotografias do Maciel reside no conflito. Um deles é este que se encontra no atrito entre o brilho sofisticado do material com a atmosfera obscura dos quartos de um prostíbulo pobre. Os filmes em slides (assim como o suporte de impressão pelo processo direto) são produtos idealmente projetados para captar um mundo colorido e alegre, que bem poderia ser o universo tropical da Bahia. O que foi projetado pela indústria para grafar um mar verde claro ou um céu azul será usado para registrar ruínas, corpos na sombra ou luzes vermelhas de baixa intensidade. Começa aí, neste momento, a invenção de um vermelho sanguíneo na obra de Rio Branco, onde caberão muitas intensidades e metáforas, cuja relação com o Pelourinho será determinante e instauradora de um jeito de trabalhar a fotografia como interface de um mundo vivido. É a partir da consciência de que a técnica fotográfica permitia uma experimentação cromática e narrativa com a realidade social, que Rio Branco começa a consolidar sua, vamos chamar assim, poética fílmica. Seria a perspectiva de que o signo fotográfico ultrapassava sua condição (de imagem) estática para ser, antes de tudo, uma experiência de movimento no que se refere ao jogo com a percepção. A força cromática, portanto, não surgiu de sua formação pictórica, até porque sua produção na pintura está muito distante da extensão que sua obra fotográfica alcançou. Se podemos considerar uma potência cromática na poética do artista, é porque surge de uma experiência com a captação cromática da luz sobre o material da película, imbricada ao procedimento narrativo do cinematográfico. Sem a dimensão narrativa associada ao efeito plástico surgido na fatura do filme e à consciência conceitual da montagem, o aspecto pictórico na obra fotográfica de Rio Branco cairia no vazio. A identificação que se faz do trabalho de Rio Branco com a pintura (primeiro fator mencionado anteriormente) resulta da imediata experiência perceptiva que se dá com os níveis de saturação encontrados em suas fotografias. No entanto, a densidade das cores em Nada Levarei..., em 1980, não seria possível sem a prática experimental de Rio Branco com o cinema, cuja matriz se deu como fotógrafo-still, ao lado de Afonso Beato, na direção de fotografia de Pindorama, de Arnaldo Jabor, em 1971, na Ilha de Itaparica. Além da fotodocumentação realizada das cenas e personagens sob o conceito de tropicolor, de Beato, analisados no capítulo anterior, Rio Branco declara que a experiência foi essencial e que se tratou de um aprendizado nada convencional : 121

123 Como eu não saí da ilha os quase três meses de filmagem, tudo para mim acontecia lá. Numa das folgas, aconteceu de eu ser câmera em uma filmagem 35mm feita com o então assistente de Jabor, Antonio Calmon...a equipe era especialíssima, e aconteciam também encontros espíritas da ordem kardecista com o maquiador Ronaldo Abreu e de umbanda, com a esposa do engenheiro de som, o Walter Goulart. Também tive contato com a comunidade de Amoreiras e o candomblé de egunguns...enfim algo muito longe de uma direção carreira. Algo muito mais dirigido para dentro, na tentativa de procurar entender quem eu era e botando para fora coisas que precisava dizer (RIO BRANCO In: BOUSSO, 2010). Em outro depoimento, Rio Branco (In: BLOG BAHIA FLANEUR, 2010, livre tradução) declara que, de certo modo, foi naquele período de produção do filme, no interior da Bahia, que se deu o estalo da fotografia para o artista: Ali eu compreendi a fotografia. Tudo. Toda aquela luz, todos esses contrastes, naquele lugar absolutamente feérico, naquela época pós-beatles e pós-copa de 70, foram fundadores para mim. Foi um momento totalmente mágico. 59 Não se trata aqui de ressaltar o lado místico, muito menos o espiritual. O que se mostra relevante para algo que possamos considerar fundador de uma poética seria a junção de informações encarnadas em uma experiência da vida e da cultura brasileiras, que colocaram, em uma mesma linha de tensão, arte, política, estética, cinema, fotografia, em que um certo sentimento de contracultura brasileira foi assumido numa experiência mais sensorial. Todos estavam certamente envolvidos pela dimensão alegórica e simbólica propostas pelo filme glauberiano de Jabor. Recontar a história original do Brasil numa configuração teatral, na qual os personagens encenam, artificialmente, as alegorias, iluminados e cenografados com as cores saturadas, é um aspecto que funda um repertório para o jovem Rio Branco e confere liberdade de movimento para sua fotografia. O ambiente conceitual cinematográfico de Pindorama, no qual a técnica fotográfica estava aliada à estética experimental narrativa e à vivência cultural do interior do Brasil, incluindo eventos ritualísticos e espirituais, implanta uma posição político-estética no artista. Esse ambiente foi o embrião da fotografia pictórica de Rio 59 No original: ʻʻUne certaine manière c est à Itaparica, à Bahia, que le déclic photographique s est produit pour moi, tu sais...j ai compris la photographie, là. Tout. Toute cette lumière, tous ces contrastes, dans ce lieu alors absolument féérique, dans cette époque post-beatles et post Coupe du monde de football 1970, ont été fondateurs pour moi. Ce fut un moment totalement magique. 122

124 Branco, que ele, de fato, começou a exercer com mais domínio e coragem com o material do Pelourinho. Nessa perspectiva, considero que, além da experiência seminal com as cores no filme de Arnaldo Jabor, o sentido glauberiano, em uma visão mais geral, também seria fundador da dinâmica rítmica (narrativa) projetada na concepção das sequências e montagens dos dípticos e trípticos. Vistas em conjunto, reunidas em uma exposição, instalação ou concebidas para um livro, suas sequências assumem uma cadência tal que é difícil não associá-la com a experiência embrionária (e constante) com um cinema de sensações. Desse modo é que o artista reinventa essa experiência primeira, para que o fruidor se integre a uma fotografia de sensações. 60 O interesse do artista pela paisagem social (segundo aspecto mencionado anteriormente) traduz-se pelo uso da cor que, de certo modo, explica o impacto sobre o público e a crítica. Observa-se que tal arrebatamento se deu tanto pelo desconforto de uma realidade apresentada quanto pelo maravilhamento provocado pela saturação das cores. A exposição de 1980 sinaliza o desejo de representação de uma brasilidade de outra natureza, construída sob uma relação de enfretamento e interpenetração entre o documento social e a busca de uma expressividade fotográfica. Há, por parte de Rio Branco, uma tentativa de aproximação da realidade brasileira e o bairro do Pelourinho será seu cosmos. Porém, seu movimento em direção àquele universo não será, ou não tentará ser, distante, comedido e nem planejado como o movimento de um repórter, cuja pauta jornalística seria, a priori, comprometida com uma atitude humanista ou com a visualização pré-estabelecida sobre o paradoxo da pobreza social e beleza natural. Não havia um compromisso de contornar, simbolicamente, a exuberância tropical da Bahia, sua arquitetura rica do período colonial, nem exaltar a sensualidade de suas mulheres e a negritude do seu povo. Essa paisagem cultural, já formada pela pintura modernista, pela fotografia documental da imprensa ilustrada e pelas imagens turísticas das revistas dos anos 1970, seria desconstruída pelo olho, pelo corpo e pelo manejo material do meio fotográfico. Com isso, Rio Branco não rompe com a fotografia documental. Ele a exercita em sua complexidade, subverte-a em sua utilização reducionista pelo fotojornalismo. As subversões que ele imprime, com as quebras 60 A definição do que chamo cinema de sensações está relacionada às obras fílmicas que evocam uma experiência mais sensorial no espectador, independente do tipo de estética de montagem utilizado. 123

125 narrativas, o uso das cores e a descontextualização, seriam, a meu ver, um profundo mergulho em todas as vicissitudes dos conceitos de fotografia documental. Por outro lado, acreditamos, ou fomos acostumados a compreender, que a fotografia chamada de documental encerra sua potencialidade em uma visão estrita do relato de algum fato ou evento da realidade cotidiana. Na verdade, em uma investigação mais analítica, tomando como perspectiva a história em análise proposta neste estudo, percebemos que a noção de documental tem sido mutante e inclui em suas origens tanto o aspecto ficcional quanto o meio cinematográfico como modos de experimentação com as imagens da realidade. Refletir sobre a produção contemporânea em fotografia nos leva à recusa definitiva na crença de uma polaridade entre um trabalho potencialmente plástico e outro fincado em uma objetividade descritiva acentuada. De fato, as noções tão variáveis do documental na fotografia revelam o quão inesgotável é a sua possibilidade descritiva: o relato, a série, a encenação, o ensaio, a angulação, o ponto de vista, a experiência. Todos esses mecanismos permitem trabalhar com o sentido de movimento e significação A constituição de um Dossiê Pelourinho diversidade material e mobilidade das imagens Tendo como perspectiva menos o abandono e mais a subversão na lida com o documento, chegaremos à investigação de uma poética documental considerando a exposição Nada Levarei... como parte de um conjunto no qual se encontram, ainda, um filme e um livro. Os trabalhos são realizados em um período específico 1979 a 1987 e em um território geográfico e cultural determinado, o da comunidade do Maciel. Embora sejam constituídos de tempo e lugar precisos, a materialidade artística resultante dessa experiência é sensivelmente diversa. A potencialidade de cada suporte exposição, filme e livro permitiu ao artista mover as imagens de um lugar a outro, articular objetos que estavam separados durante a captação no aqui e agora da experiência, separar assuntos que se mostrassem óbvios, ou juntar formas que evidenciassem a linha de um discurso, como, por exemplo, a 124

126 saturação de uma cor ou a repetição de um vermelho em fotografias cujos referentes não possuíam nenhum vínculo aparente. Esse instinto para a narrativa e para um sentido cinemático promoveu a experimentação da série como um antídoto à ideia do trabalho finito de documentação. Lembremos as nuances observadas por Lugon nas transposições de sentido entre documento, documentação e documental. Chegou-se ao adjetivo documental pela recusa do significado restritivo de documentação (Urkunde: certidão, prova) e pela adesão à potencialidade do sentido de documento (Dokument: arquivo, livro, dossiê), termo mais abrangente que resultou no uso de documental como nomeação para forma ou estilo de determinado trabalho. Na relação de Rio Branco com a comunidade do Maciel certamente havia uma vontade de conhecer a realidade daquele lugar, viver sua situação social, reportar talvez essa experiência com a fotografia como linguagem comunicativa, um procedimento semelhante, pelo menos inicialmente, ao do fotojornalista, interessado na documentação. No entanto, havia também a consciência de que era impossível abranger uma totalidade que representasse o lugar. Antes disso, era necessário experimentar viver ali, experimentar aquele lugar como imagem. E isso, evidentemente, fez-se por uma necessidade artística e que gerou um objeto documental em sua forma repleto de paradoxos, uma espécie de Dossiê Pelourinho construído por diversas materialidades. A exposição Nada levarei... incluiu em sua programação sessões de slides, nas quais um conjunto maior de imagens podia ser visto pelo público, já que o trabalho foi, em sua grande parte, captado em cromo, os chamados diapositivos. O crítico Frederico Morais ressalta o papel que desempenha a projeção de imagens no contexto da mostra no Rio de Janeiro. Diferentemente das demais exposições da Galeria de Fotografia da Funarte, esta não vem acompanhada de um catálogo, mas de um audiovisual com trilha sonora que inclui Roberto Carlos e outros ídolos do hit-parade do bas-fond, e um pôster colorido. Neste, vemos novamente a frase, agora em vermelho, illustrando a frente de uma casa, com duas pobres janelas e cujo reboco da parede está se desfazendo (MORAIS, 1980, grifos no original). Importante observar, portanto, que, a despeito do apuro técnico e sofisticação da montagem e da busca de uma precisão na proposta de edição das imagens fixas em Cibrachrome, foi inserida a projeção de slides, um componente errático e igualmente 125

127 relacionado ao experimentalismo da década de 1970, que é o audiovisual. A menção à música de Roberto Carlos e às canções populares como trilha sonora revela dados significativos sobre o processo do trabalho. As sessões de slides estavam funcionando não somente como uma maior amostragem do conjunto de imagens, além das 50 fotografias apresentadas na exposição. Embora atrelada ao universo da mostra, a projeção funcionava, em parte, como um trabalho autônomo, já que se constituía na estética audiovisual como exercício de um novo gênero ligado às práticas do cinema. Rio Branco se insere em um conjunto de artistas brasileiros adeptos do quasecinema, segundo estudo de Lígia Canongia. Ele pode ser identificado a um grupo que utilizou a projeção como poética de construção de imagens. Entre eles estão Antonio Manuel, Arthur Omar, Lígia Pape, Iole de Freitas e Helio Oiticica este último com quem Rio Branco morou e conviveu em Nova York, no início dos Esse grupo, somado a outros tantos artistas, interessou especialmente à pesquisadora e curadora Aracy Amaral, no período de construção de sua importante exposição intitulada Expoprojeção, realizada em A proximidade com Oiticica e a realização da exposição de Amaral são elementos indiciadores importantes de certa filiação de Rio Branco a essa geração. Buscando as origens experimentais das décadas de 1910 e 1920, no contexto das vanguardas europeias como compreensão histórica, Lígia Canongia parte do ponto de intersecção entre duas instituições consolidadas, a pintura/artes plásticas e o cinema, para uma análise sobre as experiências dos anos 1970 e, mais especialmente, sobre determinado grupo de artistas brasileiros atuantes naquele período. Em um primeiro momento, Canongia admite o fato de que o cinema permitiu o uso de várias linguagens e, em seguida, ao passo que o meio começa a ser percebido pelos artistas plásticos, torna-se uma ferramenta de ruptura definitiva de certa estaticidade da arte em suporte fixo. Porém, o mais importante em sua análise é o fato de considerar, acima de tudo, as intersecções, as junções e o aprendizado do artista com o novo meio, para além de sua condição industrial e convenções do cinema narrativo. Assim, se dois meios se tangenciam, naquele ponto fica inaugurado um terceiro espaço de operação. A análise do que se fez e do que se faz em cinema adquire um caráter de extrema importância, 126

128 sobretudo quando se pensa que a linguagem cinematográfica é aberta, talvez mais que qualquer outra, às diversas possibilidades de experimentação, envolvendo não só os problemas da visualidade, como também aspectos de expressão e comunicação (CANONGIA, 1981, p. 10). A maior abertura da linguagem cinematográfica em relação às outras, considerada por Canongia, não parece indicar que há uma hierarquia, e sim que o meio se mostrou um ambiente muito propício à expansão do espaço de intervenção do artista e que ele atua fazendo parte de um novo grupo constituído pela fotografia e o vídeo. Assim como a fotografia e o videoteipe, (o cinema) tornou-se um novo utensílio para a proposta de expansão do universo criativo. Como uma nova prática da visualidade, um novo critério de conhecimento (CANONGIA, 1981, p. 11). O estudo de Canongia é publicado em 1981, numa espécie de calor da hora, período importante em que a arte vê à sua frente a década de 1980 ainda sob a energia eletrizante da experimentação da década anterior. O estudo reúne artistas que envolveram em seu processo as dinâmicas da imagem em movimento: película 16mm, 35mm, Super-8, audiovisual e a espacialidade temporal da projeção. Miguel Rio Branco está nesse rol, merecendo atenção tanto de Canongia quanto de Aracy Amaral. Amaral interessa-se pela inclusão de trabalhos de Miguel Rio Branco e Hélio Oiticica em sua Expoprojeção, e inicia seus convites por carta. As correspondências nos revelam informações importantes sobre os procedimentos utilizados pelos artistas na operação das imagens, a partir das técnicas de movimento, e também sobre determinados conceitos que os fazem pertencer a este significativo grupo experimental de artistas brasileiros interessados pelos meios audiovisuais. Em sua estada em Nova York, Rio Branco filmou e realizou quatro trabalhos em super-8, que acredita caberem na proposta da exposição de Amaral. Em carta à curadora, ele demonstra o interesse em exibir Glovesmoke e detalha outros aspectos de sua produção naquele período novaiorquino. Alguns S8 foram feitos durante a minha estadia em NY sendo que Colony, Glovesmoke, Dargontrap e Hellfrust sejam os que têm algo a ver com o show. Esses filmes são praticamente, anotações de situações que me impressionaram bem forte e sobre as quais impus uma ação realçadora. A duração dos filmes varia de 3 a

129 minutos sendo que Colony e Dragontrap são de duração variável pois utilizo modificação de velocidade durante a projeção. O filme que no momento eu teria oportunidade de duplicar para o show é de 3 min., Glovesmoke, feito em janeiro de 71, colorido (In: EXPOPROJEÇÃO, 2013). O Super-8 e o audiovisual foram meios bastante utilizados pelos artistas entre as décadas de 1960 e 1980, tanto pelos que se reconheciam como artistas plásticos como também por aqueles que atuavam mais especificamente com cinema e fotografia. Esses equipamentos permitiram a invenção de linguagens que romperam com a distinção entre imagem fixa e imagem estática, entre o filme cinematográfico e o fotográfico, e, por conseguinte, apagaram os limites entre o artista e o fotógrafo. Havia gente de cinema que praticava o audiovisual e fotógrafos que migraram para o cinema a partir das possibilidades experimentais do Super-8. Sem contar os artistas plásticos que utilizaram o filme com uma estrutura de audiovisual, explorando imagens de objetos parados ou inertes, cortes que pareciam impregnados da lógica do audiovisual. Um exemplo é Antonio Dias, em alguns de seus pequenos filmes da série The Ilustration of Art (em especial os de número 1, 2 e 3), nos quais o assunto é centralizado e filmado frontalmente, sem nenhum movimento de câmera e ressaltando aspectos gráficos e planos do objeto a partir de cortes secos e sem uso de som. O próprio Dias, paradoxalmente, relata sua intenção de matar o cinema e alcançar uma espécie de quadro vivo, quando define o trabalho como o nascimento do cinema indolor-três hipóteses de suicídio cinematográfico : Queria que a câmera fosse fixa como meu olho ou meu dedo, tentando acentuar o aspecto bidimensional das imagens. Com a câmera fixa, cada pequena sequência de frames era tão bidimensional quanto um quadro (In: CANONGIA, 1981, p. 27). O trânsito entre as diversas maneiras de uso da imagem técnica marcou a formação dos artistas que cresceram naquelas décadas. Independente de seus materiais de origem, os artistas migraram para outros suportes, sem excluir os de seus usos anteriores. Essa experimentação, para muitos, não era uma etapa em um determinado trajeto de carreira, tampouco o estágio do processo evolutivo de um percurso. Muitos artistas incorporaram a experimentação da imagem técnica como cerne de seus trabalhos, como uma atitude fundadora de uma postura contemporânea do artista que 128

130 não define um único gênero ou técnica, mas opta pelo desejo de todas as materialidades possíveis no uso prático do trabalho. Ou aquele tipo de artista que toma os diversos procedimentos de construção como compreensão poética ampliada para o seu trabalho, ainda que se delimitando em um suporte específico. 61 Foi Antonio Dias quem encaminhou Aracy Amaral a Miguel Rio Branco, para que ela o convidasse a fazer parte da Expoprojeção, em No caso de Rio Branco, observa-se que é essa vivência geracional com a imagem técnica que o faz experimentar o cinema direção, câmera e a fotografia still e adotar a fotografia em uma perspectiva ampliada de percepção sobre suas possibilidades construtivas. Ele morou, em 1971, com Hélio Oiticica em Nova York reza a lenda que dormia em um dos nichos do artista. Foi Oiticica quem lhe emprestou a primeira câmera fotográfica (RIO BRANCO In: PERSICHETTI, 2008, p. 19 e 20). Foi no apartamento de Oiticica que Aracy Amaral conheceu Rio Branco. As convicções conceituais de Oiticica sobre o audiovisual como poética eram marcadas, naquela época, por uma recusa radical à narrativa do cinema e, ao mesmo tempo, pela adesão à mobilidade da imagem fixa proporcionada pelo carrossel de slides como uma antinarração, que era possível de realizar com a fotografia estática projetada e o uso artificial do som. Ele enfatiza a identificação da técnica como NÃONARRAÇÃO em oposição ao termo audiovisual. Em carta endereçada a Aracy Amaral, ele é minucioso no uso do aparato e taxativo na escolha do termo que irá identificar seu trabalho para a Expoprojeção:...cada slide vai ter programação de tempo: um é meio min., outro é 10 segs., outro 1 min., etc. etc.; o sound track só tem q ser ligado quando começa a projeção (In: EXPOPROJEÇÃO, 2013) Antonio Dias, por exemplo, vem da pintura, do desenho. Opera com procedimentos de colagem, transita pelo filme e chega às instalações. Trata-se de uma geração brasileira fundada sob a necessidade da experiência material por um lado e, por outro, pelo interesse sobre a percepção do objeto artístico vai um carrusel (sic) com 80 slides e a marcação de tempo de projeção de cada um programada num papel para ser transferido para o programador: sei q devem ter aí e é imprescindível q o tenham: porque cada slide vai ter programação de tempo: um é meio min., outro é 10 segs., outo 1 min., etc. etc.; o sound track só tem q ser ligado quando começa a projeção e pronto! Não há problema de sincronização já q esta deverá ser acidental e não sublinhando o q é projetado; quando o último slide termina, termina o sound-track (é desligado) e pronto. (...) procure fazer essa exposição sua o melhor possível, mesmo q tenha q adiar ou coisa parecida: de nada adianta fazer isso se não sair perfeito: projeção de S8 e slides pode ser uma chatice se não houver aparato suficiente: demora de troca de reels e coisas assim enchem o saco; outra coisa: digo aquilo no texto porque quero q essa minha coisa seja chamada de NÃONARRAÇÃO e não de audiovisual q d e t e s t o (fica parecendo aula, sei lá); portanto para press release digam: NÃONARRAÇÃO, de Hélio Oiticica, e pronto, dando o nome, q é NEYRÓTIKA... (In: EXPOPROJEÇÃO, 2013). 129

131 O tom meticuloso de Oiticica na procura da finalização perfeita de seu trabalho e o detalhamento do uso da técnica, propiciado pelo equipamento de projeção de slides, revelam, além de sua obsessão criativa, que mostrava uma consciência sobre o controle do aparato e a ultrapassagem de uma manipulação meramente funcional com vistas à invenção de um objeto artístico. Neyrótika era o trabalho que estava construindo para a exposição de Amaral e que não conseguiu concluir a tempo. Mesmo assim, as cartas trocadas com a curadora foram intensas no que se refere ao seu processo de trabalho conceitual e, de certa forma, servem como parâmetro sobre a importância experimental do audiovisual como construção de imagem para os artistas atuantes daquele período. Miguel Rio Branco relata a importância dessa experiência de geração na sua passagem por NY: Foi nos anos 70, quando morei em Nova York, fiquei hospedado na casa de Hélio Oiticica e peguei emprestada a câmera dele. Lá também trabalhei com esse processo de juntar parte com parte e fazer um todo. Criar ritmos (RIO BRANCO In: PERSICHETTI, 2008, p ). Para Lígia Canongia (1981, p. 20), a produção de Oiticica no uso dos meios audiovisuais era, em si, um Quase-cinema por se aproximar das (não) narrativas do filme, ao mesmo tempo subvertendo-o pelos diferentes ritmos criados a partir da maior ou menor velocidade da projeção dos slides e pela montagem dinâmica imprimida aos Blocos-experiências. Rio Branco menciona, no contato com Aracy Amaral, a variação do equipamento quanto ao ritmo e a duração das cenas de seus Super-8, como destacamos anteriormente: (Colony e Dragontrap são de duração variável pois utilizo modificação de velocidade durante a projeção (In: EXPOPROJEÇÃO, 2013). Perguntei ao artista (em entrevista a esta pesquisa) se tal variação era controlada. Ele afirmou que não pois a velocidade era modificada em função do tipo de aparelho disponível, diferentemente do discurso de Oiticica sobre o controle. As experiências de montagem e projeção, e o jogo de duração e ritmo das imagens técnicas em movimento, sejam elas fixas em sua origem (fotografia, slide) ou em movimento, propriamente dito (película cinematográfica), tornaram-se componentes instauradores de uma poética fílmica engendrada na fotografia de Rio Branco, que, de um lado, convivia com o cinema de formato convencional, mas de inspiração 130

132 cinemanovista, e, de outro, as artes plásticas convencionais contaminadas pelos novos usos da imagem técnica. Além do trabalho fundador que experimentou com a fotografia still em Pindorama, Rio Branco realizou, ao longo de toda a década de 1970, vários projetos de cinema como diretor de fotografia (câmera), entre os quais podemos destacar: o longa Lágrima Pantera, de Julio Bressane, em 1972; os curtas Copacabana de 7 às 7, de Gilberto Loureiro, e Beco da Fome, de Sebastião França, ambos em 1973; e a ficção Madrepérola, de Sergio Bernardes, realizado em Como diretor, além dos filmes em Super-8 que realizou em Nova York, no início da década, Rio Branco produziu, em Salvador, o curta Trio Elétrico, filmado em 35mm. Lágrima Pantera e Trio Elétrico merecem observações à parte. O primeiro foi filmado em 16mm, e o trabalho de câmera foi dividido entre Rio Branco e o próprio diretor, Julio Bressane, embora, na ficha técnica, seja Rio Branco quem assina unicamente a fotografia do filme. A produção teve ainda a participação, no elenco, de Cildo Meireles e Helio Oiticica, este último também encarregado da cenografia. Filmado no Rio e em Nova York, marca o retorno de Bressane, após um período de exílio em Londres. É constituído de vários pequenos trechos, nos quais a tônica seria, a partir da visão de Oiticica, a experiência de um cinema fora da narrativa convencional. A teoria do Quase cinema, analisada por Canongia, partiria do próprio Oiticica, e o filme de Bressane parece ser, como indicam algumas fontes, um dos suportes de sua defesa pela não narração, como alternativa para nomear o gênero audiovisual. O filme é considerado perdido pelo seu diretor. Somente alguns fragmentos podem ser vistos no curta HO, de Ivan Cardoso. 63 Trio Elétrico seria, em certa medida, a aplicação de sua bagagem experimental obtida pela parceria com os artistas e cineastas, não propriamente do quase-cinema de Oiticica. No entanto, o filme sobre o carnaval dos trios elétricos em Salvador não é, tampouco, um documentário, no sentido da narração descritiva sobre uma manifestação da cultura brasileira. Rio Branco, no domínio da direção e autoria, conduz o filme como um antidocumentário, pois coloca o espectador muitas vezes no meio da multidão, da dança frenética e enlouquecida no meio da rua, onde o contato corporal se mostra mais violento do que lúdico e romântico. O trabalho sonoro proposto no filme também é 63 Cf. CINEMATECA BRASILEIRA; BRAGANÇA, s/d. 131

133 distinto, pois Rio Branco insere o som em descontinuidade com a cena captada, quebrando a naturalização da estética documental. 64 Os anos 1970 foram, para o artista, um período em que a fotografia se tornou o eixo de sua produção, com contornos nitidamente voltados para o documental, no entanto, sendo perpassado constantemente pelas experiências com o cinema. Lembremos que sua exposição fotográfica Negativo Sujo, analisada no primeiro capítulo, funciona como um tipo de marcador significativo de um período em seu trajeto de formação e encerra a década como um trabalho de subversão (e não de ruptura) dos suportes e da lógica do ensaio documental, sobretudo com o modelo de uma exposição fotográfica. Se revista hoje (foi remontada recentemente dentro da mostra Ponto Cego, em Porto Alegre, em 2012, e na mostra Teoria da Cor, na Estação Pinacoteca, em São Paulo, em 2014), Negativo Sujo é, nitidamente, uma instalação. A mostra não obteve tal denominação, quando inaugurada em 1978, primeiramente porque o termo não era usado comumente, como nos tempos atuais. Num segundo momento, podemos considerar que não se trata apenas de uma questão de nomenclatura, mas, especialmente, pelo fato de Negativo Sujo não ser percebida em sua materialidade tridimensional. As resenhas e matérias sobre a mostra não destacaram em nenhum momento esse aspecto, que me parece importante, se pensarmos na adoção irrestrita que o artista faz atualmente das projeções de imagem e do uso da espacialidade física dos ambientes expositivos. Apesar das resenhas de Roberto Pontual e Frederico Morais apontarem elementos fundamentais sobre as relações de significado entre as imagens e a importância da relação da mostra com a montagem cinematográfica naquele período, não há a percepção de que aquele trabalho assumia contornos escultóricos e/ou objetuais, para usar termos possíveis naquele momento histórico o fim da década de Ao escrever sobre a exposição Nada Levarei... em 1980, Wilson Coutinho refere-se a Negativo Sujo, realizada nos anos anteriores, e destaca um depoimento de Rio Branco, que parece interessante no que se refere a uma autoavaliação nesse movimento de passagem de uma exposição para outra, do fim da década de 1970 para o início dos anos de O filme Trio Elétrico foi incluído na exposição Expoprojeção , revisão da original de 1973, também curada por Aracy Amaral em 2013, no Sesc Pinheiros (SP). Para mais informações sobre o filme, Cf. MIGUEL RIO BRANCO SITE OFICIAL DO ARTISTA; EXPOPROJEÇÃO,

134 Em 1978, numa exposição realizada no Parque Lage, 400 fotografias se impunham pela diferença com que foram organizadas, inovando na maneira de apresentar uma mostra de fotografia. Aquele trabalho, comenta [Rio Branco], eram anotações. O atual é constituído em cima de um tema, formando um todo. Acho que a exposição de 1978 foi mais importante do que essa que tem a característica de ser linear (COUTINHO, 1980, p. 2) Nota-se que Coutinho menciona uma inovação na maneira de apresentar uma mostra de fotografia, mas não percebe que é a própria fisicalidade da exposição, entre outros fatores já analisados, um dos elementos mais importantes a subverter a lógica ilustrativa da tradição do ensaio realista. A dimensão escultórica e de instalação não é incorporada à diferença notada pela crítica. Parece que o aspecto tridimensional é observado apenas como adereço, efeito, como novidade de apresentação, e não como estrutura em si do trabalho, como um signo axial em torno do qual se desenvolve uma faceta latente da poética de Rio Branco: a disjunção narrativa de um pós-documento a ser trabalhado com base em anotações perceptivas e experimentado, futuramente, no suporte material dos livros. Talvez Rio Branco considere mais importante Negativo Sujo do que Nada Levarei..., por intuir que a subversão narrativa teria sido mais contundente na exposição anterior, por percebê-la, conceitualmente, mais como um livro. Naquele momento, o artista não havia ainda produzido nenhuma publicação, suporte que irá marcar sua trajetória a partir de meados nos anos 1980, com Dulce Sudor Amargo. Na ocasião em que recebe o prêmio principal na 1ª Trienal de Fotografia, realizada pelo MAM de São Paulo, em 1980, declara que o livro seria a forma mais correta de apresentar o trabalho de um artista fotográfico e que a exposição Negativo Sujo teria sua forma ideal na materialidade do livro, o que não foi possível realizar naquele período (In: LEMOS, 1980). Essas informações e depoimentos de Rio Branco sobre o embrião conceitual de Negativo Sujo serão retomadas mais adiante, quando analisarmos especificamente a função do livro para o trabalho da fotografia na arte. Porém, o que nos faz retomar o assunto da mostra de 1978/1979 neste momento da análise é a observação sobre a mudança que ocorre na poética do artista com o surgimento da primeira mostra sobre o Pelourinho. 133

135 A exposição Nada Levarei... abria, em 1980, outro ciclo de trabalho no qual a prática conceitual da imagem em movimento exercida em diversas funções no campo cinematográfico já fazia parte de seu repertório como um artista alinhado e identificado com a experimentação dos anos Tal bagagem conceitual imprimirá um fôlego novo à fotografia que Rio Branco irá aderir. Por essa razão, observamos que a projeção de slides, que fazia parte da exposição tanto em São Paulo como no Rio de Janeiro, teve um significado importante. Era um modo de ampliar e experimentar a linguagem fotográfica, injetando no Dossiê Pelourinho a força de um inacabamento, tanto como conceito para o documental quanto para a estética da fotografia. Além das imagens em sequência, em duplas que caracterizavam a exposição na galeria, a projeção das imagens em audiovisual, o trabalho com o som e as canções populares mencionadas na resenha de Frederico Morais tornaram-se parte preciosa da mostra. Hoje, em uma perspectiva histórica, o audiovisual funcionava como uma necessidade de destituir o poder de unidade da exposição bidimensional. O ritmo dos slides pôs em desordem a lógica da documentação, subverteu o documento para alcançar o sentido mais abrangente da noção de documental. Podemos até mesmo relacionar sua força à mesma intensidade dos chamados blocos-experiências, de que falava Oiticica na apresentação, 65 espécie de sinopse de NEYRÒTIKA, do seu trabalho proposto para a Expoprojeção, em (...) NÃONARRAÇÃO é NÃO DISCURSO NÃO FOTOGRAFIA ARTÍSTICA. NÃO AUDIOVISUAL : trilha de som é continuidade pontuada de interferência acidental improvisada na estrutura gravada do rádio q é juntada à sequência projetada de slides de modo acidental e não como sublinhamento da mesma - é play-invenção (...) (CANONGIA, 1981, p ) A forma desregrada e a proposição caótica de Oiticica apresentadas aqui são quase um manifesto a favor do quase-cinema e da prática do audiovisual, termo que o artista recusa e substitui pelo NÃONARRAÇÃO. A despeito de seu estilo algo 65 Fragmento de excerto do texto BLOCO-EXPERIÊNCIAS em COSMOCOCA Programa in Progress, em março de A grafia e estrutura do texto de Oiticica nesta citação manteve sua forma original apresentada na publicação de Lígia Canongia (1981). 134

136 histriônico de escrever (acusando os cineastas de usar a literatura como simplificação narrativa), quando define sua sinopse/conceito, Oiticica defende que o próprio aparelho de projeção possibilita uma expansão na gramática do trabalho artístico, em um processo que mistura poética e meio. Essa atitude é, ao mesmo tempo, um campo de fuga e de reencontro com a linguagem do cinema, pois escapa da narrativa linear da imagem em movimento e, por outro lado, recoloca em movimento uma lógica outra, constituída pela imagem fixa e fotográfica combinada ao exercício sonoro. Não é impossível constatar que, para Rio Branco, é importante essa outra lógica, da associação disjuntiva das imagens em cromo do Pelourinho com o cancioneiro popular (Roberto Carlos e cia), pois permite um vínculo seu com as pessoas que moram ali e a invenção de um dado sonoro (não) narrativo para o trabalho, fruto de um pressentimento legítimo no imaginário radiofônico, tanto daqueles que estão tanto nos bares e calçadas, na parte externa do Maciel, quanto dos que estão nas cozinhas, ou dentro dos quartos dos prostíbulos do bairro. A necessidade do audiovisual, para Rio Branco, certamente é assumir a desordem, acentuar a desordem que está na aparente linearidade da exposição na parede. Esta mudança gramatical proporcionada pelo aparelho do projetor em prol de uma estrutura narrativa não-narrativa, como queria Oiticica, é mais bem pontuada por Frederico Morais em seu depoimento para o catálogo da Expoprojeção, em 1973, onde apresenta a síntese de seu pensamento, como artista e teórico, sobre a dinâmica e tensão estabelecidas no jogo entre o cinema e o audiovisual. Considerando que o filme seria uma estrutura fechada, quando chegava, enfim, como obra projetada na sala de cinema, Morais defendia o audiovisual como estrutura aberta. Enquanto um trabalhava pela continuidade de uma imagem, sequenciada a partir de outra, no intuito de fazer sentido lógico e narrativo, o outro buscava o contrário, a própria descontinuidade, narrativa alterada pelo uso (des)combinatório do som, assim como dentre os diversos elementos em jogo, enfatizados por ele: diapositivos, sons, zoom, foco de luz, retornos, etc.. Não há (no cinema), digamos assim, surpresa. No audiovisual, entretanto, a próxima imagem é sempre imprevista. E pode até mesmo não existir, substituída pelo foco de luz e/ou escurecimento. A descontinuidade é parte da estrutura do audiovisual, como da imagem do mundo moderno. Em ambos os casos, exigindo de nós participação mental ativa (In: EXPOPROJEÇÃO, 2013). 135

137 O que observo no interesse conceitual de Morais e na própria estética do projetor experimentada na época é o fato de que um mecanismo técnico estava a serviço de uma ação fundamental. A imagem fixa estava sendo problematizada, deslocada de sua aparente fixidez. Isso parecia ser caro tanto ao artista, cuja formação vinha da pintura, desenho e escultura, técnicas consideradas tradicionais no repertório da arte, como também se mostrava precioso para o fotógrafo e o cineasta, ambos a trabalhar concretamente com a supremacia da fixidez da imagem, no caso do primeiro, ou a obrigação preponderante da imagem em movimento, no caso do segundo. Nesse sentido, o meio audiovisual libertava tanto um como o outro, pois não se tratava nem de cinema, nem de fotografia, ou se tratava de ambos; no entanto, envolvidos em outra cadência rítmica e sígnica. O trabalho fotográfico de Rio Branco, considerando todos os aspectos geracionais das práticas exercidas na década de 1970, quando de sua exposição, audiovisual e filme assumidos pelo mesmo nome, Nada Levarei..., indica ser a aplicação prática, poética de todos os conceitos sobre o audiovisual perseguidos por Oiticica e Morais, entre outros artistas, ao lidar com a imagem técnica e seu potencial imaginativo, e torná-la igualmente um elemento dissociativo da realidade naturalizada pelo meio cinematográfico e fotográfico. O dispositivo que concretizava a dissociação, as combinações descontínuas entre imagem, som e outras marcas visuais que o projetor oferecia era o Dissolve control, já mencionado anteriormente por Oiticica. Tratava-se de um equipamento que sincronizava dois ou mais projetores a partir de uma trilha registrada em fita cassete. Podia-se usar também um só projetor, cujas imagens no modelo carrossel podiam ser pontuadas em diversos ritmos com a trilha gravada. Tal dispositivo acionava, automaticamente, a troca dos slides, obedecendo assim a uma programação registrada na banda sonora conforme registrou Roberto Moreira S. Cruz. O equipamento gravava a trilha sonora no lado A da fita cassete e o impulso (bip) para a mudança do slide na faixa do lado B. Isso permitia programar o tempo de duração da permanência do slide e o modo como duas imagens originadas de aparelhos diferentes se combinariam, realizando no momento da projeção efeitos de fusão, transição e sobreposição. Neste arranjo entre slides projetados, associação entre imagens, som e movimento intercalados é que estava a originalidade do princípio narrativo e poético deste suporte explorado pelos artistas dos anos 1970 (In: EXPOPROJEÇÃO, 2013). 136

138 Dessa forma, a presença do som no audiovisual Nada Levarei... funciona como uma paisagem sonora que será, em muitos aspectos, um componente experimental tão importante quanto as imagens projetadas. A projeção amplia a quantidade de fotografias em relação à exposição, fortalece e expande as associações construídas na parede, exercita a duração das imagens estáticas e introduz o valor afetivo pela inserção das narrativas românticas sugeridas pelas canções e músicas trabalhadas como paisagem sonora. O audiovisual apresentado é um entre significativo realizado no momento da mostra bidimensional e o período que antecede o trabalho em película. Trata-se, muito provavelmente, do tubo de ensaio para o filme homônimo que estaria pronto no ano seguinte, em 1981, filmado na bitola 16 mm, em cor, e que teve sua duração final em 19 minutos, incorporando às imagens em movimento não só às canções românticas utilizadas no audiovisual como também muitas das imagens fotográficas da exposição, experimentadas nas sequências do carrossel Nada Levarei quando Morrer Aqueles que Mim Deve Cobrarei no Inferno, o filme O filme Nada Levarei quando Morrer Aqueles que Mim Deve Cobrarei no Inferno é uma incursão mais detida pelas ruas, becos, bares e quartos da comunidade do Maciel, onde a imagem em movimento absorve, de modo significativo, as imagens estáticas extraídas do conjunto fotografado em cromo. O filme acumula a tensão previamente construída na exposição e nos experimentos do audiovisual. Nesse sentido, torna-se um híbrido, cuja tensão se manifesta em distintos aspectos, pelo menos em três: o conteúdo social, o plano do suporte e a paisagem sonora, corpo onde se localizam as canções. Não é a intenção neste estudo identificar esses três aspectos como instâncias separadas. No entanto, não poderia deixar de mencionar que, em certa medida, o conteúdo social (como sinônimo de fotografia documental) foi o que atraiu imediatamente a atenção da crítica, considerando o conjunto formado por exposição, audiovisual e filme. Não esquecendo o caráter legítimo da vontade e do impulso do 137

139 próprio artista dedicado às questões humanas, traço observado em seu trabalho ao longo da década anterior. A adesão instantânea a uma fotografia interessada na experiência social era estimulada abertamente pelas críticas, resenhas e análises de Frederico Morais, Wilson Coutinho, Roberto Pontual, Moracy de Oliveira, entre outros críticos atentos à produção fotográfica entre os anos 1970 e Para citar, por enquanto, apenas um deles, Morais foi, talvez, o mais contundente naquele período. Ao fazer um balanço sobre a qualidade das exposições acontecidas no mês de julho de 1980, no Rio de Janeiro, mostra-se muito claro em sua posição. Em matéria de fotografia sou radical, me interessa, nela, o valor expositivo, ou seja, o real. Contra todo o formalismo do olho ou do laboratório, me interessa seu poder de denúncia social, como documento, como instrumento de discussão do poder. Ou seja, me interessa o lado desenho da fotografia, e menos o lado pintura. Por isso, na mostra citada, o formalismo de Osmar Villar tende ao preciosismo vazio, que nem o álibi da ecologia e da defesa do verde justifica, enquanto cresce em interesse aquele paineldenúncia sobre a Cidade de Deus, de Hugo Denizart. Com uma montagem semelhante à de Miguel Rio Branco, ano passado na Escola de Artes Visuais, Denizart reuniu várias fotos de uma mesma realidade tomada como referência para o estudo da violência social (MORAIS, 1980). Note-se que a exposição de Rio Branco que, neste comentário, serve de comparação é Negativo Sujo, no Parque Lage, da qual ele foi um crítico entusiasta a exibição da mostra Nada Levarei... só ocorreria três meses depois, em novembro, na Galeria da Funarte. As imagens a que se refere, com excesso formalista, fazem parte de uma coletiva no Centro Cultural Cândido Mendes. Em tal contexto, entre as décadas de 1970 e 1980, a fotografia passa a ocupar um lugar decisivo na programação artística das galerias e centros culturais, e Morais, assim como Roberto Pontual, no Rio de Janeiro, sublinham essa importância em várias de suas resenhas. O terreno era muito propício para a recepção da obra de Rio Branco, que, em parte, discutia o suporte interferindo na lógica do ensaio documental e, em outra parte muito envolvente, mergulhava na realidade social do interior brasileiro (Nordeste em Negativo Sujo) e do cotidiano metropolitano de uma grande cidade brasileira (Maciel, Pelourinho, Salvador em Nada Levarei...). As imagens do filme de Rio Branco impressionam, de fato, pela relação próxima, crua, quase natural, com que a câmera invade um ambiente social à 138

140 margem do poder econômico e da qualidade de vida material das classes mais privilegiadas financeiramente. O impacto no espectador parece ser mais forte, primeiramente, pela impressão de realidade que a imagem em movimento pode causar. Os habitantes do Maciel, a prostituta, os clientes, as crianças na rua, os cachorros nas calçadas, vistos anteriormente em imagens estáticas na galeria, subitamente estão ali, reaparecem movendo-se como seres reais, extraídos (ou captados) de um cotidiano existente. A música nos ajuda a entrar de forma suave na atmosfera do bairro, em um dia qualquer, assim como nos introduz no ambiente estético da obra. O tom quente das cores acentua o amarelo queimado das últimas horas da tarde, e a aparente calma das primeiras cenas está ligada fortemente a certo estado de letargia, distensão no corpo daqueles que não estão ocupados pela ordem produtiva e econômica do trabalho. O céu azulado aparece por trás de janelas vazadas de casarões semiabandonados, e instala-se, muito brevemente, na introdução do filme uma atmosfera nostálgica acentuada pela gravação instrumental de Rosa, de Pixinguinha, e Nada Além, de Custódio Mesquita e Mário Lago. A figura de um senhor negro vestido de branco, de chapéu e em pé numa ladeira remete à imagem do compositor Cartola Essa figura, que nos remete a Cartola ou mesmo a Pixinguinha, na verdade encarna, no trecho inicial do filme, um símbolo do refinamento cultural da identidade brasileira. É a representação de uma época, cuja mestiçagem estava na junção entre a herança musical africana e uma certa tendência à melancolia encarnada na sofisticação melódica de músicos nascidos nos berços do samba, bairros populares de cidades brasileiras entre os anos 1920 e 1940 (Figura 32). 139

141 Figura 32: Frame do filme Nada Levarei quando morrer aqueles que mim deve cobrarei no inferno, Fonte: Miguel Rio Branco Site oficial do artista. Não à toa, a versão instrumental de Rosa, escolhida para a abertura, é tocada por Ivanildo Sax de Ouro, músico bastante popular, que inicia sua carreira no mercado fonográfico naquele ano de As versões de Ivanildo são também uma aproximação da herança sofisticada das canções com uma simplicidade nos arranjos que o tornaram conhecido pela difusão radiofônica e, consequentemente, muito escutado pelas camadas populares. Rio Branco disse, certa vez, que as músicas escolhidas para o filme saíram basicamente do repertório que ele costumava ouvir no ambiente do Maciel. Tal relação entre música e imagem, entre paisagem sonora e personagem fotografado, foi habilmente incorporada ao trabalho fílmico, funcionando como uma partitura da cadência das imagens. A representação dos personagens, ou melhor, a construção da identidade daquelas pessoas reais captadas pelo filme está ligada profundamente à organização dos sons e músicas no corpo do trabalho. A faixa musical de Ivanildo Sax de Ouro emenda Rosa com Nada Além, outra canção romântica muito conhecida. Ambas estão reunidas na mesma gravação, em formato de pot-pourri, apesar de serem apenas duas músicas, por uma empatia popular significativa: tornaram-se grandes sucessos na voz de Orlando Silva. Toda essa 140

142 paisagem cultural evocada pela música (como signo das raízes da identidade de um povo) cria uma moldura significativa para as imagens. E, na medida em que elas vão se sucedendo som, ruído, música e imagens em movimento e fixas, o filme cria um ritmo que confronta herança, história, decadência e vida social. Nos dois primeiros minutos, vemos o confronto entre a música melódica e nostálgica e as imagens de abandono das fachadas dos casarões e suas sacadas com roupas dispostas para secar. Esse contraste ganha a síntese apaziguadora na imagem do preto velho elegantemente vestido à moda de um compositor de samba. No entanto, essa breve introdução é uma dissimulação, uma ironia em relação ao ambiente pitoresco da Bahia; a representação de uma falsa exuberância e tranquilidade de uma imagem pintada ou fotografada sobriamente ao estilo de Verger. Tudo uma ilusão, pois rapidamente essa atmosfera nostálgica é quebrada por uma voz à capela, que canta o fragmento de uma frase: Na Bahia, eu me fiz (quis) bem, na Bahia..., seguido de um batuque que nos acompanha pela câmera subjetiva, em movimento por um beco. Saímos da síntese de um Cartola/Valsa de Pixinguinha, atravessamos a viela e caímos em uma rua aberta com movimento de carros e homens jogando bola, quando surge, na narrativa, a figura de um negro sentado em uma soleira. Não se trata mais de um negro com traje elegante como o anterior. Parecendo um morador de rua, por seu aspecto mais selvagem, vestindo apenas um short, com os cabelos desgrenhados e uma fisionomia absorta, o homem está sentado e balançando suavemente as pernas cruzadas. Figura 33: Frames do filme Nada Levarei quando morrer aqueles que mim deve cobrarei no inferno, Fonte: Miguel Rio Branco Site oficial do artista. 141

143 A câmera em movimento se concentra em alguns segundos nesse homem e sincroniza o ritmo do balanço de suas pernas à cadência de um reggae de Bob Marley. Enquanto o senhor da valsa remetia à elegância de Cartola, esse novo personagem captado por Rio Branco em um embalo jamaicano parece ter saído de uma fotografia de Cristiano Junior. Tal qual uma espécie de negro fujão ou escravo libertado do século XIX jogado à própria sorte, na miséria social do final da década de 1970, essa figura do negro nos desloca para a reflexão aguda e premonitória, aparentemente distante, de Joaquim Nabuco: Depois que os últimos escravos houverem sido arrancados ao poder sinistro que representa para a raça negra a maldição da cor, será ainda preciso desbastar por meio de uma educação viril e séria, a lenta estratificação de trezentos anos de cativeiro, isto é, de despotismo, superstição e ignorância. O processo natural pelo qual a escravidão fossilizou nos seus moldes a exuberante vitalidade do nosso povo durou todo o período do crescimento, e enquanto a nação não tiver consciência de que lhe é indispensável adaptar à liberdade cada um dos aparelhos do seu organismo de que a escravidão se apropriou, a obra desta irá por diante, mesmo quando não haja mais escravos (NABUCO, 2011, p. 12). Em movimento, a câmera destaca esse personagem em partes: as pernas cruzadas, o perfil do corpo, o rosto em close-up (Figura 33). Ele irá aparecer brevemente em outras situações ao longo do filme, mas aqui sua figura também funciona como uma elipse entre a escravidão histórica e oficial e a presença marginal que ocupa seus descendentes mestiços: o filme encadeia uma sequência de fotografias fixas de retratos, alguns parcialmente conhecidos pelas exposições e audiovisuais exibidos anteriormente. Fica mais evidente a presença de uma comunidade negra habitando em condições precárias os sobrados que outrora foram da moderna cidade colonial da elite europeia. Torna-se claro o alcance vívido das palavras de Nabuco sobre a enorme sombra da escravidão estendendo-se no tempo, noventa e sete anos depois, naquela Comunidade do Maciel. 142

144 Figura 34: Fotografias utilizadas no filme Nada Levarei quando morrer aqueles que mim deve cobrarei no inferno, À esquerda, fonte: Livro Dulce Sudor Amargo, À direita, fonte: Revista Z Cultural. É por meio do encadeamento das imagens fixas, intercalado pelo livre movimento de câmera, que Rio Branco enfatiza o interesse pelo retrato em suas variadas possibilidades: utilizando-se de enquadramentos diversos, capta imagens individuais ou de conjunto, como mulheres com crianças no colo, homens posando de corpo inteiro diante das tabernas, senhoras exibindo suas joias e unhas pintadas, close-ups dos rostos e partes do corpo, e detalhes, como a carteira de trabalho enfiada no bolso da camisa. As escolhas de corte e enquadramento indiciam uma proximidade física com a identidade do outro. Todos os retratados estão numa relação francamente direta com a câmera, exibindo seu olhar, seus objetos, seus filhos, seus corpos, suas roupas, em gestos quase sempre eróticos (Figuras 34 e 35). 143

145 Figura 35: Frames das Fotografias utilizadas no filme Nada Levarei quando morrer aqueles que mim deve cobrarei no inferno, Fonte: Miguel Rio Branco Site oficial do artista. Uma vez mais a música está presente como signo social e acentua o aspecto político do trabalho. A relação entre a imagem do negro de rua à semelhança de um escravo e a série subsequente de retratos ganha, com a canção Survival, de Bob Marley, a ideia de uma nação brasileira negra em diálogo com a identidade global, ligada à África e à Jamaica. Os retratos em sequência formam uma espécie de álbum de família da identidade racial do país, completamente à margem do seu poder econômico (Figura 36). A música de Marley pertence a um álbum que chama a atenção para a emancipação e a capacidade de sobrevivência da comunidade negra internacional. Lançado naquele ano de 1979, assim como a gravação de Ivanildo do Sax, Survival reforça, nas entrelinhas explícitas da sequência fílmica de Rio Branco, o lugar do Brasil na unificação dos países africanos e seus movimentos de independência política. No entanto, o que as imagens do artista mostram é um conjunto de contradições observadas entre as comunidades negras como nações livres e independentes. No caso mais específico do universo do Maciel, vê-se um Brasil negro ainda escravizado pela miséria social, mas afirmando sua sobrevivência, ressaltada na canção de Marley. 144

146 How can you be sitting there telling me that you care That you care When everytime I look around The people suffer in suffering In everywhere, in everywhere Na-Na-Na-Na-NA We're the survivors Yes, the black survival I tell you what Some people got everything Some people got nothing Some people got hopes & dreams Some people got no aim it seems Na-Na-Na-Na-Na We re the survivors; yes the black Survival (MARLEY, 1979). Apesar de o trabalho ressaltar um ambiente social à margem, uma vida material precária e o cenário de ruínas em que se encontra a arquitetura do bairro, não há um traço sequer de autocomiseração na expressão dos personagens. O que marca grande parte do filme, nos momentos em que as pessoas são o centro do quadro, são os gestos construídos diretos para a câmera. Alguns de sedução, como a boca entreaberta da moça com decote em V, ou a tragada no cigarro do homem em close-up. Outros, desprovidos de pose, mostram sorrisos francos e quase naturais. Em outras imagens, a pose é expressão acentuada, como a do grupo de três rapazes que exibem relógios e óculos escuros, ou a do homem de camisa branca, com as mãos na cintura. 145

147 Figura 36: Frames das Fotografias utilizadas no filme Nada Levarei quando morrer aqueles que mim deve cobrarei no inferno, Fonte: Miguel Rio Branco Site oficial do artista. Nessa perspectiva, a atitude do corpo nas imagens evidencia um espaço de proximidade entre os fotografados e o fotógrafo. Tal espaço, longe de ser apaziguador, abre a possibilidade para Rio Branco alcançar, na poética do filme, os componentes mais centrais de sua retratística: a pele, as pulsões, a energia sexual. A carga política de uma nação sobrevivente e mestiça realçada pelo discurso do reggae encontra no corpo uma tradução possível. A sequência das fotografias fixas volta a ser quebrada por imagens em movimento e pela substituição do discurso social de Bob Marley, pelo romantismo desenfreado e alienante de uma canção de Roberto Carlos. Por que me arrasto a seus pés? Por que me dou tanto assim? E por que não peço em troca nada de volta pra mim? [...] Porque é que eu fico calado? Enquanto você me diz Palavras que me machucam Por coisas que eu nunca fiz. [...] Mas acontece que eu Não sei viver sem você Às vezes me desabafo, Me desespero, por que? Você é mais que um problema É uma loucura qualquer Mas sempre acabo em seus braços Na hora que você quer. (ROBERTO CARLOS; ERASMO CARLOS, 1979) 146

148 A música Desabafo, lançada no mesmo ano que a de Marley, conduz (a) uma nova sequencia de imagens, nas quais o cotidiano da rua se mistura à ação em movimento de alguns personagens. A cena do casal que aparece dançando em um bar é singular. Meio tímidos, mas orgulhosos de seu romantismo, eles flertam com a câmera em um exibicionismo curiosamente discreto. Aparentemente, dançam um reggae registrado no som direto do filme, mas a canção de Roberto e Erasmo Carlos inserida na banda sonora do filme sobrepõe-se ao som ambiente e domina a narrativa. A oscilação entre som direto e trilha construída perpassa o filme inteiro e revela, sob muitos aspectos, as tensões que caracterizam a complexidade do trabalho. O batuque mencionado anteriormente, ouvido no momento subjetivo da câmera pelo beco, é captação de som direto que se funde ao som da rua: vozes, carros, risos, conversas. É essa rápida paisagem sonora que se apresenta para a mistura ao reggae de Marley. O reggae surge nesse momento como uma bandeira política de emancipação negra para, em seguida, ser engolida/engolfada pelo sentimento de paixão incondicional da canção romântica brasileira. Na medida em que as músicas passionais avançam pela narrativa fílmica, a expressão do corpo e do sexo torna-se mais explícita como metáfora de identidade e história pessoal. A passagem de Bob Marley a Roberto Carlos é a de uma coleção de retratos representativos da nacionalidade africana para um instinto romântico e carnal, aspectos que podem ser relacionados ao comportamento da cultura brasileira. Porém, se ainda há o resquício de uma identidade (nacional, africana ou negra), ela parece dissolver-se no sujeito erótico, quando o filme mergulha em uma camada mais abaixo: as mulheres se despem, mostram os seios, fixam os olhos na câmera, masturbam-se, transam e gemem para o voyeur/câmera/artista que, a essa altura do acontecimento, chega muito perto do corpo e da pele. São bastante provocativos o olhar e o modo como uma delas se movimenta para a câmera, com os seios à mostra. A trilha que conduz esse momento acentuadamente é mais popular e passional: O Grande Amor da Minha Vida, do paraibano Bartô Galeno, um dos expoentes do cancioneiro romântico brasileiro: Amor, você não sabe o quanto eu estou sofrendo Amor, na sua ausência a solidão me apavora Amor, não consegui gostar de mais ninguém Porque você é o grande amor da minha vida Se eu pudesse neste momento estar contigo, meu amor. 147

149 Nesta hora eu não seria um sofredor Eu seria o homem mais feliz do mundo. (GALENO, 1978). As letras das canções funcionam como fios narrativos da vida daquelas mulheres. Note-se que tanto a canção de Roberto Carlos como a de Galeno narram a dependência amorosa masculina. São os homens que foram abandonados pelas mulheres ou que estão subjugados a elas. Essas micro-histórias sugeridas pelas canções no filme conferem certo poder à figura das mulheres e minam possíveis leituras conclusivas sobre o trabalho. Tal poder feminino está na voz e nas letras vindas do universo masculino: Por que me arrasto a seus pés?, [...] Sempre acabo em seus braços na hora que você quer, diz a canção do Roberto. E mais explícito ainda fala Bartô Galeno, pois o sujeito da letra é masculino: Amor, você não sabe o quanto eu estou sofrendo [...], [...] na sua ausência a solidão me apavora, [...] Se eu pudesse neste momento estar contigo [...] eu não seria um sofredor/eu seria o homem mais feliz do mundo. A subjugação do homem à mulher, inscrita claramente nas canções que compõem a trilha do filme, tira a obra do lugar-comum facilmente aceitável da relação unilateral de poder do homem sobre mulher, ou da câmera sobre o retratado. Certamente consideramos que toda relação entre câmera e objeto, fotógrafo e retratado é uma questão de poder. No entanto, mais do que isso, fotógrafo e fotografado considerando vasto o campo semiótico do retrato estabelecem um jogo duplo, que oscila entre a identificação e a identidade, como aponta Fabris (2004). E mesmo triplo, diria: entre a representação do sujeito retratado, a autorrepresentação do fotógrafo e as múltiplas identidades que possam construir tal relação. Compreendemos que a câmera de Rio Branco, apontada para os habitantes do Maciel, escolheu, em especial, as mulheres e seus corpos, em uma atitude masculina de desejo. Porém, tal relação de desejo, domínio, aproximação, permeada por uma potência erótica, demove o sujeito masculino de seu lugar de honra. O desejo instaurado no trabalho está relacionado a todo o envolvimento que o artista passou a ter com o lugar. As peles e cicatrizes estão a todo tempo sendo associadas/potencializadas às imagens das ruínas históricas de uma arquitetura em decomposição, de um símbolo de civilização branca que não deu certo, representada naquele espaço pelas edificações construídas pelos colonizadores. 148

150 O cenário (urbano, edificado, arquitetônico) do Maciel que foi registrado naquele ano de 1979, se olharmos em uma perspectiva macro, é um tipo de cicatriz no tecido urbano no contexto da história social da cidade, índice da presença de uma classe desprovida de recursos materiais e marcada pela atividade de prostituição. Houve, sobretudo, um desejo de conhecer o outro, entrar em território que não era seu, transitar nos interiores do bairro. Estar com as prostitutas na sacada de um casarão e ver a rua do alto, de outras perspectivas e pontos de vista (fotografias e sequências em movimento atestam isso) é a conquista de territórios privilegiados que não lhe pertenciam. A procura por esses contatos e conquistas nasceu de um instinto sensual com a realidade, caráter impregnado em todo o conjunto do seu trabalho, e que, no Pelourinho, marca um período embrionário de uma descoberta poética. O comportamento sensual com a realidade concreta carrega todas as contradições pautadas pela tensão do mundo vivido, pela experiência do fenômeno. As contradições que construíram o trabalho do Pelourinho são sublinhadas pelas tensões políticas e eróticas, conflitantes em alguns momentos; em outros, complementares. Foi em 1979 que eu mais dialoguei com as mulheres do Pelourinho, em Salvador, Bahia. Nessa época o Pelourinho não era um lugar de prostituição pesada como hoje se encontra em vários lugares: era o baixo meretrício misturado com aquele marco histórico caído. Eram as cicatrizes delas com as cicatrizes abertas do lugar. Era pesado para elas, que sofriam bastante, eram massacradas e marcadas. Apesar disso, aquelas mulheres tratavam as pessoas com carinho. A prostituta era aquela mulher que tinha uma reação positiva diante da situação terrível de seu entorno (RIO BRANCO In: BOUSSO, 2012). As imagens fotográficas e cinematográficas do Maciel possuem essa dimensão fortemente ambígua, de certa ternura às vezes, como no casal que dança no bar, e de afronta sexual, como na cena de masturbação. Ou ainda de risos espontâneos e brincadeiras diante da câmera, que contrastam com a profusão de corpos marcados pelos cortes, inclusive corpos de crianças. A desenvoltura com que todos se entregam para a câmera, com suas tragédias e deleites, põe o espectador em um ambiente desconfortável. Tal desconforto não poderia ter-se construído sem o campo físico e real no qual se moveu o artista. O trabalho do cinema e da fotografia é uma experiência 149

151 indicial por excelência, acarretando vivências particulares e determinando, em muitos casos, uma poética construída por uma relação umbilical com a realidade. A percepção que Angela Magalhães (2014) teve sobre o trabalho do Pelourinho no início dos anos 1980 por ocasião da montagem da exposição da Funarte no Rio de Janeiro é de certo modo representativa do impacto que as imagens causavam no espectador. Mesmo acompanhando a montagem do trabalho como pesquisadora e técnica da instituição, seu depoimento a esta pesquisa revela ao mesmo tempo a dimensão sensorial e realista com que o trabalho chegava no público: O caso das imagens do Miguel era como a perda de uma certa pureza, de uma certa visão de mundo. Aquele universo da mulher, as cicatrizes, aquela mulher com elefantíase na perna é uma imagem que me toca muito. O efeito blur no braço como se ela tivesse voando; a perna que não tem nada a ver com o corpo, uma coisa fragmentada. As próprias relações entre as mulheres; ali é um universo de mil possibilidades. O que me fascinava era pensar assim: como ele podia extrair aquele nível de intimidade?! Havia ali uma aproximação; os rostos tavam muito próximos, a cicatriz tava quase no teu nariz...eu me perguntava então como é que ele teria construído aquele percurso. Como era a relação dele com aqueles personagens, qual forma você estabelece aquela conexão num universo de criminalidade. Imaginava o nível de obsessão; é quase como que você ser tomado por aquilo mesmo. Será que o camarada passa a viver ali dentro, como é que é isso? Ele aluga um quarto, como é que ele chega ali? Na hora que bate o martelo, bom, vamos começar agora, vocês começam a interpretar, ou eu tô aqui meio de voyeur, meio esquecido?!...tá rolando ali a história..., e como eu tô fotografando isso, como isso se estabelece? É uma encenação pra mim, ou isso tá rolando mesmo? ou é isso e aquilo ao mesmo tempo? Então, essas especulações, eu de fato tive naquele momento; foi realmente o que me impactou porque percebi que era um um projeto de longo tempo em que o fotógrafo tem que mergulhar e trazer uma pulsão de vida daquilo, e que eu até então não tinha visto algo com aquela dimensão. Eu não sabia se haviam outros fotógrafos fazendo...por exemplo, o Larry Clark com aquele trabalho sobre os drogados; é um trabalho fortíssimo, um dos ícones talvez dos trabalhos que tem essa dimensão do íntimo, talvez um pré Nan Goldin. Aquilo eu só fui ter conhecimento depois de ter visto a exposição do Miguel, antes disso eu não tive acesso aquelas imagens. Ângela destaca também que o que a fez assim sobremaneira valorizar aquela proposta de Rio Branco era considerar a sua diferença em relação ao que se via no 150

152 Brasil. Naquele momento, no início da década de 1980, em que atuava nos grandes projetos da Funarte no campo da fotografia em todo o Brasil, a produção fotográfica de caráter documental estava ligada muito ao acontecimento em que as coisas ficavam muito na superfície, ali no fato. Esses aspectos relatados por Magalhães podem ser um parâmetro para que se considere o lugar que Rio Branco passou a ocupar na cena brasileira, que de certo modo, era dominada pelo estilo documental. O artista não estava fora desse contexto. O trabalho tem uma ressonância social que interessava à fotografia documental. No caso de Rio Branco, toda a subversão que ele opera no documento resulta em várias ações, dentre as quais a de decompor as imagens, intensificar seu aspecto plástico, destituir o significado original do assunto, imprimir um valor simbólico de outra ordem à cena, fragmentar e isolar o objeto e remontar uma lógica das imagens, e não dos fatos. Todas essas operações, paradoxalmente, não se constituem em um movimento de distância da realidade. A ideia de registro permanece como índice fenomenológico de algo que deverá ser devolvido ao espectador na fruição. Na experiência cinematográfica de Rio Branco com a comunidade do Maciel, essa experimentação factual fica evidente, incomodativa. O espaço criado entre o artista e sua câmera e o corpo dos retratados é um lugar de conflito, sedução e provocação mútuos. Pode parecer, em certo sentido, que o filme se realiza motivado por um comportamento invasor, exótico, vasculhador do modo de vida do outro. Não desconsiderarei essas significações como parte das camadas de apreensão da obra, até porque elas fazem eco a uma instabilidade, ou resultam de um impulso ao conflito, ao incômodo. Porém, o que parece ser mais importante na vibração do trabalho é a construção de uma zona de atrito, campo de diferença e atração, cujo arrebatamento com o outro faz parte e se dá por meio da identidade do corpo. E a câmera de cinema, ou de fotografia, é a interface desse trabalho de reconhecimento. A câmera atua como um exercício de retorno ao mundo físico, como experiência do real na percepção fotográfica do mundo. 151

153 * * * Alguns desses aspectos, discutidos no sentido da linguagem cinematográfica, tiveram Siegfried Kracauer como um dos teóricos importantes no debate sobre a estética de montagem e a concepção da obra fílmica. Adepto das teorias realistas, Kracauer acreditava que a experiência artística (e não somente o cinema) estaria em uma relação de retorno ao mundo concreto. Era em sua dimensão fenomenológica que se poderia extrair do mundo um cinema cuja montagem pudesse reagir ao mundo erigido sob uma totalidade ordenada, idealizada pelas teorias formalistas. Entre uma vivência direta dos fenômenos do mundo e as ferramentas com as quais o artista desenvolve sua linguagem como artifício, Kracauer desenvolveu, em seu Theory of Film, uma posição de adesão à experiência como construção de uma linguagem não naturalista. Ismail Xavier (1984, p. 55) irá considerar que sua visão nascia de um cinema empirista, pois estará comprometido em produzir experiências aptas a fornecer o retorno ao mundo concreto, a provocar a reativação da percepção direta e vivida dos eventos. Ao tensionar aspectos dentro da teoria realista, ressaltando as diferenças entre Kracauer e André Bazin, a análise de Xavier abre foco para uma questão cara aos realistas a despeito de suas oposições: a verificação da importância da experiência com o mundo físico, com o objeto concreto, com a existência inefável de um dado real do cotidiano, da força natural com que os significados se apresentam. A vivência palpável com o mundo nos ofereceria uma lida particular com as imagens técnicas como representação e linguagem a fotografia e o cinema. Tanto Kracauer como Bazin reservaram parte de suas teorias à fotografia em especial, para fundar estruturas para o pensamento cinematográfico. Algumas das diferenças estão em como lidar com esse mundo natural, com vistas a construir um cinema que não perdesse o seu fio umbilical com o mundo. Bazin, por sua vez, acreditava em um cinema que pudesse causar uma impressão de realidade e apontava, por exemplo, que um dos procedimentos técnicos de linguagem seria a utilização de longos planos sem corte, adensando a consciência de espacialidade entre os objetos e personagens na cena através do uso da profundidade de campo. Esses mecanismos em hipótese, mais invisíveis confeririam mais palpabilidade na fruição da obra e anulariam a plasticidade exuberante e artificiosa dos formalistas teóricos que exaltaram a supremacia da montagem. 152

154 Por outro lado, parece que Bazin buscava uma totalidade ordenada como resultado final da obra projetada, para justamente causar essa impressão de realidade. Tal totalidade na ordem final do filme desejada por Bazin o aproxima, de certa maneira, das teorias da montagem dos formalistas, cujos símbolos e signos encontram-se dominados pela vontade imposta pelo autor. A essa totalidade, Kracauer reagia e contrapunha a consciência do artifício como linguagem e o reconhecimento da fragmentação do sujeito, já como fruto de uma sociedade afetada pela decadência dos valores e ideais de modernidade. Kracauer defendeu o retorno ao mundo físico como uma condição de enfrentamento e absorção deste novo mundo em pedaços. Sua visão é dinâmica pois, ao passo que reconhece a fragmentação como perda da estrutura unitária de valores ideológicos da sociedade, observa que o homem nascido dessa desintegração estaria apto (justamente por sua condição fragmentada) para aliar-se ao mundo físico em suas realidades particulares, para retornar aos pequenos universos, participar da vida cotidiana, sem o peso das grandes ideologias. Ele acreditou que o cinema (e antes a fotografia como seu aspecto ontológico) permitiria essa comunicação direta com o real das coisas: Literalmente, redimimos este mundo da sua inércia, da sua virtual não existência, quando logramos experimentá-lo através da câmera. E estamos livres para experimentá-lo porque estamos fragmentados. O cinema pode ser definido como o meio particularmente equipado para promover a redenção da realidade física. Suas imagens nos permitem, pela primeira vez, nos apropriarmos dos objetos e ocorrências que compreendem o fluxo da vida material (KRACAUER apud XAVIER, 1984, p. 56). A menção às palavras de Kracauer no estudo de Ismail Xavier apresenta-se como uma síntese analítica sobre o que seria o tema básico em sua Teoria do Filme, ou seja, a ideia de experiência como elemento central e matéria de onde se pode extrair a dimensão humana deste mundo material a ser pesquisado pela câmera (XAVIER, 1984, p. 57). Apesar das ressalvas que Xavier faz, posteriormente, em relação às limitações da teoria de Kracauer, ele enfatiza, apropriadamente, a síntese sobre a qual se apoia o pensamento realista a respeito da importância do fenômeno vivido no microcosmos do cotidiano: Dentro do fluxo de vida, em seus horizontes indeterminados, o apreensível é a experiência do momento singular e do pequeno 153

155 fato, a observação direta das ações elementares que definem o homem em sua relação com o ambiente (XAVIER, 1984, p. 57). O filme de Rio Branco é um cachorro solto dentro da cidade, se o pensarmos como vivência primordial antes do trabalho fílmico concluído. A câmera parece vasculhar tudo e todos com o instinto de quem procura comida e abrigo para viver. A experiência da câmera prepara o molde conceitual do trabalho de montagem. Portanto, a montagem retém uma profusão de pequenos fatos, passagens que trazem um frescor do fluxo da vida e que, de certo modo, desestabilizam códigos do cinema documental se pensarmos no filme como registro de um lugar localizado geograficamente, em um tempo específico, uma cultura e história particulares de uma dada cidade brasileira. Essa mesma montagem sabe selecionar do fluxo da vida seu espírito caótico e descontínuo (outro elemento valorizado pela teoria de Kracauer), e com isso desestrutura, ou melhor, embaralha as muitas funções culturalmente desempenhadas pelo retrato. No que se refere especialmente à relação entre retratado e fotógrafo, o filme de Rio Branco aposta nessa zona de instabilidade, que está tanto no momento vivido do registro quanto na fatura fílmica. Nela, o aspecto instável é acentuado pela inconstância entre imagem fixa e imagem em movimento, como artifício gestado, possivelmente, na mesma inconstância vivida no ato do registro. Considerando, nesse caso, o encontro entre o retrato fotográfico do artista e o retrato fotográfico do fotografado, existem em ambos uma consciência perceptiva e uma dimensão simbólica sobre o retrato como código cultural. Entre o instinto de captar, registrar, e a vontade de ser captado, ou abatido para usar o termo do caçador e do caçado, 66 há um descompasso acordado entre o ideal de fixação da identidade pretendido pela tradição do retrato fotográfico e a ação performática dos retratados para a câmera cinematográfica, atuando de modo imprevisível como personagens e condutores do trabalho. Se todo retrato fotográfico é um ato que enreda, de modo irreversível, dois ou mais elementos no jogo de representação e do representado, Annateresa Fabris irá enfatizar que, para além das tradições históricas e pictóricas da representação 66 Termo usado tanto na idealização cultural da publicidade sobre o fotógrafo amador como também nas teorias de Cartier-Bresson do fotógrafo de rua e repórter-fotográfico, fotorrepórter. Sobre os aspectos construídos pela publicidade sobre o fotógrafo turista e amador, Cf. AQUINO,

156 honorífica do eu burguês, o retrato fotográfico irá afirmar o indivíduo moderno como participante da configuração de sua identidade como identidade social. Todo retrato é simultaneamente um ato social e um ato de sociabilidade: nos diversos momentos de sua história obedece a determinadas normas de representação que regem as modalidades de figuração do modelo, a ostentação que ele faz de si mesmo e as múltiplas percepções simbólicas suscitadas no intercâmbio social (FABRIS, 2004, p. 38). Importante a ênfase que Fabris dá à vinculação entre o retrato e à experiência da sociabilidade, posto que tal campo seria, por excelência, um campo das diferenças, atritos, confrontos e paixões. As cenas que se descortinam no filme de Rio Branco acolhem uma diversidade considerável de personagens e situações, que refletem um campo enorme de diferenças, no qual o retrato fotográfico é continuamente ou descontinuamente testado. Seria possível pensar em um avesso da tradição do retrato honorífico em alguns flagrantes de pose nas imagens das prostitutas do Maciel? Podemos considerar que nesse enredamento entre fotógrafo e fotografado houve atitudes de ostentação que o modelo faz de si mesmo? Ostentar o quê, se o que há em volta é só miséria social?! Será mesmo que o que circunda os personagens (e o que está dentro do trabalho do artista) é somente miséria social? A transferência das cicatrizes para um enquadramento isolado, para o primeiro plano do trabalho, teria a ver, em alguma medida, com o sentido de ostentação? Ostentar as cicatrizes é uma escolha de quem: do fotógrafo ou do fotografado? As respostas são muito variáveis, pois as consciências envolvidas no enredo fotocinematográfico do filme são igualmente variáveis, contraditórias e desobedientes quanto à ideia convencional de autorrepresentação honorífica na construção de um retrato. O ato mimético é antes uma dissimulação do que uma simulação, segundo Graig Owens (In: RIBALTA, 2004, p. 194), que irá tomá-lo como ponto de inflexão em relação à pose no enredamento entre retratista e retratado, no que concerne ao desempenho das forças sexuais: O mimético se apropria do discurso oficial o discurso do outro mas de tal maneira que a autoridade, a capacidade deste último para 155

157 funcionar como modelo, são postas em causa 67. Ao mencionar Barbara Kruger, concorda que a imitação se tornou uma estratégia valiosa para as questões feministas e aponta, tanto na literatura como no cinema, autoras que compartilham da ideia de uma apropriação disfarçada do discurso do outro como uma tática de enfrentamento, uma obsessão frequente pela pose como posição 68, quando se refere ao pensamento de Mary Ann Doane sobre a cinematografia feminista. Essa atitude se caracterizaria pela assunção da pose, valendo-se de um espelhamento que se dá no ato de posar, no qual o retratado, no caso da análise de Owens, especialmente a figura feminina, posiciona-se diante de quem o retrata de modo crítico, aparentemente simulando um discurso posto sobre a representação; mas, de fato, está dissimulando-o com vistas a enredá-lo nos códigos oficiais. Ainda mencionando Ann Doanes, trata-se de um trabalho de decodificação e desconstrução das imagens oficiais do corpo sexual. Cada sujeito que aparece diante da câmera em Nada Levarei... incorpora, nas intercorrências do processo documental da obra, uma persona disposta a jogar um jogo tão multifacetado com a noção de pose, que se torna impossível sustentar uma leitura unificadora para o filme. O sujeito nessa narrativa fílmica é o elemento intercorrente. Ele está na imagem em movimento, na fotografia estática, na trilha construída, no som ambiente, nas falas em off e nas canções românticas. Todas essas linguagens colaboram para a desorientação no jogo das máscaras sociais e ampliam a ideia de ostentação embutida nas origens e tradição do retrato. 67 No original: Lo mimético se apropria del discurso oficial el discurso del outro, pero de tal manera que la autoridad, la capacidad de este último para funcionar como modelo, quedan puestas en entredicho. 68 No original: una obsesión frecuente por la pose como posición. 156

158 Figura 37: Frames do filme Nada levarei quando morrer aqueles que mim deve cobrarei no inferno, 1981 site oficial do artista. O casal que dança agarrado tem aparência tímida e postura recatada. Eles sabem que estão sendo filmados a captação parece estar a uma certa distância e olham para a câmera com orgulho e discrição pois sabem que se movem delicadamente, romanticamente (Figura 37). Esse é o valor que exibem: certa altivez e dignidade amorosa. Em outro momento, muito breve, mas não menos importante, uma garota posa em frente a uma porta, na calçada, de modo totalmente infantil. Aparentemente, parece posar para uma máquina fotográfica, para uma imagem estática pois sua pose é fixa ; porém, logo em seguida põe um seio de fora da camiseta. Ao mesmo tempo, brinca de posar como um moleque, mas percebe que se trata de uma sequência, de uma fotografia que pode se dar em série, ou mesmo de uma câmera de filmar, captando a situação em movimento. Para Owens, o trabalho de desconstrução da sexualidade através da pose, na arte contemporânea, vai além de uma atitude de posição ou postura. A dissimulação parece conter a ironia que muitas vezes a simulação não possui. Para ele, trata-se mais de imposición, impostura e, nesse processo, não há nenhum campo, masculino ou feminino, que possa ser defensável. 157

159 Imposición: la sexualidad no viene de dentro, sino de fuera, impuesta al niño desde el mundo de los adultos. Impostura: la sexualidad es una función que imita otra función que es, intrínsecamente, no sexual (In: RIBALTA, 2004, p. 194 ). Figura 38: Frames do filme Nada levarei quando morrer aqueles que mim deve cobrarei no inferno, 1981 site oficial do artista. A garota diante da objetiva faz e desfaz a pose, ou melhor, constrói uma pose que se desdobra na duração e joga entre a postura e a impostura (Figura 38). Um sujeito que está entre a brincadeira infantil e o corpo sexualizado. A ambiguidade provocada pela câmera de cinema na apreensão de alguns retratados que parecem não saber, num primeiro momento, se é imagem fixa ou em movimento permite que o jogo entre fotógrafo e fotografado se torne mais diverso e instável. A análise inicial de Owens considera que a pose tem sido estudada recentemente por dois eixos distintos: um social e outro psicossexual. Referindo-se às reflexões de Homi Bhaba sobre a vigilância, destaca que o processo por meio do qual o olhar de vigilância retorna como olhar que desloca o disciplinado, no qual o observador se torna o observado (OWENS In: RIBALTA, 2004, p. 196) No original: proceso mediante el cual la mirada de la vigilancia regresa como la mirada que desplaza lo disciplinado, en que el observador deviene lo observado. 158

160 Há uma cena especialmente curiosa que reflete o comportamento variável do retratado nesse estado entre o fixo e o móvel da imagem. Trata-se do momento em close-up do rosto de um garoto que coça insistentemente o olho e que aparenta estar alheio à presença da câmera (Figura 39). A cena é precedida por uma sequência em que se fundem sons de berimbau com imagens de fumaça na rua, vinda de uma lata cozinhando amendoins, e o movimento de policiais andando, em uma ladeira, com um cidadão em atitude suspeita. Da presença de um grupo de policiais reunidos em uma esquina corta para o menino. A câmera em close-up destaca seu rosto marcado por cicatrizes acima do nariz, perto dos lábios. Quando percebe o dispositivo da câmera, o garoto arma um sorriso forçado, engraçado, mas volta a se distrair com a coceira. Ao tentar posar com sorriso armado e se concentrar na coceira, o som do berimbau sai de cena e, em alguns, segundos permanece um silêncio pontuado por um chiado de disco de vinil. Cria-se certa tensão centrada no rosto do menino, acentuando suas cicatrizes, evidenciando a relação que estabelece com a cena da polícia na rua. A interferência sonora do disco riscado realça o instante: entre a tentativa de fixação do sorriso e a insistência impositiva da câmera parada (mas em movimento), cria-se ali um retrato desconcertante de uma criança brasileira, em meio a uma situação de violência (os homens da polícia, os cortes no rosto), mas que não deixa de captar a espontaneidade da infância igualmente alheia ao perigo circundante. Os sons construídos artificialmente para a cena retiram certa atmosfera de comiseração ou complacência com a situação social e deixam um gosto sinistro entre a inocência e a vulnerabilidade do sujeito. Sinistro e inquietante também porque tal vulnerabilidade se desloca para quem está atuando na câmera. A câmera-artista parece estar paralisada, magnetizada pela expressão do garoto. O tempo real mantido naquele momento parece refletir a sensação de perplexidade ante os cortes no rosto do menino. A inserção do silêncio construído pela ausência de música ou som ambiente marcando o momento com o som de chiado de disco torna o retratista (o cameraman), o objeto da representação: o modelo retratado, o disciplinado sob suspeita, o artista sob o confronto. 159

161 Figura 39: Frames do filme Nada levarei quando morrer aqueles que mim deve cobrarei no inferno, 1981 site oficial do artista. Fonte: catálogo Ponto Cego, Reprodução Mariano Klautau Filho. Um outro retrato importante na narrativa, que funciona como uma espécie de ostentação de si ao avesso, é a fala em off de uma das prostitutas, que conta um caso de briga. Trata-se de um retrato sonoro que atravessa o filme em poucos segundos e que se localiza estrategicamente antes da sequência da polícia na ladeira-sons de berimbauclose up do garoto: Um dia, eu tô ali no bar... ali na esquina... tem uma garota que chama Dinha... Aí ela veio em cima de mim e, no que eu soltei ela... ela foi dentro do esgoto, pegou uma garrafa sem boca, só com o fundo e o pedaço, mas com dois cortes, ela veio me segurar aqui. Aí eu grudei os dois braços dela e botei os dois braços dela pra trás, cortei ela... com a garrafa e com a própria mão dela... Um caso de briga assim, contado de modo displicente, passa no filme como uma conversa que se ouve aleatoriamente na esquina, como parte natural daquele cotidiano. Porém, o interessante é que, durante os segundos em que a história é contada, transparece, nitidamente, na voz da mulher o orgulho de ter cortado sua adversária, ter vencido a briga, ter mostrado coragem. Naquele breve retrato exibem-se força e superioridade. O embate físico, o contato corporal e a luta como jogo sinalizam, na narrativa, a violência contida no corpo. A história contada pela prostituta irá fundir-se, na trama, com as imagens da polícia e os sons que acompanham a câmera no rosto do garoto. Após a imagem do garoto tendo ao fundo o ruído do disco riscado, o filme 160

162 assume outro ritmo, tanto sonoro quanto visual. Aliás, o chiado funciona como uma espécie de mudança de uma música para outra, na sequência de um long play. Um tango nervoso de Piazzolla conduz a nova sequência, cujo prólogo é a imagem fixa do ventre masculino segurando dois galos de briga, seguida de outra com dois homens que parecem discutir entre si, associada, na sequência, a uma nova fotografia, com dois galos de briga em posição de confronto. A alternância das imagens entre a luta e a dança sublinha a mistura de encenação e acaso na narrativa no fundo, misturado ao som do tango, escuta-se, em off, uma discussão de prostitutas. Uma delas é a mesma voz que narra a briga com cacos de garrafa. A tensão é aumentada pela fusão caótica das imagens sonoras (som ambiente e tango instrumental) com as imagens fotográficas dos embates físicos. Uma vez mais, a montagem narrativa oscila entre os indivíduos (retratos isolados) e o coletivo (retratos de conjunto), fazendo um paralelo evidente com a estrutura das casas, a degradação da arquitetura, a história social do lugar e o drama pessoal observado no corpo dos personagens. Todas as imagens (fixas e em movimento) que constituem tal sequência conduzida pelo tango dramático fundam, no filme, essas relações: a mulher com a cobra; as peles e marcas; o corpo de um menino; as ruínas dos casarões coloniais; cães e mendigos. Aqui, a ideia de animalidade se instaura no trabalho do artista. Do tango imponente, que antes pontuava as imagens de jogo corporal, o filme muda para um som de um órgão, ampliando o tom dramático da narrativa, ora focando o interior de um casarão apoiado precariamente por vigas de madeira, ora voltando a câmera para a performance exibicionista de um casal que simula, à luz do dia, uma cena de sexo. Seminus, num misto de constrangimento e tom jocoso, eles se exibem para uma pequena plateia de vizinhos (incluindo crianças), que se diverte com a atuação. A verdadeira protagonista da cena é a câmera, que estimula o jogo da representação, do constrangimento, da piada, da brincadeira sexual. Posicionada próxima de uma escada, no segundo andar de um sobrado, a câmera, num rápido movimento sem corte, capta tanto a cena do casal no andar superior como a escada em perspectiva, até a calçada onde crianças brincam. Todos estão atentos à câmera, prontos para exibir sua sexualidade, desfilar os códigos da cultura sexual propagados pela imagem: adultos, adolescentes e crianças. E a câmera, perversa, dissimulada, invasiva, arbitrária, está ali justamente para cumprir esse papel. 161

163 Em rápidos segundos, vemos do alto da escada, uma garota (mulher ou adolescente?) desfilar em um corredor escuro, imitando gestos de modelo em passarela. Logo mais adiante, já na rua, uma menina de poucos mais de cinco anos brinca na calçada. Ao perceber a câmera observando-a de dentro da casa, imita alguns passinhos de samba, emulando o comportamento sexualizado já naturalizado em tão tenra idade de uma cabrocha em uma escola de samba em plena avenida. Repito: tudo se passa em rápidos segundos; no entanto, a cena adquire uma atmosfera de constrangimento generalizado, do qual ninguém escapa: personagens, espectadores, câmera, artista. O som do órgão na trilha entra para aumentar a apoteose. Nesse trecho do filme, o desconforto entre câmera e sujeito é acentuado, muito provavelmente por ambas instâncias estarem deliberadamente representando papéis não muito definidos, diluídos que estão entre a vontade de expressão íntima e a conduta moldada pelos discursos oficiais da imagem técnica. Aquele que está atrás da objetiva experimenta seu instinto em captar o fluxo da vida pulsando na comunidade, a partir do contato com seus moradores, e, em meio a essa ação, por vezes cai nas armadilhas de um naturalismo algo codificado pelos dispositivos da máquina. Quem está diante da câmera mistura suas vontades legítimas de expressão erótica com a ostentação de uma sexualidade que tira partido de um comportamento cultural inventado pelos aparelhos. Seria esse momento em que adotar uma pose com conotações eróticas seria um tipo de afronta e, ao mesmo tempo, é um tipo de sociabilidade que poria em xeque a situação de conforto tanto do retratista quanto do retratado. Muito mais uma dissimulação do que uma simulação, como ressaltou Graig Owens, e, portanto, um enfrentamento. As mulheres do Maciel posam de maneiras diversas para a câmera de Rio Branco e, em muitos casos, em atitudes de impostura, menos subjugadas e mais ameaçadoras diante de quem as olha. Adotar uma pose pode representar uma ameaça, aponta Owens, como um antídoto contra o vigilante, um mecanismo de defesa para aquele que está sendo olhado, filmado, seguindo a perspectiva de análise social sobre a pose. 70 A ameaça está em mudar a posição do retratista, colocá-lo numa situação de desconforto, e isso de fato acontece em muitas passagens do filme, arrastando o espectador para esse enredamento entre câmera, sujeito representado e sujeito fotógrafo. 70 Owens (In: RIBALTA, 2004, p. 196) faz referência à análise de Dick Hebdige em Posing...Threats, Striking...Poses: youth surveilance, and Display. 162

164 A atuação da câmera junto com seus códigos de representação por si só se descola do domínio autocontrolado de quem a opera. Há um olho do artista e há um olho da câmera nesse embate com a realidade física e visível. Há coisas que o olho do aparelho vai enxergar, e não necessariamente o olho do artista, que poderá ser apropriado pelo discurso do filme. Nesse sentido, a natureza artificial do meio fotográfico está presente com sua dupla identidade: a de fazer parecer natural o objeto que traz da realidade e a de artificializar o objeto extraído de seu realismo visível. Essa dimensão fenomenológica do aparelho fotográfico, Kracauer (2013, p. 49) não esqueceu ao propor suas teorias básicas para o cinema: A natureza da fotografia perdura na do cinema 71. Ele acreditava que era o traço espontâneo da fotografia, ou melhor, a parcela da fotografia instantânea que permaneceria viva na linguagem do cinema, capaz de produzir um trabalho de dimensão cinemática. Deixar a câmera atuar sobre o livre fluxo da vida, sem a interferência exaustiva do autor, era atribuir à fatura fílmica uma natureza artística distinta das artes tradicionais. Kracauer (2013) acreditava que havia uma realidade da câmera em que o artista precisava estar consciente da obrigação registradora do meio. obligación registradora del médio. Tal realidade da câmera seria o vínculo mais fluente com o fluxo material e físico da realidade, para produzir um tipo de cinema em que os espectadores pudessem alcançar um grau de experiência próximo à sensação de realidade. Apropriar-se dessa obrigação do registro da câmera fundou, de modo geral, sua crença em uma qualidade do cinema (e da fotografia) que não se ajustava ao campo das Belas Artes. Tratava-se menos da crença ingênua na naturalidade da câmera do que na capacidade do aparelho cinematográfico captar o continuum da vida, sem se deixar dominar pelo excesso formalista. O caráter cinemático podia ser encontrado nas películas que sabiam incorporar determinados aspectos de la realidad física para que nosotros, los espectadores, las experimentemos (KRACAUER, 2013, p. 65). O autor tomava como exemplos os filmes documentais como representantes de uma artisticidade mais própria do cinema, por eles captarem os fenômenos materiais em si mesmos. Para Kracauer, a arte do cinema (a questão do cinemático) estava em extrair a realidade física/dimensão natural da vida, a partir dos dispositivos da câmera, para criar um jogo de experiências com o espectador. Para definir o cinema como arte 71 No original: La naturaleza de la fotografia pervive en la del cine. 163

165 distintamente das artes tradicionais, Kracauer (2013, p. 65) afirmou a relação ambígua com a (experiência da) natureza. sempre deve se ter em conta que ainda o mais criativo dos diretores é muito menos independente da natureza elementar que o pintor ou o poeta; e que sua criatividade se manifesta deixando que a natureza penetre em sua obra, penetrando-a ele mesmo por sua vez. 72 Essa perspectiva parece ter perpassado todas as teorias do cinema, incluindo, certamente, o pensamento de Bazin, contestando, ampliando ou aprofundando Kracauer, chegando até o cinema contemporâneo e à contribuição de uma estética documental. Perspectiva que põe o espectador como parte do jogo, de tal modo que é difícil aprisionar um trabalho em uma só compreensão, de interpretá-lo por uma única via, talvez por resultar em uma experiência tão instável, que provoca mais ambiguidade do que certezas: o lugar da dissimulação, da impostura, da ameaça. A sensação de incômodo que o filme de Rio Branco provoca não se dá unicamente pelo dado factual ou atitude classista - de que há uma câmera observando um outro que é pobre e distante de mim, imiscuída à vida socialmente miserável e selvagem de uma comunidade à margem de uma satisfação material. Este é o acesso mais fácil de chegar a um tipo de compreensão sobre o filme e garantir sua percepção sobre a dignidade social e a consciência política. Aliás, essa foi, de modo geral, a chave encontrada que perpassou a leitura crítica do trabalho de Rio Branco sobre o Pelourinho. A despeito da qualidade da reflexão das análises mencionadas, nenhuma delas detectou que tais obras, em vários momentos, e muito especialmente o filme, lidaram com confrontações e paradoxos. O filme por vezes resvala em situações altamente ambíguas, fazendo transitar sua câmera continuamente entre a presença impositiva e generosa, entre a repulsa e o afeto, entre a simulação e o gesto espontâneo, a invasão e o acolhimento. Nesse sentido, o filme muda de tom constantemente e é capaz de sair de um registro perverso, como o da sequência anterior do casal seminu e da criança 72 No original:..siempre debe tenerse en cuenta que aun el más creativo de los directores es mucho menos independiente de la naturaleza elemental que el pintor o el poeta; y que su creatividad se manifiesta dejando que la naturaleza penetre en su obra, penetrándola él mismo a su vez. 164

166 sambando e encadear uma outra série de retratos de mulheres sob o signo da canção romântica, que, agora à capela, ganha um tom confessional e feminista. A canção A Desconhecida, de Fernando Mendes, na voz de uma das mulheres do Maciel, entra no filme como uma micro-história de independência de todas elas. Numa tarde tão linda de sol Ela me apareceu. Com um sorriso tão triste, O olhar tão profundo, já sofreu. Suas mãos tão pequenas e frias, Sua voz tropeçava também. Me falava da infância de lágrimas, Nunca teve ninguém. Nunca teve amor, Não sentiu o calor de alguém. Nem sequer ouviu a palavra carinho, Seu ninho não resistiu. Sinceramente, Eu chorei de tristeza ao ouvir Tanta coisa que a vida oferece E a gente padece, sem querer. Depois de tudo que ouvi, Não consigo esquecer, Ela me disse adeus e se foi Nem seu nome eu sei dizer. De onde ela veio? Pra onde ela vai? Não sei dizer. (MENDES, 1973, grifos meus). A música é um dos maiores sucessos populares da década de Portanto, fica evidente a sua identificação com o universo feminino. Igualmente na voz de um homem, como nas demais canções utilizadas no filme, A Desconhecida narra o encantamento de um homem por uma mulher sem origem e sem destino que, apesar de ter sofrido bastante, é livre para seguir sozinha. Mesmo com a atenção recebida pelo enunciador masculino, prefere não se fixar em lugar nenhum e segue seu curso como uma figura andarilha, sem identidade, aventureira e misteriosa. Considerando seu lançamento em 1973, a canção já havia se consolidado no imaginário de uma geração naquele ano de 1979, quando Rio Branco frequenta o Pelourinho. Cantada ali via som direto por uma das mulheres do Maciel, a música assume uma dimensão afetiva e biográfica de uma classe de mulheres; revela, por meio 165

167 do seu sujeito enunciador, na canção gravada, uma postura masculina de acolhimento, sensibilidade e respeito por aquela história feminina e forasteira. Diante de sua liberdade de ir e vir, o homem já não pode fazer mais nada a não ser ouvir sua história. Por outro lado, dentro da atmosfera sonora do filme, a canção soa prosaica e doméstica, como se estivéssemos escutando-a na cozinha. O filme consegue atingir tal nível de intimidade de quem escuta o outro, e não somente o invade. É nesse limite das contradições que surgem as diferenças de tom, as mudanças bruscas de posição e movimento da câmera em face daqueles personagens reais. A nova série de imagens, conduzida pela canção sentimental de Fernando Mendes, é a antítese da sequência anterior, piadista e invasiva. A Desconhecida marca a série de fotografias fixas de mulheres, em tom mais lírico. Os momentos finais do filme de Rio Branco mantêm o paradoxo como discurso e confrontam o sagrado e o profano como duas políticas que se entrelaçam. Em uma delas, chega-se à cena de um ato sexual quase explícito na penumbra de um quarto. Em outra, o embate entre ouro e miséria: a enorme riqueza ostentada no interior das igrejas do Pelourinho em contraste com a vida material da comunidade do Maciel. O filme tensiona esses dois eixos e mistura o êxtase erótico às imagens de templos ricos e sobrados destruídos, ambientes suntuosos e ruínas, detalhes da estatuária religiosa e partes dos corpos dos habitantes, numa espiral eloquente e quase moralista, destacando a imponência religiosa do poder católico colonizador sobre a história cultural do país. Contudo, o filme de Rio Branco opera na sua instabilidade: a experimentação de forças contraditórias. O discurso cinematográfico (político-social) é construído nitidamente (no que se refere à montagem) a partir das oposições igrejas-ruínas, estátuas de santos-corpos dos moradores, em uma suposta totalidade da vida real. Essa era uma das críticas dos teóricos realistas frente aos conceitos de um cinema rigorosamente formalista. Na contracorrente e dentro do mesmo filme, coexistem sequências e cenas que, ao distenderem a ação impregnada do fluxo da vida, dão espaço para que a própria vida se apresente com seus fragmentos e instabilidades próprias, que serão realçadas pela câmera. Estamos falando da cena de sexo, da sequência do garoto coçando o olho, do casal que dança no bar, modos de ação prática recorrentes no filme, que remetem a uma perspectiva teórica para o cinema de tintas realistas. Guardadas as diferenças de 166

168 abordagem, esta perspectiva atravessou o tempo e reuniu tanto Bazin quanto Kracauer, como também os mais contemporâneos ligados à fenomenologia. O tom final, apoteótico e eloquente, é muitas vezes confrontado pela dimensão carnal do sujeito, por sua presença individual e por sua afronta diante da câmera. O retorno ao corpo e ao prazer sinaliza (e potencializa) as identidades. Na construção do filme como trabalho documental, duas políticas se entrelaçam, como afirmei anteriormente. Uma ligada ao discurso crítico social sobre a economia colonizadora, representado, em geral, por uma montagem formal, de efeito plástico mais evidente. Outra relacionada ao corpo vivido, erótico, pulsional, fonte de um prazer liberador e que, no filme, apresenta-se em cenas (quando em movimento) mais distendidas, alongadas (filiadas à fenomenologia do fluxo da vida) e, quando postas fixas em sequência, detêm-se em fragmentos do corpo, lugar das marcas e cicatrizes, ou flagram fisionomias que respondem à frontalidade da câmera com seus ares de dignidade. Não esqueçamos também da banda sonora, cujos componentes são de grande importância sintática na estrutura do filme: os ruídos da rua, as histórias contadas somente pelo áudio, as músicas românticas. As canções populares, e em especial suas letras cantadas por homens amorosos, sentimentais e dependentes, falam não só da condição existencial do lugar e seus habitantes, como também de traços da cultura de um país: o som dramático do órgão de igreja finaliza a película, associado à imagem da frase de seu título. Escrita na parede interna de uma ruína, com erros ortográficos e evidente rancor, a frase injeta uma força ao trabalho, uma energia sem direção dotada de ironia, vingança e superação: Nada levarei quando morrer aqueles que mim deve cobrarei no inferno. 167

169 Um Livro (Mundo) Explodido CAPÍTULO TRÊS

170 3.1 DO LIVRO EXPLODIDO À REORDENAÇÃO DO MUNDO Se pensarmos em um artista brasileiro contemporâneo que trabalhe com a fotografia, cuja produção tomou o livro como um de seus principais suportes e que tenha conseguido alinhar uma considerável quantidade de publicações a um fôlego sempre renovado na construção conceitual de seus trabalhos, será inevitável pensar em Miguel Rio Branco. Atualmente, podemos reconhecer certa facilidade e desenvoltura com que o artista consegue publicar continuamente seus projetos impressos. Essa conquista não é uma circunstância do mercado 73. Trata-se de uma persistência, um caminho vagaroso, paciente e, de fato, interessado na dinâmica do livro como parte basilar de sua poética fotográfica. O interesse de Rio Branco pelo livro é explicitado entre os anos de 1979 e 1980, período em que realizou a mostra Negativo Sujo no MASP e ganhou o prêmio na I Trienal de Fotografia no MAM-SP. Na época com 32 anos de idade, em pleno exercício de subversão da lógica do ensaio documental em preto e branco, ponto de virada de sua carreira para a mistura com as cores, o artista já possuía o desejo pelo livro como objeto e tinha consciência da relação sintática e especial que se dava entre imagem fotográfica e livro. É possível ter como perspectiva que a vontade pelo livro em Rio Branco seria parte determinante de sua operação, seu procedimento de ressignificação do componente documental em sua trajetória de fotógrafo. Negativo Sujo é uma desordem, do ponto de vista ensaístico tradicional: sem começo nem fim, como bem pontuou Frederico Morais (1978). O público poderia entrar no ambiente expositivo por um lugar e sair pelo outro; poderia percorrer diversos começos e fins continuamente, porque não estava somente diante das imagens. Estava diante e entre elas, por trás e pelos lados, pois se tratava de placas suspensas no teto e que agrupavam, caoticamente, blocos de imagens. Uma realidade social dura e desordenada narrativamente na configuração espacial da galeria, uma captação instável do acontecimento real, que Moracy Oliveira 73 Há grande agitação do mercado em torno das publicações fotográficas, especialmente os chamados fotolivros. O termo fotolivro tem sido muito utilizado no meio fotográfico desde meados da década de 2000, como um tipo de produção na qual o fotógrafo utiliza o meio como trabalho de arte, como livro de artista. Essa nomenclatura tem gerado um circuito de produção e debate sobre linguagem impressa e autoral da fotografia, porém revela nitidamente um investimento no mercado editorial. tampouco de um interesse oportuno que alimenta o mesmo mercado.

171 (1979, p. 10) considerou análoga ao espírito glauberiano: a máxima Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça. Rio Branco considerava que o seu projeto expositivo de anotações de um Brasil interiorano dos anos 1970 tratado no capítulo um, seria ideal também na forma de livro. Ele tem um estudo, um protótipo de livro para Negativo Sujo que nunca chegou a realizar 74. Nessa perspectiva, é importante retomar um aspecto inicialmente apontado no Capítulo Dois, que menciona a fisicalidade material da exposição Negativo Sujo, sem nomeá-la de instalação, embora esse aspecto não linear e labiríntico, que permitia ao público circular entre as imagens, fosse ressaltado com ênfase pelos críticos. Tal figuração tridimensional parece ter sido, para o artista, o seu ponto de virada e a certeza de que aquela experiência já era a realização, em certa medida, de sua aproximação com a matéria do livro. Volto, portanto, ao jovem artista no ano de 1980, quando afirmou o livro como a forma mais correta para a arte fotográfica e ideal matérico para o projeto de Negativo Sujo naquele contexto....a publicação de livros é uma etapa indispensável. Só que aqui no Brasil, a não ser aqueles que tiveram condições financeiras de produzir seus próprios livros, contam-se nos dedos de uma mão os livros produzidos com intenções culturais e não comerciais, turísticas, ou quase isto. E o livro ainda é a forma mais correta de apresentar a visão de um artista fotográfico, permitindo ao leitor uma análise mais profunda da proposta do autor. Além, naturalmente, de poder atingir um número muito maior do que uma exposição. (...) Negativo Sujo... deu uma visão bastante correta do desenvolvimento de minha obra. No entanto, tivesse sido melhor compreendido se vista em forma de livro. Como tal publicação era impossível, optei pela exposição. Essa exposição era praticamente um bloco de anotações fotográficas ampliado. Tanto a base da montagem (papel carne seca) quanto as cópias participavam do clima geral de precariedade material da mostra. As cópias não sendo trabalhadas até o máximo de rendimento de cada negativo, e sim o suficientemente necessário para o clima e informação desejado (In: LEMOS, 1980). Vários aspectos estão sendo considerados nesse depoimento do artista. Os principais a serem destacados são a afirmação do livro como meio, o conceito que 74 Rio Branco mostrou recentemente o protótipo de Negativo Sujo em seu relato Escrevendo com imagens no Encontro de Fotolivros realizado no Sesc Vila Mariana, São Paulo, 10 abr (RIO BRANCO, 2015). 170

172 propõe ao trabalho de bloco de anotações ampliado e o resultado técnico das cópias utilizadas na exposição. Sua dificuldade em produzir um livro estava relacionada diretamente à falta de interesse das editoras e patrocinadores em financiar uma publicação de fotografia que não tivesse um uso funcional claro: livros produzidos com motivações comerciais, turísticas, ou quase isto, como declara o artista. O suporte do livro parecia mobilizá-lo em vários aspectos e, diante da impossibilidade econômica de realizá-lo, estimulava-o conceitualmente. O livro seria o meio pelo qual o fotógrafo-autor poderia se apresentar, apresentar seu trabalho de artista, aqui numa direta alusão ou oposição à ideia de fotografia documental em seu aspecto objetivo e, portanto, funcionalmente jornalístico. O trabalho de Rio Branco naquele momento, o da exposição no MASP e do prêmio na Trienal, era, evidentemente, marcar sua diferença em relação a um trabalho que pudesse ser tratado simplesmente como informação sobre o mundo social brasileiro. Era necessário fazer emergir, com clareza, o fotógrafo expressivo que estava justamente no modo como construía seu grande bloco de anotações fotográficas da realidade brasileira. Assim, Rio Branco destruía qualquer pretensão de que o público visse aquilo ali como um ensaio jornalístico. Um aspecto importante é a menção ao fato de que trabalhava as cópias sem atingir o melhor de seu rendimento. O tempo de decantação de uma cópia em papel mergulhada no revelador, em um laboratório analógico, é muito variável, sempre dependendo igualmente do tempo de exposição na captação do objeto e das condições de luz estabelecidas naquele mesmo instante. Para se chegar a uma cópia tecnicamente bem realizada, supõe-se, geralmente, um tempo para readequar as contingências na hora do clique aos tempos dos banhos nos químicos e os instantes em que se opta pela interrupção do processo de revelação. Todo esse processo é um percurso de realização final da imagem fotográfica, no qual se busca o equilíbrio de tons, as nuances entre os brancos e os cinzas, e as definições dos graus de contraste. Não querer o máximo rendimento de cada negativo é querer anotar, rabiscar, esboçar, e não escrever de forma definitiva, terminar o texto conclusivo, definir o pensamento revisado e acabado sobre o mundo social do interior brasileiro. As cópias utilizadas na exposição são provisórias. Suas analogias entre a exposição e o desejo pelo livro já são indicadoras de um comprometimento conceitual 171

173 com a materialidade do livro, que tem o potencial narrativo como resultado da experiência com o cinema. Para Rio Branco, a exposição Negativo Sujo é como um bloco de anotações ampliado, ou seja, possui uma materialidade que é, ao mesmo tempo, espacial e objetual e que remete às suas relações pessoais e artísticas com Helio Oiticica, quando este propunha o conceito sobre os chamados bloco-experiências, como núcleos não-narrativos de seus audiovisuais: A própria montagem e relacionamento entre as cópias (cerca de 300) davam os diversos ritmos de leitura, em geral não linear e sim nuclear, onde cada assunto tinha sua abordagem própria. Ainda acho que a forma livro é mais propícia a este tipo de linguagem, pelo esforço de leitura que é pedido ao leitor (In: LEMOS, 1980). Observa-se na busca de Rio Branco, entre a década de 1970 e os anos 1980, certa filiação importante à geração dos artistas brasileiros que se nutrem das experimentações de materiais e mídias diversos, atuantes em uma década que bebeu fortemente da arte conceitual e que buscava encontrar em sua arte uma fala brasileira. A menção às cópias ruins e ao clima geral de precariedade material da mostra sugere, nitidamente, tanto sua posição como artista de derivação conceitual quanto registra o esforço que ele começa a empreender para injetar essa sua bagagem no âmbito da fotografia brasileira de constituição documental, em seu sentido mais limitador, ou jornalístico. É a imagem conceitual do livro, da escrita e das anotações que o anima, provoca-o no desejo de subversão do factual. No processo de articulação e negociação de Negativo Sujo com o MASP, Rio Branco, em carta endereçada a Pietro Maria Bardi em janeiro de 1979, define qual a proposta e a feição de sua mostra. Ele explica a Bardi a relação que propõe entre fotografia e palavra, entre sequência de imagens e frase, na construção de sua proposta de montagem: No conjunto, a mostra tem o aspecto de um bloco de anotações poéticas e críticas baseado em temas e lugares brasileiros. E, ao espectador fica a impressão de estar diante de um livro explodido e ampliado, em que é levado a considerar o relacionamento das fotos, bem como a especular sobre as possíveis razões pelas quais os fatos nas fotos em questão foram escolhidos e mostrados de tal e tal forma (RIO BRANCO, 1979c). 172

174 Além do bloco de anotações e da ideia de esboço crítico, seu desejo de que o público estivesse diante de um livro explodido e ampliado constitui uma imagem conceitual importante. Abrange, de modo atual, o sentido do suporte no interminável e labiríntico conjunto de classificações sobre o livro como trabalho artístico 75. É necessário sublinhar que, já no apagar da década de 1970, o jovem artista Rio Branco dimensionava seu projeto poético quando descrevia seus trabalhos, ainda que oscilasse sempre entre as intenções expressivas de cunho plástico e a vontade de representação de uma realidade social brasileira. O livro explodido de Rio Branco é um desejo pelo suporte que ele sublima na forma de exposição em Negativo Sujo. Porém, nutrido por tal experiência material e perceptiva, ele segue tensionando suas anotações sociais na lida com a realidade brasileira dentro do Maciel, no Pelourinho, no alvorecer da década de 1980 e, com isso, chegaria finalmente ao livro em sua carreira, em 1985, com a publicação em espanhol intitulada Dulce Sudor Amargo Dulce Sudor Amargo O livro Dulce Sudor Amargo é editado no México, com patrocínio do Fondo de Cultura Económica, possui 79 fotografias em cor, em 112 páginas, com tiragem de 5 mil exemplares e texto de Jean-Pierre Nouhaud intitulado Carta a um amigo de Bahia (Figura 40). As imagens seguem o mesmo tamanho e posição no espaço da página, sempre com uma única fotografia por página e, na maioria das vezes, ocupando, com o livro aberto, todas as páginas, de modo a nos conduzir a visualizar constantemente um par de imagens. Em alguns momentos, esses dípticos são quebrados por imagens que se situam unicamente na página à direita e com o espaço da página à esquerda vazio, criando intervalos e respiros no encadeamento entre as imagens (Figura 41). O livro constitui-se 75 A atualidade de sua visão tem relação tanto com ass pesquisas contemporâneas sobre livro de artista como com e a agitação mercadológica do fotolivro. 76 Consta na lista de publicações do artista, antes de Dulce Sudor Amargo e no mesmo ano de 1985, uma peça impressa intitulada Salvador da Bahia, uma Double Page produzida em Paris com texto de Jorge Amado. Essa peça não está sendo tratada como livro. 173

175 de fotografias de Salvador, especialmente da comunidade do Maciel, no Pelourinho. É a primeira vez que Miguel irá montar as imagens do Maciel na forma de livro. Figura 40: Capa de Dulce Sudor Amargo, 1985, primeiro livro de Miguel Rio Branco editado em 1985, no México. \ Figura 41: Páginas abertas do livro Dulce Sudor Amargo,

176 A estreia de Miguel Rio Branco em livro é concretizada no México, e não no Brasil, como era de se esperar. O livro é produzido dentro do projeto da coleção Río de Luz, editada e dirigida por Pablo Ortiz Monastério, cuja política era publicar trabalhos fotográficos com marca pessoal e autoral, como princípio norteador do projeto. Há uma série de aspectos importantes a serem destacados no primeiro livro de Rio Branco, tanto do ponto de vista de sua poética como também do contexto cultural e político no qual foi produzido. Assim, proponho analisar a linguagem do artista tendo o livro como suporte conceitual, sem desconsiderar as contingências políticas de criação que envolvem o fotógrafo, tomando a publicação como produto editorial. O repertório de imagens que constituem Dulce Sudor Amargo é em grande parte familiar a esse estudo, localizado no capítulo anterior: fotografias realizadas na comunidade do Maciel, no Pelourinho em Salvador. No entanto, o livro permite a Rio Branco iniciar um deslocamento, sobre o qual poderíamos dizer, metaforicamente, que vai de um enquadramento macro a uma grande angular. Rio Branco parece experimentar (ou se permitir) um movimento que parte do plano fechado, do rosto, do detalhe, da pose, do corpo em direção às ruas, aos campos mais abertos, à orla, ao mar e aos horizontes. Se na exposição e filme Nada Levarei quando Morrer Aqueles que Mim Deve Cobrarei no Inferno dominavam as imagens próximas ao corpo, dentro dos quartos, provocando uma aproximação sempre inquieta com os personagens, no livro Dulce Sudor Amargo, tal vibração de caráter mais claustrofóbico é atenuada, ou relativizada, por um conjunto de imagens nas quais o branco, o azul e o verde claro aparecem em contraponto aos tons quentes dos corpos especialmente os amarelos, dourados e os vermelhos e marrons. Esse dado, contudo, não se apresenta meramente como um jogo de tons e cores. A diferença de tons se encontra em um arranjo narrativo que diz muito sobre o desenvolvimento de sua poética, seu interesse social pelo Brasil e sua estratégia de configuração do objeto documental em sua fotografia. 175

177 O livro permite a Rio Branco abrir o ângulo e escapar, pela primeira vez, mesmo que ligeiramente, de um ponto específico localizado geograficamente: o Pelourinho. No momento da leitura do livro, seguimos um percurso que se inicia com paisagens azuis (!) e fins de tarde lilases (!)(Figura 42). Figura 42: Sequência fotográfica inicial do livro Dulce Sudor Amargo, As duas primeiras imagens acima apresentadas abrem a narrativa do livro e são seguidas de uma bela fotografia de mulheres de branco, num movimento que parece ser de ritual de candomblé, tendo ao fundo, a parede pintada com a figura de uma sereia submersa, com os seios à mostra (Figura 43). A presença da água, do homem pescador, do horizonte, da mulher, da religião e do corpo erótico já nos introduzem à síntese romântica de uma paisagem baiana, brasileira, latino-americana, caribenha. Dulce Sudor Amargo começa como um filme, cuja paisagem permite criar um contexto antes de mergulhar o leitor nos meandros da cidade, do bairro, das casas e corpos. Rio Branco nos permite partir de campos mais abertos para olhar o núcleo do Maciel dentro de um território maior, que seria a cidade de Salvador. O artista não abre mão da contundência das imagens utilizadas anteriormente na exposição fotográfica e no filme em 1980 e 1981, respectivamente, mas no livro tem algo que muda. O interesse por um contexto maior, inserindo paisagens e imagens mais suaves nas suas primeiras páginas, marca uma posição distinta na lida com seu conjunto de 176

178 fotografias do Pelourinho. Essa sutil mudança suscita elementos que ora estão na inquietação poética do artista, ora nas demandas editoriais de uma publicação que, por um lado, pretende-se autoral e, por outro, obedece aos padrões de normalização do livro fotográfico impresso. A coleção Río de Luz é concebida por uma instituição do governo do México cuja política envolve uma formatação comum para todos o livros inseridos em seu projeto. Esses aspectos tornam rica a análise do primeiro livro de Miguel Rio Branco sob vários pontos de vista, no que refere as nuances entre o projeto artístico de Rio Branco para o livro e o projeto político da coleção para a cultura da América Latina. Figura 43: Terceira imagem do livro Dulce Sudor Amargo, Pela primeira vez o artista irá construir no suporte do livro impresso sua visão cinemática da fotografia, lançando mão das experiências que acumulou ao longo dos anos 1970 até o momento em que filma Nada Levarei... Esse período, rico em experimentações still e fotografia de cinema, exposições, audiovisuais e direção cinematográfica, dá-lhe as ferramentas necessárias para a criação de um livro que seja um trabalho autoral, produzido com intenções culturais e não comerciais, turísticas, ou quase isto, como ele mesmo afirmou em 1980 (In: LEMOS, 1980). Mesmo dentro de um padrão aparente de livro funcional, 77 Rio Branco exercita sua percepção narrativa não-factual ao imprimir em Dulce Sudor... uma fluidez entre as imagens, que confere à estrutura do livro-objeto uma cadência cinematográfica. 77 O termo livro funcional é usado por teóricos e pesquisadores de livro de artista. Cf. CARRIÓN, 2011; SILVEIRA, 2001, DERIK,

179 Tomando como referência as máximas de Ulisses Carrion (2011) O livro é uma sequência de espaços ; O livro é uma sequência de momentos ; O livro é uma sequencia autônoma de espaço-tempo, Rio Branco faz de sua primeira experiência editorial um campo semântico em que fotografia se entrelaça a um ritmo fílmico na sua fruição. O leitor entra no livro como um espectador de cinema diante de um começo convencional de filme narrativo: a câmera parte de uma visão panorâmica, aérea e, aos poucos, segue aterrisando na cidade até chegar às casas e aos seus personagens. Estou usando, obviamente, a palavra aérea como metáfora dos planos mais abertos, que, no livro, funciona no sentido de um panorama (Salvador), no qual se insere o bairro (Pelourinho) e, mais estritamente, a comunidade (Maciel). No livro, Rio Branco optou pelo horizonte e pelo mar como abertura de seu filme soteropolitano. Escolheu contextualizar primeiro, para depois localizar seu cosmos: as gentes, os corpos, as peles. Não que esses elementos não estejam presentes na primeira parte do livro, mas é importante destacar que, até a página 46, já temos diante de nós vinte e oito imagens e, ainda assim, não entramos no Pelourinho. Nesse prólogo alongado de Dulce Sudor..., o que se apresenta para o leitor são alternâncias entre personagens e planos mais abertos, onde a rua, as barracas, as praias, as feiras com bandeirinhas, os grafismos populares pintados em mesas e cadeiras de bar e garotos jogando capoeira exibem um colorido baiano, obviamente representado como brasileiro, e que poderia ser muito bem reconhecido como latino, na concepção editorial da coleção mexicana Río de Luz. As fotografias que marcam a parte inicial do livro sinalizam a espacialidade do lugar, apresentando os vários planos que compõem as cenas, como, por exemplo, a barraca de comida na rua, o muro colorido atrás e o céu ao fundo para citar, de modo geral, alguns elementos que a junção de imagens evoca no leitor. O jogo de capoeira é um dos exemplos em que essa espacialidade é representada na sequência de quatro imagens. Possivelmente, é a grande angular artifício técnico que enfatiza o desenho longilíneo dos garotos em suas expressões corporais dentro de um amplo terreno, cujo paredão branco destaca suas silhuetas em movimento (Figura 44). 178

180 Figura 44: Sequência com meninos jogando capoeira no livro Dulce Sudor Amargo, 1985 Em outro conjunto que antecede ao dos meninos, o colorido e os vários planos do espaço urbano são apresentados como um panorama dos motivos e traços do que parece ser uma feira popular comum na paisagem da cidade brasileira. Na primeira imagem dessa sequência vemos também um jogo de capoeira com dois homens adultos e, ao fundo, as cores fortes que decoram as barracas da feira. As bandeirinhas formam uma espécie de teto espesso, mas flutuante, que acentua a perspectiva como desenho da imagem. A fotografia à esquerda, que faz dupla com esta, tem seu primeiro plano tomado pelo volume das fitas coloridas, as fitas do Senhor do Bonfim, vistas penduradas e em movimento pela ação do vento (Figura 45). A imagem seguinte capta um parque de diversões, cuja fachada da casa que abriga o espetáculo Samira, a moça macaco, exibe um conjunto de pinturas populares. Uma escada sustentada por um homem corta parte da imagem projetando uma sombra na fachada, realçando o aspecto gráfico e pitoresco da imagem. Quase ao centro da 179

181 imagem, vê-se um pedaço de céu, enfatizando distâncias entre os planos, volumes, grafismos e cores (Figura 46). Na terceira fotografia desta sequência, o plano é mais aberto. No primeiro plano, uma barraca tipo bar sobre a qual uma estrutura de paus está sendo construída; a praia ao fundo, o céu. Sobre a estrutura, um homem em pé, qual um equilibrista, em uma das quinas da estrutura de madeira. O homem posa equilibrado e com braços cruzados. Há outros dois que aparecem na fotografia e que, provavelmente, formam o grupo que constrói uma espécie de telhado maior, que encobrirá a barraca menor. Em composição simétrica, em que os planos se harmonizam, vemos a cidade, seus personagens, a natureza e os aspectos urbanos apaziguados (Figura 47). Figura 45: Imagens de barracas de feira e capoeira no livro Dulce Sudor Amargo, Figura 46: Imagem à esquerda de parque de diversão no livro Dulce Sudor Amargo, 1985 Figura 47: Imagem à direita de barracas e horizonte no livro Dulce Sudor Amargo,

182 Miguel Rio Branco combina, neste prólogo do livro, paisagens e retratos mais delicados e harmônicos. Os personagens estão sempre brincando ou descansando. Os lugares em que se inserem são praias ou feiras coloridas. Parece haver uma vontade de partir de uma paisagem cultural já consolidada em nosso imaginário, que identifica uma nação cujo povo é alegre, relaxado e em contato constante com a natureza. Imagens de frutas, água e paisagens pintadas ajudam a dar um caráter naïf à parte inicial do livro. Colaboram para manter certa idealização da identidade brasileira, na qual a sensualidade está no corpo, na natureza, na cor e na luz (Figura 48). Figura 48: Sequência do livro Dulce Sudor Amargo, A impressão é a de uma visão distanciada, menos parcial em relação ao caráter visceral dos encontros no Maciel; portanto, uma atitude mais condescendente ao imaginário da cultura brasileira. Por outro lado, do ponto vista narrativo do livro, tratase de uma estratégia poética que se nutre de uma abordagem cinematográfica na fruição da obra. O leitor é iniciado cinematicamente pelas luzes púrpuras e amarelas do fim de tarde, dos azuis e verdes de céu e água dos planos mais abertos para, em seguida, entrar no ambiente mais corpóreo e instável da zona de prostituição e decadência, que tomará lugar no ritmo sequencial das páginas. 181

183 Dulce Sudor Amargo é uma experiência importante no percurso do artista pois sinaliza tanto um recuo na frontalidade com que Rio Branco lida com o tema Maciel quanto uma reacomodação nos seus mecanismos de representação documental do assunto brasileiro. Esse afastamento de foco, para criar uma ambientação mais panorâmica de Salvador, atende, por um lado, às pretensões editoriais da coleção mexicana e, por outro, é motivado pela percepção do artista sobre a necessidade de se afastar de um ponto localizado e específico, para evitar os paradigmas do fotógrafo documentarista de tradição. A tradição do ensaio jornalístico pressupõe a representação unificadora e completa de um dado lugar. O livro permite tal desafio ao se localizar em um território limítrofe entre a oportunidade de criar um discurso próprio e a necessidade de inserir-se nas contingências de uma publicação fotográfica com características funcionais. Rio Branco pontua a importância da presença de Jean-Yves Cousseau, com quem dialogou sobre a estrutura sequencial das imagens e discutiu a dimensão documental do trabalho. Montei esse livro com Jean Yves Cousseau, que também fez Silent Book. É uma pessoa bastante importante para mim, as conversas que tínhamos quando nos conhecemos creio que em 1984 ou 1985 sobre a imagen fotográfica como documento e como expressão sempre foram substanciosas (RIO BRANCO In: SIZA, 2002, p ). 78 Além de Cousseau, Rio Branco teve a colaboração de mais duas figuras fundamentais no processo de feitura editorial de Dulce Sudor...: Jimmy Fox e Pablo Ortiz Monastério. O pequeno texto explicativo assinado por Rio Branco, localizado na última página do livro, é uma espécie de agradecimento, mas funciona como uma ficha técnica informal e revela muito do processo tanto colaborativo e coletivo quanto do molde editorial que envolve a produção de um livro fotográfico. Para fazer este libro foi muito importante a troca de ideais e impressões. Ao Jimmy Fox devo muitas das ideias no início do projeto, onde as imagens por suas associações obtiveram outra vida. Com Jean Yves Cousseau o trabalho das sequências e do ritmo foi preciso, chegado aí à escritura visual desejada. A adaptação e produção a coleção Río de Luz foi trabalhada com 78 No original: Monté ese libro com Jean Yves Cousseau, que también hizo Silent Book. Es una persona bastante importante para mí, las conversaciones que teníamos cuando nos conocimos creo que en 1984 o 1985 sobre la imagen fotográfica como documento y como expresión siempre fueran enjundiosas. 182

184 Pablo Ortiz Monasterio. Ao Jean-Pierre Nouhaud lhe agradeço seu texto-imagem, ao Victor Flores Olea, seu entusiasmo e a tantos outros amigos que opinaram e apoiaram este doce suor amargo (RIO BRANCO, 1987). 79 A concepção no processo criativo do livro se dá em camadas colaborativas espontâneas na etapa inicial com Fox e Cousseau e deixa entrever experiências sequenciais e o debate em torno da fotografia como documento. Na etapa final, surge o trabalho de Pablo Monasterio na adaptação e produção para o formato coleção do projeto. Somente Monasterio consta na informação técnica oficial (que não chega a ser uma ficha técnica propriamente dita), na última página. É importante lembrar que a chegada ao Maciel, no fim dos anos 1970, marca o início de sua vida como habitante de Salvador pelos anos consecutivos. Nesse período, ele faz três incursões pontuais ao Maciel/Pelourinho: uma em 1979, quando extrai o material para a primeira exposição, Nada Levarei...; a segunda, em 1980, quando realiza o filme homônimo; e a terceira ocorre em 1984, quando sai do núcleo do Maciel e capta as imagens de horizontes, praias e feiras que irá utilizar no contexto do livro Dulce Sudor Amargo, editado em Quando decidi fazer o libro, me interssava avançar. Pretendia apresentar as prostitutas em seu lado mais difícil sem deixar de manifestar certa sensualidade. Queria criar um paralelismo com ese aspecto, que nao cheguei a abordar até quatro ou cinco anos depois de haver iniciado o trabalho, em Foram dois momentos distintos de mina vida e o fato de mesclar ambas historias era uma maneira de desconstruir um pouco um tema básico de uma forma mais sutil e fluida. Não me interessava fazer um libro insistindo na vertente terrível. Em Dulce Sudor Amargo, os temas foram para mim a dor e o prazer. Eu gosto de fazer essas mudanças (RIO BRANCO In: SIZA, 2002, p ) No original: Para hacer este libro fue muy importante el intercambio de ideas y impresiones. A Jimmy Fox le debo muchas de las ideas en el inicio del proyecto, donde las imágenes por sus asociaciones obtuvieron otra vida. Con Jean Yves Cousseau el trabajo de las secuencias y del ritmo fue precisado, llegando aí a la escritura visual deseada. La adaptación y producción para la colección Río de Luz la trabajé con Pablo Ortiz Monasterio. A Jean-Pierre Nouhaud le agradezco su texto-imagen, a Víctor Flores Olea su entusiasmo y a tantos otros amigos que opinaron y apoyaran este dulce sudor amargo. 80 No original: Cuando decidí hacer el libro, me interesaba avanzar. Pretendía presentar las prostitutas en su lado duro sin dejar de manifestar cierta sensualidad. Quería crear un paralelismo con este aspecto, que no llegué a tratar hasta cuatro o cinco años después de haber iniciado el trabajo, en Fueron dos momentos distintos de mi vida y el hecho de mezclar ambas historias era una manera de deconstruir un poco un tema básico de una forma más sutil y fluida. No me interesaba hacer un libro insistiendo en la vertiente terrible. En Dulce sudor amargo, los temas fueran para mí el dolor y el placer. Me gusta hacer esos câmbios. 183

185 Em depoimento para este estudo, o artista informa a ampliação geográfica do trabalho e usa o termo suave para as imagens feitas posteriormente ao conjunto inicial mostrado em 1980: não é só o Pelourinho. É o Pelourinho e a Bahia. O Doce (Dulce Sudor Amargo) são fotos todas de Salvador, que pega mais a praia (...) Tem a parte mais suave que foi feita em 84 (RIO BRANCO, 2014d). Avançar, para o artista, era incluir a parte suave, atenuar a aspereza da realidade de miséria e prostituição que tornou o trabalho tão difundido. Lembremos que se tratava de um fotógrafo insistindo em sua sintaxe artística, em um contexto em que a fotografia brasileira se via voltada para a importância social, sob o jugo do gênero documental, inclusive defendido pelos críticos de arte, como Frederico Morais e Roberto Pontual. Este mesmo artista, ainda que rompendo com mecanismos da fotografia considerada jornalística, atuava como fotógrafo documental para revistas e era, naquele momento, em meados da década de 1980, contratado pela Agência Magnum O ofício de documentarista e os projetos artísticos no contexto de Dulce Sudor Amargo As portas da Magnum se abriram para Rio Branco por via da vertente terrível do conjunto primeiro sobre o Maciel, realizado em Ao mostrar o trabalho, em uma visita à agência em 1980, o interesse do grupo responsável resultou no convite para atuar como correspondente. A partir desse momento, Rio Branco se envolve com a Magnum mais constantemente, na primeira metade da década, numa tentativa de equilibrar o fotojornalista com o fotógrafo autoral 81. Esse período, entre 1980, ano da exposição Nada Levarei..., e 1985, quando da publicação de Dulce Sudor..., é igualmente complexo no trajeto de Rio Branco, pois ele não havia abandonado o ofício do fotógrafo, o da produção da imagem fotográfica 81 O uso das aspas sinaliza a divisão pragmática muito presente nos anos 1980 entre a fotografia documental e a fotografia artística. Miguel Rio Branco vivia esse embate em plenos naquele período, dividido o trabalho da reportagem (com o qual sempre teve desenvoltura) e o desejo pela expressão autoral. 184

186 aplicada ao mundo da notícia. Era seu trabalho, sua profissão. Em meio a isso, jamais abandonou sua necessidade de criar seus próprios projetos, nos quais ele encontrava respiros e modos de driblar o padrão convencional da forma de trabalhar dos editores das revistas que alimentavam o trabalho da Agência Magnum. A Magnum preservava a marca pessoal dos seus fotógrafos, porém, segundo Rio Branco, vendia o que as revistas internacionais buscavam como representação do mundo social. Estar entre a Magnum (entre a França e o Brasil) e os projetos pessoais, na década de 1980, era localizar-se no olho do furacão, para o bem e para o mal. De dentro do circuito documental jornalístico, Rio Branco se movia, por seu instinto próprio, pela paisagem humana, e sabia que esse universo da representação social era matéria-prima para o tipo de imagem que circulava na imprensa internacional. Ainda que atrelado a esquemas produtivos das agências, o artista insistia em seus interesses pessoais, que o levaram inevitavelmente para a maturação artística. A maior parte do meu trabalho (a não ser o trabalho na Espanha, nos anos 90) foi motivação minha... e o interessante na Magnum era que a motivação era das pessoas mesmo, não era uma agência fotográfica que mandava a gente ir em algum lugar que estava acontecendo algo. Tinha até gente que tentava fazer isso, mas nenhum fotógrafo queria fazer isso (RIO BRANCO, 2014). Os trabalhos artísticos que depois se tornaram referência em sua trajetória aconteceram movidos por um primeiro esforço pessoal e lhe conferiram prestígio junto à agência e às revistas com as quais trabalhou como a alemã Stern e a National Geographic. A Magnum simbolizava prestígio, liberdade e lhe possibilitava trabalhar como documentarista, aspecto com o qual confrontava suas escolhas poéticas, mas que sempre se constituiu em um combustível fértil para suas opções conceituais. Muitas são as oscilações e inexatidões no discurso de Rio Branco ao abordar a fotografia documental ao longo de sua trajetória. Observo que suas reações ao conceito (ideia) de documental, que poderíamos considerar, em alguns momentos, contraditórias, referem-se muito especialmente aos processos pelos quais o artista está passando na construção e circulação de seu trabalho. No depoimento para esta pesquisa, em outubro de 2014, perguntado se, depois de décadas em que seu trabalho assumiu completamente a carga poética, o que significava para ele, atualmente, a ideia de documental e se se tratava de uma ideia 185

187 muito distante do seu trabalho, ele foi taxativo: Está totalmente distante do documental, total porque [...] o documental pressupõe que tem uma história por trás... No entanto, é preciso verificar os contextos em que o trabalho se apresenta, especialmente os projetos que se desdobram, por vezes, entre a mostra fotográfica, o suporte do livro e suas incursões como documentarista para agências e revistas. Outro fator importante para pensar tais contradições é considerá-las em relação às complexidades conceituais e históricas que foram formatando o gênero documental, como vimos no primeiro capítulo desta pesquisa. As subversões de Rio Branco neste campo são um reflexo tanto do seu esforço em extrair dele sua fala poética quanto de uma espécie de recolocação do documento observado na fotografia contemporânea, da qual ele pode ser considerado um nome importante na arte fotográfica brasileira. Levando em conta essa perspectiva histórica, de um trajeto conceitual sobre o gênero, Rio Branco seria um artista cujo procedimento poético construído a partir da experiência com a reportagem torna-se uma referência para as discussões e desdobramentos da produção atual no país. O fato de o artista pertencer ao quadro da Agência Magnum de fotojornalismo, em plenos anos 1980, dava-lhe certa liberdade, mas não o livrava de um desconforto em lidar com o circuito dos editores das revistas para o qual trabalhou por via da Magnum. Rio Branco soube aproveitar a tradição e as liberdades da Magnum e com isso fez, de algum modo, sua escolha pela arte. A própria constituição da agência já é singular e pioneira na história da fotografia documental. A visão conceitual sobre a linguagem fotográfica como informação construída pelos fotógrafos que fazem parte da agência nasceu de sua autonomia administrativa. Fundada em 1947, como uma espécie de cooperativa de fotógrafos, entre os quais Robert Capa e Cartier-Bresson, a Magnum Photos tem uma trajetória instigante, se observarmos o percurso que a fotografia documental vem traçando no curso da história da imagem técnica, entre as fronteiras da arte moderna e contemporânea. A Magnum Photos abrigou gente como Gisèlle Freund e Bruce Davidson, atua na formação de uma política autoral e controle do uso de imagens na mídia, e existe até hoje dedicando-se, especialmente, a projetos de exposição e edição de livros. As relações iniciais de Rio Branco com a agência, após mostrar o trabalho do Pelourinho, resultaram na sua contratação como correspondente, como já foi mencionado. A agência lhe possibilitava contato com revistas e com o circuito 186

188 jornalístico. Seu interesse mais profundo pela cultura brasileira não o fazia esperar por um apoio ou condição adequada para começar um projeto. O ensaio sobre os índios Kayapó, na Aldeia Gorotire, no Pará, em 1983, ocorreu em meio a esse tipo de interesse pessoal. Mesmo na condição de nominée, ou aspirante, da Magnum em Paris, entre os anos de 1981 e 1982, o documentarista Rio Branco não se acomodava. Estava interessado na cultura indígena, tema que ainda o mobiliza fortemente hoje. O interesse naquele contexto confirmou-se com sua primeira ida por conta e empenho próprios. Eu estava tentando há tempos entrar em aldeias e não conseguia. Uma vez eu estava fazendo um trabalho num garimpo de ouro em Conceição do Araguaia e teve um cara que disse: tem uns militares que estão indo pra lá. Os caras me deram uma carona até lá e de lá eu conheci dois índios, dois chefes que me convidaram para ir na aldeia. Eu desci lá numa época de tensão entre os índios. Eles tinham matado as pessoas que estavam invadindo o terreno deles, estavam em pé de guerra. Foi uma experiência muito incrível. Voltei lá com a National Geographic uns seis meses depois... queria pegar mais o dia-a-dia e entrei em contato com mais uma outra cerimônia muito importante. É um material muito denso, muito rico e que nunca foi publicado na dimensão que poderia ser (RIO BRANCO, 2014). O impulso em conhecer uma outra cultura e seu aspecto social está ligado ao ofício do fotodocumentarista, no sentido político e social, aqui ressaltando a diferença entre o ofício pautado pela imprensa em busca dos fatos, das ocorrências, e o trabalho investigativo do documentarista independente. Rio Branco comenta que o material feito na sua primeira ida ao Pará era rico porque diferia da ideia de tribos aculturadas pela civilização branca, destituídas de suas tradições. O que ele encontrou lá foram comportamentos e rituais de tradição. Mais uma vez, estava se dando no processo do artista um tipo de envolvimento em que a experiência sensorial do lugar lhe impunha certo vigor e adensava seus projetos artísticos, sempre em meio ao descompasso entre a aplicação funcional das imagens documentais pelas demandas editoriais e as chances que lhe eram abertas para desenvolver trabalhos, cujos traços conceituais o conduziam para o campo da arte. Essa primeira passagem pela aldeia rendeu um material extremamente forte e mágico, totalmente fora da noção do índio destruído e destituído. Eram índios guerreiros, ainda com intensa força da sua cultura original (RIO BRANCO In: PERSCIHETTI, 2008, p. 13). 187

189 Há um acontecimento importante no contexto em que essas imagens foram produzidas e as expectativas do fotógrafo diante de sua posição como nominée da Magnum. O nominée é aquele aspirante a membro da agência, como uma espécie de dono que faz parte da cooperativa, portanto, um cargo sonhado por todos os fotógrafos documentaristas do mundo. O nominée estava qualificado para tentar provar, com seu trabalho, no período de três anos, que era apto a se tornar um membro da agência lance típico do mundo da informação fotográfica e documental. Rio Branco acreditou que seu material dos índios Kayapó lhe daria um reconhecimento suficiente para se tornar um membro da Magnum naquele contexto: Achei que me fariam associado no primeiro ano, mas isso não ocorreu (RIO BRANCO In: PERSICHETTI, 2008). Para ele, aconteceu coisa bem mais interessante. De fato, para Miguel Rio Branco o envolvimento com a tribo teria como resultado um trabalho seminal em seu percurso artístico, que foi possível não pela via do mundo documental da Magnum, e sim pelo circuito da arte. Rio Branco foi convidado por Esther Emilio Carlos 82 a participar, da 17 a Bienal de São Paulo, em Nessa mesma edição também participou Mário Cravo Neto. Sobre o trabalho de ambos, o curador daquela bienal, Walter Zanini escreveu: A fotografia de Mário Cravo Neto é um valor em si, mas pode se ligar a environments de vocação subjetiva e social, e não é diferente a de Miguel Rio Branco que na exposição se completa com a criação de um espaço antropológico (17 a Bienal de São Paulo, 1983). O espaço a que se referiu Zanini é a montagem original do trabalho intitulado Diálogos com Amaú. Na minha segunda viagem à aldeia, já com uma garantia de publicação pela National Geographic, comecei a pensar no que era esse tipo de trabalho de documentação e o que faria para a Bienal. Surgiu, graças às cerimônias Kayapó que presenciei, a ideia de Diálogos com Amaú. Essa peça audiovisual foi a chave para o que eu iria fazer em seguida: trabalhos em que a construção era tão importante quanto a força da imagem individual (RIO BRANCO In: PERSICHETTI, 2008). 82 Esther Emílio Carlos fazia parte do Conselho de Arte e Cultura que assinava o regulamento da 17 a edição. Presidido por Walter Zanini, faziam parte do conselho Ulpiano Bezerra de Meneses, Paulo Sérgio Duarte, Donato Ferrari, Luiz Diederichsen Villares e Casimiro Xavier de Mendonça. A comissão foi responsável pelo convites aos artistas e seleção das obras que compuseram o Núcleo I da exposição (17a Bienal de São Paulo, 1983). 188

190 A participação de Rio Branco na Bienal marca também a realização de sua primeira instalação audiovisual. Esse cruzamento entre a experiência vivida nas cerimônias da tribo indígena e a produção de uma peça audiovisual, na qual a edição ganha força particular como sentido do trabalho, revela questões importantes em seu processo criador e conceitual da fotografia como narrativa. Seria um marco divisor em seu percurso, se pensamos na intensidade de produção de trabalhos de instalação, em que a imagem em movimento está presente e que ocupará suas realizações nas décadas posteriores. É certo que, até 1983, o artista já havia montado trabalhos cuja configuração tridimensional e a fragmentação das imagens se impunham, como é caso de Negativo Sujo. Também já havia realizado um audiovisual para a exposição Nada Levarei..., mas se tratava de uma projeção que era assistida como cinema no espaço da galeria, em sessões marcadas, e que foi o tubo de ensaio para o filme Nada Levarei... Este filme mesmo é fundamental na lida com as sequências entre imagens fixas e em movimento, como vimos no capítulo anterior. Também em 1981, Rio Branco participou juntamente com Arthur Omar, Iole de Freitas e Antonio Dias de mostra na Funarte sob curadoria de Ligia Canongia. Nessa exposição conceituada pela ideia do quase-cinema, Rio Branco apresenta uma peça audiovisual constituída de dois projetotes de slides. 83 O próprio artista identifica esse trabalho como sua primeira instalação, em entrevista publicada em 2014, no catálogo da mostra Teoria da Cor, em São Paulo. No entanto, Diálogos com Amaú é tratada nesta tese como sua primeira instalação, pois trazia componentes novos ao universo de Rio Branco. Um tipo de materialidade espacial não constituída por elementos físicos concretos. Um ambiente evanescente que propunha uma imersão no espaço e nas simbologias do personagem principal do trabalho, um garoto índio chamado Amaú, que Rio Branco conheceu na Aldeia Gorotire. Amaú, surdo-mudo, foi uma espécie de guia do artista na tribo, em um momento em que os homens tinham saído para caçar. Na tribo estavam, naquele momento, os velhos índios e as mulheres cuidando dos filhos. A proximidade com Amaú foi constante: Ele estava sempre muito perto de mim... Era meu pé de coelho e alguém que me incentivava com gestos e caretas. 84 Amaú era o guia, mas não falava, e 83 Frederico Morais assinou a resenha crítica Na Funarte o quase-cinema dos artistas sobre a mostra na seção de Artes Plásticas do jornal O Globo em 14/10/1981 (Morais, 1981). 84 Informações e fatos narrados a partir da junção de depoimentos a Daniela Bousso e ao autor desta pesquisa. Cf. BOUSSO, 2012; RIO BRANCO,

191 Rio Branco relata dois acontecimentos transcorridos em tempo real, que podem nos ajudar a entender como se deu a concepção de montagem da instalação audiovisual. Um dia, quando estava fazendo uma série de imagens dele se expressando, os homens chegaram aos montes, carregando uns paus cheios de jabutis nas costas. Essa chegada foi mágica, fascinante. Algo inesquecível (RIO BRANCO In: BOUSSO, 2012). Quando Rio Branco retornou à aldeia Gorotire, ainda no ano de 1983, teve contato com cerimônias e rituais da tribo e já tinha a experiência da viagem anterior, do envolvimento com o garoto indígena, e as cenas dos homens voltando da caça. O som das cerimônias da segunda viagem foi registrado pelo artista e acabou se transformando na linha condutora da instalação, juntamente com a sequência de retratos do garoto Amaú, todos com mesmo enquadramento, ressaltando a variação de seus gestos e posições de corpo. Tendo a série dos retratos do garoto somada aos sons do ritual como eixo narrativo, como marcas recorrentes nas imagens projetadas, Rio Branco as intercala com fotografias de um repertório já existente, composto por cenas urbanas de outros lugares, muitas delas do próprio Pelourinho, que continham certa violência, aspecto que se apresenta em contraste com a imagem do garoto, que simbolizava uma espécie de pureza cultural. A figura do menino surge como expressão bruta de identidade em diálogo com os sons extraídos diretamente das cerimônias indígenas, mas construídos artificialmente no ambiente expositivo. As imagens em Amaú são projetadas em cinco telas feitas de tecido muito leve, que pendem do teto formando um tipo de círculo onde o espectador pode penetrar. O tecido de trama fina não só retém a imagem como permite o vazamento da projeção, que atinge outras telas e se mistura a outras imagens projetadas (Figura 49). Cada carrossel de slides contava com 80 diapositivos. O equipamento de projeção de slides possuía um modo de ser acionado, aparentemente aleatório, que interessava profundamente o artista. O Amaú original era de uma forma interessantíssima porque ele parava e voltava; ia pra frente e para trás. Existia um aparelho chamado paliteiro, que você colocava o palito, mudando uma, duas três, mudando o ritmo, então criava uma histeria visual... Era aleatório, mas tinha um ritmo, um ritmo que repetia. O aleatório eram as mudanças de projetores (RIO BRANCO, 2014). 190

192 O uso dos projetores com o paliteiro permitia que o embaralhamento das imagens ganhasse um ritmo, uma certa cadência que se repetia. Esse fator, o ritmo, sempre se mostrou um dado importante nas construções sequenciais do artista. Em Amaú (na primeira montagem para a Bienal e em algumas posteriores da década de 1980), após 15 minutos, cada um dos cinco carrosséis com 80 imagens não retornava ao ponto inicial, e isso provocava fusões e justaposições sempre diferentes entre as imagens projetadas: Era como um jogo de cartas em que os naipes se embaralhassem acada 15 minutos (RIO BRANCO In: SIZA, 2002, p. 447). 85 Figura 49: Diálogos com Amaú em montagem na Estação Pinacoteca em São Paulo na mostra Teoria da Cor, Reprodução: Mariano Klautau Filho. Em 2012, o trabalho foi remontado no pavilhão do Inhotim dedicado à obra do artista, mas, segundo Rio Branco (2014), teve que ser mudado para o sistema de projeções digitais, pois os projetores de diapositivo pararam de funcionar. Isso no faz concluir que, em certa medida, as obras construídas sob a estrutura dos aparelhos dependem de seu programa de funcionamento para se realizar plenamente. O caso de 85 No original: Era como un juego donde se barajasen los naipes cada 15 minutos. És más difícil hacerlo con equipos modernos. 191

193 Amaú e o momento em que o trabalho se realiza indica aspectos que contribuem para a análise de um projeto poético em vias de maturação, no contexto da década de O descompasso entre uma aparente aleatoriedade e um ritmo cadenciado que se repete bem poderia ser uma importante metáfora, ou mesmo um tipo de imagemconceito, para entender as estruturas sequenciais elaboradas por Rio Branco, sejam elas percebidas em uma instalação, em um conjunto bidimensional, seja por meio da estética do livro. Nesse sentido, todas as contingências que envolvem a realização desse trabalho podem ser compreendidas pelos percalços e diferenças de procedimentos que o artista vai adotando, em meio ao sistema de produção de imagem documental no qual ele está enredado. A produção de Rio Branco encontra-se ligada, por um lado, ao ofício de fotojornalista circuito das editorias de revista, as agências de imagem e, em especial, sua atuação na Magnum e, por outro, pelas circunstâncias de sua formação pintura e cinema, que vai conduzindo sua produção para o campo da arte. Esse tensionamento fala muito sobre seu trabalho, conduta e pensamento. É como se a sua herança artística fundasse sua necessidade de expressão, mas a sua vontade política encontrasse no circuito da chamada fotografia documental o canal realizador e veiculador por excelência de seu trabalho. A segunda viagem à tribo indígena, que lhe deu a experiência de ver e ouvir os sons das cerimônias tradicionais, foi possível graças à National Geographic. Sua poética se estrutura nesse confronto de procedimentos: o da percepção e captação de uma imagem documental com os potenciais de significação que tal fotografia poderá encarnar nos artifícios de montagem. Tal impasse traz para o seu trabalho o aspecto visceral observado pelo público e crítica, assim como as inconclusões sobre a ideia de documento e arte, percebidas em seu discurso, no seu processo de trabalho. Diálogos com Amaú fez Rio Branco perceber mais claramente quais caminhos adotar dali em diante, tendo como parâmetro sua situação na Magnum. Ou se transformava em nominado, cargo que lhe daria, possivelmente em pouco tempo, a condição de membro da agência (um dos donos da cooperativa) ou continuava a ser um correspondente, mais livre em sua atuação entre o artista e o jornalista. Em 1984, após a realização da instalação para a Bienal de São Paulo, Miguel Rio Branco havia se transformado novamente em correspondente da Magnum: 192

194 Voltava ao Brasil de novo como correspondente, tinha decidido que se tentasse me tornar membro teria que abrir mão da minha liberdade de criação, que ía além da fotografia e já ía também além dos temas que teria de seguir para ser membro (RIO BRANCO In: PERSICHETTI, 2008, p. 13). A questão do tema na fotografia toca o nervo central de várias discussões sobre a representação da imagem fotográfica. Sua vocação descritiva lhe dá status ao longo da história de signo confiável, provável, referendável de uma realidade existente. Em nome disso, muitas são as apropriações que a ciência, o circuito da informação, o sistema da história realizaram, extraindo da fotografia seu caráter legitimador. Quando Rio Branco se refere aos temas que teria que seguir, viabilizados pelo circuito da Magnum na questão do uso ilustrativo da fotografia. Por exemplo: o interesse da National Geographic em mandar Rio Branco para fazer imagens da tribo brasileira acomoda-se nos temas tribo de índios na América do Sul, Os povos indígenas e sua cultura ancestral, Vida selvagem e natural. Esses assuntos serão construídos visualmente pelos editores da revista, dando uma conotação mais geral e ilustrativa aos lugares e acontecimentos fotografados. No universo do tema ilustrado, pitoresco e exótico, não há conflito, não há questão, nem problema. A proposição das imagens do índio Amaú, em sua pureza de infância e origem, em contraste com imagens civilizadas e violentas naquele ano de 1983, construída por projeções e paisagem sonora na Bienal de São Paulo, ultrapassa a denotação e torna o documento motivador de uma questão. Quando Rio Branco diz que o tema que o perseguiu na construção do livro Dulce Sudor Amargo era prazer e dor, sinaliza a vontade por essa ultrapassagem dentro do seu próprio trabalho, para além da topografia do Pelourinho. O livro tem como espinha dorsal as sequências do Maciel, mas igualmente incorpora imagens das praias, de fins de tarde e das feiras populares da cidade, que assumem papel importante ao longo do livro, ocupando as extremidades de seu percurso de narração. É evidente o interesse do artista ao preferir um tema mais abstrato (prazer e dor), incluir os lilases e azuis, brancos e verdes-água, em contraponto aos vermelhos mais quentes das agonias carnais do corpo erótico. Portanto, instauram-se questões sobre a poética de Rio Branco nesse período transitório entre o documentarista e o artista, no momento das decisões conceituais do livro Dulce Sudor Amargo. As imagens mais suaves seriam o ruído, a diferença em 193

195 busca de um tema mais abstrato, expressivo e pessoal, ou seriam incorporadas ao conjunto por uma aceitação ao projeto editorial mexicano, no sentido de fazer de suas publicações uma legitimação da identidade da cultura brasileira em diálogo íntimo com uma latinidade em comum? Os anos 1980, na trajetória de Miguel Rio Branco, atestam logo na primeira metade da década uma intensa produção e circulação de suas imagens não somente no Brasil como também no circuito norte-americano e europeu. A repercussão da exposição Nada Levarei... e do filme homônimo levaram o artista a ganhar o prêmio de melhor fotografia no Festival de Brasília em 1981, e o prêmio especial do júri do Festival de Lille, na França em Ainda na França apresentou a mostra Coeur, Mirroir de la Chair, 86 na Magnum Galerie, em Paris, que reúne Amaú e série Blue Tango, trabalho que se tornará um dos mais importantes em sua carreira. Sua fotografia também passou a circular nos EUA: a revista americana Aperture publicou, em 1983, ensaio e texto seu intitulado Women of Maciel. Em seguida, exibiu trabalhos em Nova York na mostra Auto-retrato do Brasileiro, na Burden Galery da Aperture Foudation em É o mesmo ano que realiza o livro no México e dois anos depois que produz sua instalação para a Bienal de São Paulo. A consciência sobre a questão temática na fotografia e suas novas opções de abordagem e uso da imagem fotográfica acentua-se nesse limiar pós-amaú (primeira instalação audiovisual) e pré- Dulce Sudor Amargo... (primeiro livro): Dulce sudor amargo é então o começo da segunda fase de meu trabalho e foi especialmente importante iniciá-la com um livro (RIO BRANCO In: SIZA, 2002, p ) Em português, o título Coração, Espelho da Carne é citado e/ou confundido com o título da exposição Dulce Sudor Amargo, em 1987, no Brasil, quando é lançado o livro homônimo, editado em 1985, no México. Essa confusão (ou incerteza) em identificar a mostra, ora como Dulce Sudor..., ora como Coração, Espelho da Carne, entre as galerias da Funarte, no Rio de Janeiro, e Fotoptica, em São Paulo, indica aspectos que podem ser referentes tanto às diferenças entre as obras apresentadas quanto a dificuldades em conceituar o conjunto de imagens no contexto de cada apresentação. Aspecto que ressalta as várias atribuições que as imagens adquirem com ou sem legenda, com ou sem título no processo do debate sobre o tema e a quesão documental. 87 No original: Dulce sudor amargo es, entonces, el comienzo de la segunda fase de mi trabajo y fue especialmente importante iniciarla con un libro. 194

196 3.1.3 O doce suor brasileiro no livro latino Figura 50: Sequencia do livro Dulce Sudor Amargo, Em Dulce Sudor Amargo, o final do prólogo de imagens suaves e o início da parte central onde entramos no Pelourinho-Maciel são marcados por uma sutileza pictórica e encontram-se no díptico, formado pelo livro aberto (figura 50). Temos, à esquerda, um garoto negro com uma melancia na cabeça, com o monte e o céu ao fundo. A camisa aberta, o jeito despojado e o sorriso no rosto conferem à fotografia uma imagem de felicidade. Os tons de verde da colina fazem limite com um belo azul do céu, imagem que poderia estar num suplemento turístico da Bahia e em um ensaio da National Geographic. Contudo, nada é tão óbvio assim. Há detalhes que começam a surgir no contato mais detido com a imagem à direita. Nela, a luz da tarde (Rio Branco frequentava o bairro à tarde) marca minuciosamente a textura da fachada verde de um casarão, cujo reboco estragado deixa aparecer, em algumas camadas, o ocre de uma pintura mais antiga e, em outras, o revestimento interno da parede de enchimento ou pau-a-pique. O verde da fachada misturado ao ocre tem o mesmo efeito combinatório do verde e a cor de terra do monte, ao fundo, no retrato feliz do garoto da imagem ao lado. As duas 195

197 fotografias, observadas como dupla, integram-se numa harmonia, que poderia ser vista como perfeita pelas camadas cromáticas que se alternam entre o amarelo, o verde e o azul. Mas um tipo de contradiscurso se insinua em detalhes e no mesmo grau de sutileza de onde extraímos a harmonia. Na linha entre o verde e o azul do monte, vemos pelo menos seis urubus, indicando que aquela paisagem bucólica pode ser provavelmente um lugar de depósito de lixo. A camisa do garoto não está aberta, pura e simplesmente, por causa do calor e do seu despojamento. Vê-se, nitidamente, que se trata de uma roupa com número muito menor para o corpo daquele adolescente. Esse garoto provavelmente não tem o que vestir. Suas roupas são farrapos, e o short tem sua braguilha aberta porque está arrebentado. Ali, na imagem do garoto, encontra-se sutilmente a ruína humana de que tanto Rio Branco fala de suas imagens na Bahia. A imagem da casa, ao lado da fotografia do menino, é a porta de entrada no percurso das imagens para o Pelourinho-Maciel. Vemos o reboco descascado; a sombra pesada que atravessa parte da fachada; as janelas sem esquadrias e caixilhos arrancados; o varal suspenso em plena rua na frente da casa com roupas íntimas penduradas; e a mulher no canto da imagem apoiada no poste com o braço protegendo os olhos da luz forte, num gesto casual. Todos esses elementos compõem um colorido suave e pitoresco de uma cena representativa da paisagem brasileira que poderia ser cubana, venezuelana, dominicana ou mexicana? É a partir dessa imagem que entramos (no fluxo cinemático do livro) no bairro do Pelourinho. Dessa vez, o Maciel de Miguel Rio Branco no livro Dulce Sudor Amargo será menos africano e mais latino, menos reggae, no sentido político, e mais bolero, no sentido romântico? Tomando Dulce Sudor... como uma experiência filmica, apresento aspectos que me parecem coerentes, se percebemos o lugar dessa obra no fio histórico do trajeto do artista. A experiência filmica está no ponto de vista do artista-montador (Rio Branco chega a mencionar o procedimento de montagem quando se refere ao livro) e no espectador e manuseador do livro. Ao mesmo tempo que ele pretende pensar um tema mais amplo, prazer e dor, quer imprimir ao trabalho uma narrativa no sentido convencional e linear do termo sobre os paradoxos de uma cultura, no caso a Bahia como metáfora do Brasil. Rio Branco quer contar uma história, ainda que seja pessoal e ligeiramente abstrata, sobre esse país presente ali na década de 1980, equilibrando-se na inconstância entre violência e ruína, e felicidade e corpo. 196

198 É como se o primeiro livro de Rio Branco fosse, na verdade, seu longametragem e precisasse buscar um tom mais realista e documental para relativizar a contundência formal de Nada Levarei... (filme e exposição), sem jamais abandoná-la. Era preciso dar ao leitor a localização mais ampla dos horizontes daquela cultura, para fazê-lo respirar, dar a impressão de realidade, para usar um termo da teoria de Bazin, fazendo com que o leitor do livro perceba a espacialidade do lugar, onde se encontra e onde localizar sua cultura. Por isso, a dimensão dos vários planos nas imagens do prólogo, que mencionei anteriormente: a figura humana, as barracas ou construções, os morros, a água, o céu. Na fotografia, a espacialidade que dá a impressão de realidade, que nos oferece a dimensão da distância entre os vários planos é a profundidade de campo, mecanismo artificial invisível, na visão de Bazin, por ele acreditar em um cinema menos afeito à pureza plástica e autônoma da estética formalista ou daquele cinema dependente da montagem. O pensamento de Bazin foi construído a partir da leitura pontual de filmes e períodos históricos em que viveu e escolheu para interpretar. É do exercício da crítica de filmes que ele construiu sua teoria em que defende um cinema cujos princípios fotográficos lhe fornecem a matemática entre a experiência vivida e as soluções técnicas de captação e decupagem da realidade. Ao mencionar a contribuição de Orson Welles e William Wyler na passagem entre décadas de 1930 e 1940, Bazin afirma que, a despeito da intensa projeção e tradição plástica da montagem formalista, o plano-sequência em profundidade de campo impõe-se como prática na concepção de filmes por sua capacidade em apreender e projetar o tempo real para dentro da ficção. Para ele, Wyler e Welles não renunciam à montagem e nem aos elementos próprios que caracterizam uma cena sem corte. Em outros termos, o plano-sequência em profundidade de campo do diretor moderno não renuncia à montagem (...) ele a integra à composição plástica. A narrativa de Welles e Wyler não é menos explícita que a de John Ford, mas ela tem sobre este último a vantagem de não renunciar aos efeitos particulares que se pode tirar da unidade da imagem no tempo e no espaço (BAZIN, 2014, p A comparação com Ford se deve a um tempo histórico em que observa a maturação do cinema sonoro e o consequente desapego aos efeitos de montagem de um cinema que ainda carregava os artifícios de montagem herdados do período do cinema 197

199 mudo. A unidade da imagem no tempo e no espaço à qual se refere Bazin seria o exercício narrativo construído na duração de uma cena, sem a necessidade dela ser recortada em vários planos. A distensão do relato, da sequência dos acontecimentos, se daria no uso simultâneo dos vários planos e elementos em jogo atuando na cena. Esse tipo de construção introduz o espectador em uma dimensão espacial e temporal envolvendo-o numa experiência de realidade mais total. Não se trata aqui de aplicar categoricamente as teorias de Bazin sobre o objeto deste estudo, porém as estéticas de montagem concebidas e discutidas pelos teóricos do cinema realista nos ajudam a perceber os deslocamentos de sentido que Rio Branco realiza com sua fotografia de origem documental. Bazin foi especialmente complexo e atento à natureza do cinema e da fotografia como uma linguagem que podia tirar partido único de sua relação com a realidade, e o curso dos acontecimentos na narração fílmica deveria sorver a intensidade da duração natural da ação, para emular um tempo natural no relato ficcional. Percebo o livro fotográfico de Rio Branco como uma experiência narrativa, cujos elementos que estruturam seu fluxo podem ser compreendidos pela perspectiva das teorias realistas que aprofundaram essa dimensão fenomenológica. Observo tal aspecto em sua necessidade de localizar, contextualizar, apresentar o campo topográfico e cultural mais aberto ao leitor. Em sua atitude de localizar a Bahia, a cidade de Salvador para, enfim, mergulhar no cosmos do Pelourinho, é possível compreender que, nesse fluxo, há uma analogia com o tempo contínuo da narração, da sequência dos fatos e da percepção visual de uma sequência introdutória que desliza de modo fluido, panorâmico e mais espacial sem a obstrução dos cortes bruscos (diferentemente de Nada Levarei...). O prólogo do livro Dulce Sudor Amargo, constituído por 26 imagens, funciona como um grande plano-sequencia baziniano, introduzindo-nos em um campo mais aberto, em que percebemos os lugares dos objetos e o espaço entre eles, o lugar do homem na praça, na feira, na praia e, portanto, na paisagem cultural de seu lugar de origem, antes de entrar no drama extremo da proximidade dos retratos, dos corpos e peles. Esse tempo mais alongado do prólogo é o lugar da impressão de realidade, tempo mais contínuo e, portanto, um tipo de ritmo sequencial mais invisível na poética do livro, fazendo aqui uma alusão à montagem invisível defendida por Bazin. 198

200 Dulce Sudor..., visto como um filme, aponta-nos coisas fundamentais na maturação do projeto poético de Rio Branco e, no entanto, conduz-nos a paradoxos sobre a concepção do sentido de tema e pretensão de uma fotografia brasileira e documental que seja representativa de uma identidade una e latina. As imagens seguintes ao díptico formado pelo livro aberto garoto negro, à esquerda, e fachada deteriorada, à direita formam um conjunto muito semelhante ao grupo de imagens da exposição e do filme Nada Levarei... já conhecidas em grande parte aqui na análise desta pesquisa. Figura 51: Sequência do livro Dulce Sudor Armago,

201 Neste trecho de seis páginas que compõe o início da segunda parte do livro, percebemos as cenas internas do bairro do Maciel: o calçamento das ladeiras; o cartaz do cigarro Hollywood jogado no meio-fio; os casarões velhos escorados por vigas de madeira; o cliente e a prostituta; a janela que dá para um quarto com cartazes e recortes de revista sobre a parede; o olhar da mulher com decote meio em V, sentada no batente de uma casa (Figura 51). A primeira imagem que abre esse trecho tem, em primeiro plano, um carro da década de 1960, com duas crianças ao fundo, sentadas no meio-fio. É impossível não relacionar essa imagem às cenas típicas e turísticas dos automóveis envelhecidos das ruas de Havana. Cuba é aqui, em Dulce Sudor Amargo. Esse sentido funciona como uma espécie de força de unidade latino-americana. O trecho de abertura da parte central do livro Pelourinho-Maciel é protagonizado enquanto primeira imagem por um signo simbólico de Cuba. Ao afastar-se do topos Maciel e querer que o tema seja prazer e dor, o artista exercita no livro uma tentativa de abstração, fugindo discretamente do factual da comunidade de prostituição. Ele considera, com essa atitude, avançar em seu trabalho e atenuar a realidade sempre terrível daquele lugar, escapando assim da imposição do referente em um trabalho fotográfico de caráter documental. De fato, esta ação indica as mudanças que acontecerão em seu percurso artístico nas próximas décadas, e o livro é um atestado físico evidente dessa abstração em curso. Por outro lado, no caso de Dulce Sudor..., há um tipo de reacomodação, um avanço desejado pelo artista, dissimulado por um aparente recuo, uma tentativa de descolamento do objeto fotografado como fato histórico e social sair da claustrofobia do Maciel em direção a um horizonte mais aberto da América Latina, que coube bem no projeto editorial da coleção mexicana Río de Luz. Poderíamos dizer também que o movimento modesto de abstração desejado por Rio Branco foi em direção ao horizonte aberto de uma representação da identidade brasileira e, com isso, foi engolfado pelo projeto político da coleção como um artista essencialmente latino-americano. Há recuos nesse avanço imaginado por Rio Branco, se tivermos como parâmetros a contundência de trabalhos anteriores realizados entre 1978 e 1981 de Negativo Sujo a Nada Levarei

202 3.1.4 Dulce Sudor Amargo, México e a Coleção Río de Luz A coleção Río de Luz, muito prestigiada no mundo da fotografia, representava naquele contexto uma alternativa às publicações americanas e europeias, uma conquista de território para a chamada fotografia autoral produzida no continente latino. Pablo Ortiz Monasterio, seu editor e coordenador, militante na produção e reflexão sobre uma fotografia identificada por uma cultura de origem, foi uma das figuras mais importantes na consolidação do México como país de intensa atividade fotográfica. Em entrevista à Esther Parada, para a revista americana Aperture, Monasterio expõe sua visão sobre o livro fotográfico e a política editorial da coleção Río de Luz, em meio a uma série de contingências. As circunstâncias culturais do momento apontam para complexidades que nos auxiliam a compreender o papel que Dulce Sudor... exerce em tal contexto, a despeito das intenções poéticas de seu autor e de seu projeto artístico. Para fazer livros, estou usando uma forma muito antiga, mas que é influenciada por algo muito modern: a linguagem visual e narrativa que tem sido desenvolvida por meio da televisão e do cinema. Estamos misturando essa jurássica tradição da madeira, da material do papel com essa moderna linguagem estou fascinado com este híbrido (In: PARADA, 1987, p. 73). 88 Sua visão sobre o livro fotográfico apoia-se na mobilidade das imagens, em sua sequencialidade como discurso. São as linguagens da imagem em movimento que o mobilizam para a adesão ao livro como suporte, veículo da fotografia. Monasterio pondera que, apesar de se considerar a qualidade de uma ampliação fotográfica, é por meio do formato livro que a fotografia impressa funciona melhor, pois está relacionada a um conjunto de imagens que estão constituídas em uma certa ordem. Para ele, é a lógica do livro que faz a fotografia funcionar, democrática e portátil (In: PARADA, 1987). Além disso, ele aponta a necessidade de se criar uma produção e circulação da 88 No original: In making books, i am using a very old form, but one that s influenced by something very modern: the visual language and narrative that has been developed throught television and cinema. We are mixing this dinosaur tradition of wood, pulp, and paper with this modern language...i am fascinated with this hybrid. 201

203 fotografia no país em contrapartida à ausência de mercado de arte e galerias, que naquele momento, em 1987, só havia na Cidade do México. Somos pobres mas fazemos um esforço especial para produzir livros, porque não temos um Mercado para vender fotografias e não podemos organizer uma mostra que circule no território do país com estrutura publicitária ( ) para fazer circular nosso discurso, o livro é muito importante (In: PARADA, 1987). 89 Outros profissionais que trabalharam com Monasterio no corpo editorial da revista, como Victor Flores Olea e Pedro Meyer, dão a dimensão da política subvencionada à cultura no país e os interesses que levaram a constituição de uma coleção de livros de fotografia a ser editada como política pública. Flores Olea destaca que a produção de livros fotográficos no México, e aqui, especialmente, a coleção Río de Luz, surgiu para fazer frente à supremacia das publicações de outros países e que, por conseguinte, narram a história latina de seus pontos de vista. O interesse de tal projeto é, claramente, promover livros concebidos no Terceiro Mundo que possam alcançar importância no então chamado Primeiro Mundo nos centros industriais ou centros artísticos : Mas na medida em que essa coleção apresenta uma visão coerente, México e América Latina, em um interesse pelas condições humanas e sociais de nosso continente, pensamos que isso terá inevitavelmente algum impacto em outros paises ( ) Francamente, eu penso que os paises desenvolvidos tem formulado por demais uma visão sobre a vida, a esperança, os objetivos politicos e o desenvolvimento econômico dos paises do terceiro mundo que é bem distorcida e incomplete, e frequentemente errada (In: PARADA, 1987, p. 72). 90 A posição de Flores Olea está profundamente enraizada na própria política do México no que se refere ao trato de seu objeto cultural e patrimonial. Ele enfatiza que essa atitude nasce, na verdade, no período posterior à revolução mexicana, nos anos 1920, quando se inicia uma postura governamental de promoção e apoio às atividades 89 No original: We are poor, but we make a special effort to do books, because we don t have a market to sell photographs and we can t organize a show that will circulate nationwide with lots of publicity (...) to circulate our discourse, the book is very important. 90 No original: But in the measure in wich this collection presents a coherent vision, Mexican and Latin America, an interest in social condition and human condition of our continent, we think it will inevitably have some impact in other countries (...) Frankly, i think the developed countries have formulated a vision of much the lives, the hope, the political objectivities and the economic development of the third world countries which is distorted and incomplete, and frequently erroneous. 202

204 políticas. Informa também que dessa atitude nasceu o interesse do governo em estimular a pintura mural no país, fato este que inseriu a pintura mural mexicana com destaque na história da arte. Esse comprometimento político deu suporte às diversas áreas culturais e artísticas no país e criou tradições. Foi por meio de diversas entidades estatais, tais como o Instituto Nacional de Arte e o Instituto Nacional de Antropologia que essas atividades foram promovidas. Em outras palavras, o governo tomou a responsabilidade de cuidar da cultura nacional e do patrimônio histórico (In: PARADA, 1987). 91 Na área da publicação, essa tradição também se desenvolveu. No caso da Río de Luz, houve o financiamento do Fondo de Cultura Económica, um tipo de apoio estatal que oferece autonomia de criação e trabalho. Olea explica que o Fondo naquele contexto dos anos 1980 era uma editora independente ligada ao governo. Havia recursos estatais, supervisão do governo, porém se trabalhava, segundo Flores Olea, com autonomia criativa e intelectual. Para se ter uma ideia da consolidação dessa política, o Fondo de Cultura Económica foi criado em meados dos anos 1930 e, de lá para cá (ainda naquele contexto da década de 1980) viabilizou publicações das mais diversas áreas políticas, sociológicas e culturais do México. Um projeto como Río de Luz, que desenvolvia uma política cultural para a publicação da fotografia artística, leia-se autoral e documental, ligada a assuntos sociais e humanos, de fato foi encampado pelo Fondo assim que o fotógrafo Pedro Meyer, presidente do Consejo Mexicano de Fotografia, que criou o Colóquio Latinoamericano de Fotografia, encontrou-se com Victor Flores Olea, recém-chegado à pasta de Cultura no México. Além de membro fundador do conselho, Meyer gestou o recurso estatal do Fondo no processo das atividades do colóquio. Esse contexto é importante para entender como se produzia a discussão em torno da identidade latino-americana para a fotografia e a independência do continente em relação à produção, pesquisa e circulação da imagem fotográfica como linguagem a representar a cultura do continente latino. O colóquio agregou as políticas dos países por meio de seus fotógrafos, agentes culturais, produtores e pesquisadores desde o final dos anos de 1970 e ao longo da 91 No original: It was through diverse state entities, such as the Instituto Nacional de Arte and the Instituto Nacional de Antropologia that these activities were promoted. In other words, government took responsability of caring for the national cultural and historical patrimony. 203

205 década de 1980, de modo bastante intenso. A política fotográfica da Funarte, por exemplo, no alvorecer da abertura política, com as semanas nacionais de fotografia realizadas em todas as regiões brasileiras, estava em diálogo constante com os colóquios mexicanos. O evento mexicano inaugural, Primer Coloquio Latinoamericano de Fotografia, tinha como título-tema Hecho en latinoamerica, e publicou um catálogo com todas as palestras e discussões realizadas na Cidade do México, em Foi dessa publicação que Frederico Morais extraiu um trecho destacado no primeiro capítulo utilizado em sua resenha sobre a importância da fotografia nas exposições do Rio de Janeiro, naquele ano, marcado pela mostra Negativo Sujo, de Rio Branco, no Parque Lage. A política mexicana era uma referência de conduta no investimento público em cultura para vários países latino-americanos. A expansão da fotografia como linguagem servia igualmente à retomada política e identitária de uma cultura nacional que representasse um novo momento político. Muitos países, ao longo da década de 1980, estavam ou em processo franco de abertura ou já vivendo períodos transitórios entre o regime militar e as perspectivas democráticas. Todo esse panorama político e cultural, entre o final dos anos 1970 e fim da década de 1980, fortalecia a ideia de que a fotografia tinha uma linguagem afinada, sensível aos assuntos sociais e, portanto, de tradição documental capaz de representar tanto os novos e antigos impasses políticos de suas nações, quanto ser um testemunho do cotidiano de suas novas sociedades pósditatoriais. O projeto da Funarte para a fotografia é exemplar nesse aspecto, porém, não trataremos dessas questões específicas neste momento. O importante é ressaltar que tal contexto de retomada de uma identidade latino-americana perdida e ferida pelos regimes militares tinha no México um exemplo de autonomia histórica e trabalho intelectual refinado de criação. A coleção Río de Luz era, aos olhos dos fotógrafos, artistas e editores envolvidos com a imagem, uma prova concreta disso. É muito curioso a maneira como Pablo Monasterio se coloca, em certo momento da entrevista com a repórter da Aperture, no que se refere à capacidade do México em ter recursos para a publicação. Às vezes quando falo com você, você parece dizer: Ah, esses mexicanos estão no paraíso, as agências do governo estão investindo em cultura, e assim por diante. Mas isso é difícil, gastamos muito tempo nisso. É complicado, é caro para o governo 204

206 também. Os editores privados não farão isso. Mas todos nós comprendemos em termos de política de educação, como essa nação vem sendo influenciada por outras nações, isso é um importante, não à curto prazo, mas de resultados à longo prazo, como o próprio FSA, de vocês (In: PARADA, 1987, p. 73). 92 (grifo meu) Pablo Ortiz Monasterio coordenou a coleção dentro de um padrão. As capas tinham o mesmo design gráfico e obedeciam, em geral, a uma estrutura funcional de conteúdo de um livro fotográfico convencional. As escolhas para o elenco da coleção eram definidas segundo a ideia de fotografia autoral. A questão era saber trabalhar a linguagem pessoal dentro de um padrão previamente estabelecido por um formato editorial, o que não chega a ser um problema angustiante para a fotografia, já que a linguagem fotográfica jamais reivindicou, com veemência, um sotaque de livro de artista ao longo da história do século XX. Monasterio explica que o primeiro número da coleção foi dedicado ao trabalho de Nacho Lopez que, segundo ele, foi o primeiro fotoensaista mexicano. Yo, El Ciudadano foi organizado em sessões: Daytime, Religion, Nightlife, que, embora editado com Lopez, não teve a assinatura de Monasterio como editor. A decisão em assinar a edição só veio com o oitavo número, possivelmente como uma tomada de consciência do papel do editor na função de um diretor de imagens, ou ainda, um montador no sentido fílmico do trabalho impresso. Coincidentemente, a assinatura de Monasterio enquanto editor estreou na coleção com o livro dedicado a Josep Renau: Josep Renau Fotomontador. Renau se destacou na fotografia mexicana com um trabalho voltado para a colagem, procedimento historicamente ligado aos processos de montagem. A questão da assinatura, ou não, da figura do editor no caso da Río de Luz não parece ser simplista. Não se trata somente da adoção de um padrão no qual a coleção, a partir de determinado número, terá sempre a assinatura de um editor. Obviamente, existe um modelo que formatou a concepção gráfica da coleção mexicana dentro de regras editoriais que a identificam como um conjunto de livros funcionais ou 92 No original:...sometimes when i talk to you, you seem to be saying: Ah these mexicans are in paradise, government agencies are investing in culture, and so on. But this is difficult, we have to spend a lot of time. It s complicated, it s expensive for the government too. Private publishers won t do it....but we all understand in terms of political education, of how this nation is being influenced by other nations, that is an important project, not for short-term, but long-terms results, like your own FSA (grifo meu). 205

207 livros ilustrados. Tais termos fazem referência às classificações que propõem os estudiosos para diferenciar os livros de artista dos livros produzidos sob a convenção do códice, tradicionalmente organizado com conteúdo objetivo: histórico, turístico, geográfico, econômico, etc., ou literário com conteúdo ficcional, dentro de um padrão de gênero e editoração estabelecidos. O livro fotográfico é, historicamente, um campo de produção que adotou naturalmente as convenções do códice por analogias de uso com a pintura e a ilustração, por um lado, e, por outro, com as publicações científicas. Na revisão histórica do livro de arte, ele poderia estar ao lado dos chamados livre de peintres, ou livros ilustrados. Isso apenas para iniciar o problema das classificações, o que não é o intuito deste estudo. O que quero assinalar neste momento é que a fotografia foi adotada de forma cada vez mais intensa nas publicações por sua natureza técnica de reprodução. Ao passo que os processos de impressão foram sendo melhorados e popularizados, a fotografia serviu não só para aumentar a sofisticação dos livros de arte, como também foi ocupando um lugar de protagonismo, enquanto linguagem, em diversas publicações de arte. O protagonismo da fotografia se insinua de diversas maneiras e tempos históricos: como meio de reprodução para os livre d artiste, publicações localizadas já no final do século XIX, cujo assunto é a pintura, desenho ou o universo criativo de um pintor, ou ainda abrangendo as diversas experiências de artistas de vanguarda nas primeiras décadas do século XX. Paralelamente a esse percurso, o livro de fotografia foi-se construindo dentro de um mercado editorial que flertava com a tradição do livro ilustrado e, pouco a pouco, absorvendo nesse processo o livro constituído por imagens do fotógrafo autoral ou do fotógrafo artista. Toda a maturação da ideia de fotografia moderna e documental questões inicialmente tratadas em capitulo anterior foi tomando o livro como uma incubadora do gênero artístico. Portanto, sem entrar em um detalhamento específico sobre as classificações dos gêneros dos livros funcionais ou artísticos, podemos considerar que não houve, por um largo tempo da história, uma necessidade reivindicatória vital dos fotógrafos por um espaço artístico, de criação independente para o formato livro O livro fotográfico nasceu naturalizado como veículo de informação (artística ou não). Na medida em que foi adquirindo importância artística, foi se adequando, comportando-se como um livro ilustrado de arte, cujas regras de editoração estabelecidas não abalavam o essencial atribuído à qualidade da fotografia artística e autoral. São muitos os exemplos que marcam esse alargamento conceitual, desde a 206

208 Portanto, estou tratando o processo de concepção do livro Dulce Sudor Amargo, do brasileiro Miguel Rio Branco, editado em 1985, no México, como um produto editorial fincado, por um lado, na herança da tradição da publicação fotográfica ilustrada comercial e, por outro, como processo de busca por uma sintaxe artística dentro das contingências do projeto político mexicano. Não à toa, Victor Flores Olea ressalta o desejo por uma produção editorial fotográfica que possa entrar no mercado americano de livros de fotografia. Esses aspectos que dinamizam a fotografia no livro, entre o molde editorial e o projeto artístico, revelam variantes das mais preciosas, se entendemos a fotografia nos limites entre linguagem e documento, atuando na construção de um discurso poético de artista, mas funcionando como a montagem de uma representação de identidades culturais. Por essas razões, o editor de imagens em um trabalho de publicação fotográfica responde por responsabilidades cruciais no objeto-livro final. Dessa forma, volto a destacar a importância do agradecimento de Rio Branco mencionado anteriormente, que faz referência à presença de Pablo Monasterio na edição de Dulce Sudor... : La adaptación y producción para la colección Río de Luz la trabajé com Pablo Ortiz Monastério (RIO BRANCO, 1987). Nessa mesma página, o espaço destinado aos dados formais sobre data, cidade, tipo de papel, gráfica, laboratório e tiragem se completa com a seguinte informação: La edición estuvo al cuidado del autor y de Pablo Ortiz Monastério. E, na linha abaixo, Diseño de Peggy Espinosa. Nesses dados oficiais, constam Monasterio e Rio Branco juntos, como uma espécie de edição geral e final do livro, mas Rio Branco especifica a função de Monasterio no agradecimento, quando a descreve como trabalho de adaptação e produção para a coleção (grifo meu). Esse detalhe faz sentido quando temos um fotógrafo que vem de trabalhos com marca muito pessoal, interessado em se adequar a um projeto editorial cujo padrão obedece a uma coleção, ao formato de uma série projetada por uma política pública. O encontro dessas duas instâncias aponta para a natureza da produção de um livro de fotografia que tende, no caso da Río de Luz, a incorporar o discurso do artista. A proposta é absorver a fala do artista e contornar os limites do projeto editorial. Por Camera Work, editada por Alfred Stieglitz entre 1902 e 1917; passando pelos livros alemães dos anos 1920/1930 até os americanos documentais, sem contar com a produção latina, quase desconhecida. 207

209 isso, o trabalho de adaptação se ajusta ao caso de Rio Branco. O depoimento de Monasterio sobre a chegada de Rio Branco ao projeto Río de Luz é revelador: Em Dulce Sudor Amargo Flores Olea havia trabalhos de Miguel Rio Branco em Paris, então ele os propôs para a série. Obviamente o livro é o melhor, em um sentido: é muito importante, é muito latino-americano. Quando Rio Branco chegou, já tinha tudo reunido. Ele havia trabalhado com muitas pessoas em Paris fazendo a edição. Ele tinha uma ideia diferente para o livro; queria um tamanho diferente. Então, pela primeira vez eu decidi ter um format diferente (horizontal ao invés de vertical). A produção foi muito cara; mas valeu à pena. É um livro que consider muito interessante, tão importante quanto The Americans. É um avanço, permance dentro da tradição da fotografia latinoamericana, mas incorpora novos elementos em seu uso da cor (In: PARADA, 1987, p. 73). 94 Diversos aspectos estão contidos nas entrelinhas do depoimento de Pablo Monasterio, que diz bastante sobre as nuances que constituem a concepção da coleção, na qual se encaixaria um artista como Rio Branco. Primeiramente, ele deixa claro que o fotógrafo já tinha um trabalho editado, ou pelo menos preeditado, em Paris, com colaborações de Jean-Yves Cousseau e Jimmy Fox, figuras externas ao projeto mexicano. Após a exposição Nada levarei..., no Rio e em São Paulo, seu filme homônimo com prêmios na França, a vinculação com a Agência Magnum e a circulação do seu trabalho na Europa e EUA, Rio Branco havia impactado a audiência e ganhado autonomia de voo. O interesse por seu trabalho do Maciel tinha a ressonância necessária para ser acolhido prontamente pela política cultural do México. Afinal de contas, adaptado como livro, aquele trabalho seria muito importante, muito latino-americano, nas palavras de Monasterio, que o considerava, naquele momento, o melhor livro da coleção. Tratou-se de um trabalho difícil e mais caro. Provocou a mudança de formato do projeto gráfico, pois foi o primeiro da série a passar para a forma horizontal. Caro também porque foi o primeiro ensaio em cor a ser produzido para a série. Em um 94 No original: In Dulce Sudor Amargo (sweet bitter sweat) Flores Olea had seen Miguel Rio Branco s work in Paris so he proposed it for the series. Obviously the book is the best, in one way: it s very important, it s very latin American. When Rio Branco came he had it all together. He had worked with many people in Paris doing the editing. He had a different idea of the book-he wanted to have a different size. So for the first time I decided to have a different format (horizontal instead of vertical). The production was very expensive; but it was worthwhile. It is a book I find very interesting, unique, as important as The Americans. It s a breakthrough, remaining within the tradition of latin American photography, but incorporating new elements in its use of color. 208

210 período bem diferente do atual, o filme colorido possuía um custo mais alto em comparação ao filme em preto e branco e era impulsionado pela indústria americana, que dominava o mercado. Naquele contexto, o trabalho de Rio Branco chegou quebrando sutilmente as regras econômicas da coleção e ampliando a percepção estética de Monasterio, que era um adepto da fotografia em preto e branco, por considerá-la mais dramática e simbólica: As pessoas estão fazendo cor cada vez mais, e imagino que por influência dos Estados Unidos. Nesse caso, fazer preto e branco torna-se um tipo de resistência cultural, o que eu estimulo. Mas não podemos ter a mente fechada com relação a isso. É por isso que gastamos bastante dinheiro com o livro de Rio Branco, porque ele mostra um modo diferente de usar a cor, diferente do mainstream, do que é feito na América do Norte (In: PARADA, 1987, p. 74). 95 Na função de editor geral da coleção, Monasterio acolheu as imagens de Rio Branco, logo após Flores Olea ter visto o trabalho em Paris, primeiramente por uma razão. Apesar de ser em cor, o trabalho era simbólico e dramático, qualidades que Monasterio atribuía ao filme em preto e branco, afinadas ao seu sentimento de que o continente latino-americano era, em si, bonito e doloroso: Tenho a forte impressão de que a fotografia em preto e branco se adequa melhor a nossa realidade, que é dolorosa e dramática. De qualquer modo, o preto e branco é uma linguagem mais simbólica que o colorido (In: PARADA, 1987). 96 É interessante como sua visão entrelaça as referências em função de uma atitude projetiva para a ideia de fotografia latino-americana e realidade latina, a partir dos referenciais da história e do repertório norte-americano e francês, justamente dos países que formataram a história da fotografia, contra os quais a posição aguerrida mexicana estava se colocando. A comparação de custo entre o filme em preto e branco e colorido era uma realidade mercadológica da qual não se podia fugir com facilidade. Aliás, nos bastidores 95 No original: People are doing color more and more, I guess because of the influence of the States. In that case, to do black and white becomes a kind of cultural resistance, which I encourage. But we cannot be close-minded about that. That s why we spent so much money on the Rio Branco book, because it shows a different way of using color, different from the mainstream of what they re doing in North America. 96 No original: I have a strong impression that black-and-white photography better suits our reality, which is painful and dramatic. Somehow, black and white is a more symbolic language than color. 209

211 da criação com a imagem técnica sempre haverá uma economia de mercado definindo regras, padrões e inclusive estéticas. A plasticidade da fotografia e do cinema foi determinada pela temperatura de cor ou tonalidade dos cinzas, magistralmente arquitetados pela indústria. O colorido dos filmes de longa-metragem dos anos 1970, em especial o filme norte-americano, está atado muitas vezes a um tipo de película produzida na época e que possuía seu colorido especial. No contexto de 1987, o mundo (ou a América Latina?) ainda vivia sob certa clivagem entre a fotografia em preto e branco de conotação artística e a colorida de feição comercial e real. Pablo Ortiz Monasterio chega a usar um velho e surrado clichê que sobreviveu ainda por tempos e que muitos fotógrafos, em busca de seu ideal artístico, acreditavam: A cor está mais próxima ao modo como experimentamos a realidade. Assim, imagino que fiquemos atraídos ao mais simbólico Preto e Branco. 97 Fica a pergunta se o pronome pessoal We (nós), utilizado por Monasterio em seu depoimento, quer dizer Nós, latino-americanos. Somos mais atraídos pelo simbólico preto e branco? Ele fala em nome de um continente, imenso e com uma variedade de culturas distintas. Esse mesmo continente teria sua tradução perfeita na imagem em preto e branco porque é um continente cuja realidade é dolorosa e dramática? Mas não seria o filme em cor (estimulado pela indústria americana) que nos aproximaria mais da experiência da realidade? As impressões sobre o trabalho de Rio Branco acentuam ainda mais a sutileza das questões sobre a representação da realidade por meio da fotografia, quando Monasterio (In: PARADA, 1987, p. 73) diz que Dulce Sudor... é um breakthrought : Permanecendo na tradição da fotografia latinoamericana, mas incorporando novos elementos em seu uso da cor : Rio Branco é um pintor e faz filmes também, você sabe, com um ponto de vista muito pessoal. Emocionante. Ha uma forte sensação carnal, de sexualidade. Nao acho que ele está com as classes mais baixas, trabalhando pela revolução, mas de algum modo ele entra em certos universos e mostra pra você, como Baudelaire, as coisas terríveis sobre a vida. É belo e doloroso e de algum modo a América Latina é dessa forma (In: PARADA, 1987, p. 75, grifo meu) No original: Color is closer to how we experience reality. So I guess We are atracked to the more symbolic Black and White. 98 No original: Rio Branco is a painter and makes movies too, you know, with a very personal point of view. Stirring. There s a strong sensation of flesh, of sexuality. I don t think he s with the lower classes, working for revolution, but somehow he enters into certain universes and shows you, like Baudelaire, the terrible things about life. It s beautiful and it s painful and somehow latin American is like that. (grifo meu). 210

212 Charles Baudelaire e Robert Frank pairam na cabeça de Monasterio como referenciais para entender e interpretar o trabalho de Rio Branco. O primeiro é um dos artistas mais emblemáticos da modernidade francesa do século XIX. O segundo representa um dos ápices da fotografia moderna norte-americana em preto e branco, buscando uma representação da cultura dos Estados Unidos. The Americans, de Robert Frank, mencionado por Monasterio, é um dos trabalhos considerados mais importantes da história do livro fotográfico. Ao mesmo tempo em que representa um fotógrafo buscando sua identidade artística na arte moderna, funciona como representação de uma fotografia buscando na América seu espelho identitário. É inegável a importância de Baudelaire e Frank na história da cultura moderna ocidental, mas vou considerar a seguinte pergunta: a que serve esse tipo de referência e repertório proferidos com tanta certeza, dentro do contexto do projeto político da coleção Río de Luz? Há, nos depoimentos de Monasterio, Flores Olea e Meyer, um princípio revolucionário, reagente às imposições culturais norte-americanas, quando explanam os objetivos e idealizações artísticas da fotografia aqui, especialmente, a série de livros e o colóquio latino-americano de fotografia. Há uma desconfiança aberta de Monasterio com relação ao filme colorido, estimulado pelo mercado (norte-americano) e uma adesão simbólica à artisticidade do preto e branco, justamente a artisticidade conquistada pela fotografia moderna e documental gestada nos EUA. Então, para Monasterio, Rio Branco seria aquele artista que soube ser um Baudelaire usando o filme colorido? Soube entrar no cotidiano do mundo, experienciar esse mundo e falar da beleza das coisas terríveis da vida ( terrible things about life )? Qual o propósito da América Latina em sustentar a imagem de bela e dolorosa em nome do México? Doce suor amargo é uma boa metáfora: necessário para Rio Branco no curso de sua poética na possibilidade de olhar o Maciel no Brasil, e útil para Monasterio apropriar-se da imagem do Brasil como espelho da América Latina. O Baudelaire de Monasterio seria aquele flanêur entregue ao fluxo da vida erótica e cotidiana do Maciel ou aquela figura que, ao dedicar-se de modo exaustivo e determinado em sua botânica no asfalto, findou por destilar seu intelectualismo classista? O discurso de Baudelaire no Salão de 1889 sobre a fotografia, a despeito de sua complexidade histórica, é um discurso com fortes teores classistas, de tão apavorado 211

213 que está com o impacto popular da fotografia sobre as belas artes e as belas letras. Monasterio supõe que Rio Branco não estaria com as classes sociais baixas, trabalhando pela revolução, mas teria a capacidade de entrar em certos universos para nos mostrar as coisas terríveis da vida. O trabalho com o Maciel é um trabalho feito no limite, em todas as suas significações possíveis. A comunidade do Maciel em Nada Levarei... (exposição e filme) tem o corpo como o parâmetro para se discutir socialibilidade, identidade, pose. No livro Dulce Sudor..., o limite fica entre a autenticidade do inquieto trabalho original (Nada levarei...) e a pretensão (ideia projetada pelo nacionalismo mexicano) de representar um continente predestinado ao belo, terrível, doloroso e doce. Importante lembrar que, a despeito da qualidade analítica das resenhas sobre Rio Branco de 1978 a 1980, Frederico Morais, Roberto Pontual, Moracy Oliveira e outros insistiram no aspecto difícil e miserável da comunidade do Maciel. E jamais mencionaram a existência de felicidade naquele lugar. Perguntei ao artista se ele via felicidade no cotidiano do Maciel e nas suas imagens do lugar: É uma vida familiar. Sim, concordo. Existe felicidade ali. A solução dessas situações de pobreza no Brasil, elas se resolvem (podem se resolver) de uma maneira muito fácil... é dando escolas, posto de saúde e saneamento básico (...) Você consegue fazer uma estruturação (do lugar) que não custa uma fortuna... e que as pessoas continuem tendo aquela vida (familiar). Eu também só fotografei ali durante o dia... foram poucas as vezes em que fui à noite onde a coisa pesa... então eu fazia monóculos pras pessoas (...) Eu andava com um saquinho de monóculos e ia dando pras pessoas. As mulheres que posavam nuas, eu pagava elas... e as outras, eu dava os retratos. Me chamavam (e diziam): Ah, fotografa aqui com a minha vó, com meus filhos! Eu tava me sentindo com um mínimo de utilidade (RIO BRANCO, 2014). Perguntado sobre o porquê das matérias e resenhas não mencionarem a existência de felicidade no ensaio do Maciel, Rio Branco (2014) continua: Porque você viu o filme muitas vezes, você viu as fotografias muitas vezes, você tem uma segunda leitura. A pessoa, quando vê aquele filme pela primeira vez, ela tem um choque. A primeira coisa é o choque, e o filme foi feito realmente pelo choque; pra mim, como um choque, porque era uma coisa que, pra mim, era insustentável. Foi em Eu tinha voltado pro Brasil em 67, eu comecei a viajar mais pelo Brasil em

214 As viagens mais sistemáticas de Rio Branco ao interior do Brasil se deram depois da experiência das filmagens com Jabor. Rio Branco ainda voltaria a Nova York por um período entre final de 1960 e início de 1970, vivendo, nessa segunda temporada, no emblemático Bowery, bairro marcado por mendigos, alcoólatras e outsiders dos mais diferentes tipos. Figuras que atraíam os fotógrafos de rua e, em especial, aqueles cujo espírito humanista traduzia-se por via da fotografia documental.... O Bowery era a queda total de pessoas. Era uma coisa caidaça. E a fotografia com uma certa preocupação social, digamos assim, chamada concerned photography, era uma coisa que já existia, pontua Rio Branco (2014). Embora o artista não faça a relação da vivência no Bowery, no início dos anos de 1970, ao seu encontro com a comunidade do Maciel no final da mesma década, fica implícita a ligação entre os dois lugares em sua formação perceptiva. Esse tipo de apreensão da realidade foi sendo gestada fora da tradição documental jornalística e humanista, a qual teria sido de praxe sua direção natural. Ele enfatiza que é nesse mesmo início de década de 1970, pós-bowery, que ele faz o primeiro contato com a Magnum. Mas, por sorte do acaso ou pelo calor da experiência vivida naquele contexto, segue para o campo do cinema, que lhe faz absorver a realidade social do Brasil de outro modo, ao longo da década. Ele mesmo afirma:... Meu primeiro contato com a Magnum foi em 72. Mas eu não tava interessado na Magnum. Eu tava interessado em cinema, o cinema sempre foi e ainda é a coisa mais dinâmica (RIO BRANCO, 2014). E de fato foi o que aconteceu. Rio Branco seguiu o curso dos anos 1970 inteiro dedicado a uma fotografia documental independente do sistema de informação e em paralelo às atividades variadas do cinema experimental. Da mesma forma que Rio Branco possivelmente intuiu o Bowery no Maciel, Monasterio parece ter projetado no livro Dulce Sudor Amargo o seu The Americans latino. Monasterio imprimiu ao livro de Rio Branco uma visão artística e refinada por sua experiência com edição em fotografia, mas nem por isso deixou de assumir um olhar estratégico, político, editorial e mercadológico. Seu trabalho, de algum modo, representa, por meio da coleção, a tradição cultural de seu país com forte traço nacionalista. Pedro Meyer relata um fato ocorrido no contexto da produção do catálogo do I Colóquio Latino-Americano de Fotografia: Hecho en Latinoamerica, momento embrionário do surgimento da coleção Río de Luz. Após reunir o texto das palestras e 213

215 comunicações do I colóquio em 1978, percebeu que o tema ali tratado era incompatível com o apoio financeiro que havia conseguido para a impressão do catálogo. A reivindicação de uma fotografia e uma cultura estritamente latino-americana não poderia suportar os anúncios da IBM e da XEROX. Então, eu devolvi todo o dinheiro e comecei a procurar patrocínio de outras fontes. Victor Flores Olea foi muito importante na ajuda para obter recursos de várias agências governamentais, como por exemplo a Petróleos Mexicanos. Quando estávamos prontos para receber esse recurso do governo e outros para Río de Luz, eu percebi que havíamos avançado um grande acordo, mas sem essa visão global, nossos esforços teriam sido em vão (In: PARADA, 1987, p. 73). 99 É sintomática a decisão de Meyer em devolver o dinheiro para as corporações poderosas internacionais e aceitar a o patrocínio da grande empresa mexicana com igual poder econômico. A diferença parece ser a de que a Petróleos Mexicanos defende os interesses do país, quiçá da América Latina, que conferiria alguma compatibilidade (?) com o teor dos discursos dos artistas, fotógrafos e pesquisadores nos ensaios e debates publicados no catálogo Hecho en Latinoamerica. Portanto, uma posição nitidamente nacionalista e à esquerda, adequada àquele duro contexto das ditaduras disseminadas pelo continente do final da década de Os depoimentos de Monasterio, Meyer e Olea em 1987, para a revista americana Aperture, revelam um comportamento arrivista, mantêm uma posição unificada a favor de uma cultura homogênea e tomam a coleção Río de Luz como uma de suas trincheiras. Monasterio chega até à deselegância com a repórter Esther Parada, ao falar da necessidade da qualidade técnica de produção dos livros mexicanos como competição com o mercado de livros norte-americanos. Monasterio é direto e pragmático: Você está fazendo esta entrevista agora porque nós temos produzido todos esses livros e a coleção ganhou um prêmio no ICP (1986 International Center of Photography Honorable Mentions for publications) em Nova York ano passado, porque os livros são bem produzidos! Talvez vocês (Norte-americanos) tenham chegado a 99 No original: So, i returned all the money and started to look for fundings from other sources. Victor Flores Olea was very important in helping me to obtain funding from various government agencies, such as Petróleos Mexicanos. When we were able to get this government funding and other supports for Río de Luz, i realized that we had advanced a great deal, but that without worldwide our efforts were in vain. 214

216 um patamar em que ter tantos livros bem produzidos, que produzilos é um tipo de luxo! (In: PARADA, 1987, p. 74). 100 Monasterio expõe claramente as intenções didáticas e educacionais do projeto da coleção como um porta-voz da política governamental da área cultural de seu país. Ele argumenta que, ao realizar, com qualidade, um livro de fotografia, além de fazer frente ao mercado de livros norte-americanos, seria uma maneira de educar um povo com pouca leitura. Seu interesse pela linguagem do cinema e da televisão, como um modo de pensar o livro, não provém unicamente de sua formação intelectual sofisticada. É resultado igualmente de uma crença (populista ou ingênua) de que um povo pobre que não lê, submetido à mídia, possa ser educado, politizado e letrado visualmente. Poderíamos dizer que trata-se de uma contradição para um país pobre ter livros sofisticados ou preciosos. Mas acho que a qualidade de impressão, a resolução, os papéis especiais, e outros elementos são importantes justamente por isso. Em um país como o nosso, as camadas populares são basicamente analfabetas e lêem mal ou muito pouco; mas com a mídia como a TV temos aprendido a ler visualmente (In: PARADA, 1987, p ). 101 A defesa de Pablo Ortiz Monasterio sobre a importância da coleção Río de Luz é a de que o trabalho é feito com rigor, qualidade técnica e pesquisa, para ser competitivo no mercado editorial de livros fotográficos, além de ser representativo da cultura de uma nação e contribuir no resgate da história de um continente. Muitas vezes, uma história que não foi contada por seus próprios donos. Toda essa crença representava os ideais da política cultural dos setores governamentais com os quais Monasterio, Meyer e Olea gestaram a política de difusão da fotografia. O México sempre assumiu um papel importante dentre os países mais fortes da América Latina. Na história das ditaduras que dominaram o continente entre os anos 1960 e 1980, o país possui uma trajetória distinta, muito mais de um país acolhedor, que recebeu exilados e protegeu presos políticos, do que uma nação oprimida longamente por governos autoritários. De modo geral, o papel cultural que o México desempenhou 100 No original: You re doing this interview now because we ve made all these books and the collection got a prize at ICP (1986 International Center of Photography Honorable Mentions for publications) in New York City last year, because the books are well done! Maybe you (Northamericans) have reached a point where you have so many well-done books, where to do them roughly is kind of slick! 101 No original: One could say it s a contradiction for such a poor country to have slick or precious books. But i think the quality of the print, the resolution, the coated paper, and other elements are important precisely because of this. In a country like ours, the masses of people are basically illiterate and read poorly or little; but with media like TV we had learn to read visually image. 215

217 entre 1978, ano de estreia do Primeiro Colóquio de Fotografia, e o ano de 1989, em que a coleção Río de Luz atinge a marca de 19 números, 102 foi o de protagonista na área da produção e difusão da fotografia na América Latina. Havia um projeto de educação mais geral que conduzia a política de publicação, e é esse projeto que sustenta, conceitual e politicamente, a Río de Luz. Pablo Ortiz Monasterio acredita numa espécie de alfabetização visual promovida pela fotografia e vê na experiência perceptiva do cinema e da TV um conceito adaptável ao livro de fotografia, como ele mesmo declara: We are mixing this dinosaur tradition of wood, pulp, and paper with this modern language... I am fascinated with this hybrid (In: PARADA, 1987, p. 73). O que se deve ressaltar é que, entre a crença de que a TV por si só é capaz de dar condições de leitura a uma população que não lê e o fato da opção editorial de um livro fotográfico ser balizada por tal didatismo, há um certo pensamento restritivo, no mínimo, para o entendimento da arte. A tradição documental, aspecto que permeia a estética da coleção também colabora para essa formatação e desejo. É com essa carga ideológica que a Río de Luz foi gestada e mantida por sete anos. Os temas e as poéticas dos fotógrafos que tiveram suas imagens editadas e narradas pela edição geral de Monasterio, de alguma forma se adequaram à grande linha política do projeto mexicano. E Dulce Sudor Amargo escapou de tal projeção conceitual e ideológica? A excelência de Pablo Monasterio foi perceber a veia cinematográfica de Rio Branco, intuir uma concepção fílmica para a edição de imagens e deixar o artista exercer sua fluência narrativa, característica primordial de seu trabalho fotográfico. A percepção cinemática e a concepção de montagem salvam o trabalho de Rio Branco do molde editorial do livro funcional de fotografia? Diríamos, a princípio, que sim e que não, por variados motivos. 102 A coleção chegaria ao seu fim em 1991, com mais um número produzido. 216

218 Figura 52: : Sequência do livro Dulce Sudor Armago,

219 As imagens do corpo central de Dulce Sudor... retomam a força contida nas elaborações anteriores de 1980 e Retomam, porque chegam próximas aos interiores, aos corpos, às mulheres. A sequência seguinte ressalta esse movimento (Figura 52). O quadrado da janela de onde se vê de fora a parede com recortes de estrelas da televisão é uma porta de entrada. O tom rosa da fachada entra em harmonia com a cor da blusa da moça do decote em V. A boca entreaberta, a língua, levemente insinuandose mais uma vez, surge para o convite à sedução. A partir daí, entramos nas casas de forma mais fluida, aparentemente suave, mas não menos perigosa. Talvez seja essa a sutileza que Rio Branco queria imprimir à nova ordenação de suas imagens do Maciel para Dulce Sudor... Talvez seja essa a sua vontade de afastamento (muito discreto) do topos e do factual para falar de dor e prazer. A espacialidade entre os planos, utilizada nas imagens externas da paisagem na parte introdutória do livro, persiste nesse trecho dos interiores e dos corpos. Esse sentido está tanto entre as imagens dos corpos e retratos quanto nos próprios retratos. Muito cinematográfica, no sentido narrativo, a imagem da sacada a da página 54 não poderia deixar de retornar a esse conjunto do livro. Do ponto de vista de um voyeur ou de um bandido, ou de um personagem que seja os dois ao mesmo tempo, observamos a rua da sacada de um sobrado por entre as frestas de seu guarda-corpo. Em grande primeiro plano, no chão da sacada, um revólver, um gibi e um livro. No último plano, cinematograficamente localizados no espaço, entre as pequenas colunas que sustentam o guarda-corpo, estão lá embaixo, na rua, sem perceberem que estão sendo observados (fotografados), um homem em um dos quadros e, no outro, uma mulher, uma senhora e uma criança, todos na porta de um bar. Nessa imagem, que poderia também ser captada em Havana, figuram elementos de um enredo ou de uma cena de filme, que ora está sendo percebida por seu captador, ora proposta ao leitor como um mecanismo narrativo e documental daquele lugar. A força narrativa está contida na superposição dos acontecimentos e personagens posicionados em planos diversos na mesma tomada. É possível aludir às intenções e desejos de Bazin, quando se referia às composições realistas na montagem de um filme. Tal imagem possui a dimensão realista, a impressão de realidade e o aspecto palpável da vida como narração, como acontecimento no qual tudo ocorre ao mesmo tempo e agora. Nessa perspectiva, voltemos à chamada unidade da imagem no tempo e no 218

220 espaço possível de ser construída pela eficiência técnica da profundidade de campo, mecanismos desejados por André Bazin. Questão apresentada e bem sintetizada por Ismail Xavier (1984, p. 66): Este fenômeno da profundidade de campo tem sua importância dramática. Tanto em fotografia quanto no cinema ele será responsável por determinados efeitos. A oposição nitidez/não nitidez, que marca uma série de objetos co-presentes numa imagem traz sua carga semântica. Se todos estão em foco, tenho uma imagem diferente da que eu teria se apenas um ou alguns estivessem. Na narração cinematográfica, a manipulação da profundidade de campo é extremamente funcional (seleciona e informa, conota, segrega, reúne, ajuda a organizar). Xavier ainda enfatiza na análise sobre Bazin a consideração sobre a evolução técnica dos aparelhos e a sensibilidade dos filmes que tornam o uso da profundidade mais eficaz e constituem um procedimento do cinema moderno, em comparação aos usos clássicos da montagem fragmentada em planos. Busca-se, então, no desejo e na reflexão histórica baziniana, a multiplicidade de planos em um mesmo longo discurso contínuo da câmera. O cinema moderno assumirá esta possibilidade técnica e o aproach documental para narrar e ficcionalizar a realidade de modo mais crível e fluido: De modo geral, quanto maior a profundidade de campo, maior é a possibilidade de concentrar informações num único plano (XAVIER, 1984, p. 66). O cinema moderno estava adquirindo, por via da técnica e de outra concepção sobre a realidade no filme, modos de garantir a unidade da imagem no tempo e no espaço, seja ela enquanto imagem única, seja como elemento de um conjunto maior de imagens aptas a cumprir sua função dramática. No conjunto narrativo do livro Dulce Sudor..., a imagem da sacada com revólver, inserida dinamicamente nesta sequência, reativa o movimento e a mobilidade de toda a sequência. De dentro do quarto, da mesma sacada, na fotografia (notem que a forma das colunas da sacada à esquerda na imagem é a mesma), observamos uma figura vindo em movimento (a figura em flou) da sacada. A outra mulher está à direita na fotografia e posa deliberadamente para a câmera. Com as mãos na cintura e porte de modelo, possivelmente acabou de levantar a camisa para mostrar os seios. As duas mulheres poderiam estar em imagens separadas, como duas fotografias separadas. Porém, são duas cenas que se encontram no mesmo quadro e que, no fluxo narrativo, ainda trazem os resquícios da imagem anterior da sacada pela indicialidade dos objetos 219

221 (gibi, revólver, figuras na rua) e pela permanência, em nossa memória perceptiva, do aqui e do agora, e a duração experiencial da fotografia. A dimensão espacial e a simultaneidade de movimentos colaboram para que as outras imagens reativem o sentido de fluxo. Observem que os retratos nesse encadeamento são bem menos frontais e, quando o são, possuem um elemento que desestabiliza a dureza da frontalidade: tudo é instável, enviesado e oblíquo. A fotografia da mulher na cama também traz a pose clássica de revista de moda, com os braços formando um desenho triangular no quadro. Apesar da presença preponderante do rosto em primeiro plano, a profundidade de campo traz conforto espacial à imagem e cumpre uma função dramática ao nos dar também, embora em níveis diferentes, a estampa da colcha de cama em um plano mais à frente do primeiro plano. E em outros mais atrás, e nas laterais, os recortes de revista na parede descascada à direita e ao fundo. Todos esses elementos narram, descrevem esse lugar e essa mulher. As imagens que se seguem à fotografia citada anteriormente possuem, igualmente, algo de sedução no movimento dos corpos, na espacialidade do lugar e na cor dos elementos de cena (o lenço em volta do corpo, os sapatos altos e brancos), que misturam azuis (paredes de fundo), vermelhos (lenços e paredes de fundo) e amarelos. Há fluidez nessa sequência, que confere um tipo de suavidade a essa passagem, apesar dos signos de perigo: o revólver, a espreita, a serpente, a cicatriz estão pontuados discretamente no conjunto de imagens. O Maciel, de Nada Levarei..., em sua configuração mais direta e carnal, permanece na reordenação de Dulce Sudor..., mas é relativizado por essas distensões sequenciais, cujas imagens, em sua individualidade, dão espaço para a figura e fundo, para a dinâmica dos acontecimentos, que se mostram paralelos. Nesse sentido é que surge certa sedução e beleza, um arrebatamento das cores e dos corpos. Mas nem tudo está perdido. Ou melhor, tudo parece ainda estar perdido no universo que Rio Branco reconstrói no livro. O conjunto que vem a seguir começa a dizer o contrário, a constituir-se como um discreto contradiscurso e aproximar-se da densidade de outrora, vista já anteriormente em análise sobre a mostra e o filme Nada Levarei...(Figura 53). 220

222 Figura 53: : Sequência do livro Dulce Sudor Armago,

223 Rio Branco chega mais perto dos corpos, das cicatrizes e do sexo. Quanto às imagens, já as conhecemos, e muitas delas foram mencionadas anteriormente. O importante aqui é observar como elas se inserem nesse novo conjunto: mais amplamente, em diálogo com as páginas anteriores; e, de modo panorâmico, no livro enquanto concepção fílmica. Os horizontes, as praias, as feiras, o bairro, os interiores, os corpos seguem um encadeamento, cuja presença primeira do conjunto cromático entre paisagem e bairro atenuou a aterrisagem mais densa nos quartos, retratos e peles. Esse aspecto cinematográfico da narrativa do livro torna Dulce Sudor Amargo um modo, ou tentativa, de reordenação do caos, dos fragmentos e cortes, dos enquadramentos incisivos observados no conjunto da exposição e na edição do filme. É como se o núcleo central que constituem a exposição e o filme, de 1980 e 1981, respectivamente, fosse desmontado e ampliado em 1985, dentro do projeto do livro, dentro de uma concepção que criasse nuances mais abrangentes de significação para aquela comunidade. Ao mesmo tempo que o conjunto em relação ao trabalho do Pelourinho perde em densidade e contundência no topos cerrado e espesso do Maciel, o projeto ganha na estrutura do livro contornos labirínticos. Neles, as sequências de imagens permitem, cinematicamente, ao fruidor entrar e sair de lugares, perceber os espaços, olhar seus personagens em fluxo constante, intensificando um tipo de fluência dramática. As cenas (imagens) que se seguem após os quartos e as peles permanecem com as pessoas, os retratos, mas voltam para a rua e se misturam a planos mais abertos e de conjunto em que o cotidiano se sobressai (Figura 54). 222

224 Figura 54: : Sequência do livro Dulce Sudor Armago,

225 Reaparecem os retratos como álbuns de família, as brigas de galo, os quintais, as visões de cima das fachadas e ruas. Ressurge também o díptico que consolida sua onipresença nos anos 1980 e que, pela primeira vez, se fixa no suporte impresso: o cachorro-homem e o homem-cachorro. Essa dupla de imagens, que se mostra no livro aberto, está ali fincando sua significação e se mostrará cada vez mais importante nos anos e décadas seguintes como síntese de uma poética: juntas, compartilham um nó tácito impossível de ser desfeito, tal é o gesto preciso de encaixe e composição do objeto. Separadas, são tão enigmáticas quanto óbvias e falam justamente da diferença entre ser um objeto olhado e ter sua imagem deslocada para a forma fotográfica. O simples fato de ter sido registrado de determinada maneira nos reapresenta suas circunstâncias simbólicas. Esse já famoso díptico, no momento do seu percurso no livro, funciona para amarrar com sua dureza e frontalidade alguns subterfúgios do seu labirinto de narração. Nas sequências seguintes, fazemos um retorno à Havana (à América Central, ao México?) (Figura 55). As cenas de rua exibem um colorido gracioso: nas estampas floridas dos vestidos, na camisa xadrez do menino, na pintura esmaecida das fachadas. O quase pitoresco é quebrado pelos cortes assimétricos e pela postura desarmada da maioria dos personagens. Reaparece aqui outra imagem importante no trabalho de Rio Branco, para enfatizar a cadência de quadros em movimento na curva sequencial do livro: o ponto de vista do bar, dividido em dois quadros pela coluna de azulejos, tal qual um fotograma de filme ou a justaposição de dois diapositivos verticais. 224

226 Figura 55: : Sequência do livro Dulce Sudor Armago, D aqui em adiante o tom casual e cotidiano permanece como um condutor rítmico, já tendo retomado a suavidade inicial. O refluxo, formado por imagens familiares e domésticas, apresenta-se para preparar o desfecho do livro num impulso novo, sugerindo um movimento de fuga daquele lugar, de mudança da temperatura da cor e novamente um distanciamento, um voo de volta à natureza. Na sequência seguinte (Figura 56), as cores mais quentes e mornas são substituídas pela predominância do branco e do azul. A cor branca e os tons claros aparecem nas vestimentas: camisas, vestidos, turbantes, roupas estendidas. Alguns azuis permanecem de fundo: nas paredes, fachadas e toalhas de mesa. Os enquadramentos se abrem novamente, localizando os espaços e limpando as imagens até que os azuis dominem completamente a sequência final, rumo ao céu e à praia. Estamos de volta ao começo, mas ao invés do horizonte quente ou lilás, temos visivelmente a cor de amanhecer, mais pura e fresca. 225

227 Figura 56: : Sequência do livro Dulce Sudor Armago,

228 É perceptível que o livro Dulce Sudor Amargo, em seu ritmo de cinema, termine com uma lufada de otimismo sobre o lugar retratado apesar da vida terrível encontrada em seu cotidiano. A sequência de retratos mais amenos é encadeada à série final de brancos, azuis, areia e céu (Figura 56). Esta última chega até ser abrupta como desfecho do livro pois a quantidade de imagens que constituem esses dois blocos finais é muito pequena, em comparação aos conjuntos anteriores. As imagens puras, limpas e frias (com predomínio absoluto de azul), que dão o corte final, são apenas três fotografias. Juntas elas constituem um rápido epílogo após a bela imagem pitoresca de uma baiana carregando seu tabuleiro, prestes a entrar em um beco, onde se vê em perspectiva a luz da cidade ao fundo, no último plano. Observem a parede sobre a qual a figura da baiana passa: a mistura entre o azul e o verde estão ali. São os mesmos tons da parede pintada com a imagem da sereia no início do livro. As intenções de Rio Branco de ampliar seu cosmos para além da vida pesada do Maciel, de fato revelam um desejo em seu percurso em poder alcançar um tema mais abstrato para sua fotografia: a questão do prazer e da dor. Nesse sentido, poderemos relacionar diretamente a vontade do artista ao desejo do editor da coleção em fazer desse conjunto de imagens e desse livro uma aplicação imediata à sua visão determinada de que a América Latina seja isso mesmo: restrinja-se a uma realidade dolorosa, mas bonita; terrível, mas exuberante; pobre, mas esteticamente dramática. Se virmos o primeiro livro tradicionalmente concebido da carreira de Rio Branco por essa perspectiva, não estaremos equivocados, considerando todas as circunstâncias e evidências propostas aqui. Porém, o diferencial que podemos constatar é que, de fato, existe também um artista nesse processo. E que Dulce Sudor Amargo, a despeito de sua adaptabilidade ao projeto político dos mexicanos, exercita uma escrita bastante refinada quanto à fusão de dois aspectos da persona artística de Rio Branco: o pictórico e o fílmico. Eles se entrelaçam de modo tão sutil, que não se sobressaem em detrimento um do outro, correndo o risco de se exibirem autonomamente como um mero efeito. O fílmico está, obviamente, na cadência narrativa e de montagem das séries, mas se apresenta especialmente na potencialização que tal encadeamento possui, quando se constitui das imagens de figuras e acontecimentos simultâneos, nos quais a 227

229 espacialidade dá espessura ao lugar e as pessoas retratadas. Daí a relação, a alusão às teorias perceptivas e de produção dos chamados realistas do cinema. Quanto ao pictórico, ele não está apenas nas cores quentes, nos amarelos e vermelhos das peles. Está na fusão azul-verde muito bem localizada em pontos nodais da narrativa, misturando (fazendo-nos olhar essa mistura) natureza e cultura, quando mostra o mar e o céu, sejam captados diretamente, sejam pintados artificialmente em figuras e paisagens sobre a parede. Ou mesmo na cor esmaecida da arquitetura colonial decaída. Nesse sentido, o filme-livro de Rio Branco tem o que dizer da Bahia, tem o que falar sobre aspectos do Brasil. Falamos de uma certa perda de romantismo das imagens pitorescas de suas cidades. Ou seria do persistente convívio, ainda que descompassado, entre felicidade natural e drama histórico? Dessa forma, não observo esse mesmo trabalho como representante de uma fala latino-americana ou mexicana, apesar de ter sido enjaulado em tal perspectiva. É evidente que, ao entrar no universo de Salvador pela via do livro Dulce Sudor..., por vezes estamos em outros lugares do continente. Porém, curiosamente, os deslocamentos poéticos que fazemos como uma experiência de unidade cultural e geográfica levam-nos bem mais para a América Central: República Dominicana, Panamá, Cuba, Nicarágua. Uma América Latina apenas parcial O rio de luz de Monasterio: da representação política à política da representação A tradução do Brasil feita por Rio Branco é um exercício que não está na raiz da escola documental convencionalmente constituída pela história do gênero aplicado à formação humanista. Mesmo se compararmos a contundência das montagens anteriores mostra e filme Nada Levarei... à atenuação dirigida em Dulce Sudor..., não veremos resquícios do rigor e da sobriedade estilística da fotografia social norte-americana, como, por exemplo, a tradição promovida pelo trabalho da FSA. Mas Pablo Ortiz Monastério insiste nesse repertório norte-americano para balizar seu projeto antiamericano (!). Embora não seja um depoimento diretamente relacionado a Rio 228

230 Branco, Monasterio utiliza o exemplo da história norte-americana para se referir à importância da coleção como um projeto a longo prazo. Voltemos especificamente ao trecho de um relato já mencionado anteriormente: Mas todos nós comprendemos em termos de política de educação, como essa nação vem sendo influenciada por outras nações, isso é um importante projeto, não à curto prazo, mas de resultados à longo prazo, como o próprio FSA, de vocês (In: PARADA, 1987, p. 73, grifo meu). 103 Já vimos anteriormente, na análise proposta nesta pesquisa, como a fotografia documental foi sendo formatada nos EUA a ponto de ter-se transformado em um gênero fortemente instituído e que o trabalho histórico, e importante, da Farm Security Association foi um sustentáculo determinante para a consolidação desse gênero. É no mínimo contraproducente um projeto estético e político, que se esforça pela independência e autonomia, adotar como referência um exemplo de seu principal adversário. Ou seria coerente pensar exatamente como Monasterio? Considerar a FSA o parâmetro e adotar o mesmo modelo, já que se trata de um projeto com desejos hegemônicos em criar novas histórias hegemônicas e, portanto, apoiar-se no exemplo documental moderno instituído? As referências ao mundo ocidental e hegemônico não param por aí nos relatos de Monasterio. Ele já havia se referido (erroneamente) à Baudelaire para caracterizar aspectos de Rio Branco. Em um dos números da coleção, intitulado Jefes, Herois y Caudillos, ele viu Lartigue na Revolução Mexicana (!). Para editar o livro, a coleção tomou as imagens do Arquivo Casasola em uma proposta distinta da abordagem das que normalmente se divulgava em meios impressos sobre cenas e personalidades do período revolucionário mexicano. Monasterio afirma que foi um dos números mais vendidos da coleção. Aliada à qualidade gráfica e a uma edição que ressaltasse os detalhes, e não omitisse as imagens violentas que os próprios detentores do arquivo evitavam por considerá-las sensacionalistas, a proposta de Monasterio não utilizou retoque nas fotografias, como ele mesmo afirmou. Trabalhou, porém, de forma detida na edição, 103 No original:...but we all understand in terms of political education, of how this nation is being influenced by other nations, that is an important project, not for short-term, but long-terms results, like your own FSA (grifo meu). 229

231 com a consciência de um montador de cinema para dar uma dimensão mais humana aos personagens históricos em uma nova narrativa sobre os fatos. Nós temos que deixar claro que ali houve muita morte. Nao retoquei nada mas editei algumas das imagens, cortando algumas da seleção e com isso dando mais ênfase. Ao estruturar o livro sempre tentei mostrar o lado humano dos heróis, mostrá-los com esposas e crianças, não apenas a grande parte do mito, e sim o lado mais familiar. ( ) O detalhe é eloquente. Ele fala sobre o tempo. É por isso que insist na qualidade; há uma razão pela qual gastamos tanto tempo e energia em dinheiro. Por exemplo, eu adoro esta foto (do Porfiriato, a presidência do ditador Porfirio Diaz), isso me lembra Lartigue em seguida Madero: mostrando a irmã de Madero confere um toque familiar, o humaniza ele não é apenas um mito: você vê seus sapatos sujos, os documentos, a criança bricando embora sejam ainda fotografias oficiais, elas constroem uma imagem diferente de Madero (In: PARADA, 1987, p. 75). 104 Onde está mesmo Lartigue no discurso das imagens da revolução mexicana? E no discurso de Pablo Monasterio? Sabe-se que parte importante da produção do francês Lartigue ( ) se situa nas primeiras décadas do século XX, especialmente nos anos No mesmo período, atuou de modo intenso Agustin Victor Casasola ( ), fotógrafo mexicano, pioneiro na fotografia de imprensa, que cobriu o período pré e pós-revolucionário no México, entre os anos 1910 até meados da década de São imagens de Casasola que formam o livro do qual Monasterio extrai seu exemplo. Numa rápida comparação entre Casasola e Lartigue, observamos que as semelhanças estancam na coincidência geracional, nem tanto de idade (já que existe uma diferença de vinte anos entre os dois), mas de produção, pois Lartigue começou a fotografar quando criança. Então, podemos situar os dois fotógrafos como contemporâneos e, em um sentido muito geral, compartilhando de uma mesma época, mas com percepções e experiências sociais muito distintas. Enquanto um dedicou sua vida inteira à fotografia jornalística e ao projeto de uma agência de imagens dirigindo o 104 No original: We have to let it be known that there was a lot of killing. I didn t retouch anything but i edited some of the images, cropped them... by cropping i give more emphasis. In structuring the book i always tried to have a human side to the heroes, to show them with wife and kids, not the just the great part of myth, but more familiar. (...) Detail is eloquent; it speaks of time. This is why i insist on quality; there s a reason to spend so much time and energy in money. For example, I love this picture (from the Porfiriato, the presidency of the dictator Porfírio Diaz), its reminds me of Lartigue... then Madero: showing the sister of Madero gives a familiar touch, humanizes him... he is not just a myth: you see his shoes dirty, the papers, the kid working...though they are still official photos, they construct a different image of Madero

232 foco para o cotidiano social, o outro experimentou as possibilidades técnicas do aparelho com vistas a um tempo mais distendido da cena e dos fatos com os quais vivenciou, especialmente o universo mais burguês em que nasceu e foi criado. Quando Monasterio atribui à imagem de Casasola algo de Lartigue, está pinçando um aspecto casual e familiar dentro de um panorama de fotografias, cujo aspecto e função principais se dão em torno da necessidade mais objetiva de registro dos acontecimentos cotidianos das guerrilhas políticas. É um dado casual, comum ao universo da fotografia, do trabalho de um fotógrafo e mesmo a um álbum de família. O aspecto familiar e casual no conjunto de Casasola é, no panorama do trabalho de Lartigue, constante e deliberado. A menção de Monasterio à Lartigue em Casasola seria, a meu ver, puramente formal e sem consistência porque parece adotar uma referência do cânone ocidental (francês) para legitimar um valor nacional e latino (mexicano). A força de Casasola está na história de Casasola. Por outro lado, é possível observar que a relação que Monasterio faz entre os dois fotógrafos é um modo sensível de perceber a imagem para além de suas contingências factuais. Porém, quando colocamos em perspectiva seus ideais tão firmemente consolidados em escrever uma outra história nacional (e continental!), que não seja pelas mãos de outras nações, nos damos o direito de exigir mais de sua coerência e dos conceitos que sustentaram a coleção Río de Luz, que a tornaram muito prestigiada, no mínimo, pela comunidade fotográfica do continente americano nos anos Dulce Sudor Amargo, de Miguel Rio Branco, é um dos números mais valorizados por seus editores no conjunto da coleção. O instinto cinemático do artista e sua maneira de lidar com a experiência dos fatos e lugares com os quais se envolve deram-lhe autonomia para criar um diálogo, que parece ter sido saudável com a proposição editorial de Pablo Monasterio. Apesar do rigor explícito de uma coleção pertencente a um projeto de publicação industrial, a fala artística de Rio Branco está preservada em seu primeiro livro fotográfico. Só não sabemos com precisão se esse movimento que o artista qualifica como um avanço foi, de fato, um recuo, comparado à contundência anterior. Podemos vê-lo também como uma suspensão, uma parada para a autorreflexão de seu trabalho como representação de seu país, ainda que fosse por meio das concepções nacionalistas dos projetos mexicanos. 231

233 Ao tomar o livro sempre em relação ao trabalho anterior, em Nada Levarei... como constituição de uma poética, Dulce Sudor Amargo inicia um procedimento que irá adensar-se nos trabalhos futuros e permitir uma fruição que ultrapassa sua objetualidade: a experiência fotográfica do estatuto da imagem estática na poética do filme (Nada Levarei...) e a percepção cinematográfica na constituição narrativa do livro (Dulce Sudor...), ampliando assim as considerações sobre a experiência de limite entre o real e sua construção, e entre o objeto e a imaterialidade da imagem fotográfica no exercício da sequencialidade O doce suor amargo no Brasil: exposição e livro em 1987 Embora editado em 1985, o livro mexicano de Rio Branco só é lançado no Brasil, aproximadamente, dois anos depois e acompanhado de exposição homônima. As matérias, notas e resenhas publicadas no período em que a mostra ocorre no Rio de Janeiro (Galeria da Funarte) e São Paulo (Galeria Fotoptica), entre novembro e dezembro de 1987, ressaltam, de modo geral, algumas características já mencionadas anteriormente. Por exemplo: sua maneira de trabalhar a cor com a mesma intensidade dramática, convencionalmente atribuída ao preto e branco; o paradoxo entre poesia da luz e realidade trágica, e o fato de que o projeto do livro só foi possível pelo interesse dos mexicanos, pois, segundo Rio Branco, não seria viável produzir um livro fotográfico cujas imagens fugiam de um padrão turístico e colorido sobre a Bahia. Essas ideias estão presentes, de modo geral, nas notícias de lançamento da exposição e do livro, inclusive no release institucional da Funarte. No livro, uma Salvador que não está nos roteiros turísticos. Inevitavelmente envolvido pela cor e pela luz do lugar, onde esteve sediado nos últimos quatro anos, Rio Branco deixou de lado o preto e branco com que habitualmente são tradados temas como estes. E provou que o arco íris nem sempre colore a alegria. O verde do mar é apenas uma pincelada de abertura. Conduz ao amarelo do ocaso sobre a eterna cortina de chita, aos tons rosados e rubros que recheiam a própria vida, ao cinza sujo das casas corroídas pelo tempo, da pele das pessoas corroídas pela miséria (FUNARTE, 1987b). 232

234 Algumas matérias reproduzem literalmente passagens do release enviado pela Funarte. Nesse sentido reforçam as bandeiras poéticas defendidas pelo artista, pelo projeto do livro e pela própria instituição. Por outro lado, a despeito do tom poético de descrição que acomete a maioria das pessoas que decidem descrever sobre o trabalho e as imagens de Rio Branco, o release da Funarte informa importantes para uma constatação panorâmica de sua carreira naquele momento e de sua estratégia de tentar desmontar a visão que possam ter de sua figura artística, unicamente como um repórter ou um correspondente da Agência Magnum à procura de temáticas. A ocasião do lançamento do livro mexicano transforma-se na oportunidade para Rio Branco demonstrar sua amplitude temática já desejada, quando da produção do livro. Agora não era mais só o Pelourinho, abrindo o ângulo para Salvador. Doce Suor Amargo, em português, em sua versão expositiva, mostrava um trabalho para além de Salvador, com imagens do Brasil, e misturava a cor e o preto e branco. E mais: trazia na programação da exposição (pelo menos é o que podemos comprovar pelas notícias de São Paulo) a exibição de seu trabalho em cinema. Portanto, tratava-se de um fotógrafo que trabalhava os suportes do livro, da galeria e do cinema. Rio Branco, o correspondente da Magnum, um repórter portanto, era um artista. Isso é importante para a afirmação particular de sua linguagem. E mais importante ainda: como parâmetro de uma produção brasileira em fotografia, que escapava das tradições da fotografia documental e em preto e branco, muito marcada na cena brasileira dos anos A matéria do Jornal da Tarde, sem assinatura, mas possivelmente escrita por Moracy de Oliveira, 105 ressaltava a programação de filmes do período da exposição e destacava o aspecto cinematográfico da exposição e do livro. A exposição, apesar do mesmo título, mistura fotos do livro com outras de várias épocas. Miguel fez questão de frisar que não se trata de um ensaio sobre Salvador. Mas uma mostra que é uma sequencia de imagens com edição e montagem. Como no cinema. Segundo ele, tanto na mostra quanto no livro, será muito visível esta leitura cinematográfica (RIO BRANCO: exposição..., 1987). Outras imagens de épocas e lugares diferentes foram inseridas na mostra e, com isso, a intenção de se descolar de um único lugar como tema, abrangendo uma geografia 105 Moracy atuou como crítico do Jornal da Tarde ao longo de toda a década de

235 mais ampla e uma noção de tempo e espaço mais expandida, transformaram-se na argumentação que fundamentava uma espécie de cinefotografia que caracterizava a poética em curso de Rio Branco. Figuravam na exposição tanto a imagem dura da carcaça de um jegue em decomposição quanto uma das belas imagens do índio Amaú gesticulando sobre o fundo cor-de-rosa de uma parede, passando pela suave fotografia de um tatu debaixo de uma mesa (Figura 57). Figura 57: Imagem (tatu) que fez parte da exposição Doce suor amargo na Galeria da Funarte no Rio de Janeiro em Tais imagens estavam alinhadas em um outro arranjo narrativo no esforço de distender temáticas e fatos, sublinhar o mote dor e prazer a partir do doce e amargo. Mas o que era uma tentativa de distensão do factual rumo ao cinemático do artista, era muitas vezes compreendido e divulgado como uma comparação romântica e doce de um país pobre. A difusão propagada pela mídia caía, por vezes, em um estereótipo que alimentava certa resignação do discurso do fotojornalismo, apesar do artista insistir na ideia contrária. O paradoxo fotografia/cinema, imagem/fato, cultura/natureza era traduzido superficialmente em uma dualidade que, no fundo, carregava uma rejeição a essa condição social dos personagens e dos lugares do Brasil. Em matéria assinada por Joaquim Ferreira dos Santos na Revista do Domingo, do Jornal do Brasil, intitulada Seria lindo se não fosse trágico, impõe-se a visão simplista e condescendente sobre o país colorido e triste, predestinado à cor exuberante e à infelicidade, tomando partido provavelmente dos tons dos releases e das 234

236 argumentações do artista. A matéria se baseia em depoimentos de Rio Branco que, naquele momento da entrevista, está na Rocinha fotografando para a Magnum, nesse terreno tão delicado e limítrofe que é a fotografia interessada em representar de algum modo as exclusões sociais. Em face da paisagem humana de um país carente e complexo, o repórter poetiza um lamento, ficcionaliza o que supõe ver na imagem: Algumas paredes são exuberantemente coloridas, o estampado que veste a prostituta tem uma alegria carnavalesca. A tinta, porém, está descascada, o rosto apagado (SANTOS, 1987) (Figura 58). Constantemente contrapondo situações belas e feias, e acreditando (ou compreendendo erroneamente o discurso do artista), o texto acaba revelando alguém que está predisposto a ver coisas que não estão, necessariamente, na imagem, para realçar um discurso clichê da pena e da resignação social, que funciona, às vezes, como uma surpreendente ficção, que vai bem além das montagens narrativas do artista. Se compararmos as palavras do autor da matéria com as imagens que ilustram seu texto, vamos observar que as coisas são não como o repórter diz. Figura 58: Imagem da exposição Doce Suor Amargo que ilustra a matéria da revista de domingo do Jornal do Brasil, novembro de As paredes das casas de Rio Branco não são exuberantemente coloridas. São esmaecidas e se aproximam de tons meio apagados e semelhantes que se misturam, como o verde e o azul, ou o amarelo e o rosa. Por que a cor do vestido é carnavalesca? Porque é estampado? O rosto da mulher não está apagado, está baixo, com o olhar baixo numa posição casual, assim como todos os outros personagens da fotografia. O instante do cotidiano, cuja ausência de pose marca a sutil dinâmica da 235

237 cena, e todos os elementos que criam uma disposição ocasional dos fotografados não são percebidos no texto. Em dado momento da matéria, um caso mais explícito de visão prévia do que está de fato na fotografia: ao relatar duas imagens, a do menino Amaú (Figura 60), da tribo do Pará, e a da cicatriz de uma mulher do Maciel (Figura 59), surge uma ideia preconcebida para o índio e outra para a prostituta sob o sentimento de repulsa. É uma visão do que está condicionado e não a percepção do que está potencialmente na imagem: O menino índio, por exemplo, absolutamente desaculturado, raquítico e de calção poído brinca contra uma esplendorosa parede cor-de-rosa. O close da blusa de uma prostituta do Pelourinho tem um broche (...), parece foto de moda até que na altura do ombro surge horroroso o corte de uma cicatriz purulenta. Um pouquinho de doce, outro pouquinho de amargo (SANTOS, 1987). A fotografia da moça do Maciel é bem conhecida desta pesquisa. Esteve na exposição Nada Levarei... em 1980, apareceu no filme de mesmo nome um ano depois e consta no livro do México. Trata-se de uma imagem serena em meio à série de outros retratos mais incisivos no cotidiano do bairro. Tem enquadramento simples, embora corte o rosto da personagem; possui luz suave e certa elegância na postura da mão apoiada no queixo. De fato, a imagem mostra claramente uma cicatriz no ombro, mas se trata de um corte cicatrizado há muito tempo. Não é ferida aberta com pus, não é horrorosa e, definitivamente, não é purulenta. É uma marca na pele que guarda uma história pessoal. Figura 59: Imagem da exposição e do livro Doce Suor Amargo mencionada na matéria da Revista de Domingo do Jornal do Brasil, novembro de

238 Figura 60: Fotografia da série Diálogos com Amaú - Imagem da exposição Doce Suor Amargo que ilustra a chamada a matéria da Revista de Domingo do Jornal do Brasil, novembro de A história está sugerida, se associada a outras imagens do conjunto, provavelmente a um episódio violento, mas o que vemos na imagem é antes o gesto refinado, a pele bonita sob a luz da tarde, a identidade oculta, mas a pose altiva de uma moça do Maciel. Trata-se de uma imagem de beleza. Quanto ao menino Amaú, o texto insiste em sua aculturação e o calção poído que veste, e seu corpo raquítico em contraste com o rosa da parede. Como já vimos, a imagem à qual o autor se refere faz parte, na verdade, de um grande conjunto de imagens que constituem a instalação Diálogos com Amaú. Rio Branco refere-se ao contato que teve com o menino como uma experiência extremamente rica. Mesmo sem falar, Amaú foi seu guia no período em que esteve na tribo Gorotire; expressava-se, 237

239 brincava e fazia gestos para poder se comunicar com o artista, que ficou impressionado com seu comportamento. E dessa relação gestual e fotográfica nasceu um dos trabalhos mais importantes que Rio Branco realizou. Portanto, a visão de índio desaculturado e raquítico não se ajusta muito à ideia da cultura indígena que preservava seus hábitos originais. E muito menos com o jogo de projeções das sequências do menino em contraposição às imagens de uma civilização urbana decaída e violenta. Rio Branco inclusive enfatizou em depoimento que, apesar das relações com a civilização, a tribo Gorotire mantinha suas crenças e rituais. Talvez o fato de ter sido exibida uma única imagem de Amaú, isolada do conjunto da série fotográfica (Figura 61) e/ou da ideia da instalação com projetores e sons (Figura 49), pudesse ter conduzido a um tipo de recepção voltada para a ideia codificada de aculturação, já que o menino está vestido com roupas velhas do homem branco. No entanto, percebe-se que o texto da matéria é acomodado em uma visão simbólica do fato, ignorando as construções e montagens no contexto do trabalho do artista. Figura 61: Série fotográfica Diálogos com Amaú da qual foi extraída uma imagem que ilustrou a matéria da Revista de Domingo do Jornal do Brasil, novembro de

240 Em contrapartida à leitura mais resignada, apoiada numa visão jornalística, há comentários críticos no período que enriquecem o debate sobre o trabalho de Rio Branco como linguagem. A resenha de Reynaldo Roels Jr. para o mesmo Jornal do Brasil propõe exatamente o contrário do olhar submisso do texto anterior. A fotografia, principalmente, tem sido um veículo bastante eficaz em seu comprometimento com a descoberta de valores marginalizados pela dignidade pequeno-burguesa. Seria longa a história dos fotógrafos que enfrentaram o preconceito e desenterraram imagens desprovidas do orgulho civilizado do cidadão bem-posto, e revelaram uma pulsação vital exatamente nos lugares em que ela é negada. As situações escolhidas por Miguel Rio Branco em sua exposição na Galeria da Funarte quase todas pertencem a esta espécie (ROELS JR., 1987). Com uma visão mais complexa da realidade social e da própria realidade das imagens, Roels Jr. apoiou-se no discurso que as séries fotográficas de Rio Branco podem provocar, tendo em vista não só a recepção como também o tipo de olhar do artista sobre a realidade, especialmente a construção do olhar, o sentido alcançado por sua percepção na montagem de suas narrativas. Há um enfoque atento, de um lado, em uma fenomenologia da experiência fotográfica e, de outro, na articulação da linguagem sobre a imparcialidade da câmera, quando diz que a objetividade da lente é enganosa para o olho. E este mesmo olho que acredita na imparcialidade da câmera vai ser traído pela relatividade das imagens que irá produzir. Alguns, como Miguel, exploram conscientemente a possibilidade de criar significados não existentes, ou existentes de maneira apenas potencial, na chapa. Os lugares miseráveis, bordéis e tendinhas à beira da estrada, as habitações semi-arruinadas ocupadas por prostitutas ou marginais, e até mesmo por animais mortos e em decomposição são em suas fotos apenas o início dos trabalhos (ROELS JR., 1987, p. 2). Roels Jr. sabe que o trabalho começa nas associações, nas junções ou confrontos em que os significados outrora estabelecidos se deslocam, ou simplesmente no ato de dar a ver o que a fotografia tem a mostrar por si só. O crítico percebe que nem sempre o sentido está unicamente no conjunto e que pode estar em um acontecimento múltiplo em uma única imagem. As aproximações entre as imagens, menciona ele, são de naturezas diversas e que o efeito de seus paralelismos (formais ou temáticos) não é 239

241 apenas o de soma, mas o de multiplicação dos significados apreendidos pelo olho. E completa: [Os significados] não são um documento sobre os temas que o fotógrafo aborda, são um comentário sobre a relatividade da visão que jogamos sobre as coisas (e não as coisas sobre nós) (ROELS JR., 1987, p. 2). Esse tipo de análise, centrada no sentido das imagens e na construção com vistas a uma investigação sobre o potencial do objeto, chega bem mais próximo do universo do artista e de toda uma instabilidade com aquela que Rio Branco lida constantemente em sua fotografia. Como lidar ou intuir a forma e o sentido de um objeto mais banal que possa parecer e que surge em seu caminho. Como habitar os lugares e os objetos, como indica Merleau Ponty em sua Fenomenologia da Percepção, e como se reconstrói o sentido da linguagem das coisas e lugares quando, de fato, a realidade não está bem posta ou devidamente codificada. A análise de Roels Jr. é mais atenta porque busca o discurso das imagens, e não necessariamente se apoia no discurso pronto que, muitas vezes, está na fala institucional que acaba por envolver o discurso do artista. Por outro lado, a resenha de Roels Jr. se aproxima bastante do desejo do artista em se libertar do tema, coisa que irá se intensificar cada vez mais nos anos seguintes e que terá no livro Nakta o primeiro porto seguro de uma mudança sobre o objeto e o signo em sua fotografia. 3.2 NAKTA, O RETORNO À DESORDEM O segundo livro realizado por Miguel Rio Branco, Nakta, possui uma importância determinante em seu percurso e irá marcar definitivamente um tipo de ruptura com o objeto fotografado e sua consequente junção a outros objetos e imagens. Atitude que radicaliza sua recusa em encaixar-se em um procedimento ensaístico ou documental sobre o fato ou o acontecimento. O ato de recusa não exclui um modo de olhar no objeto sua força simbólica, suas contingências, sua dimensão cultural. Tomarei como referência os aspectos introdutórios sobre Nakta, apresentados no Capítulo 1, e o modo de operação que Rio Branco lançou mão para reorganizar visualmente o mundo da comunidade do Maciel no contexto de representação de um 240

242 Brasil-Salvador em Dulce Sudor Amargo. Desse modo, poderei avançar na análise do seu segundo livro, partindo da ideia de que, embora não se configure como uma obra impressa completamente autônoma, Nakta traz mudanças significativas no modo de perceber, narrar, montar e significar o mundo. Trata-se de uma primeira afirmação mais concreta de sua escolha poética sobre o objeto, o fato, o assunto real. Com Nakta, Rio Branco avança naquilo que imaginou avançar com Dulce Sudor Amargo: um desgarramento do tema, da ilustração, e um movimento rumo à abstração no sentido temático e narrativo. Haviam se passado 11 anos desde Dulce Sudor... Nesse intervalo, se pudermos definir um elemento que foi ganhando corpo no trabalho de Rio Branco, foi a escolha por um ponto de junção contraditório, paradoxal, conflitivo, instável entre a condição humana e a força carnal do bicho, do animal. Adensam-se no universo do artista questões como o instinto, a vida em perigo, a existência violenta, a morte e vida entrelaçando-se continuamente e um olhar (insistente e obsessivo) sobre a finitude das coisas e dos objetos. Fui convidado para fazer algo com fotos minhas sobre animais para a Bienal de Rotterdam, e fiz a instalação Pequenas reflexões sobre uma certa bestialidade. As instalações tinham uma relação muito próxima ao cinema, e foi daí que nasceu o trabalho que deu origem ao livro Nakta (RIO BRANCO, 2013). As fotografias de animais já estavam presentes desde os anos 1970, exibidas especialmente em 1978, dentro do conjunto apresentado em Negativo Sujo. Eram imagens desprovidas de qualquer apelo estético e justapostas a outras de pessoas e cenas do interior. Na medida em que o artista acumulava imagens das paisagens sociais que habitava, seja nos garimpos, tribos indígenas, seja nas vilas interioranas, ia juntando e enredando, em seu ofício documental, os animais vivos e mortos, abandonados nas cidades ou abatidos em matadouros (Figura 62). Da mesma forma, os personagens humanos que também habitavam e davam sentido e vida aos bordéis, zonas de extração de ouro e pedras preciosas, aos mercados e às feiras das pequenas vilas nordestinas. 241

243 Figura 62: Fotografias da exposição Negativo Sujo, Remontagem da exposição na Estação Pinacoteca de São Paulo, Reprodução Mariano Klautau Filho. Após a fase do livro Dulce Sudor Amargo, as imagens fragmentadas de animais, carcaças, peles e coisas em decomposição pareceram ganhar uma presença constante em seu trabalho. Importante relembrar que o lançamento de Dulce Sudor... ocorreu no Brasil somente em 1987, momento em que apresentou a exposição que, embora homônima, do livro, foi diferente no conjunto de imagens apresentadas. Essa diferença abarcou imagens realizadas em diferentes partes do Brasil, saindo de Salvador e do estado da Bahia. Incluiu tanto as imagens dos garotos jogando capoeira em Salvador quanto as de Amaú, o menino índio da tribo Gorotire, com o qual Rio Branco produziu a instalação para a Bienal de Na exposição havia também fotos de bichos: um tatu embaixo de uma mesa, uma carcaça de jegue, uma carne à venda em açougue de Copacabana. Segundo o artista, havia fotografias realizadas também em Olinda, Ceilândia e Tocantins (AS IMAGENS revelam..., 1987). As fotos foram produzidas em períodos distintos e, ao agruparem-se, desfizeram a ideia de lugar factual e período histórico que caracterizavam a série do livro. A presença das imagens de bicho e a constante fragmentação do assunto vão imprimindo em seu trabalho um tipo de esfacelamento temático em que o signo da passagem do tempo está na morte e na mutação dos seres. Será este outro elemento, em paralelo à junção mais inusitada entre as imagens, que se deslocará para o primeiro plano em seu trabalho. Esse tipo de configuração abstrata do objeto o levará cada vez mais para as experiências com projeção e instalação. Na passagem para os anos 1990, 242

244 essas experiências ganham mais corpo e são mostradas em um circuito internacional: Biennal de Roterdam, na Holanda, em 1990; Rencontres International de Arles, na França, em 1991; e Bienal de Habana, em 1994, entre outras. A instalação Pequenas Reflexões sobre uma Certa Bestialidade, da qual partiu o conjunto de imagens do livro em 1996, foi mostrada em Arles e Rotterdam, e Out of Nowhere teve sua estreia em Havana. Para compreender a concepção do livro Nakta, é importante considerar o contexto em que foram apresentadas essas instalações. O lugar ocupado pelo livro no conjunto da obra do artista, apesar de sua autonomia como trabalho, está constantemente contaminado pelas produções em espaços expositivos que o antecedem, tornando o meio livro um catalizador das experimentações anteriores, ao mesmo tempo em que o transforma também em um dispositivo de mudanças futuras. Essa característica tem sido observada ao longo da pesquisa a tal ponto que se revelou impossível estudar seus livros sem fazer as conexões necessárias com o contexto das obras expositivas. Essa constatação se limita ao recorte escolhido pela pesquisa, em torno dos livros de 1985 (Dulce Sudor...), 1996 (Nakta) e 1998 (Silent Book), períodos em que se notam mudanças importantes no amadurecimento de uma trajetória. Os três livros, incluindo o filme analisado, marcam a convergência entre o procedimento documental e o desejo por uma fotografia que escape da superfície do fato. Em Nakta, esta convergência é construída por imagens que se associam deliberadamente, parecendo sempre divergentes do ponto de vista da lógica do ensaio documental. Essas junções aparecem no livro de forma mais inusitada. O projeto do primeiro livro brasileiro de Rio Branco se concretizou em Curitiba (Figura 63). Convidado a apresentar uma exposição inédita para a I Bienal de Fotografia Cidade de Curitiba, o artista reuniu, na Casa Vermelha, as instalações Porta da Escuridão, Out of Nowhere e Pequenas Reflexões sobre uma Certa Bestialidade. Esta última incorporava à projeção três grandes imagens uma série de 26 fotografias montadas bidimensionalmente e constituintes do livro intitulado Nakta, a ser produzido e lançado naquele momento. A exposição, que funcionava na programação da bienal como uma grande individual, promovia o que Rio Branco vinha mostrando mais constantemente desde o início dos anos 1990: uma fragmentação radical dos objetos e assuntos e o uso de projeções, suportes e materiais que não eram do campo estrito da fotografia. 243

245 Em meio à vertigem acelerada das imagens projetadas, movimento iniciado no princípio daquela década, as 26 fotografias que acompanhavam a instalação Pequenas Reflexões... saíram do conjunto maior de 45 imagens que compunham o livro Nakta. E na relação entre instalação e livro, diversos aspectos ganham uma densidade muito específica. Nakta será a fixação mais precisa no suporte linear e narrativo do livro de um mundo desordenado e em pedaços, mórbido e, ao mesmo tempo, vivo e pulsante. Consolida-se naquele momento a atmosfera escura e sanguínea por meio de sua ênfase pelos tons vermelhos e pretos. É a partir desse período que Rio Branco começa a ser identificado como um artista cujas imagens sombrias não mostram nada de objetivo, mas causam sensações fortes e concretas. O livro será o suporte ideal para a retenção das imagens fugidias e das associações entre elas experimentadas nas instalações projetadas. Figura 63: Capa e folha de rosto do livro Nakta, Reprodução Mariano Klautau Filho. Do ponto de vista editorial, a publicação se apresenta dentro do modelo institucional de um catálogo patrocinado pela Fundação Cultural de Curitiba, que promove e organiza a I Bienal de Fotografia. Os protocolos comuns de uma publicação dessa natureza estão todos ali. Primeiramente, o mais importante (e impositivo): o texto assinado pelo representante maior do poder público, no caso, o prefeito da cidade. O texto, nesses casos, é geralmente artificioso ou pretensamente poético e, na maioria das vezes, equivocado e/ou generalista demais a ponto de caber a qualquer artista. Obviamente, seria o tipo de texto que não valeria uma menção no corpo dessa pesquisa. No entanto, a insistência institucional em proclamar uma arte nacionalista, típica em sua paisagem tropical a despeito da série de imagens contidas no livro e ignorando 244

246 completamente o teor do discurso do artista que se seguirá em todo o volume, vale a citação completa. Das grotas da floresta, das sombras do arvoredo intangível, além das cortinas de palha e bambu, gotejando de umidade tropical, eis aqui a obra de Miguel Rio Branco. A seiva, o sangue, o suor, são a matéria prima desta exposição invulgar. Nossa cidade tem grande alegria em realizar a Bienal de Fotografia, constelação de mais de 30 exposições, onde a mostra de Miguel Rio Branco é estrela de primeira grandeza (PREFEITURA MUNICIPAL DE CURITIBA, 1996). Em segundo lugar, na ordem dos textos que antecedem o trabalho visual, está o de Orlando Azevedo, fotógrafo, então diretor de Artes Visuais da Fundação Cultural de Curitiba e curador da bienal. Entusiasta do trabalho de Rio Branco, é mérito inegável seu produzir o livro do artista e dar-lhe uma autonomia significativa dentro de um padrão convencional de publicação fotográfica. Mas nem por isso deixou de cometer seu texto institucional, logo após o texto do prefeito. Dada a extensão e a volúpia poética com que imprimiu sua devoção ao trabalho, menciono somente um trecho: (...) Carne crua despida de qualquer transpiração de desejo na incisão refinada do corte definido e decomposto. A poética de suas imagens densas e misteriosas, além da contemplação, detém a ritualística da religiosidade pagã. Santos e satã (...) (PREFEITURA MUNICIPAL DE CURITIBA, 1996). Os textos formam um abre-alas do livro sobre o qual poderíamos afirmar que não acrescenta nada em favor da compreensão do trabalho de Rio Branco. Por outro lado, essa dupla de textos nos indica a dificuldade de leitura do trabalho artístico por parte das instituições que o promovem. Diante do problema, a instituição tenta contornar o objeto artístico por vias simplistas que se apresentam em dois registros. Os textos acrescentam ao teor artístico do livro uma sombra impositiva do desejo de uma arte tipicamente nacional, cujas referências persistem na paisagem idílica, rústica e suave que está explícita no discurso do prefeito. Por que insistir em imagens como cortinas de palha e de bambu, gotejando de umidade tropical para interpretar um trabalho que fala de um mundo (e de um Brasil, se quisermos que seja assim) tomado pelo desconforto, caos e pelo sentido de estilhaçamento? 245

247 O texto de Orlando Azevedo segue outro caminho. Absorve a tensão do trabalho de Rio Branco, mas cai no erro de emular, em palavras poéticas, a atmosfera das imagens, ao invés de apresentar o trabalho, pontuar (e seria o mais importante, dado o contexto em que Rio Branco publica pela primeira vez no Brasil) sua importância como livro-obra em seu ineditismo. Esse erro é bastante comum em diversas análises, pesquisas, curadorias de arte, mas se torna inaceitável diante não só do rigor e da qualidade do livro como trabalho artístico, mas também com relação aos aspectos editoriais observados no trabalho. Todos os textos formais referentes à publicação, como ficha técnica, legendas, dados técnicos de impressão, registros de catalogação, etc. são organizados no fim do livro. Inclusive o texto depoimento do próprio artista sobre a origem do trabalho, importante, aliás. Diante da organização editorial cuidadosa, os textos do prefeito e do curador são desnecessários e obedecem apenas ao protocolo. Como já mencionado no Capítulo 1, Nakta abre com uma única imagem: o torso de um homem negro (Figuras 64 e 4 ). Originalmente em preto e branco, 106 a imagem possui no livro um tom sépia, uma cor dourada monocromática e luminosa que ressalta o aspecto úmido da pele. No pescoço, um cordão de fio preto cujo pingente parece ser a garra de uma pequena ave. O elemento erótico, carnal no trabalho de Rio Branco, não está somente no corpo feminino. Apresenta-se diversas vezes sob o corpo do homem, embora esse aspecto quase nunca seja identificado claramente. Aqui, no início de Nakta, o belo torso que encarna uma pulsão desejável é o de um homem: ali estão expostos, em close e no corte preciso, o coração, o peito e o amuleto. O título do poema, Noite Fechada, e a definição da palavra Nakta 107 estão na página ao lado. Ao aliar-se à imagem, aludem à ideia de corpo fechado, resistente às intempéries do sofrimento e das armadilhas; significado espiritual que percorre parte do fio condutor da narrativa do livro. 106 A imagem é mostrada em cópia P&B sem moldura, pregada sobre pano preto na instalação Out of Nowhere. Registros da imagem podem ser vistos nos catálogos das exposições Miguel Rio Branco, entre els ulls, realizada em Barcelona na Fundación Caixa, em 1999, e Miguel Rio Branco, Out of Nowhere, no MAM do Rio de Janeiro, em Registrei a imagem recentemente na exposição Teoria da Cor, apresentada na Pinacoteca de São Paulo, em Nakta, noite em sânscrito, deriva da raiz naç e significa noite, como elemento de destruição e infortúnio. Informação que consta na página de abertura da narrativa do livro. Cf. RIO BRANCO,

248 Figura 64: Primeira página da narrativa de Nakta Título do poema e imagem fotográfica que antecede o poema. Reprodução Mariano Klautau Filho. À imagem do torso, segue-se o poema de Louis Calaferte, que ocupa as primeiras 23 páginas do livro. A presença do poema é contundente no espaço gráfico de Nakta. Espalha-se generosamente na página. Organiza-se em intervalos grandes de espaços vazios. Sua ordenação precisa contrasta com uma infinita perda de racionalidade e o sentido de vertigem descrito em seus versos sem rima. Ao caminhar pelo poema, temos a impressão de estar em uma espécie de ritual profano, em que o corpo é o centro catalizador do limite do aqui e o agora da experiência. Línguas que abocanham Presas-tentáculos Ventre vazio Noite descerebrada 108 Em outras passagens do poema, é constante o estado de vulnerabilidade do corpo do qual podemos estar muito próximos, em contato com o calor da pele, como também de sua fragilidade e pequenez diante de paisagens vastas, noturnas e mergulhadas em escuridão absoluta. 108 Trecho do poema Louis Calaferte, que ocupa uma página inteira sem numeração. A apresentação deste trecho segue a mesma espacialidade gráfica do livro. 247

249 Sem salvamento a onda lodosa submerge Sou cadáver nu Entregue à serra das mandíbulas Noite oceano opaco (CALAFERTE, 1996). O poema é longo, labiríntico, excessivo em suas imagens, muitas vezes retorcido em suas metáforas, dobrado sobre si mesmo, espesso e variável em suas significações. No entanto, estrutura-se com precisão em sua arquitetura gráfica e, separado do corpo das imagens, torna-se um bloco coeso capaz de dialogar, tangencialmente, com as fotografias, sem nunca perturbá-las erroneamente. A recíproca funciona do mesmo modo quanto ao conjunto narrativo das imagens fotográficas. O poema talvez seja um modo mais exato de compreender o arcabouço fragmentado das imagens sem cair na vertigem, às vezes vazia, dos excessos das instalações. Nesse sentido, o livro é o exemplo de uma desordenação simbólica em sua feição mais coesa, mas que outrora fora exaustivamente desfiada pelas montagens mirabolantes das projeções. Podemos ler o livro das imagens sem nunca nos deter sobre as palavras e metáforas do poema. Mas podemos encontrar na abstração do poema certos aspectos importantes para compreender a dimensão material da experiência sensória contida na superfície da imagem fotográfica que registra a coisa: objeto, cena ou assunto. Um aspecto que parece conferir concretude à sensação que evocam as imagens, e que costura a cadeia narrativa como um todo, seria a plasticidade das metáforas. Elas conferem à matéria dos objetos uma intensa umidade, viscosidade, nódoa. Muitas são as passagens do poema, cujas expressões indiciam esse estado de ser dos corpos. Tudo está manchado de sangue/cadáver de sêmen/a onda lodosa submerge/a face pegajosa da angústia ela é fêmea e lisa ela escorre punho nodoso/noite mão úmida... (CALAFERTE, 1996). A animalidade nas imagens fotográficas de Nakta carrega o mesmo estado viscoso, observado nas imagens construídas pelo poema. O corpo é aquele que está quase sempre tomado pela umidade, ou porque transpira, sangra ou putrefaz. Algumas conexões entre as fotografias reforçam essa sensação. As imagens 14, 15 e 16 operam 248

250 em um desses sentidos. Destituídas de seu significado factual, atam-se na ideia de sacrifício e morte. Figura 65: Nakta - Livro aberto com intervalo de página em branco e com a imagem 16. Reprodução Mariano Klautau Filho. Figura 66: Parte sequëncial do livro Nakta imagens 14, 15 e 16. Todas as imagens no corpo do livro são separadas por intervalos de páginas em branco. A linearidade gráfica com que é construída a sequência de fotografias de Nakta é um dispositivo a favor das junções inusitadas, não factuais, plásticas e simbólicas tramadas ao longo do livro. Todas obedecem rigorosamente ao mesmo espaço e tamanho dentro da página; encontram-se sempre isoladas em uma parada do olhar sobre o livro aberto; portanto, tornam-se inusitadas muitas vezes pelo que não mostram claramente, mas sugerem, e também pelo que mostram claramente, mas não explicam além do mero registro (Figura 65). 249

251 A sequência acima mencionada nos ajuda a compreender esse processo sígnico dentro do trabalho (Figura 66). Na imagem 14, podemos ver (embora não saibamos ao certo em que posição está) uma cabeça de boi em primeiro plano. O grande close nos impede o domínio da visão total, mas nos aproxima da realidade descrita pela imagem: a cabeça está desencapada. Em segundo plano, as costas de uma moça com um vestido vermelho. Ela parece estar passando naquele lugar, que não identificamos com exatidão, em razão do enquadramento fechado do campo da imagem. Surge a ideia de que estamos em um mercado de carnes, uma feira no seu dia-a-dia, porém não é esta a ideia que permanece. Não é a ideia do cotidiano que resta na percepção, e sim a presença impositiva de um animal descarnado e exposto. A imagem seguinte (15) confirma o confronto com a coisa em si: um animal abatido, no chão, cujo couro está sendo quase inteiramente removido do seu corpo. No entanto, a imagem está ali não para confirmar que estamos em um mercado, pois não há uma ligação referencial objetiva (e nem se deseja que haja) entre os dois lugares. Antes continuamos a imaginar que se trata de uma feira, se precisarmos acessar o referente. Já na imagem seguinte, temos a certeza de que estamos em um matadouro. O enquadramento e o plano mais abertos nos dão indícios concretos. Porém, o que fica mais concreto na verdade é a sensação de estarmos próximos fisicamente dessa matéria descarnada, que é o animal posto outrora em sofrimento. A evocação de uma experiência material está impregnada na imaterialidade de uma imagem construída de modo descritivo pela natureza descritiva do signo fotográfico. Esse efeito, de uma experiência sensacional, intensifica-se na medida em que cada imagem é articulada a outra, cujo apelo descritivo mas fragmentado segue alterando a fruição no limite do registro e da identificação, da ideia potencial e da capacidade que o encadeamento tem de provocar uma dada experiência de compartilhamento com o fato vivido, o resquício indicial do objeto, cena ou assunto. Essa alteração para mais ou para menos na aproximação factual do assunto pode ser exemplificada na terceira imagem, dentro da tríade aqui analisada. Uma imagem que salta completamente da relação referencial com as anteriores. Não estamos numa feira, muito menos num matadouro. Estamos em um lugar mais espaçoso, aberto, mas novamente não identificável. A figura no centro da imagem é visível e possível de ser reconhecida. A pintura em grande proporção sobre um painel é nitidamente a figura de uma pele de cobra solta em fundo vermelho. Sinuosa, brilhante nos detalhes e desenhos, 250

252 a bela imagem pictórica da cobra representa uma casca sem vida. A sofisticação da pintura nos dá a impressão de que a figura se descola do fundo ou está imersa numa espécie de líquido, aquário vermelho. A impressão de tridimensionalidade que o objeto evoca parece tão verossímil quanto à materialidade descritiva das carnes expostas das imagens anteriores. O entrecruzamento entre as situações distintas contidas nas imagens cria uma trama (aquela que muitos dizem possuir tensão) em que o signo simbólico é desfibrado, mas absorvido em uma significação ainda instável: a feira desaparece, o matadouro desaparece como paisagem cultural, portanto, signo simbólico, e resta somente a fisicalidade da carne exposta. E quando a pintura surge em seguida, parece reforçar, de um lado, a ideia de imagem como elemento artificial de representação e, por outro, amplia, pela via do artifício da montagem, o sentido de matéria carnal de bicho. Figura 67: Parte sequëncial do livro Nakta imagens 23, 24 e 25. Todas as imagens no corpo do livro são separadas por intervalos de páginas em branco. Outro elemento que vemos enredado à ideia de animalidade é sua relação estreita com a presença humana. As imagens anteriormente mencionadas indicavam a presença humana de modo implícito: a cabeça de boi no mercado, o animal no chão do matadouro. Embora não visível na imagem, a ação do homem estava ali. Em outro trecho do livro, formado pelas imagens 23, 24 e 25, a presença humana está evidente: primeiramente, na exposição das facas à venda em um empório. Em seguida, na imagem 24, vemos, de um ponto de vista ligeiramente mais abaixo, uma movimentação frenética de formas a velocidade baixa da câmera, estendendo o tempo de captação da cena, provoca o efeito borrado de figuras disformes (Figura 67). Novamente estamos dentro de um matadouro onde tudo se move e se mistura. Em plena ação, identificamos animais sendo mortos, o movimento de gente e de cães em volta dos bichos abatidos e facas espalhadas no chão. Essa imagem opera o mesmo deslocamento que a terceira da outra sequência mencionada; vai para outro lugar, 251

253 distancia-se das anteriores enquanto assunto factual, mas sintetiza a ideia de natureza comum entre homem e bicho. O buraco onde vemos vários homens enfiados como bichos cavando a terra é uma imagem direta (Figura 67). Poderíamos chamá-la de documental em sua objetividade descritiva: um pequeno aglomerado de garimpeiros captados pela visão aérea. A tonalidade terrosa da imagem, o marrom lamacento justaposto ao vermelho-sangue das imagens anteriores assume não somente uma forma plástica, mas incorpora a ideia de que não há mais fronteira entre a condição humana e a sobrevivência mais bruta, característica associada mais naturalmente ao bicho. A linearidade gráfica do livro uma imagem de cada vez intercalada continuamente pela página em branco ao lado ajuda-nos a isolar as imagens, separálas num momento necessário de observação. No entanto, também nos leva, em seguida, a uni-las, sequenciá-las na cadência contínua do tempo narrativo. Em Nakta, temos uma acentuada fragmentação de assuntos e imagens díspares, que se desgarram da linha lógica do factual. Mas, em contraposição, temos os intervalos que provocam a pausa no fluxo de leitura e a atenção mais detida para a ressignificação do sentido que cada imagem passa a assumir no conjunto. Esse tipo de fruição, muito das instalações não conseguem alcançar. Misturam-se as imagens numa espiral desenfreada na qual se perde o sentido de tudo. Muitas vezes esvaziam-se no jogo formal. Nessa perspectiva, é interessante perceber o deslocamento de fotografias que estavam em trabalhos anteriores e que são modificadas em novas associações. Figura 68: Parte sequëncial do livro Nakta imagens 33, 34 e 35. Todas as imagens no corpo do livro são separadas por intervalos de páginas em branco. A fotografia das costas de um galo, cujas feridas à mostra indicam ser um galo de briga, foi captada no Pelourinho (Figura 68). Inicialmente foi inserida na exposição Nada levarei..., cujo tom direto e frontal acentuava-se nas sequências mais pungentes da mostra de No filme, o galo era associado às passagens que aludiam à luta, ao 252

254 jogo, ao movimento. No livro mexicano de 1985, Dulce Sudor..., a imagem ocupa um trecho inicial da narrativa, aquele que serve de aproximação e contextualização do bairro, em uma cadência em que as imagens são mais leves e espaciais, alternadas entre campos abertos das feiras e praias, e retratos casuais em que os personagens exibem sorrisos ou posturas mais relaxadas. Portanto, a imagem do galo ferido é mais nuançada pelo conjunto nesse último caso. Em Nakta, a fotografia do galo retorna em seu caráter mais doloroso, no qual o sangue é percebido entre as penas do bicho com mais ênfase pela associação direta com duas outras imagens: a que a antecede e a que surge posteriormente. Em ambas, a alusão ao bicho morto como elemento de ritual e sobrevivência do homem está explicita. E o sentido de luta e embate entre homem e bicho ganha um sentido simbólico para além do factual (Figura 68). São situações fotografadas na aldeia Gorotire, dos índios Kaiapó, no Pará, em 1983/1984, período em que Rio Branco esteve em uma segunda viagem, na oportunidade, a serviço da National Geographic. A imagem que antecede à do galo mostra, em primeiro plano, os adereços feitos com pena de pássaros no braço de um índio, com um cão em segundo plano uma imagem descritiva, mas não factual. A outra que se segue após o galo mostra mãos manipulando um jabuti morto sobre folhas de bananeiras, numa tomada vista de cima. Há forte contraste entre três tons: o vermelho do sangue do bicho, o verde das folhas e o alaranjado da terra. Possivelmente, essa imagem foi captada no momento relatado por Rio Branco como mágico sobre a chegada dos índios após uma caçada de jabutis. Provavelmente, o fotógrafo registrou o momento de diversas maneiras, documentando o episódio de modo que servisse à função ilustrativa dos fatos para as páginas da revista. Dez anos depois, fragmentos desses instantes são reorganizados em uma sequência do livro Nakta destituídos de sua origem referencial, mas não completamente despossuídos de sua força simbólica. As penas como adereços e o jabuti destroçado manualmente na tribo Gorotire encontram a imagem do galo de briga do Pelourinho. Ali no livro, não é mais a história da tribo no Pará, nem a do galo nas rinhas de Salvador que contam. É o sentido de tensão entre homem e bicho traduzido pela ferida e pelo sangue. É a relação que se estabelece entre a força indicial e outra conotação simbólica reinventadas na junção dos elementos descritos: penas, braço de índio, cão, galo ferido, jabuti ensaguentado. 253

255 É no limiar entre o fato descrito como história e o objeto descrito como ideia que a poética de Rio Branco subverte o protocolo documental. Nesse sentido, ele tem razão quando afirma seu trabalho distante da formação documental porque... o documental pressupõe que tem uma história por trás.. (RIO BRANCO, 2014). É por meio desses procedimentos de mudança no uso do signo fotográfico que Nakta flagra um período importante do desenvolvimento da obra de Miguel Rio Branco. Importante porque marca o abandono da noção de tema na fotografia e a adesão à montagem de imagens, cujos objetos estão isolados como partes de um discurso a ser construído na experiência fenomenológica do fato e que, em seguida, serão recolocados em sua dimensão descritiva num outro tipo de ordem simbólica. A tensão e o drama do novo discurso surgem daí. Ao atuar como curadora da exposição Out of Nowhere, no MAM do Rio de Janeiro, em 1996, Lígia Canongia faz uma síntese pertinente sobre o lugar do tema na obra de Rio Branco. A exposição se constituía por três instalações: Out of Nowhere, Diálogos com Amaú e Porta da Escuridão. Naquele momento, o artista já se distanciara do sentido das imagens apoiado no tema. Canongia explica que a temática em seu trabalho... apenas sobrevive na medida em que é deslocada de seu eixo de significação primeira, real, para uma outra, ficcional. O tema, diz Canongia, é residual, quase dissolvido, descaracterizado porque se transfere do fato à imagem, da realidade à ficção (CANONGIA, 1996). Portanto, tal transferência é analisada como um movimento em que a ressignificação é possível porque o tema seria flutuante, porque as imagens produzidas que deslocam seus referentes irão funcionar como experiência de constante limite: As próprias imagens registram estados fronteiriços: entre o real e o irreal, o físico e o metafísico, o sagrado e o profano, o corpo e o fragmento, o homem e a besta (CANONGIA, 1996). A análise de Canongia ressalta o interesse do artista em seu trabalho de abstração, em lidar com o tema fotográfico para além de sua condição inicial de fato ou episódio. Ou, como mencionei anteriormente, além de um lugar demarcado na cultura e na geografia de uma cidade, país ou continente. Para Canongia, o tema não pré-existe à obra, mas surge, no seu exato sentido, através dela. Daí observo a importância das junções de imagens, do caráter narrativo resultante das justaposições, do signo inusitado que surge das associações que 254

256 desobedecem às contingências factuais, do símbolo desconstruído e reconstruído da relação entre a ferida do galo do Pelourinho e o jabuti destripado da aldeia Gorotire. Entretanto, proponho uma relativa discordância com aspectos da análise de Canongia, quando insiste na ideia de deslocamento do trabalho de Rio Branco para a ficção. Ela parece subestimar a potência do signo indicial no processo de escrita dos encadeamentos inventados pelo artista. São dois os elementos que Canongia apazigua no trabalho do artista, mas que, a meu ver, também são instáveis e potencialmente ruidosos quanto à experiência fotográfica com a imagem da coisa, como documento do intangível. O tema é obscurecido, secundário, solúvel, e sua função é apenas indicial, já que as alterações produzidas pelas incisões dos cortes, da luz e da cor acabam por revelar um outro objeto, uma outra leitura, uma nova via de acesso àquela realidade (CANONGIA, 1996). Sair do campo factual não é, necessariamente, descartar a dimensão indicial e migrar absolutamente para o universo da ficção, que tudo pode. Na fotografia, essas migrações não são soluções: são problemas. Muitos trabalhos fazem esse percurso, outros nem tanto, e alguns promovem essa migração com um grau de incerteza e desconforto, que resulta em um tipo de centro nervoso conceitual. É o caso de Miguel Rio Branco. E insistirei aqui em tal desdobramento na análise por isso iniciei a questão sobre o signo simbólico e signo indicial no Capítulo 1 porque não compartilho da ideia de que o tema em Rio Branco é apenas indicial. Ele é, sobretudo, indicial. Em fotografia, não existe construção simbólica sem o elemento residual, primeiro, bruto, que confere os mais diversos contornos da experiência. É por meio do residual que a imagem do jabuti, ainda que desgarrada do seu contexto, sobrevive simbolicamente. É no resíduo, portanto, índice, que acessamos, de algum modo, a experiência ritualística de uma tribo, a caça, o alimento, a animalidade. Canongia diz que o tema é quase dissolvido. É certo. É quase, mas não totalmente porque Rio Branco se nutre do indicial, do resíduo. O objeto, na imagem, pode transformar-se em outra coisa, mas carrega o resquício para tornar-se símbolo de outra ordem. É nesse sentido meu argumento de que não é mais a história como fato que vale: é a imagem do objeto isolado que contém 255

257 resíduos de sua história, insuficientes para retomá-la como um todo, mas potencialmente fundamentais para construir outra ideia. E, na medida em que essas ideias se associam a outras imagens e objetos isolados, elas formam um conjunto de ruínas, restos de significados que irão se constituir em outro todo, que são a sequência, a cadeia e a narrativa. Um tipo de realidade persiste como convite provocativo à fruição. E o trabalho de Rio Branco não se completaria sem esse jogo constante com o espectador. Por isso, creio ser demasiado apaziguador destituir a natureza potencial mais alargada do signo indicial e ancorar a complexidade (e a perplexidade) perceptiva do artista sobre a realidade no porto seguro da poética subjetiva ou da ficção. O objeto fotografado por Rio Branco é um resíduo de sua experiência, e isso não é pouco, pois carrega um resquício impregnado não só de uma subjetivação autocentrada parecendo um enigma, mas que se encontra diversas vezes perpassado por uma experiência social. Experiência que ele devolve ao fruidor sob o efeito de uma desorientação representada pela escuridão, por uma luz pesada e difusa ou cor intensa dentro de um plano fechado. Quando Canongia analisa o trabalho do artista do ponto de vista da cor e da luz não adota o aspecto ficcional como certo, como o faz em relação ao tema. Ela menciona a existência de uma verdade do artista, que estaria na verdade do objeto. Uma verdade latente acentuada pela luz e cor de inspiração barroca como veículos de impressão do olhar... que imprime o seu sentido, o que penso ser mais próximo do jogo perceptivo que o artista propõe. Ela pode ser grotesca, mística, macabra, sádica ou tênue e delicada, mas é uma verdade particular do objeto e particular do artista: um fato dialógico, que precisa de uma troca estrita entre o que é visto e quem vê. A mecânica da fotografia é alterada assim pela orientação dessa incidência colorística e luminosa. São elas cor e luz que fazem a foto transcender o caráter meramente factual e contingente das coisas, que revelam seus aspectos mais cruciais e verdadeiros, segundo a exigência e a pontualidade de um determinado ponto-de-vista (CANONGIA, 1996). No entanto, quando analisa as imagens de Rio Branco em relação ao tema, parece recusar essa verdade particular achada pelo artista em seu objeto particular : o tema não é a coisa, mas conceito; não se restringe a objetos, pessoas, cenas ou acontecimentos, a elementos físicos e concretos do real observado (CANONGIA, 256

258 1996). Ao contrário da afirmativa de Canongia, vejo que seria justamente nessa fricção entre coisa e conceito, entre fisicalidade e imaterialidade, que se encontra o embate sígnico da fotografia de Rio Branco. O tema não é a coisa, mas também o é. Não se restringe a objetos, mas depende deles em sua feição de ruína para atribuir-lhes outro sentido. As imagens dos objetos, pessoas e situações em sua objetividade descritiva são fundamentais para que o artista tire-as de seu contexto e as faça assumir, em determinada sequência, a carga dramática de uma cena ou acontecimento. Figura 69: Parte sequëncial do livro Nakta imagens 37, 38 e 39. Todas as imagens no corpo do livro são separadas por intervalos de páginas em branco. A sequência final do livro Nakta traz, de forma intensa, tal aspecto concreto das coisas, das pessoas, dos objetos e dos lugares. Eles são, em parte, enigmáticos porque, em parte, são reais. Em parte mostram diretamente as coisas, mas em parte escondem a ação factual. Eles se oferecem de maneira realista em seu aspecto físico e sensual, evocam o desejo tátil e a dimensão espacial (Figura 69). O pelo enlameado e úmido do bicho não identificado (imagem 37) possui uma verdade, uma realidade. Ele se conecta, de modo tão surpreendente quanto óbvio, à cortina de estampa de onça e leão (imagem 38), que, na fotografia, é o fundo luminoso que destaca as garrafas de bebida, mesmo que estejam na contraluz. Essa imagem por sua vez se conecta tal qual uma metáfora do limite velado à imagem da mulher em nu frontal (imagem 39) e completamente vulnerável sobre o chão. A cortina opera uma passagem sedutora entre o bicho e homem. O livro Nakta é um documento interessante sobre essa passagem e/ou afirmação da procura por uma perspectiva abstrata no desenvolvimento da poética do artista. Lembremos, mais uma vez, que Rio Branco desejava com Dulce Sudor... uma abordagem mais ampla sobre o tema, quando dizia que sua questão era a dor e o 257

259 prazer. Ele, de fato, começa a exercer tal abstração de modo mais enfático com Nakta (1994) O modelo editorial e a escrita do artista O modelo da publicação não se ajusta ao discurso do artista, e o tipo de abstração que Rio Branco imprime em Nakta é de natureza narrativa, não no sentido convencional, linear, mas definida pelo ruído entre experiência indicial e uma nova configuração simbólica pressentida nas imagens. Por um lado, a feição de catálogo parece limitar a contundência das associações. Por outro, como um modelo linear, no qual as fotografias se posicionam sempre no mesmo lugar determinado, intercaladas pelas páginas em branco em ritmo contínuo, a leitura acaba por enfatizar o isolamento residual de cada imagem em um dado momento e, em outro, suas relações, à medida que a cadeia ganha mobilidade na monotonia da sequência, por meio da percepção do leitor. Eu afirmaria que Nakta é um catálogo, mas funciona como um livro de artista. Encontra-se nele a fala bastante particular de Rio Branco imiscuída à estrutura formal constituída dos elementos funcionais, que caracterizam o que se chama de paratexto, nos estudos sobre livro de artista. Daisy Turrer (2012, p. 74) nos informa que A função desse aparato título e os subtítulos, prefácio, dedicatória, epígrafe, notas, ilustrações, nome do autor, e do editor, ensaios introdutórios é a de modular o texto, cuidar de sua recepção e de orientar sua leitura. O paratexto é um produto da imprensa e serve para pôr o livro em circulação pública, diz Turrer: Ao migrar do espaço privado para o espaço público, o livro tornase encorpado por uma série de informações relativas ás circunstâncias de sua fabricação, que o sustentam e o asseguram como objeto reproduzido e inserido no circuito comunicacional (2012, p. 74). O caráter normativo dos elementos que compõem o paratexto, a despeito de sua função técnica, instaura no livro um espaço para ambiguidades. Ele sofreu muitas 258

260 mudanças ao longo dos séculos, mas preserva tradições e procedimentos na estrutura de um livro, que tanto pode contribuir com a fruição da leitura quanto engessar conteúdos. No campo do livro de artista, o paratexto pode ser problematizado, reinventado, contornado ou simplesmente tolerado em diversos aspectos e elementos. No caso do livro fotográfico, existem aspectos formais naturalmente herdados da tradição do códex. Quando o livro fotográfico possui, em seu processo, uma autonomia como trabalho artístico, o paratexto pode variar de feição, entre a tradição e algumas mutações necessárias. Em Nakta, podemos perceber uma situação bem singular, se o analisamos como parte de um processo na trajetória de Rio Branco. Trata-se de um trabalho impresso que constitui importância no conjunto da obra de um artista do livro fotográfico. E que ocorre em um momento especial de sua carreira: é seu segundo livro; é o primeiro produzido no Brasil e é lançado quando o trabalho tridimensional de suas instalações começa a ganhar visibilidade. É seu primeiro trabalho de fragmentação mais incisiva com as imagens no suporte do livro e, curiosamente, é produzido por meio de um molde editorial: o catálogo. Em seu estudo, Turrer menciona a tradição do prefácio como uma das normas que sobreviveu aos vários séculos. Sendo um texto que antecede o texto propriamente dito do livro, torna-se um elemento que muitas vezes antecipa e perturba a fruição da escrita. Os questionamentos sobre o rigor do paratexto vêm da filosofia da escrita, que discute a hierarquia entre texto e extratexto ou seja, entre o texto principal, o conteúdo e o conjunto de todos os dispositivos que estão à margem desse conteúdo, mas que servem para estruturá-lo editorialmente. Um dos elementos trazidos pelo estudo de Turrer destaca a crítica em torno do prefácio, que ainda que tenha a assinatura do mesmo autor do texto principal, cumprirá função distinta. Ambos textos irão configurar situações de enunciação diversas e exercem papéis diferentes. Hegel considera a função do prefácio enganadora e condena-o por ser inadequado à pesquisa filosófica e sem valor como modo de exposição da verdade. Como pré-texto, ele constitui o fim da escrita no livro, apesar de figurar precisamente no começo. Assim, ao iniciarmos uma leitura do livro pelo prefácio, começamos sempre pelo fim do que foi o processo da escrita (TURRER, 2012, p. 75). 259

261 Já observamos anteriormente que, em Nakta, a presença de dois textos que funcionam como prefácio é extremamente nociva para a compreensão do texto principal no caso, o conjunto narrativo das imagens fotográficas. São os textos do prefeito de Curitiba e do curador da Bienal, em meio à qual a exposição e o livro são inaugurados. Se os tais textos protocolares impedem e desvirtuam a compreensão do livro como trabalho artístico, o poema de Calaferte, ao iniciar o livro antes do conjunto das fotografias, surge como a avalanche bem-vinda que apaga qualquer pretensão do prefácio institucional. Nesse sentido, o poema de Calaferte é parte constituinte do texto principal e parte (podemos considerar assim) do paratexto, se entendemos sua função positiva de modular o texto, cuidar de sua recepção e de orientar sua leitura, como sustentado por Turrer (2012, p. 74). É nessa perspectiva que trato o livro fotográfico, em um sentido mais geral, como um híbrido entre a funcionalidade impressa na tradição do Livre de Peintre e as descobertas artísticas da imagem fotográfica como linguagem impressa. E Nakta, apesar de se localizar na última década do século XX, carrega esses ruídos, que podem parecer desfavoráveis, mas, em contrapartida, não se submete aos trejeitos da categoria fotolivros, que já assolou o tão jovem século XXI. Nessa perspectiva, observo muito mais as questões favoráveis à compreensão de Nakta como trabalho artístico autônomo, no fato de que há uma intenção contundente de mudança de paradigma de projeto poético, mesmo dentro de um arcabouço tradicional, tanto do ponto de vista da criação editorial quanto da ideia de formalidade da fotografia documental. Explico: uma parte significativa dos elementos que configuram seu paratexto está na parte final do livro, deixando livre a iniciação de sua leitura, apesar dos textos institucionais. Após a última imagem do livro, segue-se novamente o poema de Louis Calaferte, no original em francês, editado em versão compacta, como miniaturas das páginas, preservando a espacialidade gráfica do poema. Ali observa-se mais um respiro após a finalização da leitura, um tipo de elemento do paratexto a favor da poética do livro. Após o fim do poema em francês, um texto de Rio Branco acompanhado de tradução em francês, que poderia ter sido localizado no início como uma espécie de prefácio. Aqui ele funciona como um posfácio. Depois do posfácio, vem o fim do códex, um conjunto de dados formais da publicação: em uma página estão a tradução (em francês!) dos textos do prefeito e do 260

262 curador e a lista de legenda de todas as imagens. Na página seguinte está a síntese do currículo do artista organizada no padrão de catálogo, com as informações separadas por exposições individuais, exposições coletivas, filmografia, direção de fotografia (curtas e longas) e coleções. Em seguida, na última página do livro, estão as informações relativas à ficha técnica institucional (Prefeitura, Fundação Cultural, Direção Administrativa, Direção de Artes Visuais, Coordenação de Artes Plásticas); a ficha técnica do livro associada a informações sobre a curadoria da exposição e as galerias que representam o artista no Brasil e no exterior; os dados catalográficos, as logomarcas da Prefeitura de Curitiba, da Fundação Cultural, da gráfica que apoia a publicação e, finalmente, um agradecimento institucional à Secretaria Municipal de Administração com tradução em francês (!). A descrição desses dados que constituem a parte funcional da publicação não está aqui por mera formalidade. O paratexto de Nakta revela índices importantes a serem ressaltados. Um dos elementos que considero primordial destacar trata da presença convencional das informações que constam como legendas das imagens. Elas não se localizam abaixo de cada fotografia, como num livro fotográfico ilustrativo tradicional, até porque não seria compatível com a proposta conceitual do artista de se descolar do referente no momento da leitura, da experiência perceptiva do espectador. Porém, as legendas estão convencionalmente listadas, obedecendo a uma numeração colocada discretamente na lateral da página em branco, à esquerda, e que acompanha cada imagem à direita, numeração essa utilizada inclusive nesta pesquisa na identificação do posicionamento de cada fotografia no conjunto narrativo. A lista de legendas contém o básico: lugar e ano de ocorrência da fotografia. Mais formal e obediente do ponto de vista da tradição do documento fotográfico e do gênero documental, impossível. Esses dados denotam um paradoxo, no mínimo instigante, ao analisar o processo da trajetória do artista. Traem explicitamente a atitude de se livrar do referente para serem, única e exclusivamente, uma imagem com potencial sígnico (e poético) em si mesma e na relação com as outras. O discurso de abstração contra a imagem documental cai por terra. Em contrapartida, revela o quão resistente se mostra a necessidade do fio umbilical da fotografia com a experiência, que, no caso de Rio Branco, não é apenas uma contingência da tradição documental, mas um dado residual de sua performance fenomenológica como procedimento poético. 261

263 Esses dados nos são fundamentais na análise proposta para esta pesquisa pois ajudam a localizar os deslocamentos de uma imagem desde a sua origem (em alguns casos), passando pelos suportes da exposição bidimensional, do livro, da instalação e da projeção em distintos momentos cronológicos. Os deslocamentos físicos e temporais das imagens documentais de Rio Branco assumem a mobilidade de sentido que o artista tanto busca em seu percurso e fragilizam a fixidez da significação convencionalmente instituída no paradigma do gênero documental. Porém, em seu primeiro livro verdadeiramente disruptivo, as legendas estão ali, a conotar, silenciosamente, uma ruptura impossível. É por via dessas legendas tão protocolares que é possível inferir, por exemplo, que a imagem 24 (Junco, 1992), onde se vê o ambiente com cães, facas no chão e movimento de gente, é, de fato a captação de um matadouro no interior do nordeste. A data, 1992, revela um artista que, a despeito de seu projeto poético ganhar corpo na criação de trabalhos tridimensionais (e de projeção de imagens), ainda é um fotógrafo que extrai do dado factual e da experiência social um sentido importante para sua obra. Junco 109 é um distrito de Jacobina, no interior baiano, e faz parte de um conjunto de cidades fotografadas ao longo de décadas. Rio Branco não deixou nos anos 1970 seu interesse pela paisagem humana. Isso persiste nos anos 1990, período em que sua fotografia é consolidada e consagrada como trabalho de arte. Por meio das legendas, chega-se às inusitadas combinações de imagens, não só do ponto de vista referencial como também das montagens propostas. Em seguida à imagem do torso masculino (Figuras 64 e 4). descrito anteriormente e após o poema, segue-se uma sequência de três imagens (Figura 70) que poderiam também ser consideradas um outro começo do livro, pois se trata da primeira sequência contínua de imagens fotográficas da narrativa de Nakta. As três fotografias estabelecem uma forte unidade de cor e luz. A luminosidade é difusa, quando não, mergulhada na escuridão. As cores transitam entre o salmão, o amarelo, o vermelho e o preto. A atmosfera de penumbra se impõe e, no lance imaginativo e poético evocado pelo trabalho, são imagens de um mesmo lugar. 109 Junco pode também denominar a localidade de Junco de Seridó, no interior da Paraíba, mas dada a vivência do artista na Bahia, é mais provável que seja o distrito de Jacobina, no interior baiano. Esta especificação não está na legenda. 262

264 Figura 70: Parte sequëncial do livro Nakta imagens 2, 3 e 4. Todas as imagens no corpo do livro são separadas por intervalos de páginas em branco. Este lugar imaginado, pressentido, possível e acessado por uma experiência de sensação, poderíamos considerar a geografia por excelência das imagens de Rio Branco, especialmente a partir deste período de fragmentação mais constante de suas narrativas. Sendo assim, qual função cumprem as legendas organizadas convencionalmente no fim do livro? Este é um dos elementos ambíguos do paratexto do livro Nakta. Se acionarmos a legenda, seus dados cortarão abruptamente a experiência sensacional das imagens, a vertigem abstrata, o símbolo destituído. Da mesma forma, as legendas nos trazem de volta para o realismo dos lugares, para a tradição do documento, para a impossibilidade de a fotografia ser uma superfície pura e autônoma. Em tal perspectiva, saber que essas três imagens interpenetradas tão fortemente como um único lugar imaginado carregam em sua origem referencial o Palazzo Fortuny em Veneza, em 1988, uma casa em Salvador em 1985 e o Mercado de Rungis em Paris, em 1987, situa-nos diante de um problema, que, no caso mais particular desta pesquisa, trata-se de uma poética cuja construção se dá no constante desafio e incerteza sobre o uso do signo fotográfico no discurso artístico. Em Rio Branco, o documento fotográfico não é descartado, nem o aspecto ficcional da percepção imaginativa. O fotojornalista parece persistir, o documentarista permanece, mas está corrompido porque consegue extrair, na maioria das vezes, em maior ou menor grau, a capa, o invólucro simbólico que envolve o objeto. Penso se as diversas vezes (e são muitas mesmo ao longo de uma trajetória) em que o artista insiste em fotografar, expor, editar, sequenciar imagens de animais descarnados não se constituiria uma grande metáfora de sua insistência em descarnar o próprio símbolo. Muitas vezes eu reitero aqui que não se trata de destituir o símbolo, mas corrompê-lo, destruí-lo quase totalmente para depois reinventá-lo sob outra ordem. 263

265 O contra plongée acentuado, utilizado nas duas primeiras imagens (2 e 3) desta sequência constrói, com verossimilhança, a ideia de que estamos no mesmo lugar, tal a sensação de submersão na qual somos levados para dentro da imagem enfatizada pelas semelhanças de atmosfera e cor. Neste caso estou fazendo alusão ao sentido mesmo da identificação do movimento técnico da câmera de cinema ou fotografia. O contra plongée (plongée, em francês, quer dizer mergulho) é o oposto ao plongée (o ponto de vista de cima para baixo), movimento em que a câmera mergulha em direção ao objeto. No caso contrário, o ponto de vista está mergulhado, submerso em direção à superfície. Uso essa impressão pela sensação possível de ser provocada pelas imagens 2 e 3 e para relativizar, ou problematizar, o acesso às legendas e às informações referenciais de tais fotografias. Nessa sequência, o artista une, em uma mesma e forte sensação de perda de eixo (o mergulho ao contrário, o efeito de quem está submerso), o fragmento de um retrato pictórico e uma cabeça de boi no palácio veneziano a uma sombra humana e a enigmática figura (Pano? Quadro? Desenho?), contornada por luzes coloridas e presa no teto de uma casa na capital baiana. A casa de Salvador poderia ser o Palazzo Fortuny e vice-versa. Este dado referencial, documental, objetivo surge como um ruído poético no interior da fotografia do artista e nos dá a dimensão dos conflitos internos e conceituais que subjazem no processo de Rio Branco com o estatuto do documento na fotografia. A terceira imagem (número 4) que completa o tríptico ocasional permanece na mesma tensão entre documento e lugar imaginado. O mercado Rungis, o maior mercado de produtos frescos do mundo, desaparece como lugar pitoresco de Paris, mas, na penumbra de um passante, pode ressurgir (na cadeia narrativa) como um sinistro ambiente de morte. As legendas de Nakta podem ser simplesmente assumidas como um protocolo da imagem fotográfica impressa em um meio comunicacional, mas não creio que sejam inocentes ou pacificadoras de um processo artístico. Um fator que me desperta igual atenção é a sua relação pragmática com o sistema da arte no qual Rio Branco se vê inserido e que em Nakta parece implícito mas se mostra claro. As legendas funcionam também para identificar as obras em sua catalogação para venda nas galerias. Consta na última página, após as fichas técnicas, a informação em destaque sobre galerias e profissionais que representam o artista em três continentes. Miguel Rio Branco é representado por/representé par Joel Edelstein/Rio de Janeiro 264

266 Camargo Vilaça/São Paulo Agathe Gaillard/Paris Trockmorton fine arts/nova York Celina Lunsford/Foto Forum/Frankfurt (PREFEITURA DE CURITIBA, 1996). Está claro aqui o livro fotográfico de artista funcionando como catálogo para as galerias, um híbrido particular representado pela condição da fotografia como informação, arte e comércio. A publicação bilíngue optou pelo francês (até nas traduções de detalhes desnecessários) na evidente constatação de uma sólida penetração do trabalho de Rio Branco em Paris, desde os anos 1980, com o surgimento do ensaio do Pelourinho e do seu envolvimento com a Agência Magnum. Paris funcionaria como uma vitrine europeia para circulação de Rio Branco em uma fase (anos 1990) em que seu trabalho adere às tridimensionalidades diversas e parece optar definitivamente por construções mais fragmentárias. Poderíamos considerar que, enquanto no contexto da produção do livro Dulce Sudor Amargo (1985) havia um projeto mexicano de identidade e internacionalização do trabalho de Rio Branco, o momento em que Nakta é produzido sinaliza um projeto francês de desidentidade e universalidade da poética do artista. A despeito de tais contingências o sistema da arte e das galerias, o interesse internacional, o modelo de catálogo no qual foi produzido o livro Nakta e o enredamento institucional que envolveu sua produção, a segunda obra impressa de Rio Branco, que também é a primeira brasileira (embora meio francesa), permite ao artista realizar um trabalho preciso sob vários aspectos. Um deles é a percepção de um mundo que se expande em pedaços, que não se sustenta mais em uma visão de unidade e, portanto, é percebido e representado por uma força vital cuja parcela de animalidade daria um sentido às coisas. Nesse processo, Rio Branco começa a reelaborar seu próprio acervo extraído de sua trajetória de documentarista. Além disso, seu modo de fotografar se torna em si mais fragmentado, livre que está da visão de conjunto do gênero documental. A cor se intensifica, a sombra domina mais os objetos e cenas, e os cortes ficam acentuados em muitos enquadramentos. Todo esse manancial de imagens novas, somadas às já existentes, provoca-o na direção de encadeamentos narrativos mais abstratos, que serão acolhidos nos trabalhos tridimensionais com projeções e outros materiais. Mas é no livro que o sentido de mobilidade e a herança do cinema em sua poética parece dar mais consistência a esse 265

267 mundo novamente desordenado. Na fixidez do livro, o sentido da experiência social dos anos 1970 permanece e o trabalho com o signo fotográfico se estende mais uma vez, ampliando a noção de documento da realidade como resíduo de um mundo vivido. As três imagens finais de Nakta são representativas do momento de afirmação de uma poética e refletem a mudança de visão de mundo (Figura 71). No livro, os dispositivos de montagem são os meios pelos quais o artista contorna com a fotografia a experiência, o tema, o objeto, a cena em seus percursos de origem a realidade em um movimento em direção aos campos do signo artístico. Figura 71: Parte sequëncial do livro Nakta imagens 43, 44 e 45. Todas as imagens no corpo do livro são separadas por intervalos de páginas em branco. A luz homogênea que ressalta o tom sanguíneo e úmido alinha as três imagens em um bloco conciso, onde cada objeto ou lugar representado não possui relação direta entre si. Um lugar de equipamentos para exercícios físicos (pode ser uma academia de boxe) liga-se em seguida à fotografia de um chão molhado de sangue visto em plongée (a movimentação de gente nos traz de volta ao agito de um matadouro) e que estende seu sentido sobre a última imagem do livro: um objeto pouco identificável mergulhado em vermelhos e pretos intensos. Depois de tantas imagens de substâncias úmidas, de animais descarnados, carnes, fluídos corporais, o objeto que se apresenta na imagem final, apesar de enigmático, transforma-se nitidamente em uma espécie de couro, pele recém-retirada de um animal. Seria talvez a síntese justa das ideias e sentidos visuais elaborados pelo artista no corpo inteiro do livro. Uma imagem que incorpora a ordem sintática do conjunto e outra semântica reelaborada do fotográfico. Um problema para a percepção. Como Rio Branco não costuma eleger uma bela imagem em detrimento de seu processo em torno do objeto fotografado, outras fotografias exibidas em espaços expositivos, livros e catálogos revelam que aquele objeto, esticado feito couro de bicho, é uma tela, 266

268 um suporte encharcado de tinta sobre o qual o artista exercita o gesto pictórico apreendido em sua formação original. O referente, nesse caso, retorna com um valor simbólico extraordinário em que o suporte artificial para a representação pictórica é transmutado no corpo daquela narrativa em couro de animal, em signo de vida e morte. A pintura é descarnada para transformar-se em trabalho fotográfico, um forte indício de que o valor da pintura de Rio Branco está como processo que tomado pela dinâmica do cinema resulta numa fotografia singular. O livro seria, na trajetória do artista, um meio vigoroso por onde as experiências de transmutações de um realismo fotográfico vivido, ganha o sentido de um projeto poético. Nakta reflete uma transição (importantíssima), passagem pela qual o artista segue rumo a uma suposta abstração que está menos na plasticidade da imagem e bem mais na construção de um sentido outro, possível pela consciência cinemática provocada na fruição das imagens. 267

269 As imagens e as coisas CAPÍTULO QUATRO

270 4.1 SILÊNCIOS E RUÍDOS DA IMAGEM FOTOGRÁFICA O tempo que separa a realização do livro Nakta e a de Silent Book é apenas de dois anos, intervalo bem menor se compararmos os 11 anos entre Dulce Sudor Amargo e Nakta, e ainda os sete anos entre a mostra Negativo Sujo e o primeiro livro, Dulce Sudor Amargo. Destaco Negativo Sujo por considerá-la neste estudo o desejo legítimo pelo suporte livro e também por ser uma espécie de livro, se o concebermos dentro de conceituações importantes e ampliadas do sentido de livro-escultura nas pesquisas sobre livro de artista. Dessa forma, Negativo Sujo, embora não seja objeto central da pesquisa, tem sido tratado aqui como obra onipresente na poética do artista por sua importância histórica e aspecto multidimensional, característica que o localiza entre a exposição fotográfica, a instalação, o livro e a escultura. O que proponho neste momento é avaliar, primeiramente, esses intervalos entre desejo e realização, entre mostra e livro, entre a ideia livro e livro, propriamente dito, no percurso histórico de Miguel Rio Branco. Com isso, podemos ter a dimensão da importância de um processo de amadurecimento com o suporte impresso, no sentido específico de sua lida com a ressignificação das imagens. Paralelamente, seu amadurecimento com o suporte das instalações e imagens projetadas, no que se refere à sua obra em sentido mais geral, no decorrer de seu percurso poético. Silent Book foi editado em 1998 e reeditado em Essa reedição é marcada, por um lado, pela extrema importância que o livro de Rio Branco assumiu como trabalho artístico autônomo, e, por outro, por sua transformação em objeto de fetiche para uma geração de artistas, fotógrafos, editores, designers, pesquisadores e amantes incondicionais do que se intitula perigosa e festivamente de fotolivro. Silent Book é o tipo de livro que todo jovem artista-fotógrafo, ou fotógrafo-artista, 111 no Brasil 110 Editado e reeditado pela Cosac Naify. A primeira edição data de 1997, segundo a publicação Fotolivros latinoamericanos. Segundo registros de imprensa, o livro é lançado em Há registros contraditórios, pois a segunda edição indica o ano de 1998 como sendo o da primeira edição. Porém, o importante é destacar o intervalo muito pequeno entre Nakta e Silent Book (entre um e dois anos) para marcar uma aceleração e aceitação de sua obra em livro a partir da década de A distinção é apresentada por André Rouillé (2009) em sua análise histórica sobre as poéticas observadas no contexto pré-pictorialista e pictorialista, no século XIX. Embora interessante e pertinente para entender os limites que se apresentavam no contexto original da invenção e uso da fotografia na sociedade do século XIX, as distinções propostas por Rouillé correm o risco de serem absorvidas (e o são) no uso corrente do final do século XX e início do século XXI e, portanto, tornarem-se categorizantes em uma época difícil de categorizações no campo da arte.

271 gostaria de fazer, se envolvido com o suporte impresso e com a estética emergente do fotolivro em plena década de Sei que a afirmação está carregada de alguns pequenos clichês, mas pretendo consertá-la ou contorná-la a partir do que me parece legítimo investigar sobre o uso e a apropriação de tais termos. De um lado, minha afirmação pode ser considerada simplificadora da ideia sobre as relações de semelhança e diferença entre artista e fotógrafo, e livro e fotolivro. Por outro lado, a enorme rapidez com que o próprio termo fotolivro tomou de assalto os espaços de circulação e produção da arte fotográfica nos últimos dez anos força-nos, por vezes, a retornar ao fatigado debate e separação entre artista e fotógrafo, e à precoce e anacrônica reflexão entre livro e fotolivro. Silent Book não é, necessariamente, o livro que todos os fotógrafos gostariam de fazer no Brasil, mas certamente é um parâmetro definitivo e obrigatório para aquele artista que tem interesse no livro como suporte artístico e que elegeu a imagem fotográfica seu meio principal de expressão. Principalmente se esse artista estiver em contato com a enorme quantidade de livros produzidos entre o final da década de 2000 e a primeira metade da década de 2010, e ainda convivendo com os estudos, publicações, editais, festivais e feiras de livros movidas pela efervescência de criação em torno do conceito e uso do termo fotolivro em várias escalas: do artesanal, com tiragens limitadas e assinadas, até as impressões industriais de editoras comerciais. O fotógrafo ou jovem fotógrafo, inserido em tal cena, faz do fotolivro um exercício de linguagem e o passaporte para o território da arte. Silent Book é uma referência para o fotógrafo contemporâneo e se tornou objeto de interesse de pesquisadores sobre o campo alargado do livro de artista. Sem entrar nas intempéries dos termos e categorias utilizados recentemente, voltemos ao trabalho artístico, propriamente dito, empreendido por Rio Branco e sua importância intrínseca enquanto poética que se estrutura e se define em seu processo de realização. 270

272 Figura 72: Capa do livro Silent Book 1997/98, 2ª edição De formato quadrado e pequeno, com dimensões 20cmx20cm e capa dura, Silent Book é uma preciosidade de obra fotográfica impressa no Brasil (Figura 72). É constituído de 75 imagens em cor (apenas uma em preto e branco), todas sangradas (impressas na página de modo a ultrapassar as áreas de corte), sem numeração de páginas e nem elementos típicos da convenção de um paratexto, como dedicatória, legendas, prefácio ou pósfácio. Apenas constam folha de rosto no início e informações técnicas e catalográficas no final. Resulta numa sucessão objetiva de dípticos e trípticos, nos quais a imagem toma, absoluta, o espaço da página. Silent Book organiza-se sob uma limpidez gráfica, não unicamente por esmero na concepção técnica, mas sobretudo por um salto que o artista dá em relação à captação do objeto. Este salto está na transformação do objeto em imagem e aos novos sentidos atribuídos a ele, quando detonados por um paradoxo: de um lado, a síntese máxima do objeto isolado e documentado (cor e luz acentuam uma plasticidade inegável), e, de outro, a fragmentação máxima possibilitada por uma narrativa que esfacela o gênero (e estilo) documental. A síntese do objeto isolado (e sua simbologia) se desfaz porque a imagem (e o objeto) está associada a uma ou duas outras justapostas. Algumas vezes essa imagem justaposta é uma folha negra. O livro não possui páginas brancas. É pontuado em momentos intervalares por quadrados negros. Adolfo Montejo Navas, pesquisador de livros e da obra de Paulo Bruscky e Regina Silveira, vai chamar de luz negra as páginas pretas de Rio Branco. 271

273 Por sua exigência visual e concepção compositiva, a maioria das edições fotográficas de Miguel Rio Branco, em tiragem comercial, podem ser entendidas também como livros de artista. Em Silent Book (1998) e Gritos Surdos (2002), a luz negra das páginas serve de mar visual de fundo (e marca) para as imagens numa forte ligadura expressiva que faz da leitura uma experiência (MONTEJO NAVAS, 2013, p. 48). Os espaços vazios e escuros transformam-se em imagens tão importantes quanto as fotografias porque ressaltam, numa dupla operação, o isolamento enigmático dos objetos e suas associações fragmentárias implosivas. A cor preta fecha tudo, puxa tudo para dentro do espaço gráfico, provocando uma experiência de concentração e compressão. Nesse sentido, os significados se multiplicam, mas encarcerados dentro de um espaço fechado, delimitado. Portanto, os novos sentidos se dão numa implosão porque são sínteses e fragmentos em alto grau e simultaneamente. O livro funciona também graficamente desse modo e em diálogo com o trabalho das imagens em sucessão. Funciona no trabalho de compressão e dilatação dos objetos registrados (e realinhados) por Rio Branco em sua lógica de cinema. Figura 73: Imagem do livro Silent Book /98, 2ª edição A imagem que está na capa e que reaparece no corpo do livro justaposta a um quadrado escuro a página ao lado seria um dos exemplos emblemáticos do livro (Figura 73). A percepção que temos dessa fotografia se dá no movimento flexível entre a compressão e a dilatação de sentido. Num olhar direto, trata-se de uma imagem em sua mais evidente objetividade: o fragmento de uma pintura em aparente processo de 272

274 deterioração. Na verdade, é o avesso de uma tapeçaria, segundo informou o artista em uma conferência em São Paulo, 112 mas seu aspecto imagético nos coloca diante de um rosto desfigurado, no qual o retrato figurativo se torna um espectro, envolto numa espécie de pesadelo. O que é concreto, evidente e sem mistérios, torna-se onírico e vago. Vemos uma identidade esfacelada por meio da fisionomia fisicamente destruída da representação porque captada em seu verso. Embora seja um documento plausível e verossímil, permanece na experiência como uma imagem de terror, impossível de dominar. Figura 74: Passagem do livro Silent Book /98, 2ª edição O quadro negro, a página preta ou a luz negra, ilumina e condensa (abre para dentro) esse sentido (Figura 74). Mesmo que saibamos do que se trata, reconheçamos o referente, o que fica é a experiência da representação, a sua duração. E Rio Branco joga efetivamente com o espectador, dispõe para ele seus objetos documentados, elaborados em série, tornados vulneráveis em sua constituição simbólica, para que a experiência da duração seja o território mesmo das novas significações instauradas numa camada sensorial da apreensão do sentido novo. 112 Conferência Escrevendo com fotos. Cf. RIO BRANCO,

275 4.1.1 A duração da experiência Deleuze (2012, p. 48) lembra-nos que Bergson analisa a linguagem do mesmo modo como analisou a memória, recolocando a função da lembrança como ação de um tempo que alarga não só a experiência do passado como a do presente. O passado deixa de agir, mas permanece existindo. O presente não é, mas permanece agindo, atua como devir. Para o autor, há dois tipos de memória na duração do presente. Nesse percurso, o presente se divide a cada instante em duas direções, uma orientada e dilatada em direção ao passado, a outra contraída, contraindo-se em direção ao futuro (DELEUZE, 2012, p ). A primeira é a memória-lembrança; a segunda é a memória-contração, cujos aspectos distintos tensionam o momento presente do tempo das imagens que se apresentam na experiência perceptiva, da significação. A duração para Bergson era, antes de tudo, intuição; mas, como afirma Deleuze, não se tratava de um sentimento ou simpatia confusa, e sim um método ligado a uma precisão. Deleuze esclarece que a intuição supõe uma duração para se constituir como operação precisa, como metodologia possível em apreender realidades e experiências vividas. Considerando que o sentido que assumem as diversas narrações, articulações, montagens e séries construídas por Rio Branco resulta, primeiramente, em uma ligação intensa com o momento vivido e, portanto, um tipo de imersão na realidade do fenômeno, existe um grau de intuição muito forte que, mobilizado pelo aspecto sensorial, determina o jogo (das imagens, das coisas e dos signos) a ser reinventado para o espectador. É importante sublinhar que, no processo do artista, tanto o momento vivido quanto a intuição não são um sentimento e muito menos uma simpatia confusa, em analogia ao que foi dito por Deleuze. Existe um método e uma racionalidade experimental nas montagens de Rio Branco. O trabalho não se deixa dominar pelo grau intuitivo, apesar de o artista, em diversos depoimentos, declarar, de modo excessivo, o aspecto da intuição e do inconsciente que faz gerar suas imagens. Sem o exercício constante das combinações que se dão e se modificam em diversos suportes, não seria possível uma experiência bergsoniana de duração que nos permite reelaborar os significados de suas imagens. 274

276 Para Bergson (2005, p. 295), a duração é a matéria da realidade, o próprio tecido de que a realidade é feita. Portanto, é no devir que conhecemos, é nele que percebemos e construímos linguagem. A realidade assim apresenta-se como algo que possui a aparência de estar estático, e pela intuição que mobiliza a duração é que encontramos o sentido de mobilidade constante. A realidade acontece como um perpétuo devir, jamais como algo pronto. Do devir, percebemos apenas estados, da duração, instantes, e, mesmo quando falamos de duração e de devir, é em outra coisa que pensamos (...) consiste em acreditar que se pode pensar o instável por intermédio do estável, o movente por meio do imóvel (BERGSON, 2005, p. 296). Bergson argumenta que nossa percepção flagra momentos imóveis de situações móveis, que são como tomadas fixas provisórias de elementos em movimento. A primeira função da percepção, para ele, é conseguir realizar o trabalho de condensação das informações como qualidade. Ele afirma que sua função é de... apreender uma série de mudanças elementares sob a forma de qualidade ou de estado simples, por um trabalho de condensação (BERGSON, 2005, p. 326). Tal oscilação entre um estado fixo e outro em movimento, como processo perceptivo da realidade, forneceu a Bergson condições para pensar o fenômeno do conhecimento e da linguagem como uma ideia que permanece em nosso tempo, nos modos de ação e reflexão dos processos artísticos e visuais: a relação que propõe entre pensamento e estrutura cinematográfica. Sua visão por vezes parece isolar demais a ideia de um estado fixo de outro em igual situação, para poder teorizar a mobilidade. Ainda assim, sua visão de um mecanismo interno do conhecimento, que se dá por uma dinâmica cinematográfica, não deixa de ser uma percepção antecipadora do lugar que as imagens iriam ocupar na experiência da realidade. Tomamos vistas quase instantâneas da realidade que passa e, como elas são características dessa realidade, basta-nos enfileirá-las ao longo de um devir abstrato, uniforme, invisível, situado no fundo do aparelho do conhecimento, para imitar o que há de característico nesse devir ele próprio. Percepção, intelecção, linguagem geralmente procedem assim. Quer se trate de pensar o devir, quer de exprimi-lo, quer mesmo de percebê-lo, não fazemos realmente nada além de acionar uma espécie de cinematógrafo interior (BERGSON, 2005, p. 331). O trabalho de Rio Branco parece acontecer (de modo particular) nessa duração bergsoniana, pela qual o presente da fruição divide-se em dois momentos: um que 275

277 dilata, outro que contrai o significado; um que se dirige ao passado, outro ao futuro; um momento presente que rompe o signo icônico (sua plasticidade formal) para trazer de seu interior suas condições e circunstâncias simbólicas e indiciais. Esses tempos simultâneos engendram a experiência do artista e se completam na experiência do leitor. A conversão mútua entre ideia plástica e representação simbólica está constantemente extraindo sentido do referente, de algo intrínseco ao índice. Figura 75: Passagem do livro Silent Book /98, 2ª edição O díptico que se forma da justaposição do fragmento de pintura e da imagem de pedaços de pano é um exemplo desta conversão que faz oscilar documento e forma (Figura 75). Em um confronto inicial, mais qualitativo, vemos formas similares sob o mesmo tom de luz dourada. Há um caráter sensual enviesado que se inscreve nas imagens desse díptico. No fragmento pictórico, os corpos evocam o êxtase e estampam em suas fisionomias um prazer misturado a expressões de sofrimento ou abandono. Os corpos nus são arrastados, puxados por outros para um lugar que remete simbolicamente às representações do inferno. Entretanto, há um movimento fortemente erótico na cena. Na imagem justaposta, pedaços de gaze enrolados emulam (realçados pela luz amarela) o mesmo desenho lânguido dos corpos, transformam-se ele mesmos em corpos. Os tecidos repetem plasticamente a sensualidade carnal da pintura e são, ao mesmo tempo, indícios dessa carnalidade porque são pedaços de gaze que servem de ataduras para proteger a pele nas lutas corporais. Os panos são vestígios indiciais do contato com o corpo, aqui numa ideia de tensão sensual e de prazer no ambiente masculino de uma academia de boxe. 276

278 É nesse sentido que chamo de implosão do simbólico: um tipo de expansão do referente que adquire (na relação com a outra imagem) outro sentido simbólico, que permanece no veio do índice. O tecido aparece na imagem com a mesma languidez do corpo porque simula seu movimento e sua cor, e mais do que isso, absorve a força erótica não somente porque é forma, mas (e principalmente) porque é matéria física que se cola ao corpo. Miguel Rio Branco consegue retirar da aparente superfície dos objetos que fotografa o significado potencial para a sua modificação no jogo narrativo. Extrai da superfície descritiva da imagem as novas possibilidades simbólicas na repulsa e na atração do referente. Daí a dilatação e a contração do signo se dando no tempo, instâncias de natureza bergsoniana. O livro Silent Book, como sequência de tempos e espaços (e momentos, como aponta Carrión), permite que cada imagem-objeto, em sua síntese enigmática, se fortaleça ou enfraqueça quando justaposta à sua parceira no momento do livro aberto. Fortalece na medida em que se concentra, comprime. Enfraquece quando dilata, perde sua liga simbólica, contamina-se pela outra ao lado. Ou ainda, quando a imagem se dobra sobre a outra, na página seguinte. Seguindo o jogo teórico de Carrión (2011, p. 7), que diz um escritor, ao contrário da opinião popular, não escreve livros. Um escritor escreve textos. E considerando a potência que cada imagem de Rio Branco passa a ter numa montagem ou narração constituída por fotografias, proporia dizer que um artista, ao contrário da opinião popular, não faz fotografias. Um artista constrói imagens. A poética de Silent Book condensa e sofistica os modos de usar a imagem fotográfica. São modos e procedimentos do artista no mundo que o cerca que foram intuídos e experimentados ao longo das décadas anteriores. Não se trata de apontar unicamente um aspecto evolutivo, amadurecido de seu percurso. Em parte sim, mas falei em sofisticação e acrescento a isso um entendimento mais claro sobre a natureza da experiência com a realidade dos objetos e lugares e o aprendizado com os materiais fotográficos. A relação de frontalidade e fragmentação já estava desde Negativo Sujo, a exposição de 1978, quando o livro era um desejo. Era um bloco de anotações, um livro explodido, uma experiência tridimensional com a fotografia, uma percepção escultórica de livro e, sobretudo, uma confrontação com a realidade interiorana nordestina. Enfim, notações (em cópias precárias) de uma identidade profunda do país. 277

279 Em 1998, com Silent Book, e a despeito de sua marcada diferença em relação à estética de Negativo Sujo, Rio Branco volta ao exercício do isolamento do objeto e de sua potência de ressignificação. A primeira imagem do livro, por exemplo, é frontal, direta e descritiva: a porta de uma fachada azul, velha e descascada (Figura 76). Mas sugere estarmos no beco de uma cidade antiga num tempo-espaço indefinido. A sombra domina, a luz é difusa e o tom de azul é escuro. É, literalmente, a porta de entrada para o livro cujo negro maciço que ocupa a metade da porta, convida a uma experiência de sombras: lugares, objetos, pessoas. A presença da luz negra estende um marca de fundo em todo o livro, como afirma Montejo Navas (2013). As páginas pretas não são uniformes e nem sempre são tintadas graficamente. Algumas sim, outras são recortes de fragmentos de zonas escuras da imagem ao lado e por isso possuem tons de cor encobertos, diluídos pelo preto, como é o caso da porta do beco azul ou do rosto desfigurado da tela de tapeçaria. Nesses casos, a leve identificação de que se trata de um recorte mal aparece na página. Quase sempre surge em um canto da página, justamente o do limite entre uma luz e cor quase desaparecidas, e o negro absoluto. Tudo parece ficar no limite entre a identificação (natureza descritiva da fotografia) e a possibilidade de uma significação que está tanto dentro (aspecto simbólico original) quanto fora (associações com outras fotografias na percepção do leitor) da imagem. As imagens que se seguem ao beco azul constituem esse tipo de descrição enigmática: uma casa de madeira no entardecer quase noite; uma faca sobre um chão molhado de sangue; uma página preta tintada; um homem sentado com o rosto baixo e chapéu preto (Figura 77). Figura 76: Passagem do livro Silent Book /98, 2ª edição Início do livro. 278

280 Figura 77: Passagens do livro Silent Book /98, 2ª edição Páginas seguintes ao início do livro. A forte ligadura à qual se refere Motejo Navas está na amarração das páginas negras às imagens fotográficas que, embora sejam claras em seu aspecto descritivo, são captadas em tons escuros, são sombrias, fazendo com que a articulação da narrativa deixe em suspenso a figuração simbólica: a casa no entardecer como morada, abrigo, conforto. A faca ao lado em imagem justaposta está inerte sobre o chão, mas é ferramenta de corte e de dor, pelo sangue ainda fresco que encharca o chão. A faca insólita no chão já contamina à casa ao lado, atribui à morada ao entardecer uma atmosfera de cenário sinistro. O homem com a cabeça baixa, apoiada nas mãos e encoberta pelo chapéu, é uma imagem de descanso, mas também de desalento, se tramada ao fundo negro da página ao lado e encadeada com as imagens descritas anteriormente. Este início de Silent Book, constituído por seis imagens em sequencia (ou quatro intercaladas por duas páginas negras), é a introdução a um conjunto no qual a vocação descritiva da fotografia não é um signo menor. 279

281 A descrição em Silent Book trabalha a favor de uma narração poética e potencializa o documento, problematiza sua denotação. A casa é abrigo, mas pode ser lugar de isolamento, fuga. A faca é uma simples ferramenta de trabalho. Quantas vezes se veem fotografias de matadouro no universo de Rio Branco. Esse aspecto já é uma simbologia construída ao longo de seu percurso, que se espalha e contamina a percepção de suas imagens. Ferramenta de trabalho, mas signo de sacrifício, dor, prazer. O homem de chapéu também é uma incógnita. De luz e cor envolventes está ali inerte, congelado na sua evidência documental. Apesar de sua limpidez descritiva, o conjunto de imagens do livro é bastante sedutor. Seduz não só pela plasticidade, mas igualmente porque suas imagens são arrastadas por uma força dramática que potencializa o índice. A sofisticação poética de Silent Book me parece ser o resultado de três operações primordiais: contornar o tema na fotografia, construir imagens cuja elegância (trabalho de luz e certa suavidade da cor) não exclui o aspecto corpóreo dos objetos e avançar na proposição narrativa numa espécie de discussão mais detida sobre o índice fotográfico Os discursos do índice - as mensagens de Barthes e Burgin Quanto à questão indicial, como apontamos no início deste estudo, o referente que adere barthesiano foi usado por André Rouillé como ideia superada por um tipo de fotografia (ou um tipo de artista) que busca a ideia primordial de expressão para a fotografia. Roland Barthes, com suas constatações enfáticas, pareceu por vezes afirmar solidamente conclusões fixas para um signo tão refratário como o fotográfico. No entanto, não esqueçamos que sua reflexão sobre a fotografia, em A Câmara Clara, constrói-se sob um impacto fenomenológico (dentre eles, a perturbação diante da imagem da mãe criança, por exemplo) e que nem por isso se deixou arrebatar unicamente pelo domínio das impressões e sensações. Ao contrário, tentou compreender onde estão e como se relacionam os níveis simbólicos e indiciais na imagem fotográfica quando conceitua o punctum e o studium. Talvez a expressão mensagem sem código tenha adquirido um peso excessivo e tenha ajudado a categorizações rígidas por 280

282 parte de outros teóricos ou, principalmente, em um período da produção artística em que as teorias semióticas foram tomadas como ferramentas de colonização da arte, especialmente no amplo terreno que vai da produção pré à pós-conceitual. No entanto, a mim me parece que o termo mensagem sem código, décadas após ser pensado por Barthes, é menos uma declaração atestatória do que uma questão que reverbera enigmas sobre relação entre o fenômeno vivido e a constituição de uma linguagem possível, da mesma forma que Charles Sanders Peirce concluiu que o signo fotográfico, antes de ser um ícone ou um símbolo, é um índice. Portanto, é um misto de todas as suas funções, que não podem ser vistas separadamente. O signo se entende por camadas mais ou menos simbólicas, mais ou menos indiciais, ou mais ou menos icônicas. Dentro de cada uma dessas alternâncias, o simbólico estaria enredado pelo icônico ou indicial; o icônico enredado pelo indicial ou simbólico e o indicial estaria enredado pelo icônico, ou simbólico, numa espécie de conversibilidade que se fixa em uma camada ou outra, dependendo da relação de contingência que dado signo terá com seu entorno. Entendo também essa máxima de Peirce (o signo fotográfico é um índice) como uma percepção (aguçada) sobre o caráter ontológico da fotografia, que já se constitui contaminado e difuso. Victor Burgin em seu ensaio Una Relectura de la Cámara Lúcida ( Uma Releitura de A Câmara Clara ) destaca que a leitura que Barthes faz da fotografia não se encontra unicamente nessa obra mais famosa. Para entender a visão de Barthes mais amplamente, é necessário procurar em seus outros ensaios, sobretudo os que tratam do texto e dos sistemas de linguagem, uma série de questões que nos fariam expandir as noções que Barthes propôs para A Câmara Clara. Uma delas que Burgin ressalta é que Barthes via no confronto com a imagem fotográfica, ou seja, o espectador diante da fotografia, a instauração de um espaço para a experiência da linguagem, um espaço textual. El texto, tal como lo concibe Barthes ( ) es considerado no como objeto sino más bien como un espacio entre el objeto y el lector/espectador un espacio compuesto por significados en interminable proliferación que no tienen un punto estable de origen ni de cierre. En el concepto de texto los límites que encerraban la obra se disuelven; el texto se abre continuamente a otros textos, el espacio de la intertextualidad (BURGIN, 2004, p. 55). 281

283 O espaço intertextual que ocorre também no campo da percepção fotográfica observado por Burgin tem origem no uso que Barthes faz dos conceitos linguísticos. Um exemplo, o ensaio El Mesaje Fotográfico, no qual a imagem fotográfica é categorizada por dois tipos de discurso, um de caráter bruto, que seria a denotação, e outro que se atribuiria à imagem, a conotação. Daí resultaria o paradoxo da fotografia que estaria sempre entre um sentido atribuído desenvolvido sobre a base de uma mensagem sem código. Burgin chama a atenção para essa mesma distinção em outro texto de Barthes intitulado A Retórica da Imagem. E também destaca o papel importante que desempenha a fenomenologia na análise de Barthes, pois, de modo geral, o contato primeiro com a coisa instituída na imagem, com o objeto captado por uma fotografia, provoca-nos numa camada primeira da experiência uma relação semelhante à percepção bruta diante dos fenômenos da realidade. É a partir daí que construímos um sentido para as coisas colocadas em curso pela linguagem da qual a imagem fotográfica não escapa. Dentro da relação com a fotografia, no espaço desse texto visual, Barthes enfrentaria tanto seu aspecto enigmático, o índice, signo puro e quase não codificado, quanto sua decifração, os sentidos em interminável proliferação que poderão ser atribuídos a uma determinada imagem. Ou seja, a relação entre imaginação e intencionalidade está profundamente impregnada no signo fotográfico Henri Van Lier e a bifurcação do índice Henri Van Lier retoma Peirce e faz uma curiosa análise partindo da diferença de significado que tem a palavra index em francês, em comparação ao index, em inglês, utilizado originalmente na teoria por Peirce. Van Lier vai chamar atenção para o fato de que index, em inglês, atribui um único sentido ao índice, que, na língua francesa, divide-se em dois: index e indice. O primeiro significando indicador, dedo indicador, ação de indicar, apontar. O segundo caracterizando o sentido mais conhecido do termo: marca, impressão, registro, traço. Van Lier vai considerar primeiramente a ideia de que se trata de significados muito diferentes, pois o index francês abarcaria a 282

284 intencionalidade explícita na imagem, em oposição ao indice francês, cuja condição de existir não é intencional, nem convencional; em que as fotos são feitas...automaticamente, ou ao acaso, onde a significação está ausente: são as impressõesindice, é tudo (VAN LIER, 1982, p.1). 113 Neste último caso seria a mensagem sem código de Barthes. No entanto, Van Lier se utiliza do preciosismo da língua francesa para considerar mais profundamente ambos os aspectos como sendo os elementos constituintes e dinâmicos da identidade do índice, como conhecemos em português, ou, na versão inglesa, index. O index inglês de Peirce comportaria, na verdade, tanto o indice quanto o index franceses. Explico: o signo indicial (na fotografia) se faz tanto de uma marca ou vestígio puro e simples quanto de um dado carregado de sentido e intenção. Nessa perspectiva, irá defender o caráter arbitrário, intencional e cultural da imagem fotográfica, que é constituída por referentes menos passivos que os indices (em francês) e mais ativos, aos quais ele vai nomear de imprégnants (pregnantes). Ele vai dizer que o pregnante é a causa de um efeito, manifestada por meio desse efeito (VAN LIER, 1982, p. 3). Por fim, Van Lier faz um pequeno malabarismo teórico para criar um termo francês em reação à síntese da língua inglesa, que, a meu ver, não põe a perder seu equilíbrio, pois ele chegará à ideia de que o índex comporta a intenção e as contingências culturais. E que a construção de uma imagem que envolve decisões técnicas só pode ser instituída como tal por índices ativos, os pregnantes. Portanto, ele vai concluir que, em face dessa complexidade do índice (tornado mais complexo na língua francesa), a imagem fotográfica possui um discurso próprio (mesmo atravessado por vários campos, e talvez justamente por isso) que ele irá chamar de retórica do index. Lanço mão desse exercício francês para ressaltar as instabilidades entre o documento e a representação no debate sobre o signo fotográfico. E para considerar uma vez mais que alguns artistas fazem desse atrito ou conflito (que as teorias ou teóricos tentam clivar) o ponto nervoso de suas poéticas. Distinguir o documento da expressão, não perceber que a mensagem sem código de Barthes está contaminada pelo fenômeno da linguagem e olhar o índice como um elemento apenas autorreferente não contribuem para a compreensão do signo fotográfico. 113 No original:... automatiquement, ou au hasard, ou pour voir, où la signification propement dite est absente: ce sont des empreintes-indices, c est tout. 283

285 4.1.4 Claudio Marra e a duplicidade conceitual Essa reflexão nos aproxima de algumas questões importantes apresentadas pelo historiador italiano Claudio Marra sobre aspectos particulares da fotografia. Em Fotografia e Pittura nel Novecento. Uma Storia senza combattimento, 114 Marra analisa a fotografia como um campo de experiências singulares no que se refere à percepção. Ele propõe uma espécie de particularidade conceitual instaurada pela fotografia, que estaria não mais ancorada na estrutura do quadro, e sim constituindo-se num modo de recolocar a realidade. Ambígua e dupla, a fotografia se bifurcaria na identidade material e na identidade conceitual, não surgindo limitada ao campo da arte, como confirmação de uma estrutura visual de representação já existente pela tradição da pintura, do desenho e do uso da câmera obscura. Mesmo atrelada a essas representações, desdobra-se em seu caráter duplicador que lhe imprime uma natureza própria, um tipo de representação de identidade ambígua: material e conceitual. Uma se aproxima da lógica do quadro e a outra se afasta dele. O conceitual se dá no afastamento e está relacionado à experiência da memória, sentido de tempo, ideias de presença na ausência, fluxos e estímulos mentais como observa Marra. A fotografia guardaria em si essas duas identidades, em um cruzamento que sinaliza uma posição de limite entre a modernidade e a contemporaneidade. Para Marra, a fotografia do álbum de família, por exemplo, instaurou essa dimensão conceitual porque funciona como experiência de um tempo cerrado, manipulado; dilatado, ou ainda a ideia da presença em ausência de alguém ou de alguma coisa (MARRA, 2010, p. 8). Esse funcionamento, para além da matéria, do objetivo no campo da cultura, tomou o campo da arte, daí a ambiguidade da fotografia refletir, em certa medida, os limites e intersecções entre modernidade e contemporaneidade: A fotografia assemelha-se a um quadro, mas de fato funciona como um ready-made (MARRA, 2010, p. 10). Nos termos assemelha e funciona estão representados, de um ponto de vista metodológico, toda a diferença existente entre as 114 Cf. MARRA, Daqui em diante, as menções à obra de Claudio Marra serão feitas tomando-se como fonte a tradução livre, de acesso restrito, realizada pelo Grupo de Estudos Arte e Fotografia, coordenado pelo professor Tadeu Chiarelli. Cf. MARRA,

286 interpretações material e conceitual. Isto porque a fotografia pode até ser fisicamente similar a um quadro, mas depois o que conta é sua modalidade de funcionamento, porque a identidade, estamos convencidos, é questão relativa ao uso e não à materialidade da coisa. Em primeira instância, portanto, uma fotografia se assemelha a um quadro porque fisicamente é um objeto bidimensional sobre o qual tem curso uma representação do mundo, como acontece sobre a tela. A perspectiva de Marra é considerar a identidade conceitual da fotografia e sublinhar sua função na passagem da modernidade à contemporaneidade. Embora pareça buscar, em sua análise, um tipo de autonomia da fotografia, seu debate é focado sempre no sentido de limite, numa espécie de força sígnica operada constantemente no atrito, no confronto, na interpenetração, na tensão ou, como ele mesmo diz, em uma espécie de esquizofrenia do meio. Creio que a discussão sobre limite entre forma e experiência, documento e percepção, tem muito a contribuir para a análise da condição ubíqua da fotografia na contemporaneidade. Sua ambiguidade opera em duas instâncias históricas e caracteriza sua originalidade.... a fotografia possui também cartas originais para jogar na mesa da contemporaneidade, para além do inegável compromisso com a modernidade. Uma delas, já se pode imaginar, é uma espécie de esquizofrenia do meio, implicado de um lado com o velho da modernidade e ao mesmo tempo é capaz de participar no novo da contemporaneidade (MARRA, 2010, p. 7). Se na perspectiva histórica e cultural sobre a representação visual, a fotografia participa desses dois mundos, no nível microscópico das funções desempenhadas pelo signo, a proposição de Marra retoma o debate em torno das instabilidades do índice e símbolo na fotografia, na tensão entre objeto e imagem, e na esquizofrenia entre ausência e presença do significado. A poética de Rio Branco transita nessa ambiguidade. Silent Book joga o tempo todo com a ideia de presença e ausência do objeto. Alterna presença indicial e ausência simbólica e vice-versa. Trata-se de um trabalho que, apesar de lidar com um mundo despedaçado, não descarta o embate com o objeto em sua inteireza, frontalidade e dimensão corpórea. Ao mesmo tempo, a beleza das coisas é absorvida com sofisticação técnica apurada e o contumaz envolvimento arrebatado do artista diante do acontecimento do objeto. Ainda assim, segue em um tipo de conflito pulsional com a 285

287 realidade, cuja solução está na rearticulação dos objetos (em imagem) recolocados em curso para um renovado exercício de percepção sobre seus aspectos indiciais As retóricas da imagem e o enredo da linguagem Da recolocação dos objetos no curso da linguagem se produz um tipo de drama. Ao longo da trajetória do artista, a palavra drama é repetida à exaustão, tanto em resenhas críticas, textos de apresentação de exposições e catálogos quanto em várias pequenas matérias informativas, releases e notas. A palavra sofreu, assim, um processo de banalização de tanto que é atribuída à estética de seus trabalhos. Cria-se, desse modo, com a utilização do substantivo drama ou do adjetivo dramático, uma atenção para a superfície da imagem. Sua inegável plasticidade, a luz obscura e as cores mais intensas, saturadas com as quais Rio Branco trabalha, tornam-se os únicos elementos para uma definição instantânea sobre o trabalho do artista, visão apressada que se apoia no caráter trágico, apenas uma das faces do significado de drama. No entanto, o drama que faz mover o espetáculo da obra do artista não está só na primeira camada da imagem, em sua composição e luz que remetem, por vezes, às imagens pictóricas. O significado de drama em Rio Branco está no que ele tem de ação, enredo e mobilidade dos significados (o acontecimento entre signo e objeto), jamais no sentido linear de narrativa, e sim como discurso construído com os objetos, sempre cambiáveis em seus novos sentidos. O drama (e aqui tomo partido do seu sinônimo de peça teatral) está na encenação dos objetos que ele encontra no caminho. Objetos que são reencenados pelo jogo descritivo da fotografia. Daí ele mencionar que sua narrativa fotográfica possui relações com outros sistemas de linguagem, como a música e o poema, além de suas ligações profundas com a estrutura cinematográfica. Em depoimento a Daniela Bousso (2012), ele chega a fazer um breve e interessante comentário de que seu tipo de narrativa estava mais para o poema do que para o romance, como faziam alguns de seus colegas, voltados para uma estética documental. Segundo ele, alguns desses fotógrafos conseguem imprimir um sentido de esperança com seus trabalhos. Em entrevista a esta pesquisa lembrei-me desse seu comentário e ele confirmou sua proximidade com o 286

288 poema, mas acrescentou: Está mais próxima do poema, mas, às vezes, eu sou muito tentado pelo romance... (RIO BRANCO, 2014). Ele chega a fazer também uma comparação de seu trabalho com a música. Suas séries e sequências (incluindo as instalações) ganham sentido a partir de um ritmo intuído na música:... Acredito que eu tenha uma ordem mais ligada à música, ou musical... um equilíbrio no limite da queda... (RIO BRANCO In: PERSICHETTI, 2008, p. 24). Nessa mesma entrevista, da qual este último comentário foi extraído, Rio Branco conta um episódio significativo sobre a visão que absorve do campo musical e as relações de desejo de transposição para o trabalho visual. Em 1985, eu fiz uma exposição na galeria que a Magnum teve em Paris e um dos membros, o Dennis Stock, chegou para mim e disse: O seu problema, Miguel, é que você está tentando fazer música com fotografia. Mas para mim não era um problema, aquilo foi um elogio (RIO BRANCO In: PERSICHETTI, 2008, p. 25). A intenção de Rio Branco registrada nesse episódio não atesta, necessariamente, seu compromisso com a música como referência para construção de seu trabalho, mas indica, principalmente, a sua atenção e envolvimento com outros universos da linguagem, que fazem com que sua fotografia supere os próprios limites do território fotográfico. Sua ideia primordial de composição não está no rigor da construção de uma imagem. Isso até acontece porque existe um olho, de fato, fotografando tudo. Porém, seu método compositivo vem da relação de conjunto das imagens, da articulação de elementos diversos. Um método mais interessado nas estruturas de linguagem, nos artifícios que constroem tal discurso. E é por meio dessa busca que Rio Branco acaba por manipular os signos no seu campo de atuação mais constante, que é a fotografia. Ele traz de outros sistemas uma experiência perceptiva e foca a atenção para as inconstâncias do signo e objeto fotográficos. Desse modo, atribui materialidade às imagens, quando as reapresenta descritivamente e cria um espaço entre artista e leitor, no qual é possível experimentar certa imaterialidade do objeto como algo palpável e significativo. Sua carga dramática (a questão do drama em sua poética) estaria antes e depois da imagem, portanto, na retórica do objeto reencenado, em sua simbologia modificada. 287

289 Figura 78: Passagens do livro Silent Book /98, 2ª edição Em mais uma de suas passagens, Silent Book confronta e atenua num só gesto dois ambientes díspares. A beleza erótica na figura feminina de uma representação pictórica (um fragmento captado de uma tela a óleo) e a figura sinistra de um homem sentado sua fisionomia está tomada pela sombra entre uma parede e o que parece ser um tampo de cimento (Figura 78). No entorno da figura feminina há escuridão e dois outros personagens que a amparam. As zonas mais fortes de luz nesta imagem vêm de dois lugares distintos: uma da própria cena representada, que destaca a expressão facial e os seios fartos entrevistos no decote, e a outra, que não é a da representação pictórica, e sim do registro fotográfico mal executado da tela. Supostamente indesejado, o reflexo expõe o índice de registro fotográfico porque deixa marcado o brilho da luz externa sobre a superfície da tela de pintura. A imagem fotográfica capta tanto a intensidade simbólica da luz que vem de dentro da tela (portanto, da pintura do pintor) quanto a luz residual, indicial (portanto, da fotografia do fotógrafo). A luz amarela da pintura é realçada, imiscuída à luz amarela da fotografia (fusão, mistura e absorção); mas a luz branca do brilho também é realçada (erro, ruído e vestígio) no registro imperfeito da luz sobre a superfície do quadro. A cena pictórica é muito envolvente, a captação fotográfica ressalta os escuros e o tom quente da pele da figura feminina, mas o ruído brilhante atravessa o campo de visão e impede a absorção plena da nossa percepção da cena pintada; tira-nos da ilusão, da sensação de uma experiência imediata. 288

290 Por outro lado, o mesmo brilho imperfeito, que não era para estar ali, dá-nos a medida da matéria tátil, da fatura da tela pictórica. E mais: leva-nos de volta para a outra imagem ao lado, com os sentidos mais apurados para a superfície matérica do lugar onde se encontra o homem na sombra. Um emaranhado de riscos, palavras, desenhos, nomes, códigos sem decifração, grafismos produzidos por cortes profundos dominam, impregnados que estão na parede e na mesa de cimento que envolvem o personagem dentro do cubículo. Índices contundentes de encarceramento, exclusão e isolamento se espalham na imagem. A luz verde escura da fotografia se assemelha à beleza da luz da pintura ao lado. Apesar de pesadas, as cores possuem certa suavidade, e na fusão intuída pela justaposição de imagens, confrontamos duas fotografias que assumem uma experiência pictórica, mas exibem, explicitamente, os vestígios documentais da mediação fotográfica. As marcas desse registro (brilho, luz e sombra) rompem o encantamento imediato da contemplação da cena pintada mas exaltam magicamente a relação mediata das ranhuras das superfícies do cárcere fotografado. A presença do discurso indicial está explícita neste díptico não somente por seu caráter inevitável de marca (o reflexo sobre a tela; as ranhuras e desenhos no cárcere), nem pelo fato de evidenciar o referente que adere barthesiano, na visão simplista de Rouillé. O índice pontua a primeira imagem e domina a segunda. O referente de Barthes é um componente da experiência fenomênica da linguagem. Ele está no espaço aberto (intertextual) da linguagem entre imagem e leitor e, portanto, age denotando e conotando as imagens que estão em jogo. Se soubéssemos dados objetivos sobre tais imagens, aspectos factuais sobre o objeto das representações, qual pintura é aquela, quem a pintou e qual cena é representada, em que data foi produzida... Sobre a fotografia, se soubéssemos se aquele cubículo é mesmo um cárcere; em quais circunstâncias aquele homem foi fotografado. De posse de tais dados, certamente teríamos outros elementos importantes talvez a nos guiar para nova camada de interpretações somadas às anteriores. Entretanto, não há em Silent Book o menor vestígio de dados referenciais, nem legendas. Importante lembrar que não há sequer numeração de páginas. No corpo elementar do livro impõe-se um encadeamento absoluto de imagens unidas, tramadas, amarradas pela forte ligadura das páginas negras como fundo e marca. 289

291 O silêncio de Silent Book está profundamente engendrado no seu paratexto e relativizado na cor sombria e suave das imagens, pois aqui há um detalhe importante, ainda que sutil: a saturação permanece, o corpo erótico e as matérias sangrando ou apodrecendo também permanecem, só que num grau bem menos estridente, bem mais sóbrio. As imagens de Silent Book têm uma qualidade (e aqui não estou me referindo só à beleza e nem à técnica, mas especialmente ao sentido do fenômeno primeiro da percepção) aveludada. Se pensarmos a ligadura entre o fundo negro e as imagens na concepção do livro como obra, pensamos no silêncio dessa ligadura em diálogo com o sussurro das imagens. Em Silent Book, as imagens de cor e carne de Rio Branco definitivamente não gritam. Elas nos atraem, seduzem, chamam-nos para perto constantemente nesse cruzamento entre o simbólico e o indicial. E sem as amarras dos dados factuais. Figura 79: Passagem que compõe o livro Silent Book /98, 2ª edição Se fosse eleger dentre as várias passagens do livro que nos chamam para perto do desejo erótico e da sensação de prazer do corpo, sem dúvida considero o díptico acima como um dos mais significativos da evocação de uma fisicalidade concreta do erótico contido no fotográfico (Figura 79). A figura masculina com o corpo suado e o rosto dirigido para cima é tão óbvia (explícita) em sua feição erótica quanto sutil e implícita no seu aspecto simbólico. Parece um Cristo nu extraído de uma representação pictórica longínqua, mas com a veracidade corpórea da fotografia. É tão verossímil que parece ser feito do artifício das imagens hiperrealistas das esculturas da pop art ou das 290

292 figuras humanas de um museu de cera. Em contrapartida, parece tão sacro e tão inverossímil como a escultura de um Cristo morto. O detalhe de um objeto branco reluzente entre os dentes e os lábios nos remete ao algodão comumente colocado na boca de um cadáver. O corpo, de tão perfeito em sua sensualidade, parece irreal. Na outra imagem, a do casal, vemos um homem curvado sobre uma pia. Suas costas suadas estão em primeiro plano. Logo no plano em seguida, a mulher de seios à mostra (o vestido foi baixado até a cintura) o observa, como que esperando para se lavar. O erótico é da mesma intensidade da outra imagem ao lado; possui mesma semelhança no caráter explícito do corpo e mesma evidência no aspecto sexual. No entanto, há uma cena nesta imagem que nos traz para o cotidiano. Um momento banal, explícito, que remete ao pós-coito, a lavagem do corpo, a retirada dos líquidos e secreções produzidos no ato sexual. O que é desejável, quase irreal e pictórico no homem/escultura de peito nu da imagem anterior, é ato realizado na banalidade de uma cena de casal, na fotografia à direita. Sem dados referenciais, Silent Book flui como experiência de linguagem. É por essa razão que utilizo nas legendas que criei para esta pesquisa a nomenclatura passagem. Lemos assim o livro, minimamente de passagem em passagem, de díptico em díptico. Ele por vezes se abre internamente, formando um tríptico, que, por sua vez, pode se transformar em novas junções pela alternância das dobraduras que a página dupla permite. O revezamento de localização das imagens e suas transposições de significado equilibram-se continuamente entre as denotações e conotações. O díptico mencionado anteriormente experimenta tais permutações, fortalecendo ou enfraquecendo o sentido primeiro da leitura, dilatando ou comprimindo o simbólico. Figura 80: Passagem do livro Silent Book registrando a alternância que ocorre com as imagens: o primeiro díptico com o livro aberto e em seguida parte do triptico que se forma com a página dupla aberta /98, 2ª edição

293 Figura 81: Passagem do livro Silent Book registrando a alternância que ocorre com as imagens: o triptico completo que se forma com a página dupla aberta /98, 2ª edição A alternância entre as imagens faz desaparecer o Cristo nu e surgir outra figura masculina, que se insere quase tão adequadamente que parece não ser uma justaposição, e sim o pedaço da imagem que estava faltando, pois esse outro homem está na mesma escala do casal, sob luz idêntica e igualmente seminu. No lance de olhos e virada de página, a nova figura masculina materializa-se na cena, ou melhor, entra como componente de ação (enredo), parecendo olhar para o casal no mesmo ambiente. De costas também, mostra-nos tatuagens de desenhos quase infantis (mais uma vez, a presença de marcas indiciais sobre o corpo); de Nossas Senhoras e anjos, em meio aos quais se lê o verbo no imperativo Amparame (Figura 80). Ao desdobrar a página dupla, também aparece ao lado do homem tatuado a imagem religiosa da figura de um santo, ou Cristo, não se sabe ao certo, e que também está desnudo com a fisionomia que lembra o Cristo nu anterior (Figura 81). Nesse momento de desdobradura do livro em triptico, alguns signos se enlaçam, e a simbologia religiosa, permeada pelo prazer do corpo e do sexo, tensiona aqui no sentido de firmar a trama os paradoxos carnais e imateriais. O tecido composto pelo conjunto narrativo do livro é espesso, firme e harmonioso. A sofisticação das fotografias cria um outro tipo de tensão, que não está mais em um conflito polarizado, estridente, mas assume, por meio da beleza formal das imagens e dos corpos nelas representados, uma maior entrega à luxúria, à pulsão sexual, a um erotismo que amaina, acalma, apazigua num tom quase solene e agradecido. Tais impressões são importantes para tocar novamente a questão do tema neste outro momento da trajetória do artista. 292

294 4.1.6 O retorno ao tema - Entre o ensaio fotográfico, as instalações e o livro Rio Branco comenta um aspecto significativo que envolve as questões tratadas no livro Silent Book e em Porta da Escuridão, uma instalação realizada em 1996 portanto, período próximo ao livro. Ele afirmou que, em ambos... há uma reflexão sobre o medo ligado à sexualidade (RIO BRANCO In: SIZA, 2001, p.51), 115 mas fez uma ressalva quanto à Silent Book, dizendo que, no livro, a relação medo-sexualidade se situava num plano secundário. Como vem sendo constatado no curso deste estudo e considerado na leitura que venho fazendo a partir de Dulce Sudor Amargo e Nakta (1985 e 1996, respectivamente), os livros são catalizadores ou provocadores de processos expositivos e mais especialmente de instalações que ganharam espaço na produção de Rio Branco a partir da década de Sendo assim, lembro que na mesma medida em que o livro Nakta foi engendrado a partir da instalação Pequenas Reflexões sobre Certa Bestialidade, realizada na Holanda, Silent Book se associa a outros três trabalhos expositivos: as instalações Out of Nowhere e Porta da escuridão, pensadas e exibidas inicialmente fora do Brasil (Cuba e Alemanha, 1994 e 1996, respectivamente), e a exposição individual fotográfica bidimensional e sem título, realizada na Galeria Camargo Vilaça em 1998, com o ensaio sobre a Academia de Boxe Santa Rosa, no Bairro da Lapa no Rio de Janeiro. As duas primeiras exposições são mencionadas mais diretamente por Rio Branco como tendo ligações conceituais e temáticas com o livro Silent Book. Em seus depoimentos, observa-se que os referidos trabalhos são ressaltados pelo que possuem de elementos mais inquietantes em relação às montagens, às projeções, aos materiais não fotográficos, às associações entre linguagens e às relações interativas instauradas no espaço. Assim, Rio Branco parece ter um álibi para defender seus não-temas ou suas questões temáticas não ilustrativas que escapariam do molde conservador da fotografia ensaística documental. Quando diz que a relação entre medo e sexualidade seria uma questão mais presente em Porta da Escuridão, e ainda, embora em menor grau, no livro 115 No original: Hay una reflexión sobre el miedo ligado a la sexualidad. 293

295 Silent Book, permite detectar um aspecto que, a meu ver, estaria um pouco oculto na leitura de seu trabalho. Porta da Escuridão (1996) é uma instalação constituída por duas projeções sobre tela translúcida e trilha sonora, 116 que contém diversas fotografias que migrarão no ano seguinte para o livro Silent Book. As superposições e movimentos que as fotografias ganham nos trabalhos de projeção do artista incorporam um tom de dramaticidade bastante eloquente pela própria força plástica que constitui já comumente suas imagens. A música intensifica a carga trágica, e as oposições entre imagens sexuais e representações religiosas atritam-se de modo mais provocativo na superfície do efeito. O trecho final do filme Nada Levarei..., de 1981, possui essa mesma eloquência dramática como efeito. Out of Nowhere (1994) é um conjunto vasto de fotografias em papel coladas sobre tecido preto, justapostas a muitos recortes de um jornal da década de 1920, misturado a uma grande quantidade de pedaços de espelhos velhos, quebrados e meio empilhados, encostados sobre as paredes do espaço expositivo. Todo este arsenal de imagens é montado em um ambiente muito escuro, onde mal se veem as fotografias, mas se ouvem, clara e continuamente, canções românticas americanas dos anos 1930 que parecem vindas de algum rádio ao longe, dentre as quais Out of Nowhere, com Bing Crosby, numa alusão direta ao título do trabalho. No excesso de materiais, Out of Nowhere constrói um discurso igualmente trágico e eloquente, difícil, num primeiro momento, pelo exagero material, mas penetrável, se dispusermos de mais tempo tanto para uma experiência bruta com a fragmentação quanto para um passeio detido nas fotografias e no imaginário mais longínquo proposto pelos recortes de jornal. Ainda assim, o trabalho corre o risco de reter-se no efeito. Muitas imagens dessa instalação também irão migrar para o livro Silent Book. Quando as imagens migratórias de ambas instalações (1994 e 1996) ganham o corpo do livro em 1997/98, juntam-se nele os resquícios de sexo e religião de Porta da Escuridão aos boxeadores da Lapa carioca. Algo acontece a favor de Silent Book. A edição não só prima pela beleza plástica, mas exalta a qualidade cromática e luminosa 116 A instalação é concebida para a Prospect 96, na Frankfurter Kunstverein, sob curadoria de Peter Weiemeier. Suas primeiras exibições ocorrem no mesmo ano, na Alemanha, em Frankfurt, e no Brasil, no Rio de Janeiro, inserida na exposição Out of Nowhere, no Museu de Arte Moderna do Rio, sob curadoria de Lígia Canongia. Cf. MUSEU DE ARTE MODERNA DO RIO DE JANEIRO, 1996; RIO BRANCO,

296 impregnadas da riqueza do enredo dos signos que serão dimensionados pelo conceito narrativo e gráfico da obra. As fotografias repousam, fixam-se, mas não se congelam na visão do leitor. Apenas param, momentaneamente, na duração possível da observação e na atenção mais demorada sobre as expressões físicas do corpo e as representações simbólicas do prazer onde não há medo, e sim vontade e entrega. Esse fator presente em Silent Book, que imprime tal desapego ao sofrimento, tem origem, em parte, na presença das imagens dos boxeadores (homens e mulheres) do ensaio documental que Rio Branco fazia, entre 1992 e 1994, e cujo desenvolvimento final se deu por via do projeto formal de documentação, que recebeu recursos da Bolsa Vitae. Sobre o enfoque que daria à proposição do projeto submetido à Vitae, Rio Branco expõe suas estratégias. Ganhei um bolsa com essa obra, graças ao fato de apresentar a academia como um microcosmos da sociedade brasileira. De outro modo, não me haveriam concedido. Se eu tivesse dito que ía trabalhar alí como faria em uma experimentação, fazendo considerações sobre essa realidade, sobre sua decomposição, sobre o tema do tempo e do corpo o corpo quase como um fantasma não teriam me dado a bolsa. A fotografia segue muito conectada a esses aspectos temáticos e isso continua sendo um problema (RIO BRANCO In: SIZA, 2002, p. 51). 117 Uma vez mais, Rio Branco se vê às voltas com a dificuldade e o impulso de superação do tema em sua fotografia, com as contingências que envolvem o trabalho fotográfico em sua fisionomia descritiva e as possibilidades conceituais mais abstratas que ele tanto busca. Mais uma vez, seu discurso torna-se oscilante e, justamente por isso, mais rico. Observamos tal riqueza no modo como o artista apreende a coisa real e a desmonta na procura de algumas certezas. Sua adesão às instalações permite-lhe esse procedimento de modo mais imediato. No entanto, a certeza sobre o suporte das instalações arrisca-se no esvaziamento dos signos e da potência da ressignificação. 117 No original: Gané uma beca com esa obra, gracias al hecho de presentar a la academia como um microcosmos de la sociedad brasileña. De outro modo, no me le habrían dado. Si yo hubiese dicho que iba a trabajar allí como lo haría en un taller, haciendo consideraciones sobre esa realidad, sobre su descomposición, sobre el tema del tiempo y el cuerpo el cuerpo casi como fantasma, no me hubieran becado. La fotografía sigue muy conectada con esos aspectos temáticos y eso continúa siendo un problema. 295

297 Em suas realizações consideradas mais convencionais a bidimensionalidade e o factual nos livros e exposições fotográficas propriamente ditas, quando efetivadas na narrativa impressa e na organização fixa das paredes, ganham uma mobilidade muitas vezes mais significativa e robusta na complexidade cinemática tão enraizada na sua formação perceptiva A Academia Santa Rosa no Silent Book Olhar os boxeadores da academia da Lapa como um microcosmos da sociedade não é demérito ao trabalho e nem cerceador das temáticas documentais, já que a presença do corpo no ambiente do Santa Rosa é libertadora: todos eles, mulheres e homens, estão nus ou seminus, com certa naturalidade, na exposição de seus corpos; sem exibicionismo, mas disponíveis ao exercício físico, ao embate da luta e ao contato corpóreo com o outro, incluindo aí a fotografia, o fotógrafo. São espaço e tempo em que parece não existir medo, nem repressão, o contrário do que indicou Rio Branco em comentário anterior. Em entrevista recente a Ivo Mesquita e José Augusto Ribeiro por ocasião de sua exposição Teoria da Cor, na Estação Pinacoteca em São Paulo, Ribeiro menciona um aspecto importante observado em retratos do artista:... Me refiro ao que considero a virtude de alguns de seus trabalhos, que é a de sublinhar a austeridade de figuras como a do boxeador com um braço só, das mulheres do Pelourinho etc. 118 A essa observação, Rio Branco responde de modo menos conceitual, mais afetivo e cúmplice com o assunto vivido: Mas a vida tem uma força. Eles são sobreviventes. É o cara que até vive melhor que muita pessoa que tem muita coisa. Então é o gosto pela vida o que acaba sendo transmitido, é a vontade de lutar Conversa com Miguel Rio Branco por Ivo Mesquita e José Augusto Ribeiro, na montagem da exposição Teoria da Cor. Cf. TEORIA DA COR, 2014, p Ibidem, p

298 Figura 82: Passagens do livro Silent Book registrando alternâncias que ocorrem no jogo com os tripticos possíveis que se formam com páginas duplas abertas /98, 2ª edição

299 Silent Book possui, em sua estrutura de montagem, uma dinâmica que desloca várias imagens que pareciam imobilizadas em seu valor simbólico. As alternâncias de imagens possibilitadas pelas variações que as páginas duplas permitem em suas dobraduras desencadeiam uma sucessão de potencialidades e sentidos sobre os personagens e os corpos (Figura 82). O que poderia ser o Cristo nu transforma-se em um boxeador sexy. O seu olhar um tanto sacro e desamparado de antes é abandonado para ganhar certo dinamismo com os dípticos nos quais a ação da luta e o ambiente espacial da academia estão mais evidentes (Cristo/boxeador + imagens do espaço da academia). O objeto branco sob os lábios, que antes parecia um signo de morte, é apenas o protetor de boca nas horas de luta. O casal visto e comentado anteriormente, dentro de um possível contexto íntimo, muda de lugar. O que parecia ser privado é publico: estamos numa academia de boxe na Lapa, onde homens e mulheres treinam seminus no mesmo espaço, lavam-se juntos depois da luta? Os seios da mulher representada na pintura dominada por claros e escuros aproxima-se da contundência frontal de um torso masculino. Seu desamparo feminino se justapõe à fortaleza masculina? Nem tanto assim, pois os papéis estão continuamente se invertendo. Lembremos da expressão do Cristo nu (ou boxeador sexy) com semelhante ar de desamparo da figura feminina pintada, ou ainda do outro homem cuja tatuagem nas costas carrega um pedido: amparame. Observo que o livro Silent Book constituiu-se, em parte significativa, de imagens que vieram de uma relação de convivência mais duradoura com o universo cotidiano da academia de boxe carioca. Esse lugar foi fotografado por meio de um procedimento mais convencional, característico de um trabalho de documentação lembremos o sentido dokument, em alemão, como conjunto de informações, dossiê, estudo ao longo de dois anos nos quais os processos relacionais se completaram mais plenamente. Foi por meio da atitude de documentar, de realizar documentos diversos com vistas a um estudo, e não necessariamente documental (criar um trabalho ao estilo de um gênero), que Rio Branco pôde realizar um de seus trabalhos mais importantes. Uma das vertentes do ensaio (variações desses documentos) veio exercer um papel definitivo para a qualidade poética de livro. E qualidade política também, pois há uma espécie de política do corpo em Silent Book bem menos entregue ao medo e mais devota ao prazer físico. Um estudo mais vertical poderia nos aproximar uma vez mais do que seria a identidade daquele lugar, comunidade, bairro, cidade e país, no que se refere aos papéis 298

300 sexuais e a representação hedonista do corpo. Não se trata de abrir esse caminho neste estudo, mas evidenciar que Rio Branco, no ensaio Santa Rosa, teria retornado às suas questões sobre corpo, vida e morte e, provavelmente, realizado uma abordagem mais sofisticada sobre a própria identidade do país, em outro momento importante de sua trajetória, em meados da década de Não que não o tenha feito em parte, mas, naquele contexto, suas instalações já começaram a adquirir uma ressonância e um efeito maiores a ponto de obscurecerem, em certo sentido, o valor de seu ensaio bidimensional em papel fotográfico. No entanto, o que a eloquência das projeções apagou, o livro Silent Book reteve em favor de sua poética. À dinâmica do corpo encontrada na academia de boxe veio somar-se às imagens obscuras e religiosas; veio neutralizar o excesso religioso, destituir de culpa o prazer físico. A posição incômoda de Rio Branco ao ajustar sua mirada (no caso dos ambientes, pessoas e coisas na academia da Lapa carioca) ao projeto tradicional de ensaio para a obtenção da Bolsa Vitae não é somente uma estratégia formal que cessa no momento em que consegue os recursos necessários. Tal atitude é um acordo com o próprio sistema de representação da fotografia, que ainda promove a separação desnecessária entre as imagens que assumem um caráter mais factual e outras que rompem a estaticidade de um estilo documental. Essa separação é encontrada na atribuição de valor ou destaque a determinadas exposições e trabalhos em detrimento de outros. Onde localizar (e dimensionar) a importância do trabalho realizado na Academia Santa Rosa no conjunto das mostras do artista? A hipótese sobre a provável desimportância (em seu aspecto documental) desse ensaio nasceu da constante observação dos dados organizados que constituem o currículo de Rio Branco em uma grande quantidade de obras impressas: livros, catálogos e folders que apresentam informações como legendas de fotos, lista de filmes, exposições individuais e coletivas, livros, nomes de obras, especificações técnicas de trabalhos de instalação e prêmios entre outros. Na análise desses dados, constata-se que, no conjunto das individuais dos anos 1990, quando as instalações ganham espaço e os livros começam a ser produzidos em intervalos menores, a menção à exposição na Galeria Camargo Vilaça, em São Paulo, em 1998, constituída exclusivamente por imagens da Academia Santa Rosa, é muito discreta, quase sem importância, já que figura sem título e é tratada na listagem 299

301 convencionalmente como uma mostra de galeria. A mostra da Camargo Vilaça consta nas referências do catálogo Entre els ulls, exposição de 1999, em Barcelona, e do livro Miguel Rio Branco, editado pela Companhia das Letras, em Em 2000, no resumo cronológico da publicação Pele do Tempo, exposição no Centro Hélio Oiticica, no Rio de Janeiro, a exposição não é incluída, mas há a informação sobre a aquisição da Bolsa Vitae para o projeto em A exposição aparece identificada com título Santa Rosa, no livro Plaisir Douleur, editado na França em 2005, por ocasião da exibição de seus trabalhos em três espaços de Paris. Naquele mesmo ano expõe nos Encontros de Arles (Rencontres d Arles). 120 A menção à exposição da Camargo Vilaça volta a aparecer sem título no pequeno livro de 2008, editado pela Lazuli, no qual o artista é entrevistado por Simonetta Persichetti. Ainda no catálogo de Barcelona, aparece o título Santa Rosa, mas no ano de 1996 e em uma exposição nos EUA, na Throckmorton Fine Art Gallery, em Nova York. Não se sabe se houve um erro de publicação. Provavelmente não, porque a exposição dos EUA consta na listagem de outros catálogos sem o título Santa Rosa, somente com o nome do artista. A exposição da Galeria da Camargo Vilaça em São Paulo, em 1998, às vezes com título, outras, não, é certamente um momento importante da abordagem fotográfica de Miguel Rio Branco. Possui a densidade humanista das séries fotográficas do Maciel, de 1979, mas com um apuro no jogo cromático, em que os tons são rebaixados, mais suaves. No lugar do confronto ou da impostura inquietantes do trabalho do Pelourinho, havia uma solenidade entre sujeito e fotógrafo, entre ambiente e observador. As fotografias em grande formato quadrado (120cm x 120cm) dos aparelhos de negativos 6x6 foram exemplarmente montadas e ampliadas em Cibachrome. O trabalho assumia uma imponência pictórica ao mesmo tempo aliada à presença matérica de seus personagens e à impressão espacial dos lugares propriedades da fotografia do artista. Em contraste com sua situação em 1980, sobre as dificuldades em produzir as ampliações com materiais mais sofisticados, o Rio Branco de 1998 possuía as condições necessárias para realização de suas ampliações. Este fator técnico favorecia a capacidade que o artista sempre teve de se imiscuir à vida cotidiana de universos em que as questões humanas pungiam. Algumas figuras altivas e importantes estavam lá 120 As três exposições são Plaisir La Douleur, na Maison Européenne de La Photographie; Broyer du Noir, na Galerie 1900/2000, e Santa Rosa, na JGM Galerie. A exposição de Arles ocorreu na Église des Frères Prêcheurs. 300

302 representadas na mostra da Camargo Vilaça. Alguns retratos tomados pela austeridade de seus retratados compunham a força do ensaio, como o do boxeador sem braço que olha diretamente para a câmera e um outro, o belo retrato de costas do boxeador negro apoiado nas cordas vermelhas do ringue (Figura 83). Figura 83: Fotografias do ensaio Santa Rosa Sem, 1992 e Back, Fonte: Miguel Rio Branco, Reprodução: Mariano Klautau Filho. Há também o olhar do artista tanto para a potência cromática quanto espacial do ambiente da academia, e ainda para as imagens que encarnam mais explicitamente a dinâmica do movimento (a questão do corpo e luta) e das superposições, elementos que já imprimem nas imagens únicas a ideia de expansão do tempo e dos signos, percepção muito exercitada na época em suas instalações. O ensaio da Academia Santa Rosa incorporava todos esses deslocamentos no seu conjunto estático, bidimensional, pictórico e documental. Destaco três exemplos desses registros: o primeiro, o ponto de vista do ringue, no qual as cores e os planos das linhas desenhadas pelas cordas vermelhas estruturam a espacialidade e deixam as figuras humanas quase imperceptíveis pela baixa velocidade (Figura 84). O segundo é a fotografia de um canto do ringue, na qual a figura de um boxeador está em superposição, presente e ausente, como se fossem dois momentos de um mesmo enquadramento (Figura 85). A terceira imagem marcante do trabalho é a de um homem nu, cruzando, em movimento, uma sala provavelmente um vestiário. O personagem é visto de longe através do enquadramento de uma porta. A bela imagem, além de conter planos, cores, volumes e movimento é um lance de olhos, meio voyeur casual, meio magnetizado pela percepção do cinema (Figura 83). 301

303 Todas essas imagens compõem o conjunto do ensaio Academia Santa Rosa. Nunca constituíram um livro solo, apesar de aparecerem em catálogos diversos, e de modo onipresente, no trabalho de Rio Branco naquele período. Há uma parte desse ensaio impressa e bem editada em páginas negras, constituída de 13 imagens, que ocupam um trecho do livro Miguel Rio Branco, editado pela Companhia das Letras/Aperture, em É um livro panorâmico sobre o percurso do artista, portanto menos autoral. De formato grande, capa dura feita de tecido e com sobrecapa fotográfica brilhante, Miguel Rio Branco tem uma feição de livro ilustrativo. Entretanto, exibe uma edição vigorosa sobre o conjunto da obra do artista e especialmente muito acertada no espaço dedicado ao ensaio da Academia Santa Rosa, embora seja o único livro que Rio Branco exclui de seu trabalho de artista. Sem sua participação efetiva na edição (não há qualquer indicação de quem tenha realizado a concepção de edição das imagens), a publicação funciona como uma espécie de catálogo, segundo seu depoimento recente. Embora o trabalho da Academia Santa Rosa seja importante no percurso do artista, parece não ter tido um lugar específico onde pudesse ser reunido em seu conjunto, em um livro, por exemplo. Talvez seja um indício de que Rio Branco estivesse naquele período se afastando de vez de uma prática do ensaio. Figura 84: Ensaio Academia Santa Rosa Vermelho, azul, verde, Fonte: Coleção Pirelli Masp. 302

304 Figura 85: Fotografias do ensaio Academia Santa Rosa Fading, 1992 e Nua, Fonte: Miguel Rio Branco, Reprodução: Mariano Klautau Filho. Tadeu Chiarelli (2004) faz um comentário sobre a distinção geral que haveria entre o ensaio do fotógrafo e a fase do pintor: Normalmente o fotógrafo se manifesta por meio de ensaios e não por meio de fases, algo mais próprio do pintor. E propõe uma subdivisão no campo do ensaio, que levanta igualmente outra distinção característica da produção contemporânea da fotografia. Diferenciação esta que contribui para a análise deste estudo, quando o crítico constata que o ensaio de um fotógrafo ajuda-o pela composição de conjunto que dá sentido a um trabalho, cujas imagens, se vistas isoladamente e por sua natureza de imprecisão documental, restariam incompletas aos olhos de seu autor e do espectador. Seria para Chiarelli (2004), o caráter indicial muito pronunciado da fotografia (...) que praticamente obriga os fotógrafos se utilizarem do expediente do ensaio fotográfico. Desse modo, alguns artistas contemporâneos que trabalham a fotografia em pequenos conjuntos, ou seja, dípticos, trípticos e polípticos, lançariam mão desses procedimentos em busca de uma síntese. E, embora descartem a ideia de conjunto mais ampla de um ensaio, no sentido da tradição, buscam uma autonomia em seus pequenos conjuntos mais independentes entre si ou menos narrativos. Seguindo esse raciocínio, por outro lado pode-se pensar que o interesse que muitos fotógrafos demonstram, sobretudo hoje em dia, em produzir narrativas fotográficas acoplando duas ou mais imagens, tenha a ver, justamente, com esse caráter sempre 303

305 remissivo da fotografia. Talvez eles pensem que, formando pequenos agrupamentos, estejam suprindo de maneira mais sintética as mesmas lacunas da imagem fotografia, que os mobilizam a realizar ensaios (CHIARELLI, 2004, p. 3). A leitura de Chiarelli foca no trabalho específico de Celina Yamauchi, que cria pequenos grupos de imagens fotográficas, intervindo nelas com desenhos. No entanto, a questão levantada sobre uma autonomia no plano maior da tradição do ensaio como um conjunto e sobre as pequenas autonomias e sínteses das (não) narrativas observadas na produção contemporânea faz-nos pensar novamente, a partir do percurso da obra de Rio Branco, sobre o lugar mais discreto de importância ocupado pelo ensaio da Academia Santa Rosa como conjunto completo e tradicional no suporte exclusivamente fotográfico. Da mesma forma, leva-nos a considerar as infinitas migrações que o material sofreu ao se deslocar para as instalações e materiais impressos. Assim, a subdivisão destacada por Chiarelli, entre ensaio e pequenos agrupamentos, ou pequenas narrativas, marcaria essa bifurcação estética, ou poética, que se dá no trajeto de Rio Branco, quando parece abandonar o ensaio e se aproximar cada vez mais das pequenas narrativas, ou dos agrupamentos constituídos entre os dípticos e os polípticos. A descrição sobre a forma de identificação da individual de 1998 revela um detalhe escondido na extensa biografia do artista. Nos anos 1990, o aspecto mais factual no conjunto de seu trabalho começa a ser encoberto pela produção mais intensa das instalações. São os projetos caracterizados pela abordagem ensaística e documental, em que os retratos e cenas estão mais presentes e onde a relação que se estabelece entre fotógrafo e objeto (pessoas e seus lugares) ocorre de forma mais aproximada. Esse enfoque mais convencional não deixará de estar presente. Aparecerá como imagens únicas ou pequenos agrupamentos no contexto de exposições maiores. Em outros momentos, será diluído na profusão de imagens utilizadas nas projeções e instalações. Na biografia de Rio Branco, observa-se que, na listagem de exposições, tanto individuais como coletivas, quando se trata de obras tridimensionais e de projeção, há uma quantidade maior de informação. Os anos anteriores à exposição da Camargo Vilaça, 1996 e 1997, marcam o aparecimento de trabalhos que irão ter uma importância enorme na trajetória futura do artista, inclusive em projetos e instituições internacionais como Reflexões sobre Certa Bestialidade, Porta da Escuridão, Out of Nowhere e Entre os Olhos, o Deserto, sendo todos trabalhos de instalação. 304

306 Constata-se então, numa leitura sobre a organização das exposições daquele período, que, ao passo que as instalações vão ganhando mais importância poética no corpo da obra, vão sendo incluídas nas listagens como projetos mais artísticos e autorais, e as exposições de suporte bidimensional vão-se reduzindo ligeiramente, quase constando como exposições de agenda comercial de galeria. Certamente esta questão seria uma hipótese a ser mais investigada, porém este fato é visível no contexto dos anos 1990, quando os trabalhos conceituados sob a lógica das instalações projetadas ganha reconhecimento e faz o artista se ausentar de uma produção mais ligada ao ensaio documental. Rio Branco relata à Tereza Siza, em 2002, que vinha se distanciando das pessoas, dos retratos de gente, e aponta o ensaio da Academia Santa Rosa como o último realizado nessa linha. Ultimamente quase não tenho fotografado pessoas. O último trabalho que fiz com gente foi o da academia de boxe. Ía ali continuamente, fazia retratos e, obviamente, acaba-se fazendo fazendo alguns amigos. O dono da academia, Santa Rosa, era encantador. Recentemenete tenho fotografado naturezas mortas, sem gente (RIO BRANCO In: SIZA, 2006, p. 61). 121 Da mesma forma com que descreve o ambiente amigável da academia de boxe na Lapa, Rio Branco rememora o ambiente e sua aproximação com as pessoas que encontrou e conviveu no Maciel. Experiências motivadas pela empatia. A razão em como conseguir intimidade com o retratado não vou explicar porque não sei. São momentos de empatía. Eu não estou alí para engañar ninguém nem roubar uma imagen O trabalho que fiz no Pelourinho não para mim exótico. Πrimeiro porque de alguma forma me identificava a gente de lá, era uma época em que não tinha muito dinheiro, sempre estaba à margen. Aquelas pessoas me pareciam bonitas, eran reais, verdadeiras, fortes, possuíam sua própria riqueza. As mulheres eran muito generosas, tinham personalidade, havia um diálogo, havia empatía. Não tinha vontade de fazer um trabalho sobre a prostituição e me deixei levar : havia a sedução do lugar, das mulheres, das texturas, do tempo. O tempo estaba sempre presente. Eu me sentia mais ou menos em casa. 121 No original: Últimamente casi no he fotografiado a personas. El último trabajo que hice con gente fue el de la academia de boxeo. Iba allí continuamente, hacía retratos y, obviamente, uno acaba haciendo algunos amigos. El dueño de la Academia, Santa Rosa, era encantador. Recientemente he fotografiado naturalezas muertas, sin gente. 305

307 Sempre havia muitas crianças. Tenho numerosa imagens deles (RIO BRANCO In: SIZA, 2006, p ). 122 O artista afirma ainda à Tereza Siza que se sentia, naquele momento, mais coibido em situações semelhantes 123 Havia uma espécie de crença maior na época do Pelourinho de que seu trabalho pudesse ajudar as pessoas. No contexto daquela entrevista, já não sentia tanto gosto por fotografar certas situações. Relata que, em 2000, quando expôs no Centro Cultural Hélio Oiticica, no Rio, 124 observou que, no entorno da região, havia uma zona de prostituição de mulheres idosas. Disse que poderia ter feito um trabalho com aquele universo: Poderia fazer um trabalho interesante sobre a velhice, a sensualidade na velhice, mas já não necessito tanto essa conexão da fotografía com as pessoas. Agora tenho motivações estéticas muito diferentes (RIO BRANCO In: SIZA, 2002, p.64). 125 Considerando o contexto histórico e a sua trajetória em curso naquele momento de 2002 portanto, mais uma passagem que se dá de uma década a outra, as motivações estéticas muito diferentes de Miguel Rio Branco estavam voltadas para o trabalho das instalações e da realização dos livros. Fazia pouco tempo que lançara Silent Book, em Em meio a diversas obras de instalação ocorridas ao longo da década de 1990, o artista também participou, efetivamente, da concepção dos catálogos dessas mostras tanto no Brasil como no exterior. Considero que, na arrancada dos anos 2000, Rio Branco estava motivado pelas investidas nas instalações onde experimentava (e acreditava) no desempenho mais satisfatório do exercício narrativo não linear e espiralado de suas séries, que sofriam 122 No original: El quid de cómo conseguir intimidad con el retratado no lo voy explicar porque no lo sé. Son momentos de empatía. Yo no estoy allí para engañar a nadie ni robar una imagen El trabajo que hice en el Pelourinho no era para mí exótico. Primero, porque de alguna forma me identificaba con la gente de allí, era una época en que no tenía mucho dinero, siempre estaba al borde. Aquelas personas me parecían guapas, eran reales, verdaderas, fuertes, tenían su própria riqueza. Las mujeres eran muy generosas, tenían personalidad, había un diálogo, había empatía. No tenía ganas de hacer un trabajo sobre la prostituicíon y me dejé llevar: estaba la seducíon del lugar, de las mujeres, de la textura, del tiempo. El tiempo estaba siempre presente. Yo me sentia más o menos em casa, siempre había muchos niños, tengo numerosas imágenes de ellos. 123 No original: cohibido en situaciones semejantes. 124 A exposição Miguel Rio Branco: Pele do Tempo foi realizada no Centro Cultural Hélio Oiticica, que estava, naquele momento, sob a direção de Paulo Sérgio Duarte, autor do texto crítico que faz parte do catálogo da mostra, ocorrida de dezembro de 2000 a março de No original: Podría hacer un trabajo interesante sobre la vejez, la sensualidad en la vejez, pero ya no necesito tanto esa conexión de la fotografía con las personas. Ahora tengo motivaciones estéticas muy diferentes. 306

308 então um processo mais intenso de fragmentação e experimentação de materiais. Afinal de contas, as concepções criadas por Rio Branco para as instalações (de meados dos anos 1990 em diante) pareciam expandir as antigas assemblages de suas obras pictóricas do final dos anos A sua visão e sua aceitação pelo circuito da arte sobre a potencialidade que o vídeo e os materiais não fotográficos lhe permitiam foi, pouco a pouco, encobrindo o tipo de fotografia que o fazia deter-se mais sobre as pessoas e lugares. Essa parte elementar de seu trabalho como experiência passou a ficar mais à sombra das grandes instalações. Trata-se aí de uma questão que toca, mais uma vez, nas ideias, formatações e historicizações sobre o gênero documental. Nota-se que, quando o artista se refere à Academia Santa Rosa e à Bolsa Vitae, ele parece colocar o trabalho enquanto projeto em um molde que não lhe é satisfatório naquele momento. Suas novas motivações estéticas o afastam de um contato mais próximo com as vivências que teve anteriormente, e portanto do expediente do ensaio fotográfico. Quando as imagens da academia migram e fundamentam todo o trabalho da instalação Out of Nowhere, parece que tudo o que foi intuído e buscado no ambiente afetivo e de empatia da academia de boxe (negado, de certo modo, como projeto ensaístico) resolveu-se plenamente na instalação. Out of Nowhere mereceria um estudo à parte pela espessura simbólica que possui. Não é o caso de realiza-la aqui, mas trago as questões sobre o ensaio do boxe na Lapa, entre 1992 e 1994, e o surgimento da instalação Out of Nowhere, em 1996, como momentos geradores de imagens e associações que considero fundamentais para a feitura do livro Silent Book, inclusive como componente a contribuir com a ligadura expressiva da trama gráfica de suas páginas escuras. Tais imagens da academia da Lapa contribuem significativamente com as questões simbólicas e indiciais em torno do corpo e da sexualidade presentes no imaginário que o livro evoca. E, em certo sentido, a escuridão da instalação Out of Nowhere foi transposta, como fundo e marca, para o livro Silent Book. 307

309 4.1.8 Imaterialidades do objeto, materialidades da imagem Esse processo que se dá na poética do artista observada, panoramicamente, no início dos anos 2000 sugere uma hipótese: o que as instalações multiplicavam e punham a perder, de certo modo, em termos de consistência material e fotográfica na poética do artista, os livros, em contrapartida, faziam um movimento inverso e mais interessante, com o deslocamento simbólico presente na narrativa. Silent Book passa a ser um trabalho de retenção e expansão dos significados que se operam, simultaneamente, pela condição própria da fixação do labor impresso (o uso das imagens mais estáticas e descritivas dos objetos e pessoas) e pela potencialidade perceptiva do leitor no manuseio das páginas. Com a ininterrupta necessidade de deslocamento, revesamento, mobilidade, troca e ressignificação que se instaura na realização dos conjuntos seriais (os pequenos agrupamentos ) criados pelo artista, seus livros (especialmente Silent Book) apontam tanto para a aparente sedimentação dos significados quanto para sua recusa numa atitude de sobressalto em face da realidade a vida o assalta e o sobressalta. E também em face da realidade fenomenológica que suas fotografias despertam na recepção, os objetos no mundo o (nos) provocam, simbólica e indicialmente. Além das imagens de corpo, lutas e pele associadas aos elementos religiosos figuras de santos, ambientes de igreja e representações pictóricas, o conjunto narrativo de Silent Book abriga, pontualmente, imagens de objetos isolados, que funcionam como indícios de tempo, de morte ou perigo. Tais assuntos perpassam toda a trajetória de Rio Branco e aqui ganham uma sofisticação fotográfica que acentua detalhes formais, como o contraste ou a difusão da luz e o aspecto descritivo dos objetos. Esse tipo de apreensão do objeto faz uso da identidade conceitual a que se refere Cláudio Marra (2010, p. 10), a do impasse que está presente nessa identidade, em que a imagem fotográfica se assemelha a um quadro mas de fato funciona como um ready-made. 308

310 Figura 86: Imagens isoladas do livro Silent Book. No livro cada uma delas forma um díptico com páginas pretas /98, 2ª edição A maneira frontal, ou descritiva, com a qual os objetos são fotografados nos dá a impressão de estarmos diante de retratos desses índices, tal como foram feitos os retratos das pessoas. O que está ressaltado nessas imagens é tanto a ação potencial que os objetos evocam em sua simbologia quanto sua fisionomia enigmática de mensagem sem código, mas sempre na perspectiva de que é um signo em estado de devir e vulnerável a incorporar, em sua fisicalidade presente/ausente, outros sentidos atribuídos no gesto da leitura. A imagem do pequeno ovo sobre uma superfície de pedra é um desses momentos (Figura 86). Ela requer de nós uma atenção mais prolongada em sua apreensão. Primeiro vemos apenas o factual: um ovo sobre a soleira ou degrau de algum lugar. Os tons cinzentos envolvem inteiramente a imagem numa luz difusa, que torna tudo homogêneo. De tom monocromático, a imagem destaca o ovo. Somente a sua presença de objeto transformado em pura imagem documental: o índice em estado puro. Na observação mais atenta sobre a imagem, percebemos uma massa disforme e cinzenta, feito uma pasta sobre a soleira, ao lado do ovo. É um bicho, o cadáver ressequido e esmagado de um pássaro. Intensifica-se a justaposição dos dois signos dentro da imagem: pássaro morto e ovo. Há o drama bifurcado em dois sentidos: o de operar a ação explícita e automática do deslocamento, do ato de apenas subtrair aquelas coisas da realidade. E um outro, o que está no enredo implícito de mirada sobre a realidade: confrontar, na natureza semelhante de ambos objetos, aquelas coisas da vida, como índices simbólicos de um ciclo de vida e morte. 309

311 A fotografia do buraco cravado em um muro, enquadrado de modo oblíquo, também possui a dupla percepção de um signo vazio, que parece assumir, além de sua pura feição descritiva, apenas a plasticidade fotográfica de uma bela imagem (Figura 86). No entanto, é no ponto de vista oblíquo e no orifício escuro que se constrói uma fotografia insólita, que não descreve exatamente seu objeto como parece. Ela mais sugere, aponta, indicia para uma zona de desconhecimento (como a porta azul no início do livro). Funciona como um impasse na narrativa, indica uma direção ou uma atenção para algo que não se pode compreender exatamente. Ambas imagens mencionadas estão no livro quase solitárias. Não é para menos que constituem dípticos com quadrados escuros, as páginas negras sem informação (Figura 87), como mensagens sem códigos, ou quase sem códigos, nos encaixes seriais e narrativos que o livro propõe dentro de suas pequenas autonomias, mas como parte de um agrupamento maior, ainda que completamente fragmentado. Figura 87: Passagens do livro Silent Book. Dois dípticos com páginas pretas /98, 2ª edição Tais encaixes também articulam um conjunto de quatro outras fotografias com características semelhantes objetos isolados, que funcionam, ao mesmo tempo, como vestígios e sinais simbólicos: uma parede, uma maçaneta, um relógio, uma cruz. As quatro imagens se revezam na justaposição móvel do livro aberto com a página dupla. O sentido de tempo e morte está em suspensão nesse jogo. O enquadramento muito próximo ao objeto, da mesma forma que o descreve explicitamente, anula sua escala ação que faz mover, deslocar, ampliar o seu sentido, abstrair seu contexto e modificar o peso de sua simbologia (Figura 88). Não sabemos se se trata do fragmento de uma parede ou de um objeto talhado. Não temos ideia clara se o relógio é uma peça gigante ou pequena, mas a poeira que o recobre reforça a suspensão duradoura do tempo. Não sabemos se a cruz é de cimento 310

312 ou pedra qual sua matéria real? ou se está presa a uma lápide. A maçaneta talvez seja o objeto-imagem que causa menos dúvida indicial. Imaginamos seu tamanho e escala prováveis, mas a camada de poeira e as teias de aranha que a envolvem imprimem à imagem um estado de isolamento, de tempo morto, os tais signos de drama atribuídos ao trabalho de Rio Branco. Um objeto achado, extraído de seu contexto, quase puramente indicial, é colocado novamente em curso (em ação), na medida em que afeta e é afetado pelos outros que compõem o circuito o agrupamento construído pelo artista. O drama consiste não somente no que pode significar tal signo ou objeto em seu papel cultural, mas antes no que cada imagem (e objeto) fotográfica pode contrair ou dilatar em sua função sígnica. Figura 88: Passagens do livro Silent Book. Alternâncias de dípticos e trípticos /98, 2ª edição Nesse sentido, mesmo diante de fotografias claramente descritivas, continuamos sem saber sobre a realidade das imagens, colocadas em curso no enredo abstrato da justaposição. No entanto, é aí justamente que o trabalho abre um espaço de experiência para fruição, na qual relativizamos continuamente o peso simbólico dos objetos e a substância material das coisas. Alternamos constantemente entre a imaterialidade dos objetos e a materialidade das imagens como um outro tipo de concretude, própria das imagens mentais. O jogo conceitual ambíguo da fotografia a que se referiu Claudio Marra é intuído e experimentado com propriedade na poética do artista, pois a ideia (e 311

313 experiência) de presença na ausência, o sentido de tempo e memória estão invariavelmente no enredo de seus objetos encontrados, na experiência de um tempo que dilata, na ideia presente e ausente de alguém ou de alguma coisa. Pode-se assim falar de identidade material da fotografia quando esta seja considerada como objeto, como manufatura, como pedaço de papel sobre o qual se dá uma representação qualquer do mundo; se fala ao contrário de identidade conceitual quando a fotografia funciona não como substancia objetiva, mas como gatilho de estímulos mentais flutuantes (MARRA, 2010, p. 6). A perspectiva de Marra sobre a identidade da fotografia considera que, após um longo período histórico em que ela se viu no meio do combate com a pintura, seu uso dominante na cultura contemporânea não seria o da objetualidade pictórica, e sim o da desmaterialização conceitual. Essa dimensão desmaterializada (e a impressão de uma presença física) por vezes é encontrada, de modo singular, na poética de alguns artistas, como é o caso de Rio Branco. Ele incorporou fortemente a parcela de mundo vivido na relação com o assunto fotográfico (fotografado) e entendeu a capacidade de reelaboração dos signos com os quais se confronta. Silent Book (1998) representa, em diversos aspectos, a síntese do que Rio Branco intuiu e buscou desde os anos 1970, quando o cinema e a fotografia de feições documentais juntaram-se em seu percurso de formação. Foi preciso atravessar os anos 1980 e encontrar uma fala própria dentro da política de tradição da fotografia documental brasileira e latino-americana. O desejo pelo livro tornou-se um diferencial em sua poética e o exercício que o artista empreendeu em seu suporte foi, e é, ainda libertador de um molde formatado pela história canônica da linguagem documental. Silent Book chega ao final da década de 1990 como uma espécie de bússola com a qual é possível localizar um ponto inflexão do trajeto de Rio Branco: o das consagrações de suas obras tridimensionais e de certo abandono do ensaio fotográfico e do tema na fotografia. De um lado, a representação do mundo em pedaços é levada às últimas consequências nas narrativas de projeção. De outro, a observação mais imersiva nos lugares e a aproximação duradoura com as pessoas e personagens do cotidiano se reduzem, acentuadamente, por um afastamento da experiência vivida do mundo social. Essa bifurcação encontrada no percurso poético de Miguel Rio Branco é posta em perspectiva crítica em seus livros, especialmente em Silent Book. Sua qualidade conceitual resulta na articulação e encadeamento de imagens sofisticadas tanto do ponto 312

314 de vista formal quanto sígnico. A figura humana (e suas representações), os objetos e vestígios fixados contundentemente em primeiro plano experimentam uma mobilidade extraordinária na estrutura gráfica do livro. Paradoxalmente, o livro exercita um tipo de fixidez e ressignificação que põem em crise a validade do mundo espiralado e vertiginoso das imagens que se diluem de fato na transparência das projeções. O discurso que Rio Branco empreendeu na obra impressa seria o tensionamento que traduz a questão da desmaterialização no signo fotográfico e que confere à sua poética uma identidade possível. Silent Book permite que tal desmaterialização seja de caráter mais conceitual em comparação ao efeito arrebatador da objetualidade pictórica das projeções. 313

315 De volta ao começo CONSIDERAÇÕES FINAIS

316 O LIVRO COMO (DES)MATERIALIZAÇÃO A LINGUAGEM DOS DOCUMENTOS EM SÉRIE O livro concebido como trabalho de arte, obra autônoma, passou a exercer uma função das mais expressivas na obra de Miguel Rio Branco. Operam como um dispositivo no qual a experimentação sequencial desencadeia a desmaterialização como um conceito forte. É importante destacar que o seu exercício com o livro não está atrelado aos conceitos estritos do fotolivro, apesar de sua obra impressa ser festejada e consagrada pela comunidade produtora desse gênero. Primeiramente porque, antes de tudo, podemos constatar que, diante do volume, qualidade e diversidade de sua produção, o artista lida com publicações de diversas naturezas, gêneros e funcionalidade. Isso nunca o impediu de conceber nessa diversidade funcional o trabalho de artista. E, segundo, porque o conceito de fotolivro é frágil na mesma medida em que a ideia de livro de artista é vasta e ampliou-se bastante nas discussões conceituais da arte contemporânea. O livro pode ser considerado uma experiência de desmaterialização, no sentido de que funciona como sequência de espaço-tempo no qual um discurso se constrói no lugar compartilhado entre escritor/artista e leitor/espectador. A fotografia como discurso tomou o espaço do livro desde os primeiros tempos de seu surgimento. Primeiramente porque veio a ser um documento de outra natureza acoplado ao texto e, ao mesmo tempo já era em si um discurso de natureza distinta que dinamizou a lógica de reprodução e multiplicação da informação, tanto textual quanto visual. Nas primeiras décadas de sua evolução técnica, a fotografia já se tornava meio e mensagem. Portanto, o espaço de construção de linguagem nos meios impressos já contava com a fotografia como documento e expressão. Texto e imagem iniciavam uma parceria mais intensa, que se manifestou repentinamente em vários campos do conhecimento, estreitando as relações entre ciência, arte e história. O aspecto descritivo e, à primeira vista, fiel da realidade, não intimidou o poder imaginativo que a fotografia podia suscitar, muito menos os espaços discursivos que podia instaurar por meio dos suportes impressos. Apesar da história ressaltar em especial a segunda metade do século XIX o documento fotográfico como signo circunscrito às informações de caráter objetivo, havia na contracorrente desencadeada 315

317 pela cultura visual um outro tipo de produção, pensamento e atitude em relação ao potencial expressivo e artístico da imagem fotográfica. A intensa e variada produção visual que se dá a partir principalmente da década de 1870, em meio ao debate entre fotografia e arte e que se estende às vanguardas das primeiras décadas do século XX, mudam as noções de documento. Os livros e publicações de naturezas diversas efetivaram essa mudança e constituíram uma nova percepção e escrita com imagens. O espaço para a materialização da fotografia encontrou-se no livro à medida que a imagem se autogerava em sua própria vocação para a multiplicidade. Vimos no primeiro capítulo que as revisões propostas por Olivier Lugon sobre a constituição do gênero documental entre a Alemanha e EUA revelam uma série de complexidades, usos e procedimentos conceituais em que o suporte livro participa, de modo importante, na constituição da linguagem fotográfica. As publicações Das land der Deutschen (A Terra dos Alemães), de Robert Petschow; Urformen der kunst (Formas Originárias da Arte), de Karl Blossfeldt; e Die welt ist schön (O Mundo é Bonito), de Albert Renger-Patzsch, produzidas na Alemanha entre 1928 e 1931, mereceram a atenção pelo que representam na história dos livros e pelo debate que suscitam em torno da fotografia como documento e arte. A discussão crítica em torno de suas questões formais já se constituiu, na época, um debate complexo não só sobre as vicissitudes da conceituação moderna do gênero documental, mas enquanto exercício de linguagem da fotografia no suporte impresso. Tais aspectos embrionários reverberam e permanecem importantes para relativizar a noção restrita de fotografia documental na produção contemporânea. As séries aéreas de Petschow são revistas menos por sua qualidade formal, seus aspectos abstratos e sua capacidade de nos provocar um... maravilhamento diante de um mundo familiar transformado repentinamente em enigma, em estranho desenho... (LUGON, 2001, p. 65). A questão trazida no estudo de Lugon é mais atenta ao foco preciso sobre o mundo, no qual a vista aérea fotográfica seria um instrumento de decifração e não de mistério, um instrumento documental (topofotográfico) de reconhecimento do objeto (Figura 89). Esse fator estrito é aliado à sistematização da série e a um conjunto amplo de imagens: o procedimento serial e a quantidade das fotografias aéreas de Petschow organizam-se sob um único tipo de ponto de vista. Esse tipo de abordagem concentrada 316

318 do objeto daria mais sentido ao conceito de documental segundo a estética da Nova Objetividade em contraposição à dispersão fragmentária dos enquadramentos variados da Nova Visão, em que a realidade representada se tornaria um conjunto de experiêciasenigma. Figura 89: Capa e imagens do livro A Terra dos alemães, Robert Petschow, Fonte: MOMA. A percepção crítica de Lugon tem como referência a análise de Walter Petry em dois artigos de 1929, nos quais toma a defesa da fotografia como documento, tendo como parâmetro as distinções entre os movimentos mencionados. A defesa é pela fotografia documental como um ato liberto da variedade na composição orientado seja por uma frontalidade, seja pela economia máxima do ponto de vista. O sentido novo alcançado no trabalho de Petschow deu-se no desdobramento das imagens na forma de série, incorporadas sequencialmente no curso do objeto impresso. A importância de seu trabalho foi adquirida no suporte do livro, sob o título Das land der Deutschen (A Terra dos Alemães), lançado em O mesmo ocorre com Urformen der kunst (Formas Originárias da Arte), de 1928 (Figura 90 e 15). Karl Blossfeldt não pertencia ao meio fotográfico. Era ligado a uma geração do movimento Jungendstil portanto, mais velho que os artistas da vanguarda fotográfica. Porém, a importância da imensa série que produziu de plantas como repertório de documentação para seus alunos da Escola de Artes Aplicadas em Berlim veio à tona quando se transformou em livro. A recepção do trabalho foi absorvida pela análise crítica da época, que o associou à fotografia de vanguarda, do movimento Nova Objetividade. 317

319 Figura 90: Imagens do livro Urformen der kunst (Formas primeiras/originarias da arte), Karl Blossfeldt, Fonte: Christopher Wahren Fine Photographs. Mesmo deslocado da geração e da efervescência da época, Blossfeldt é colocado em comparação às imagens de Renger-Patzsch, do livro Die welt ist schön (O Mundo é Bonito), de Petry destaca como qualidade o fato de Blossfeldt extrair do conjunto uma força que estaria, primeiramente, em sua condição extrema de documentação, ou seja, sem rasgos artísticos em seu aspecto formal. Trata-se de uma série em que diversas plantas em torno de seis mil são rigorosamente fotografadas do mesmo modo frontal e igual enquadramento em fundo neutro. Petry enfatiza o rigor econômico de Blossfeldt em contraponto ao desperdício sem propósito que haveria no trabalho de Renger-Patzsch. observem a diferença entre os trabalhos de Blossfeldt et os de Renger-Patzsch. Um revela sistematicamente uma categoria bem específica de documentos fotográficos ( ), o outro, ( ) inegável na composição elegantemente articulada do objeto ( ) me parece, esbanjador no emprego de suas capacidades (PETRY, 1929, p. 65) No original: Pour comprendre ce que j entends par le gaspillage sans but de grands moyens, observez la différance entre les travaux de blossfeldt et ceux de Renger-Patzsch. L un développe sistématiquement une catégorie bien spécifique de documents photographiques (...), l autre, dont le nom représentait jusqu à présent le plus haut sommet acssesible par la photographie, inégale dans la composition élégamment articulée de l objet, est, me semble-t-il, dépensier (verschwenderisch) dans l emploi de ses capacités. 318

320 A amplificação do trabalho tornou-se evidente quando da publicação do livro que reuniu 120 imagens. O novo suporte conferiu um tipo de mobilidade inusitada à imagem fixa das plantas e despertou uma recepção crítica complexa, feita de opiniões distintas sobre a série. A análise de Petry valorizou o caráter inexpressivo da captação diferentemente de outras abordagens e colaborou no processo de consolidação do gênero documental, especialmente no debate europeu, dentro da Alemanha. A ênfase no suporte do livro revela a descoberta do mecanismo serial na utilização da fotografia enquanto documento e signo plástico. A transposição do debate alemão para a formatação do gênero nos EUA também ocorreu pela importância conceitual que a fotografia adquiriu por meio do livro. O sentido da série como discurso foi apropriado e adaptado ao interesse norte-americano pelas questões sociais. O período que marca a aparição dos livros Formas Originárias da Arte, em 1928, e Terra dos Alemães, em 1931, é o mesmo em que Walker Evans escreveu seu texto The reappearance of photography (1931). Mencionado no primeiro capítulo, o texto propõe uma análise crítica da fotografia com base em seis publicações europeias (dentre as quais as de August Sander, Edward Steichen, Renger-Patzsch e Eugène Atget), o que acentua o fato de que sua formação sobre a linguagem fotográfica se dá a partir dos livros aos quais teve acesso. A experiência da fotografia como linguagem no suporte impresso é parte fundamental da história da fotografia e desafia a suposta linearidade de sua cronologia. A história do livro fotográfico é a história da fotografia como documento e discurso, e, portanto, se a observarmos mais detidamente sobre a particularidade das obras realizadas ao longo do tempo, descobrimos que se trata de uma história construída por constantes anacronismos - ainda que a sistematização das teorias sobre livro de artista venha contribuir profundamente com esse campo, somado ao esforço de colocar em pauta (e no mercado) uma distinção referente ao conceito de fotolivro. Nesse caso, o universo teórico do livro de artista tem muito mais a contribuir para a análise do livro como trabalho de arte fotográfica. As teorias contemporâneas sobre livro de artista são mais amplas e eficazes em dar conta dos fios anacrônicos importantes que escapam da cronologia tramada pela história oficial. Sem pretender, de modo algum, apresentar um conjunto de trabalhos representativos da história nesse campo, mas muito motivado pela poética de Miguel Rio Branco construída por meio do livro, proponho considerar o valor artístico do livro 319

321 fotográfico pelos fios anacrônicos que algumas obras (somadas às referências alemãs) despertam em suas particularidades conceituais, históricas e topofotográficas. Street life in London, O escocês John Thomson é um importante exemplo situado mais atrás na história. Ele publicou em 1877 o livro Street life in London em parceria com Adolphe Smith. A presença de Thomson traz três aspectos a serem considerados: o livro como suporte e criação para a imagem fotográfica, como difusão comunicativa e como experiência entre texto e fotografia enquanto narrativa, em um período antes da expansão da reprodutibilidade da imagem, que se daria mais fortemente na virada para o século XX. A impressão de Street Life in London deu-se pelo processo de Woodburytype, um dos mais sofisticados da época, mas que demandava um grande esforço pelo tamanho e estrutura das máquinas, em um período em que processos de impressão estavam se desenvolvendo e não haviam alcançado ainda uma envergadura industrial. Há também no livro de Thomson a relação menos hierárquica entre imagem e texto, bem antes da eclosão das revistas ilustradas. E, finalmente, a intenção nitidamente social do projeto, focado na vida de rua e nas condições de pobreza do povo londrino em plena era vitoriana. As 36 imagens do livro exibem uma composição que combina elegância no enquadramento e certa naturalidade construída, que parece não tentar simular uma realidade, mas comentá-la. 320

322 Figura 91: Italians street musicians e Recruiting Seargent in Westminster - Imagens do livro Street life in London, John Thomson e Adolphe Smith, Nesse sentido, a parceria entre texto e imagem torna a publicação única para o período, antecipadora das conceituações sobre o gênero documental no século XX e, em muitos aspectos, inovadora mesmo à luz das produções contemporâneas em fotografia, pois exercita uma linguagem que se situa entre a comunicação e as artes visuais. Os textos de Adolphe Smith partem de observações, narrativas e relatos que nos permitem chegar mais próximo dos personagens londrinos cuja vida se constrói na rua: floristas; vendedores de peixe; carroceiros; engraxates; músicos; feirantes; cocheiros; comerciantes; garis e diversos tipos de ambulantes e pequenos comerciantes. Os textos contam histórias, identificam as ocupações, descrevem situações do cotidiano dos personagens. Os títulos escapam da generalização, ou de uma catalogação informativa, e refletem uma abordagem em que a escrita conduz quase sempre para a narração de um fato particular, colaborando, assim, com a própria construção da imagem: The Cheap Fish of St Giles, Italians Street Musicians, The Flying Dustman, Recruiting Seargent in Westminster, entre outros, funcionam como dispositivo para o relato (Figura 91). 321

323 Tanto John Thomson como Adolphe Smith foram profissionais profundamente envolvidos com a linguagem de seus respectivos meios de expressão. Voltado para questões cotidianas das classes trabalhadoras, Smith era escritor e ativista independente, com atuação bastante crítica em relação às instituições oficiais, como a Trade Union, que se ocupava em representar os interesses dos trabalhadores londrinos. Thomson era um fotógrafo cuja atividade documental variada incluiu trabalhos em outros países e um famoso ensaio sobre a vida vitoriana. Benjamin Blom, responsável pela segunda edição de Street Life in London, em 1969, destaca que a sofisticação do trabalho de Thomson incluía composição e observação: Thomson compôs suas imagens com igual atenção ao entorno e aos personagens centrais. A pessoa tornou-se uma intricada parte de seu meio, até mesmo de sua profissão, assim como os textos de Smith, o indivíduo foi visto como trabalhador em um ofício particular de Londres, um membro de certo estrato de uma inesperada classe social diversa. Nas mãos de John Thomson, a câmera primeiro mostrou seu potencial como veículo para o comentário social (BLOM In: SMITH; THOMSON, 1969). 127 De fato, as imagens de Thomson demonstram que sua observação acurada talvez fosse o mote para a própria construção da cena, ou mesmo um tipo de reencenação da experiência vivida. Em 1877, as câmeras ainda eram mais pesadas e o tempo largo de exposição conduzia a um resultado mais para a cena posada do que para a naturalidade associada ao instantâneo. Algumas imagens flagram esse limite (Figuras 92 e 93). Em uma época em que não se conceituava exaustivamente a função do documento na fotografia, o ensaio de Thomson e Smith, entre a fotografia e o texto, resultou em um exercício revigorante entre a literatura e a bela arte. Conceitual e historicamente, o livro opera também no limite em que o trabalho fotográfico é irremediavelmente influenciado pela experiência compositiva da pintura, porém procura comunicar a um público mais vasto as cenas e os problemas do cotidiano de uma metrópole moderna do século XIX. Smith, como escritor e ativista, e Thomson, como fotógrafo e repórter, parecem possuir tal consciência, como pode ser visto neste parágrafo final do prefácio, assinado por ambos na primeira edição de No original: Thompson ( ) composed his pictures with equal attention to surroundings and to central characters. The person became an intricate part of his milieu, even of his profession, just as' in the Smith essays, the individual was seen as worker in a particular London occupation, a member of a certain strata of an unexpectedly diverse social class. In John Thompson's hands, the camera first showed its potential as a vehicle for social comment. 322

324 Ao mesmo tempo, nós visitamos, armados com caderno e camera, aquelas ruas clandestinas e quarteirões onde a luta pela vida não é nada menos que amarga e intensa, porque é menos vigiada. Aqui, se apresentaram o que pode ser chamado de estudos mais originais, e vão ajudar a completar o que sabemos ser uma narrativa realista sobre as os vários modos pelas quais os nossos infelizes companheiros-criaturas se aventuram para ganhar, pedir, ou roubar o seu pão de cada dia (SMITH; THOMSON, 1969). 128 Tal compromisso com a escrita e com a imagem aparenta, duplamente, um envolvimento com a linguagem que cada um dispõe como meio de expressão e a liberdade e despojamento com que atuam para além do debate latifundiário sobre o território da fotografia e o da arte. O que me pareceu importar foi o compromisso em realizar um ensaio escrito e visual sobre a população de uma cidade, cujo interesse social partiu fundamentalmente da observação particular sobre suas micro-histórias. A intimidade dos relatos só pôde ocorrer de tal modo pelo acontecimento da proximidade estabelecida entre Thomson, Smith e os personagens reais da Londres da época. A qualidade formal do projeto se realiza no ritmo continuamente alternado entre texto e imagem e nas características do processo Woodburytipe, que favorece a concepção das imagens, como destaca Benjamin Blom. O valor documental e social do trabalho de Thomson não deve obscurecer sua importância como excelente exemplo da antiga fotografia vitoriana. A mais notável característica em todas as fotografias reproduzidas em Street Life é sua qualidade tonal mais quente alcançada por meio do processo woodburytype de impressão. O resultado foi uma duradoura impressão a qual dificilmente pode ser distinguida de fotografias atuais (BLOM In: SMITH; THOMSON, 1969) No original: At the same time, we have visited, armed with notebook and camera, those back streets and courts where the struggle for life is none the less bitter and intense, because less observed. Here what may be termed more original studies have presented thernselves, and will help to complete what we trust will prove a vivid account of the various means by which our unfortunate fellow-creatures endeavour to earn, beg, or steal their daily bread. 129 No original: The social and documentary value of Thompson's work should not obscure its importance as excellent examples of late Victorian photography. The most striking feature in all of the photographs reproduced in Street Life is their warm tonal values, achieved through use of the Woodburytype process of printing. The result was a very permanent print which could hardly be distinguished from an actual photograph 323

325 Figura 92: Street advertising e Cheap fish of St Giles - Imagens do livro Street life in London, John Thomson, Como atesta Blom, o caráter de documento de Street Life in London não o exclui do universo artístico da fotografia da época, talvez por compartilhar um período em que as relações entre imagem fotográfica, gravura e pintura expandiam-se enormemente por causa dos avanços dos meios de reprodução e difusão. As décadas de 1870 e 1880 são especialmente caracterizadas por um movimento de circulação de imagens. Em muitos aspectos, os meios de produção e difusão da imagem estavam, na prática, desatrelados das preocupações sobre o status artístico da fotografia em relação à pintura. Havia, sim, uma intensa economia visual em pleno estado de desenvolvimento, o que faz do livro de Thomson e Smith uma peça importante e reveladora daquela época. Street life in London é, antes de tudo, um livro que exercita as potencialidades do meio. Não caberia em nenhum tipo de conceituação mais estrita da tradição do livro de artista e muito menos da precoce consagração da limitada ideia de fotolivro. Trata-se de uma obra potencial para se pensar as questões em torno dos anacronismos da imagem fotográfica e reconsiderar que o universo do livro, como trabalho de arte e linguagem, põe, em primeiro plano, as motivações de seu autor, de seu artista, seja ele do século XIX ou do XXI, e que a noção de autoria já vinha se diluindo desde o momento em que os processos de multiplicação de imagens começaram a ganhar mais velocidade. 324

326 Figura 93: A convict s home e Workers on the Silent Highway - Imagens do livro Street life in London, John Thomson, Considero que esses aspectos do trabalho de Thomson já lidavam com conceitos, processos de produção e intenções, que foram mais sistematicamente disseminados em pleno apogeu do século XX. As revisões propostas por Lugon sobre as concepções da fotografia documental e o debate das vanguardas concentradas na experiência alemã e na efetivação da fotografia na sociedade americana fornecem-nos ferramentas teóricas para olhar, simultaneamente, mais para trás e mais para frente. Não à toa, ele destaca o papel da poética serial na constituição do sentido da fotografia e do suporte do livro nesse processo. Twenty Six Gasoline Station, Num longo salto, bem mais à frente na história, o livro fotográfico Twenty Six Gasoline Station, de Edward Ruscha, é quase unanimidade entre os pesquisadores como o primeiro livro de artista (Figura 94). A despeito das mais variadas considerações em torno de obras do início do século XX e outras referências embrionárias já no século XIX, é interessante notar que o livro que inaugurou uma sistemática histórica na produção do livro de artista já nasceu, sob certos aspectos, um híbrido entre a manufatura e a produção mecânica da fotografia já que sua produção foi realizada em impressão em offset. 325

327 Figura 94: Passagens do livro Twenty six gasoline station Ed Ruscha, Fonte: O processo de separação das quatro cores, a relação que o método permitiu entre as artes gráficas e as artes visuais, já no contexto das vanguardas artísticas, torna o offset um aliado da difusão da fotografia no livro. Aliás, a imensa produção de livros fotográficos importantes ocorrida naquele período deve-se ao processo em offset, incluindo algumas peças preciosas de Man Ray, em parceria com poetas surrealistas por exemplo. 130 Não se trata de chamar para o território da fotografia a posse da instauração do livro de artista, mas sim observar que o uso que Ruscha fez do signo fotográfico, deslocado de sua conformação plástica e destituído de seu valor artístico moderno, fez a diferença sobre a natureza do trabalho. O que ele quis com Twenty Six Gasoline Station, e mais outros livros que produziu com a mesma concepção, foi negar a arte da fotografia e exaltar as peças impressas comuns da informação industrial. Como ressalta Steve Edwards (2004, p. 142), o contexto da produção fotográfica na arte conceitual, na qual se insere Ruscha, levou tão ao extremo a fotografia vernacular da tradição moderna americana que retirou delas todo e qualquer resquício de artisticidade. Sobrou somente uma dura banalidade que caracterizava o trabalho e surpreendia o espectador. E Ruscha enfatiza a negação: Antes de tudo, as fotografias que uso não são arty em nenhum sentido da palavra. Eu acho que a fotografia está morta como fine art; seu 130 Alguns desses trabalhos são as publicações Electricité (1931), Facile (1935) e 1929 (1929). (Martin Parr e Gerry Badger, 2006). 326

328 único lugar está no mundo comercial, para fins técnicos e comerciais (Edwards, 2004, p. 142). 131 Se Ruscha acreditava que o lugar da fotografia estava nos meios comerciais de circulação, optou pelo suporte impresso, ao estilo (se é que podemos chamar assim) dos catálogos, manuais e folders, daí a feição de Twenty Six Gasoline Station, Some Los Angeles Appartments e Twenty Four Parking Lots, por exemplo. E a ideia de arte surge mais no objeto livro do que nas imagens. Martin Parr e Gerry Badger (2006, p. 141) sublinham um aspecto importante. O aparente anti-formalismo e a técnica indiferente das imagens de Ruscha foi ridicularizada; o perfeito formalismo de cada livro enquanto objeto não foi apreciado. Igualmente foi ignorado o interesse e débito de Ruscha para com dois notáveis da fotografia Walker Evans e Robert Frank. 132 Reativo à estética por via da tradição conceitual, o livro de Ruscha abre uma fenda também no gênero documental engrandecido pela experiência americana. É documento em toda sua vasta ideia de sinonímia com o termo alemão Dokument, mas não é documental em sua recusa ao estilo. Nesse sentido, Ruscha (dos anos 1960) retoma alguns aspectos dos livros alemães de Renger-Patzsch, Blossfeldt e Petschow, dos anos 1920/30, apesar das características distintas que possa haver entre eles. O que permanece como questão artística do trabalho fotográfico de Ruscha é a materialidade do livro como objeto e experiência, portanto, um tipo de fruição que incorpora a (des) materialização do signo fotográfico. Amazônia, No Brasil, no campo do livro fotográfico, dentre os trabalhos que merecem atenção especial, está uma obra produzida em 1978, que, embora não seja mencionada por Rio Branco em nenhuma das matérias, resenhas e entrevistas ao longo dessas décadas e analisadas nessa pesquisa, ocupa um lugar fundamental na produção fotográfica e de livro no país e que, certamente, toca de modo especial uma geração de artistas da fotografia que se formou nos anos 1970: o livro Amazônia, de Claudia Andujar e George Love (Figura 95). 131 No original: Above all, the photographs i use are not arty in any sense of the Word. I think photography is dead as fine art; its only place is in the commercial world, for technical or information purpose. 132 No original: The apparent anti-formalism and indifferent technique of Ruscha s pictures was derided; the perfect formalism of each book as an object was not appreciated. Also disregarded was Ruscha s interest in, and debt to, two of photography s luminaries Walker Evans and Robert Frank. 327

329 De formato 27 cm X 20 cm, com capa dura em tecido e luva em tecido, constituído de 147 fotografias em cor e design assinado em parceria com Wesley Duke Lee, Amazônia exibe, de forma contínua, imagens horizontais que tomam quase inteiramente o espaço da página, apenas com uma borda branca estreita, que serve de moldura. Com o livro aberto, as fotografias unem-se no centro do objeto, na marca da costura das páginas, de modo que o livro inteiro é uma sucessão de dípticos que se confundem muitas vezes com fotografias panorâmicas, não somente pela união das imagens, mas principalmente pelo aspecto abstrato e experimental com que o tema é captado pelos dois fotógrafos. Só em dois momentos a horizontalidade é quebrada por dois pares de imagens verticais, que se juntam igualmente no centro do livro aberto. Figura 95: Passagens do livro Amazônia de Cláudia Andujar e George Love Fonte: Fernández Horacio, Reprodução: Mariano Klautau Filho A narrativa visual segue um curso linear e monocórdico pela repetição econômica de seu modo gráfico, mas é justamente nessa repetição que o livro tem um ritmo musical fluido, constante, em que a paisagem vai se apresentando em mutações variadas, desde a imensidão verde em vistas aéreas, as visões de céu e nuvens em paisagens ao entardecer, até a presença dos índios, das plantas e sombras das florestas, aos detalhes de cores distorcidas e imagens borradas. A Amazônia de Andujar e Love é uma experiência onírica e sombria sobre a região, põe o leitor dentro da narrativa numa espécie de transe. Aliás, algumas imagens 328

330 aludem diretamente ao êxtase das atmosferas de rituais indígenas, dos quais Andujar efetivamente participou nas tribos Yanomami, com as quais esteve ligada profundamente nos anos 1970 (Figura 96). Figura 96: Passagens do livro Amazônia de Cláudia Andujar e George Love Fonte: Fernández Horacio, Reprodução: Mariano Klautau Filho A experiência formal impressa em Amazônia toma partido tanto da luz natural e das formas da natureza quanto das interferências físicas sobre a película, em processos de revelação alterados, vazamentos de luz no fotograma, que se misturam aos efeitos de velocidade na captação do objeto. Assim, surge uma região amazônica que, embora pareça quase fantástica, assume uma conformação trágica e política no contexto em que o livro é lançado. 133 O livro traduz, de maneira peculiar e na combinação singular de dois olhares, a carga de imaginário que se tem sobre a região, em pedaços incompletos de uma suposta documentação apoiada na expressão visual da natureza física da fotografia. O fluxo das imagens de Amazônia possui uma vibração do cinema, diria até mais próxima da lógica do vídeo, tal é a mobilidade evocada pela narrativa, que lembra o slow motion operado em algumas obras videográficas dos anos Além disso, o livro, por sua característica experimental e abstrata, tanto na captação do objeto documentado quanto nos efeitos dos próprios processos químicos e físicos, constrói uma certa imponência dos índices que passam a conter/esconder sob a visão de maravilhamento da floresta as simbologias da perda da natureza. O tom lírico e político do livro Amazônia impactou a geração de artistas da fotografia, no final da década de 1970, e ainda impressiona as gerações atuais pela 133 O livro teve o texto Amazônia Pátria das Águas, do poeta Thiago de Mello, retirado do livro pela censura. Cf. FERNANDEZ, 2011, p

331 intensidade formal e narrativa que sugere como manifesto cultural, sem que cada uma dessas camadas se sobreponha às outras. Quando o livro foi lançado, Miguel Rio Branco também expunha seu Negativo Sujo no Parque Laje no Rio de Janeiro, que, como já vimos anteriormente, tratava-se de uma grande quantidade de imagens justapostas de um cosmos encontrado no interior do Nordeste, só que, na sua maioria, em preto e branco e sem nenhum grau de lirismo em comparação à Amazônia. Negativo Sujo esteve no MASP em 1979, numa época marcada pelo desenvolvimento da fotografia no museu. Love e Andujar atuaram no Departamento de Fotografia 134 da instituição e ministravam cursos de fotografia juntamente com outros fotógrafos. Havia uma proximidade entre Rio Branco e Andujar, e o interesse em comum pelas questões sociais e indígenas. 135 Rio Branco buscou esse universo mais constantemente durante os anos 1980, como já vimos. A visão densa e trágica do paraíso natural brasileiro de certo modo une as poéticas de Rio Branco, Andujar e Love. Podemos perceber que o impasse e o conflito permanente que Rio Branco tem com a abordagem documental produzem algumas semelhanças estéticas com universos de Andujar. As cores sombrias e os efeitos de movimento observados em trabalhos de Love poderiam criar uma conexão com a intensificação das cores que foi assumindo o trabalho de Rio Branco dos anos 1980 em diante. A experiência de fruição do livro Amazônia remete muitas vezes à fragmentação e à evanescência das superposições de imagens que constituem as projeções de Rio Branco. O filme evocado em sua narrativa reverbera fortemente na instalação Entre os Olhos, o Deserto (1997), onde as visões da natureza possuem a mesma eloquência e mutação infinita entre o plano vasto das paisagens abertas e alguns objetos muito próximos do olho. Ambos trabalhos, mesmo em se tratando de um livro e de uma instalação e realizados por artistas distintos, possuem uma mesma música em suas composições narrativas. Considero aí a existência de um tipo de intertextualidade poética que representaria uma questão da fotografia documental brasileira: a natureza da subversão que Andujar, Rio Branco e Love compartilham está no limite entre a experiência da 134 O Departamento foi criado em 1976 sob supervisão de Claudia Andujar que já dirigia o curso de fotografia no MASP (SOARES, 2006). 135 Andujar lançou, também em 1978, o livro Yanomami. 330

332 tradição do oficio do fotojornalismo 136 de caráter documental e uma abordagem fenomenológica da realidade social brasileira. Os três artistas são representantes de uma pequena parcela de fotógrafos brasileiros, formados nos anos 1970, que contornaram as contingências da fotografia de reportagem e absorveram a vivência do ofício a favor de um projeto em poética. Andujar, Rio Branco e Love são repórteres, artistas do livro e de projetos expositivos. George Love teve menos tempo para ampliar tal dimensão conceitual, pois faleceu em Mas certamente os três atravessaram os anos 1980, construindo um percurso dissonante em relação ao campo em que atuavam como ofício. Figura 97: Capa e imagem interna do livro A cidade da Bahia, de Mário Cravo Neto, Fonte: Fernández Horacio, Reprodução: Mariano Klautau Filho Figura 98: Capa e imagem interna do livro Os estranhos filhos da casa, de Mário Cravo Neto, Fonte: Fernández Horacio, Reprodução: Mariano Klautau Filho 136 Andujar e Love também atuaram na revista Realidade. 331

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